Os Moedeiros Falsos

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  • 7/22/2019 Os Moedeiros Falsos

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    ENSAIO SOBRE OS MOEDEIROS

    FALSOS, DE ANDR GIDE

    Este texto procura abordar a questo das manifestaes em primeira

    pessoa do narrador de Os moedeiros falsos, de Andr Gide. Apesar da obra

    ser constituda pela fuso de gneros literrios diferentes, como a

    interpenetrao entre o romance e o dirio, neste ensaio consideraremos

    apenas o papel do narrador da histria principal, a intriga envolvendo

    primordialmente Bernard e Olivier. Em que medida esse narrador se afasta da

    condio de narrador onisciente tradicional? Qual a necessidade dessa

    mudana?

    No primeiro captulo e incio do segundo captulo, o foco narrativo no

    revela algo extraordinrio. Dois ncleos so apresentados, com os dois

    protagonistas citados anteriormente e seus respectivos pais. O narrador

    transita pela conscincia dessas 4 personagens, revelando seus pensamentos,

    intenes, histrico de aes, etc. A situao se torna mais interessante a partir

    do ltimo pargrafo do segundo captulo, que se abre com Le pre et le fils

    nont plus rien se dire. Quittons-les.1A primeira pessoa do plural, ainda que

    oculta, inicia uma relao de proximidade entre o narrador e o leitor. Outras

    construes similares ocorrem no mesmo pargrafo, culminando em Jaurais

    t curieux de savoir ce quAntoine a pu raconter son ami la cuisinire; mais

    on ne peut tout couter.2

    Duas observaes importantes decorrem da anlise desse fragmento. A

    primeira diz respeito a uma caracterstica especfica do narrador, que se fazfortemente presente com a primeira pessoa do singular: ele teria um desejo de

    conhecimento mas o refreou. A segunda, mais geral, marcada pelo pronome on

    (a gente ou ndice de indeterminao do sujeito), justifica a prime ira: qualquer

    desejo de plenitude, de compreenso completa universalmente intil. Desse

    modo, o que parecia ser um narrador onisciente revela-se limitado pelo mundo.

    1Pai e filho no tem mais nada a se dizer. Deixemo-los. (Traduo nossa, bem como as demais presentes

    neste ensaio)2Eu teria ficado curioso de saber o que Antoine poderia contar cozinheira sua amiga; mas no se podeescutar tudo.

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    O que paradoxal nesse raciocnio que este mundo no existe a priori, est

    sendo criado pelo ato de narr-lo, e entretanto nem mesmo seu criador tem

    acesso a todos os seus detalhes.

    Na sequncia do mesmo pargrafo, o narrador afirma sobre Bernard Je ne

    sais pas trop o il dna ce soir, ni mme sil dna du tout3. H duas reiteraes

    sobre aes desconhecidas pelo narrador, porm elas so mais significativas

    do que alegar o desconhecimento da conversa entre os empregados da casa:

    desta vez o narrador afirma no saber o que o protagonista poderia estar

    fazendo num momento de crise!

    evidente que a limitao de conhecimento num texto ficcional um

    recurso artstico. Outro autor poderia se sentir tentado a descrever a conversa

    entre Antoine e a cozinheira, sem que isso causasse grande espanto no leitor,

    afinal um romance composto por esse tipo de cena. A limitao auto-imposta

    pelo narrador desta obra torna-o nico, escapando por exemplo de uma

    tentativa de classificao em categorias bem definidas como a da tipologia de

    Friedman. Ele se aproxima da oniscincia seletiva mltipla, por revelar o

    interior de diversas personagens mas no a realidade completa. Contudo, o

    ponto de vista do narrador claramente de terceira pessoa, no se misturando

    com o das personagens. Alm disso, o narrador apresenta caractersticas de

    um tipo editorial, fazendo alguns juzos de valor sobre as personagens, ao

    mesmo tempo em que se recusa a comentar certos tpicos.

    Com a introduo de fragmentos do dirio de douard no decorrer da

    narrativa, o romance se constitui a partir de duas grandes narrativas, do

    narrador principal para o leitor e de douard para si mesmo. Esse recurso

    permite a descrio de pontos de vista inacessveis ao narrador limitado. Se a

    obra fosse composta com um narrador provido de oniscincia seletiva mltipla,ele poderia aproximar-se dos pensamentos de douard e ento narr-los em

    discurso indireto livre. No essa a soluo encontrada por Gide, que prefere

    o apagamento completo do narrador original e a fragmentao do romance,

    entremeado pelo discurso de douard em primeira pessoa. Ao introduzir o

    primeiro captulo completamente formado pelo dirio, o narrador diz Nous en

    connaissons dj les premires pages; voici ce qui suivait:4 Novamente a

    3Eu no sei ao certo onde ele jantou nesta noite, nem mesmo se ele jantou4Ns j conhecemos as primeiras pginas dele [do dirio]; aqui est o que se seguia:

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    primeira pessoa do plural une leitor e narrador como espectadores num mesmo

    plano, observando as personagens. Ao parecer que o narrador toma

    conhecimento dos fatos ao mesmo tempo que o leitor, h um alheamento dele

    dentro da histria que ele prpria narra, reforando seu carter limitado.

    A prpria composio do dirio tambm digna de anlise, em grande

    parte pelo estilo adotado. Ora, todos sabemos que a capacidade da memria

    humana reduzida e por isso um dirio caracterizado por resumos das

    aes. O procedimento tradicional para relatar uma histria neste gnero

    envolve contar a cena. No entanto, o que se v em diversas situaes

    douard mostrando o que aconteceu, por exemplo reproduzindo extensos

    dilogos de que ele teria participado. Portanto, o dirio possivelmente uma

    criao artstica do escritor douard e no o relato das aes quotidianas de

    um homem mdio. Entremeadas a essas lembranas/criaes, h esboos da

    teoria literria que fundamenta a obra que douard estava escrevendo. Ao final

    do captulo XII, ele descreve ser capaz de fazer suas personagens agir

    conforme sua vontade; no entanto, na entrada seguinte do dirio, afirma que o

    anterior falso e que na verdade ele se interessa mais s possibilidades do

    que s aes concretas. A credibilidade do dirio posta em questo ao

    mesmo tempo que a possibilidade de um narrador conduzir uma histria por

    vontade prpria.

    Outro comentrio a respeito de teoria literria inserido no romance vem de

    um dilogo entre Pauline e douard, em que ela afirma:

    Cest affaire vous, romanciers, de

    chercher les rsoudre. Dans la vie, rien ne se

    rsout; tout continue. On demeure danslincertitude; et on restera jusqu la fin sans savoir

    quoi sen tenir; en attendant, la vie continue, tout

    comme si de rien ntait5

    5

    tarefa de vocs, romancistas, de tentar resolv-las [as situaes]. Na vida, nada se resolve; tudocontinua. Permanece-se na incerteza; e continua-se at o final sem saber em que se apegar; durante aespera, a vida continua, como se no fosse nada

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    Pauline mostra uma diferena de expectativa entre a vida e a literatura. Ela

    aceita que a vida moderna seja marcada pela incerteza e pela falta de solues

    definitivas, caminhando at o final sem fundaes claras; no entanto, ela

    defende que nos romances seria possvel resolver as situaes de modo

    definitivo. A narrativa em Os moedeiros falsos busca alcanar a

    verossimilhana no mundo moderno, aproximando-se dessa vida que nunca se

    resolve e no define um ponto de apoio confivel. Propositalmente, o prprio

    romance frustra a expectativa de concluso e de sentido completo,

    interrompendo-se em um ponto a partir do qual uma nova e extensa srie de

    fatos poderia recomear. Alis, essa ideia de novo recomeo apresentada

    por X., o narrador do romance escrito por douard, mostrando uma

    concordncia de ponto de vista entre o narrador e o narrador inventado, entre o

    romancista e a personagem romancista.

    Voltando questo das limitaes que o narrador enfrenta, o ltimo

    captulo da parte II bastante diferente do restante da obra. Ao encerrar a fase

    de Saas-Fe e antes de promover o retorno a Paris, o narrador faz um balano

    da histria at aquele momento, revelando inclusive decepes e medos. O

    captulo desprovido de qualquer ao, apenas compila reflexes sobre aes

    anteriores e especula a respeito do futuro das personagens. Ademais, tais

    especulaes sero apenas parcialmente concretizadas no desenrolar da obra:

    por exemplo, o narrador sente que Lady Griffith estaria afastando Vincent do

    ncleo principal. De fato h o afastamento, mas ele a mata e se torna um

    fugitivo, sendo o maior responsvel por seu prprio distanciamento. De modo

    semelhante, o narrador teme que o ambiente religioso faria mal a Boris, mas o

    que causa diretamente sua morte a convivncia com seus pares, no com os

    religiosos mais velhos. A sensao geral que se apreende que o narrador faztentativas difusas para cercar completamente os problemas, mas no

    consegue determin-los com preciso. A realidade dos eventos posteriores o

    supera.

    Os fatos no romance parecem ocorrer revelia do narrador, que est

    limitado a registr-los dentro de suas possibilidades. Esse captulo constitui

    portanto, uma janela atravs da qual o leitor tem acesso ao que sente quem

    registra uma histria supra individual e sobre a qual no se tem controle, semelhana do contexto europeu quando da ecloso da Grande Guerra.

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    Em suma, o narrador em Os moedeiros falsos constitudo atravs de

    um novo tipo de oniscincia seletiva, em que o rumo das personagens e at

    mesmo quais personagens aparecem no livro so eventos que ocorrem

    autonomamente. Esse recurso necessrio para garantir a verossimilhana

    em uma realidade marcada pela dvida e pela fora da histria que arrebata os

    cidados independentemente de suas vontades pessoais.