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“A Tempestade” – episódio naturalista (Canto VI) Para completar os perigos passados pelos portugueses só faltava uma tempestade que Camões soube descrever com pinceladas de autêntico realismo, não tivesse também ele sido vítima de naufrágio. Adivinha-se, vê-se, ouve-se e sente-se com ele a aflição e gritaria dos nautas dentro das frágeis caravelas ao sabor das ondas altíssimas impotentes perante a natureza em fúria com relâmpagos, raios, trovões e ventos que “como touros indómitos” bramam e assobiam "pela miúda enxárcia”. Vasco da Gama, “confuso de temor, da vida incerto” pede proteção à “divina Guarda, angélica, celeste”. - Vasco da Gama e os nautas saíram de Melinde em direção à Índia acompanhados por um piloto melindano; porém, antes de aportarem na Índia, os nautas sofrem uma terrível tempestade marítima provocada por Neptuno (estrofes 70-85); a fúria da tempestade irá levar Vasco da Gama a dirigir uma súplica a Deus ou «Divina Guarda»; será Vénus quem irá ajudar os nautas, seduzindo em conjunto com as ninfas os ventos que deste modo abandonarão a agitação em que tinham posto o mar. - a chegada a Calecut é mencionada na estrofe 92: - a chegada à Índia ocorre numa manhã luminosa (prenúncio do sucesso que irá ser alcançado pelos nautas após tantas dificuldades em terra e no mar); como consequência, os nautas sentem-se finalmente descansados, tal como sugere o hipérbato no verso «o temor vão do peito voa». O avistar da terra que buscavam vai levar Vasco da Gama a agradecer a Deus esta vitória sobre o medo, a incerteza e os terríveis perigos que acompanharam a viagem: «Os joelhos no chão, as mãos ao Céu,/ A mercê grande a Deus agradeceu.» porque, tal como é referido na estrofe 94, Vasco da Gama sentia-se «Como quem despertou de horrendo sonho». - a propósito desta vitória, Camões indica a via que devem seguir aqueles que pretendem alcançar a glória e a imortalidade; esse prémio ou «honras imortais e graus maiores» (95) são merecidos quando resultam de trabalho árduo e do autodomínio que permite vencer os temores individuais, isto é, da conquista de si próprio. Por isso aqueles que têm fama e nada fizeram de importante para a obter são aqui criticados. Estes, os que não merecem usufruir do sucesso são os nobres que vivem «encostados» ou dependentes da família na qual nasceram ou dos «Troncos nobres dos seus antecessores» e que, sendo ricos e estimados em função do lugar importante que ocupam na hierarquia social, nada fazem de meritório porque se dão à preguiça, tornando-se ociosos e efeminados (96) devido ao luxo em que vivem.

Os Lusíadas_A Tempestade

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Episódio "ATempestade"

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A Tempestade episdio naturalista (Canto VI) Para completar os perigos passados pelos portugueses s faltava uma tempestade que Cames soube descrever com pinceladas de autntico realismo, no tivesse tambm ele sido vtima de naufrgio. Adivinha-se, v-se, ouve-se e sente-se com ele a aflio e gritaria dos nautas dentro das frgeis caravelas ao sabor das ondas altssimas impotentes perante a natureza em fria com relmpagos, raios, troves e ventos que como touros indmitos bramam e assobiam "pela mida enxrcia. Vasco da Gama, confuso de temor, da vida incerto pede proteo divina Guarda, anglica, celeste.- Vasco da Gama e os nautas saram de Melinde em direo ndia acompanhados por um piloto melindano; porm, antes de aportarem na ndia, os nautas sofrem uma terrvel tempestade martima provocada por Neptuno (estrofes 70-85); a fria da tempestade ir levar Vasco da Gama a dirigir uma splica a Deus ou Divina Guarda; ser Vnus quem ir ajudar os nautas, seduzindo em conjunto com as ninfas os ventos que deste modo abandonaro a agitao em que tinham posto o mar. - a chegada a Calecut mencionada na estrofe 92: - a chegada ndia ocorre numa manh luminosa (prenncio do sucesso que ir ser alcanado pelos nautas aps tantas dificuldades em terra e no mar); como consequncia, os nautas sentem-se finalmente descansados, tal como sugere o hiprbato no verso o temor vo do peito voa. O avistar da terra que buscavam vai levar Vasco da Gama a agradecer a Deus esta vitria sobre o medo, a incerteza e os terrveis perigos que acompanharam a viagem: Os joelhos no cho, as mos ao Cu,/ A merc grande a Deus agradeceu. porque, tal como referido na estrofe 94, Vasco da Gama sentia-se Como quem despertou de horrendo sonho. - a propsito desta vitria, Cames indica a via que devem seguir aqueles que pretendem alcanar a glria e a imortalidade; esse prmio ou honras imortais e graus maiores (95) so merecidos quando resultam de trabalho rduo e do autodomnio que permite vencer os temores individuais, isto , da conquista de si prprio. Por isso aqueles que tm fama e nada fizeram de importante para a obter so aqui criticados. Estes, os que no merecem usufruir do sucesso so os nobres que vivem encostados ou dependentes da famlia na qual nasceram ou dos Troncos nobres dos seus antecessores e que, sendo ricos e estimados em funo do lugar importante que ocupam na hierarquia social, nada fazem de meritrio porque se do preguia, tornando-se ociosos e efeminados (96) devido ao luxo em que vivem. - a receita para alcanar a imortalidade referida por Cames nas estrofes 96 e 97: preciso que esta gente protegida pelo destino desde o nascimento participe nos combates ao lado dos menos afortunados, Vigiando e vestindo o forjado ao, sindoque de armadura (a figura de estilo que refere o material em vez do objeto feito com esse material) sofrendo tempestades e ondas cruas (= cruis, violentas), suportando o frio em regies inspitas para o ser humano, comendo alimentos muitas vezes estragados (o corrupto mantimento) cujo tempero o sofrimento; a glria tambm se alcana conservando o sangue frio face s mutilaes de que os camaradas so alvo nos conflitos blicos e ainda graas indiferena face a qualquer corrupo porque o heri aquele que consegue suportar todas as desventuras e apesar disso manter a fidelidade ao seu projeto humanitrio, criando um calo honroso ou uma defesa interior contra a adversidade na sequncia de ter experimentado vrias a nvel fsico e psicolgico e de ter resistido s tentaes de receber honras e dinheiro indevidos; ora, o heri tem direito fama devido virtude justa e dura e no por fruto das circunstncias ou casualidade qual o seu empenho pessoal alheio. O termo "Virtude" (do latim "virtus" que significa fora viril) designa o poder de uma coisa para produzir determinados efeitos. Em termos filosficos, e segundo Plato e tambm segundo o epicurismo e o estoicismo, a virtude designa um conjunto de caractersticas que contribuem para que o indivduo tenha uma vida boa, nomeadamente a sabedoria, a coragem, a temperana e a justia (as chamadas "virtudes cardiais"). A estes atributos definidores de virtude Cames acrescenta o valor militar, a ousadia, a perseverana e a capacidade de suportar rduo sofrimento. Na estrofe 99, Cames conclui o seu pensamento mencionando que atravs do mrito ganho pelo esforo e luta rdua que o homem se eleva acima daqueles que nada fazem de til nem para eles nem para a sociedade; assim, se for feita justia, o heri ter direito a ocupar cargos importantes no reino, no porque os tenha solicitado, mas porque os outros reconhecem o seu valor humano e lhos atribuem como prmio Este, onde tiver fora o regimento (= governo)/ Direito, e no de afeitos ocupado (= no se deixa conduzir pelas paixes, irracionalidade e desejo de proteger os amigos)/ Subir, como deve, a ilustre mando (= ser promovido com altos cargos)/ Contra vontade sua, e no rogando. Concluso: a fama e imortalidade devem ser o prmio do esforo individual e superao do sofrimento.