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  • LaRivista 2 (2015) ISSN 2261-9070 2015 LaRivista http://etudesitaliennes.hypotheses.org

    Os manuais e a reforma do ensino liceal de 1936 em Portugal. Um prlogo para a histria do manual nico

    APRESENTAO

    Na presente reflexo pretendemos sondar os objetivos que foram sendo propostos para o ensino secundrio aps o golpe militar de 28 de maio de 1926. A um primeiro momento, designado de Ditadura Militar, sucedeu a configurao do denominado Estado Novo, sendo este perodo pautado, no essencial, pela sistemtica explicitao do modo como se constituiu a lapidar e necessria educao nacionalista, neste clima, o Liceu concebido como o espao de afirmao e de formao das elites do regime. Os princpios conservadores, totalitrios e de estancamento da mobilidade social, foram expressos numa progressiva definio, cada vez mais radical, nos seus enunciados1. Para darmos conta desta trajetria, dividiremos a nossa reflexo em duas partes.

    Na primeira parte, ensaiaremos uma panormica genrica dos argumentos que foram lanados, pelos setores do poder, e de alguns atores educativos vinculados ao ensino secundrio, com o sentido de ir apurando o Liceu ideal para o regime nascido, em 1926, e constitucionalizado, em 1933. A reforma de 1936, de Carneiro Pacheco, tende a configurar, ento, esse almejado e urgente Liceu. Este perodo no isento de debates, nem de consensos, como o podem provar os sucessivos estatutos de ensino secundrio o de 1926, o de 1931 e o de 1936 com um conjunto de polmicas associadas de cariz eminentemente poltico, e em inmeros campos (pedaggico, curricular, manuais escolares, seleo dos alunos, exames, entre outros) cronologicamente as indefinies surgiram sem qualquer possibilidade de federar as posies em confronto2.

    Na segunda parte, ento, a nossa abordagem ir incidir numa anlise de como se foi depurando a questo dos manuais escolares3, tendo em ateno a institucionalizao do manual nico para as disciplinas de Histria e de Educao Moral e Cvica, na sua ntima relao com a definio dos contedos programticos, mas tambm com a crescente envolvncia do iderio do regime e o crucial protagonismo de um mercado livreiro especfico. Certamente, o repertrio das justificaes, que pautaram a seleo do manual a usar em todos os liceus do pas, um indicador de como especficos argumentos de natureza jus-filosfica vo paulatinamente impregnando o campo pedaggico, ora atravs da definio dos contedos a ministrar em cada disciplina, ora na indicao dos mtodos a usar, ora, por ltimo, ao condicionar a prpria produo do manual.

    Essencialmente, pretendemos circunscrever o nascimento do Liceu do Estado Novo, nestas duas dimenses, captando a razo hegemnica de uma ideologia totalizante4.

    1 R. CARVALHO, Histria do Ensino em Portugal. Desde a Fundao da Nacionalidade at ao Fim do Regime de

    Salazar-Caetano, Lisboa, Fundao Calouste de Gulbenkian, 1986, p. 725, 740 e 774-778. 2 A. NVOA, A Educao Nacional , in J. SERRO, A.H. OLIVEIRA MARQUES, Nova Histria de Portugal

    vol. XII: Portugal e o Estado Novo (1930-1960), coordenao de F. Rosas, Lisboa, Editorial Presena, 1990, p. 458, 484 e 517.

    3 J. MAGALHES, O Mural do Tempo. Manuais Escolares em Portugal, Lisboa, Colibri/IE UL, 2011, p. 71 sq, 95, 97 e 103.

    4 G. M. A. CARVALHO, A Reforma do Ensino Liceal de 1936 e a Construo do Liceu Salazarista, (Dissertao de Mestrado, mimeo). Lisboa, Faculdade de Psicologia e Cincia da Educao Universidade de Lisboa, 1997.

  • 60 AFONSO ALMEIDA

    DA DITADURA MILITAR AO ESTADO NOVO : A ESTRUTURAO DO DISPOSITIVO TOTALITRIO

    Com o golpe militar de 28 de maio de 1926, inicia-se um perodo que liminarmente pretende romper com a antecedente experincia democrtica que a 1 Repblica experienciou. O processo de cariz autoritrio no foi pacfico nem isento de indefinies e, at 1928, a instabilidade e as presses da direita radical fizeram-se sentir com insistncia5. Estas circunstncias no colocaram em causa a matriz autoritria, antiliberal e antidemocrtica, onde o forte intervencionismo estatal se mostrava como estruturante de uma nova ordem social, antes pelo contrrio, justificaram a persistente produo legislativa que legitimava uma poltica de eliminao dos adversrios e de controlo poltico inusitado, atravs de uma censura tendencialmente epidrmica, que era acompanhada por uma intensa doutrinao ideolgica revertida, em particular, no mbito educativo, de que um exemplo extremo se pode encontrar no paradigmtico decreto 21014, sobre as frases de propaganda a incluir nos manuais, e que pelo decreto 22040, se tornaram extensveis ao espao das escolas primrias, liceus, bibliotecas, estabelecimentos de ensino artstico e de ensino particular6 .

    Paulatinamente prepara-se uma ordem constitucional com o objetivo de institucionalizar o regime, atravs de um conjunto de diplomas juridicamente estruturantes (codificadores ou quase codificadores) , como refere Paulo Ferreira da Cunha7. Os anos 1930 so a charneira desta nova vida do regime que assiste a um controlo poltico forte, salientando-se a criao da Unio Nacional, que precludem a promulgao da Constituio em 1933 e fechando o ciclo com a organizao corporativa do Estado Novo. O protagonismo de Salazar8, em todo o flego ps 1928, parece incontornvel, mas o que porventura seja de assinalar o decisivo (e esclarecido) impulso disseminao de uma doutrina totalitria doutrina moral, poltica, econmica e social 9, na expresso de Mrio Figueiredo como projeto corporativo :

    Aqui o Estado no impe, escravizando a vontade ; prope, orientando a educao, por forma a despertar na alma de todos uma ideologia idntica sua prpria ideologia. O seu esforo deve dirigir-se no sentido de conquistar a unidade e esta impossvel se as almas no comungarem um ideal comum10.

    Aqui reside justamente de como se pode declinar a influncia do regime na definio do ensino secundrio11, mormente tendo como finalidade a formao primeira de todos aqueles que deveriam, ento, derramar a homogeneidade cultural e simblica, preconizada por Salazar, naturalizando qualquer sinal de irreverncia (independentemente da particular expresso da sua manifestao).

    5 H. TORRE GMEZ, O Estado Novo e Salazar, Lisboa, Texto Editores, 20112,p. 19-42. 6 M. B. CRUZ, Notas para uma caracterizao poltica do Salazarismo, in Anlise Social, 72-74, 1982, p.

    773-794 ; P.F. CUNHA, Da Constituio do Estado Novo (1933) , in Histria Constitucional (revista electrnica), 7, 2006, p. 185-207 [http://hc.rediris.es7077index.html] ; F. ROSAS, Salazar e o Poder. A Arte de Saber Durar, Lisboa, Tinta-da-China, 2013 ; F. ROSAS, C. SIZIFREDO, Estado Novo e Universidade: A Perseguio aos Professores, Lisboa, Tinta-da-China, 2013.

    7 P.F. CUNHA, op. cit. 8 F. ROSAS, op. cit. 9 M. FIGUEIREDO, Princpios Essenciais do Estado Novo Corporativo, Coimbra, Biblioteca da Universidade, 1936,

    p. 26. 10 Ibid., p. 23. 11 R. CARVALHO, op. cit. ; A. NVOA, op. cit.

  • Os manuais e a reforma do ensino liceal de 1936 el Portugal 61

    O LICEU DO ESTADO NOVO : DOS POSSVEIS CONSENSOS IMPOSIO DE UM MODELO

    No rescaldo do golpe militar publicado o decreto 12425. O diploma centra-se exclusivamente no grave problema da instruo secundria , pretendendo estabelecer um Estatuto da Instruo Secundria , que rompa com a defeituosa estruturao deste grau de ensino e que se configure como uma soluo satisfatria, radical e pronta . No prembulo identificam-se os aspetos considerados frgeis e que, por consequncia, desvirtuam o ciclo de estudos , nomeadamente a superabundncia de matrias e a superabundncia de horas de aula , mas considerada como muito discutvel a opo pela bifurcao em cincias e letras e critica-se fortemente a dissonncia com as condies humanas da psicologia e da vida individual e social plasmada, segundo o legislador, na fadiga do aluno, resultante da ausncia de horas de distrao e repouso . Face a este diagnstico, o Estatuto, mantendo, apesar de tudo, os dois ramos (letras e cincias), introduz uma economia de tempo , traduzida na simplificao, ordenao e modificao das matrias e seus programas e na concentrao dos cursos (distribudos gradativamente em grupos de anos ), o que consequentemente leva a que o aluno possa dispor de um tempo em que a ss consigo desenvolva e enriquea o seu esprito, lendo, refletindo, estudando, desenvolvendo o juzo e a memria, armazenando e arrumando conhecimentos, por esforo autodidtico . Na essncia do diploma encontra-se tambm uma justificao para o lugar primacial de cada uma das disciplinas proposta para currculo, cabendo, naturalmente, ao portugus e a tudo quanto diz respeito a coisas portuguesas a formao da conscincia esclarecida do cidado portugus . Quanto aos manuais, o diploma refere o regime de escolha. A ideia subjacente ao Estatuto que a instruo secundria seja a via de acesso ao ensino superior.

    No seio da sociedade portuguesa, e em especial nos professores deste ramo de ensino, comeam a emergir distintas posies que refletem entendimentos, nem sempre coincidentes, acerca do efetivo objetivo que o ensino secundrio dever representar no organigrama do ensino. Neste contexto e no mbito dos Congressos Pedaggicos do Ensino Secundrio Oficial, particularmente no 1 e no 3, registaram-se intervenes substantivas, em que justamente se apelava discusso em torno da misso dos liceus.

    No I Congresso, realizado em 1928, Artur G. de Medina, na sua interveno, defende que o Liceu deve fornecer o ensino mdio s futuras elites intelectuais , eliminando deste modo toda a preocupao de utilizao imediata , devendo, contudo, desenvolver as faculdades intelectuais e morais dos alunos atravs de mtodos que mais aproximem a criana da vida . O autor apologista que o Liceu seja uma escola de seleo12 .

    Este sinal amplificado no quadro do III Cong