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Inhumas, ano 4, n. 16, jul. 2016
ISSN 2316-8102
O(S) “MITO(S)” DA(S) MASCULINIDADE(S) QUE
PERPASSA(M) A OBRA PASSAGEM , DE TALES FREY
Lizi Menezes
Tales Frey, Passagem. Performance realizada em Guimarães, Portugal.
Junho de 2016. Fotografia de Paulo da Mata
Historicamente, o homem se interpretou – e passou a ser experienciado – como
representante da humanidade. Linhas do tempo anunciam os reflexos das projeções
comportamentais do sexo masculino como sendo modelos apropriados e
reapropriados em categorias que estruturam todo o conhecimento até então
assentado apenas na relação desse homem com a dominação do espaço. Adrienne
Rich nos conduz a pensar o corpo como a geografia mais próxima. Seguindo por esse
roteiro, percebemos que o mapeamento do corpo do sexo masculino,
equivocadamente naturalizado1 como dominador, foi reduzido à masculinidade
hegemônica. Ainda hoje, embora existam narrativas sob a óptica dos estudos de
gênero de diversas masculinidades2, o atrevimento do devir3 do corpo (des)conhecido
de ordem heteronormativa é situado como periférico4 e não masculino5.
Tales Frey, Passagem. Performance realizada em Guimarães, Portugal.
Junho de 2016. Fotografia de Paulo da Mata
Coordenado ao ritmo lacaniano, no que diz respeito ao reconhecimento do
sujeito por etapas, e revisitando a metáfora do espelho, o artista Tales Frey cria uma
1 Utilizo o conceito de naturalizar da mesma forma que o sexo feminino é naturalizado como dócil, materno, dominado. 2 É importante pensar a masculinidade hegemônica como produto histórico que tenta disciplinar todas as demais masculinidades subordinadas ao patriarca heterossexual não negro e não deficiente. 3 Precisamos levar em conta as transgressões em que o corpo é inserido a todo momento na efemeridade do mundo pelos conflitos globais. Ver em: SANTOS, Boaventura de Sousa (org.). A Globalização e as Ciências Sociais. São Paulo: Cortez, 2002. 4 A ordem social categoriza, primordialmente, os corpos através da diferença sexual, e, em seguida, por etapas, definem as classificações de outras minorias através, por exemplo, das etnicidades. Assim negligência e desvaloriza a ocupação física dos corpos e os próprios corpos que fogem à heteronormatividade. 5 Penso, na perspectiva ocidental, que na relação entre o dominador e o dominado não existam modos de inclusão, apenas de exclusão. Sendo que o centro do poder considera o sexo masculino branco heteronormativo e não deficiente como seu maior representante e todas as outras identidades não hegemônicas são consideradas não masculinas.
série de narrativas imagéticas de ritos de passagem no dia em que é celebrado o seu
aniversário. Contudo, nesta crítica, eu me detenho no último rito intitulado Passagem,
apresentado no dia 20 de junho de 2016 no Centro para os Assuntos da Arte e
Arquitectura (CAAA), em Guimarães (Portugal). O artista executa, no tempo de uma
hora, uma passagem cronometrada num momento performativo. Essa passagem –
que é circunscrita em um espaço-tempo em que circundam convidados-espectadores
da ação narrada na formalidade de seu “aniversário” – projeta, sob caráter simbólico e
imagético, o conceito de efêmero. Indiferente a esse momento transitório, é também
a memória. Contrastes de percepções são destaques na performance Passagem;
evidenciado o corpo isolado do artista, podemos refletir sobre a individualização que
permanece interativa ao acontecimento que é social e, não sendo descartado
enquanto coletivo, segue reafirmando propriedades exclusivas de corpo-tempo-
espaço-memória.
Compreender o mundo é nos compreendermos no mundo sob a óptica
patriarcal, mas também sob a óptica periférica à masculinidade hegemônica, se
pensarmos a dualidade humana categorizada, primordialmente, pelo binômio sexual
homem e mulher. O que perpassa o tempo-espaço delimitado de começos e fins
narrados em cronologias e genealogias que não extravasam pelas bordas do corpo e do
sexo? A sexualidade humana, reconfigurada em acordos de poderes como narrativas
legitimadoras da superioridade masculina, naturaliza os valores simbólicos de
inferioridade que são, desde o nascimento, socialmente inscritos no corpo. O que a
cultura patriarcal classifica como mulher é confrontado por Simone de Beauvoir no
locus classicus “não se nasce mulher, torna-se mulher”, o que nos lança num primeiro
momento de desnaturalização do feminino – e do masculino –, que a filósofa Judith
Butler leva mais longe na sua teoria da performatividade.
No planeamento em que o artista se instala no espaço, o seu corpo não está
dispensado de sua experiência(ção); sua presença física nos é entregue e incorporada
como reflexo de nossa imagem. Compomos, todas e todos, a materialização que
sexualiza o rito de passagem. O artista nos promove a localização como observadoras
e observadores – novamente, contrastando-nos na dualidade do corpo – entre o
passivo e o ativo. Somos cúmplices virtuais em duelos de ego numa gangorra
sexualizada, de inícios e fins, de fins e inícios.
BIBLIOGRAFIA
BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo: A Experiência Vivida, Vol. I I .
Trad. Sérgio Milliet. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.
______________________. O Segundo Sexo: Fatos e Mitos, Vol. I . Trad. de
Sérgio Milliet. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.
BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
1999.
BUTLER Judith. “Actos performativos e constituição de género. Um ensaio
sobre fenomenologia e teoria feminista”. In: MACEDO, Ana Gabriela; RAYNER,
Francesca (orgs.). Género, cultura visual e performance: antologia crítica.
Lisboa: Livros Cotovia, 2011.
RAMALHO, Maria Irene. Difference and Hierarchy Revisited by
Feminism. Anglo Saxonica, Ser. III, n. 6., 2013, p. 23-45.
RICH, Adrienne. “Notas para uma Política da Localização”. In: MACEDO, Ana
Gabriela; RAYNER, Francesca (orgs.). Gênero, Identidade e Desejo, Antologia
Critica do Feminismo Contemporâneo. Lisboa: Livros Cotovia, 2002.
SANTOS, Boaventura de Sousa (org.). A Globalização e as Ciências
Sociais. São Paulo: Cortez, 2002.
PARA CITAR ESTE TEXTO
MENEZES, Lizi. “O(s) “Mito(s)” da(s) Masculinidade(s) que
Perpassa(m) a Obra ‘Passagem’, de Tales Frey”. eRevista Performatus, Inhumas,
ano 4, n. 16, jul. 2016. ISSN: 2316-8102.
Revisão ortográfica de Marcio Honorio de Godoy
© 2016 eRevista Performatus e a autora