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OS MENINOS DE DEUS

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Os Meninos de Deus é um relato corajoso e comovente sobre uma geração excluída no Brasil: os menores carentes que viveram durante as décadas de 1970 e 1980 sob a guarda de orfanatos religiosos onde, longe de serem protegidos e tutelados como esperavam, eram frequentemente submetidos a maus-tratos. Um dos personagens centrais desta história é José Ribeiro Rocha, que retrata neste livro-reportagem suas experiências durante a passagem pela Casa do Meio – lar destinado a adolescentes –, onde ele e seus companheiros foram vítimas de agressões física, moral e psicológica, além de violações sexuais. E o pior: muitas vezes, tais atrocidades eram cometidas justamente por aqueles que deveriam ser seus “protetores”. Tudo parecia envolto em um véu de silêncio e moralismo, mas difícil de ocultar o terror que circundava dia e noite a instituição.

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Os Meninos de Deus

S ã o P a u l o 2012

José Ribeiro Rocha

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“É assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo,além da indenização por dano material, moral ou à imagem”.

Constituição Federal de 1988, artigo 5o; V.

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Prefácio

“A regra da igualdade não consiste senão em quinhoar desigualmente aos desiguais, na medida em que se desigualam. Nesta desigualdade social, proporcionada a desigualdade natural, é que se acha a verdadeira lei da igual-dade. O mais são desvarios da inveja, do orgulho, ou da loucura. Tratar com desigualdade a iguais, ou desiguais com igualdade, seria flagrante, e não igualdade real...” (Oração aos Moços – Rui Barbosa).

Dificilmente se verificou na história do Judiciário brasileiro contesta-ção tão intensa como ocorreu com a decisão recentemente proferida pela 3ª Secção do Superior Tribunal de Justiça, concernente à absolvição de um homem que manteve relações sexuais com três jovens menores de doze anos, sob o fundamento de que essas crianças já se prostituíam. Portanto, não havia mais bem jurídico a ser preservado ou protegido.

Desrespeitando o princípio de que: “decisão não se discute, cumpre-se”, houve pronunciamentos contrários ao julgamento não só pela sociedade, através das redes sociais, mas também advindos de personalidades, como o ministro da Justiça, José Eduardo Cardoso, e de instituições internacio-nais do mais alto nível, destacando-se o Alto Comando das Nações Unidas Para os Direitos Humanos (ACNUCH), por meio do Escritório Regional Para América do Sul do Alto Comissário das Nações Unidas Para Direitos Humanos.

Realmente é um fato inusitado, pois o normal seria apenas um pronun-ciamento indignado da ministra para Assuntos da Mulher e do ministro dos Direitos Humanos. Felizmente, Rocha não seguiu os “conselhos” das pes-soas que eram contra a publicação deste livro, Os Meninos de Deus, que tem como finalidade principal evitar que permaneça a prática de crimes como a pedofilia.

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O livro, além de retratar o dia a dia das instituições particulares religiosas que tinham a concessão do Estado para cuidar das crianças e adolescentes, demonstra como a corrupção permeava os atos das suas diretorias e fun-cionários, adicionada à violência gratuita, motivada por inúmeros motivos de ordem psicológica ou ignorância pedagógica. Impressiona no relato que em nenhum momento há registro de carinho dos “tios e tias” para com os menores. E pior, não havia como ainda não há uma fiscalização eficaz por parte do Estado.

A situação de completa vulnerabilidade dos menores, que vivenciavam e vivenciam, agora em menor grau, açambarca todas as religiões cristãs. Já o Conselho Tutelar, por sua vez, só atua quando provocado, e espontanea-mente, quando se trata de órgãos diretamente ligados ao Estado, como a Fundação Casa, antiga Febem.

É notável como as vítimas de agressividade física, moral e psicológica, passam a reproduzir a violência com os seus companheiros de infortúnios. E chega a ser comovente quando o delator Vicencio, na negociação para não denunciar o autor e seu meio irmão, pede um “carinho”. Essa necessidade de carinho independe da orientação sexual. Todos precisavam dela, mas não sabiam como conquistá-la.

As violações sexuais sofridas não são admitidas até hoje pelos amigos/companheiros do autor. Até hoje! Transparece nas conversas/entrevistas o conhecimento do que acontecia com os outros, quais eram os “tios” e “tias” pedófilos, mas parece que eles permaneciam numa redoma. Nada acontecia com eles. Havia uma estrutura física arquitetônica que possibilitava as agres-sões físicas, principalmente, aos de tenra idade que estavam no jardim da infância, que eram estuprados pelos tios e pelos jovens que lhes dedicavam obediência extra-alcaguetes.

Na Casa do Meio, as relações sexuais entre os adolescentes se davam motivadas pela necessidade desses jovens de buscarem afeto, independen-temente da orientação sexual. Deparavam-se diuturnamente com agressões físicas, humilhações; desestímulo de continuarem vivendo, sem que lhes apresentassem uma justificativa divina. As relações se constituíam como o máximo de carinho/amor possível de se obter na “Macondo”. O apoio pro-vindo das drogas era efêmero.

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O livro é um mapa das necessidades e desejos de uma geração dos anos setenta e oitenta, excluída dos bens materiais, morais e afetivos. Dessa forma, ninguém podia esperar que esses jovens tivessem princípios éticos, morais, se além de não possuírem famílias, as que estavam próximas representadas pelos “tios e tias” eram infiéis e violadoras dos próprios princípios religiosos que ensinavam. Nas escrituras não se pregam pais de família pedófilos, e muito menos corruptos.

É interessante o que se pode extrair do livro: a incapacidade da classe média em conviver com os seus “filhos rebeldes”, ou os que não seguiam a cartilha do bom moço. Torna-se apavorante para esta mesma classe o assas-sinato do filho do juíz; assim como a invasão pelos “milicianos fardados” que se autodenominavam juízes dos “meliantes”, com autoridade de praticar a pena de morte, proibida pela Constituição.

O autor tem a virilidade de se expor, o que libera essa apresentadora de trazer notas pessoais a seu respeito, pois ninguém poderia descrever melhor o que é ser resultado de um estupro e depois, na adolescência, ser vítima deste mesmo crime. É importante notar também que Rocha conseguiu reu-nir os seus companheiros após vinte anos, com a humildade de apenas saber como hoje são, e não tornar público o destino de cada um, ou até mesmo os que estão na chamada “vida ilegal”; a revolta do seu amigo, pertencente a uma organização criminosa, não oficial, por exemplo.

Merece também relevo a influência da arte, em especial a música. Os músicos, cantores e compositores que influenciaram esta obra, Os Meninos de Deus, como Raul Seixas, Gilberto Gil e outros, deram subsídio nas decisões pessoais futuras da vida destes jovens. Foi o alimento da alma, daí porque termino esta apresentação com o visionário Raul Seixas, porque todos os sobreviventes já estão andando com fé:

Eu sou a luz das estrelas/ Eu sou a cor do luar/ Eu sou as coisas da vida/ Eu sou o medo do amar/ Eu sou o medo do fraco/ A força da imaginação/ O blefe do jogador/ Eu sou, eu fui, eu vou/ Eu sou seu sacrifício/ A placa de contra mão/ O sangue do olhar do vampiro/ E as juras de maldição/ (...)A letra “A” tem meu nome/ Dos sonhos eu sou o amor

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Resta realçar que é nosso sentimento esperançoso de que o Rocha con-tinue na busca por Justiça, e assim, impedir que os tios e tias pedófilos, de dentro e fora dos abrigos, permaneçam impunes, e não continuem despre-zando a doutrina de Proteção Integral estabelecida no Estatuto da Criança e do Adolescente.

Maria da Penha GuimarãesEx-conselheira Federal e Estadual da Ordem dos Advogados do Brasil;Advogada Pro Bono do Movimento de Defesa do Menor, fundado por

Lia Junqueira.

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Capítulo 01

Certa vez, Gandhi falou: Existe a não violência do fraco, do velhaco, mas desta nunca resultará nada de bom. Ele tem toda a razão, pois, aparentemente, seria impossível extrair daquela nova casa qualquer indício de bondade e amor verdadeiro. Os meninos moradores da Casa do Meio rendiam poucos frutos comestíveis. No entanto, ela, a violência do mais fraco, existiu sim, de modo a transformar todos em feras. Muitas vezes era como se ela, a bon-dade verdadeira, fosse um estranho. Foi exatamente nessa condição que a bondade viveu dentro da nossa querida Casa do Meio: muito mais oculta e anônima na força dos pequeninos grupos unidos pelo amor do que pela vontade daqueles encarregados de cuidar de todos nós.

Serpenteando aqui, ali e lá, esquivando-se deste e daquele garoto fadado ao machismo moralista da época, este maravilhoso sentimento incompreen-dido em nossa Macondo vivia com muito medo para não dizer abertamente: eu sou a bondade dos fracos e dos justos. Jesus também pronunciou algo parecido quando disse: Vinde a mim, todos os que estais cansados e oprimidos, e eu vos aliviarei, mas não aconteceu dessa forma; ao menos não dentro dessa instituição religiosa.

Ainda hoje, nesta vida adulta e cheia de incertezas profissionais me per-gunto: por que eu fui um dos escolhidos? Como se determina quem vem para a terra dos injustos? Ser nascido por conta de um estupro dentro de um hospital público, o antigo Juqueri,1 na cidade de Franco da Rocha, foi o

1 O Hospital Psiquiátrico do Juqueri é uma das mais antigas e maiores colônias psiquiátricas do Brasil, localizada na cidade de Franco da Rocha (antigo município de Juqueri), região metro-politana de São Paulo. O início da construção da Colônia Agrícola Juqueri data de 1895, com o projeto arquitetônico de Ramos de Azevedo; inaugurado em 1898, pelo psiquiatra paulista Francisco Franco da Rocha, o Asilo de Alienados do Juqueri passa a denominar-se Hospital e Colônia de Juqueri somente em 1929. Enfrentou a explosão migratória dos anos 1960 provocada pelo desenvolvimento industrial, que contribuiu para o aumento do desemprego, da mendicância e da marginalidade.

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estopim para a rejeição de meu pai e a partir de então tive de sobreviver em instituições beneficentes e paralelas até cair na proteção dessa Ordem Maior Religiosa.

Todos os dias, diante de tamanha exploração religiosa, me pergunto quantos anjos caídos têm o direito dessa transformação carnal. Eu sonhava, mas certamente não mais com o fantástico Mundo de Anahô. Mesmo observando-os em combate, não sabia se eu tinha condições, digo o direito, de estar ali e ver a luta travada – entre o bem e o mal – muito além de nossos corpos físicos.

Até que ponto um sonho pode se constituir como um fato narrativo sem se transportar imediatamente para o campo da imaginação? Seria tudo cas-tigo pelo pecado cometido? Ainda me condenava por tudo o que aconte-cera comigo, principalmente meu envolvimento sexual com dois meninos ex-moradores do Jardim da Infância e, agora, ali na mesma Casa do Meio: José Benet e Roberto Carduso. Não, tudo isso é mesmo castigo pelo que fiz.

Havia, sim, uma magia muito perigosa e, ao mesmo tempo, bondosa sobre nossas cabeças. “Aquela Casa do Meio foi, sim, influenciada pelos demônios e anjos”, comentou a tia Zezé certa vez em que estive lá para visitá-la. Como se eu fosse o Anjo Caído de meus sonhos, sentia aquela magia e aquela força num poder descomunal, mas tudo muito além dos meus sonhos mais selva-gens dentro de nossa Macondo.2

Até hoje na vida adulta me pergunto se foram bons ou ruins todos aque-les sonhos que se transformaram como quem acompanha o crescimento e a evolução da mente humana. Nessa fase da adolescência, não era mais com os bichinhos bondosos e vilões do imaginário Mundo de Anahô retratado ao longo do livro Brincar de ser feliz3 que me entretia; acredito que me tornei um guia incompreensivo de mim mesmo...

Em meus sonhos, minhas asas sempre foram um misto do branco com o negro de modo a fazer-me enxergar as sombras negras em volta e a se reuni-rem como quem conspira meu fim. Como um anjo besta me perguntava ser mesmo possível, meus próprios membros conspirarem a minha queda? Mas

2 Márquez, G.G. Cem anos de solidão. 35. ed. Rio de Janeiro, Ed. Record, 1967.3 Rocha, J.R. Brincar de ser feliz. São Paulo, Ed. Edições Inteligentes, 2007.

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eu percebi e lutei para que elas permanecessem brancas, vívidas a fim de que todos pudessem vê-las em seu esplendor de glória.

Viver com um bando de adolescentes numa sociedade complexa significa que eu desejava estar na visão coletiva dos meus amigos. Portanto, quando acor-dava no meio da noite, queria eu saber quem era, para muito além deste mundo tomado pelas forças do apregoado, amaldiçoado demônio! Isso na visão dos nos-sos evangélicos-educadores. Nos meus sonhos, toda vez que um deles tentava me golpear, eu sabia que minha morte não existia, não enquanto for encarnado.

Sim, hoje aprendi que todos os seres mortais possuem loucuras indivi-duais e eu, num misto de guardião e demônio, em meus sonhos, afirmava constantemente que ele – meu guardado – não me mataria por não fazer e cumprir sua parte terrena como foi determinado antes mesmo de seu nasci-mento. Mas em nossa Macondo, eu sabia que ele vivia minha vida, respirava e ainda respira o mesmo ar que eu respiro nesta mortal carcaça.

Eu podia ver o quanto aquele par de asas negras descia sobre nossa Casa do Meio, mas quando eles tomarem minha alma, algo me dizia que a noite se transformaria em dia, conforme previsto no Apocalipse. O retorno de um guardião encarnado; todos cegos pelos seus raios de vida porque Dele, o pai celestial, virá a força que eu preciso para golpear e saltar para a vida nova, muito, muito além dos olhos mortais.

“Você viajava demais nas ideias, cara!”, reforça Axé.Axé podia até ter razão, contudo, mantinha-me firme nas visões com

anjos e demônios; eles substituíram o encantado Mundo de Anahô e meu repertório se enriquecia quando, nas escolas dominicais ou nos cultos das dezesseis horas dos domingos, os mensageiros da igreja pregavam sobre essas criaturas celestiais e diabólicas. Portanto, ignorava meu amigo simplesmente para não perder a linha de raciocínio. Vivia dividido entre gostar e odiar todos eles por conta da obrigatoriedade da crença em Deus.

Recordo-me perfeitamente de um fato: na reunião de guardiões celestiais, o meu, que lutava para manter-me na linha, disse aos demais que: “Seu filho resistirá bravamente”, referindo-se a mim mesmo sem que eu soubesse quem eu era no campo espiritual. Assim foram meus dias naquele local dominado por uma igreja por trás da administração de nosso orfanato.

Afinal, não nos foi permitido sonhar com ambição.

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“Eles nos educaram para sermos serviçais; um bom marido e um bom trabalhador de funções intermediárias”, reclamou Bussun.

A vida social interna se pautou pelos cansativos e obrigatórios cultos reli-giosos, pelas vigílias de orações, pelas procissões rumo a alguma igreja da Ordem Maior, localizada na capital paulista, e pelas cerimônias em nosso salão de reuniões no pátio comum às oficinas de aprendizado. O comporta-mento individual/coletivo sempre foi determinado e vigiado pelos evangéli-cos educadores vendados pela Bíblia, o livro mais sagrado para eles.

Nossos fundamentalistas cristãos podaram nossa capacidade de inte-ligência, se esta não caminhasse em função daquele modelo educacional conservador, sobrevinham castigos. “Às vezes eu tinha raiva de ir à igreja, especialmente na época de balão ou quando tinha o campeonato de futebol lá no bairro vizinho do Jardim Vitória”, contou Adilson Bicudo. Tudo isso para impedir o contato sentimental e corporal entre meninos e meninas durante as atividades rotineiras e diárias.

Nós vivíamos quase num regime de Inquisição, porque nunca nos foi per-mitido o livre-arbítrio da escolha religiosa, ou de qualquer outra coisa. “Eles nos obrigavam a seguir os ensinamentos bíblicos à força, como se estivésse-mos na igreja antiga lá dos romanos”, recorda Adilson Bicudo. “É por isso que hoje eu tenho dificuldade de relacionamento e tenho raiva quando um desses caras chega perto de mim, sabe, Zé Rocha”, revela sua mágoa do passado.

Esse ex-interno, morador da Casa-Lar número um, ainda mantém o mesmo bigode de guias engomadas cuidado com tesoura curta, feito diante de um velho espelho com luz suficiente para enxergar o menor dos fios fora do lugar. Quando se referiu ao período romano, entenda-se Inquisição por: quem não tinha fé cristã era considerado pagão e, portanto, passível de sofrer punições nos calabouços cristãos.

No tocante às palavras, nós, internos e funcionários, tínhamos de aceitar a Deus como nosso único salvador para não sermos punidos severamente pelos educadores ou mesmo pelos diretores – os Majores dentro dessa enti-dade cristã. Era lei: nenhuma forma de adoração além da apregoada no orfa-nato faria parte do nosso dia a dia.

À menor falta ou deslize, imediatamente o que recebíamos era repreensão moldada na agressão...