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Dezembro 2005 • N° 118 CAPA DE REVISTA TRANSFORMA NOTíCIA EM PRODUT PARASITA DO MAL DE CHAGAS COPIA GENES EM SÉRIE PARA SE REPRODUZIR Brasil produz e vende nanotubos de carbono para futuros medicamentos, equipamentos eletrônicos, novos tecidos etc. etc. etc.

Os pequenos notáveis

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Pesquisa FAPESP - Ed. 118

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Dezembro 2005 • N° 118

CAPA DE REVISTATRANSFORMANOTíCIAEM PRODUT

PARASITA DO MALDE CHAGAS COPIAGENES EM SÉRIE PARASE REPRODUZIR

Brasil já produz e vendenanotubos de carbono parafuturos medicamentos,equipamentos eletrônicos,novos tecidos etc. etc. etc.

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www.nossacaixa.com.br

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PESQUISA FAPESP 118 • DEZEMBRO DE 2005 • 3

A IMAGEM DO MÊS

Texturas marcianas

Imagens convencionais da superfície de Marte sobrepostas a fotosque só registram o espectro de raios infravermelhos,captadas pela sonda Mars Odyssey, revelam um cenárionoturno repleto de texturas. As cores sinalizam a temperatura:matizes azulados indicam lugares mais frios,enquanto os avermelhados mostram os mais quentes.Esse tipo de imagem ajuda os cientistas a distinguir áreas cobertaspor materiais finos, como poeira e areia, de regiões cravejadasde pedras e rochas. A técnica funciona porque, à noite,a areia esfria rapidamente enquanto as rochas preservam mais o calor.

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PeiqeTeCniiisaFAPESP

62 CAPANanotubos de carbonoproduzidos na UFMG jáestão à venda paraempresas e universidades

10 ENTREVISTA

22 AMBIENTEEspecialistas prevêemmais cobrança parao Brasil controlaremissões de poluentes

REPORTAGENS

POLíTICA CIENTíFICAE TECNOLÓGICA

24 3ª CONFERÊNCIA DE C,T & IPaís precisa de parceirospara manter liderançanos combustíveis renováveis

26 AVALIAÇÃORankings internacionaisevidenciam o desempenhodas quatro melhoresuniversidades brasileiras

29 GESTÃOPrimeira mulhera comandar a USP, a reitoraSuely Vilela querfortalecer a graduação

4 • DEZEMBRO DE 2005 • PESQUISA FAPESP 118

Responsável peloisolamento do vírus HIVno Brasil, Bernardo Galvãolembra da luta para impedira disseminação da Aidsno país, nos anos 1980,e fala de suas pesquisasatuais com HTLV na Bahia

CI~NCIA

38 SAÚDE

Uso de laser ajuda adiferenciar os tecidos sadiosdos atingidos pelo câncer

40 BIOLOGIAEquipe de pesquisadoresvai à Amazônia paravigiar a entradade doenças emergentes

44 ECOLOGIAPlano propõe estratégiaspara salvar da extinçãoas raias e os tubarõesda costa brasileira

48 ASTRO FíSICA

Força gravitacional de enormeestrutura a 500 milhõesde anos-luz puxa nossagaláxia em sua direção

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--~-------~-~-

68 FARMÁCIAMedicamento contramalária derivado da plantaartemísia será produzidototalmente no Brasil

34 BIOQuíMICAIdentificação de região donúcleo do Trypanosoma cruzipode facilitar o combateao mal de Chagas

COMUNICAÇÃOO que se esconde atrásdas capas de revistae das primeiraspáginas dos jornais

52 HUMANIDADES SEÇÕESFíSICAQuantidade e eficiênciadas conexões dependemessencialmente da formadas células nervosas

84 HISTÓRIAA IMAGEM DO MÊS .........••....... 3CARTAS···························6

CARTA DA EDITORA .....•............ 7MEMÓRIA ........•.......•........ 8ESTRATÉGIAS 16

LABORATÓRIO 3°SClELO NOTíCIAS ........•......... 56LINHA DE PRODUÇÃO 58RESENHA························92LlVROS··························94

CLASSI FICADOS 95FICÇÃO··························96

TECNOLOGIA

72 COMPUTAÇÃOPequena empresade São Carlos produzinovação reunindo váriosprofissionaisem projetos distintos

Estudo de Moniz Bandeiradisseca a formaçãodo império norte-americano

88 TEATROComo a modernizaçãodo palco brasileironos anos 1940 abriuespaço para a consagraçãode grandes atrizes

74 TELECOMUNICAÇÕESEmpresa incubada naUnicamp domina o processode fabricação de fibrasópticas que amplificamo sinal de luz

Capa: Hélio de Almeida

Imagem: Moléculas de água dentro

de um nanotubo de carbono. M. Denomme.

Universidade de Kentuckv,

National Science Foundation (NSF)

PESQUISA FAPESP 118 • DEZEMBRO DE 2005 • 5

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PesqerecnülsaFAPESP

As reportagens dePesquisa FAPESPretratama construção do conhecimentoque será fundamental para odesenvolvimento do país.Acompanhe essa evolução.

• Números atrasadosPreço atual de capa da revistaacrescido do valor de postagem.Tel. (11) 3038-1438

• Assinaturas, renovaçãoe mudança de endereçoLigue: (11) 3038-1434Mande um fax: (11) 3038-1418Ou envie um e-mail:[email protected]

• Opiniões ou sugestõesEnvie cartas para a redaçãode Pesquisa FAPESPRua Pio XI, 1-500São Paulo, SP 05468-901pelo fax (11) 3838-4181ou pelo e-mail:[email protected]

• Site da revistaNo endereço eletrônicowww.revistapesquisa.fapesp.brvocê encontra todos os textos dePesquisa FAPESPna íntegrae um arquivo com todas as ediçõesda revista, incluindoos suplementos especiais.No site também estãodisponíveis as reportagensem inglês e espanhol.

• Para anunciarLigue para: (11) 3838-4008

oque a ciênciabrasileira produzvocê encontra aqui

6 • DEZEMBRO DE 2005 • PESQUISA FAPESP 118

CARTAS

EMPRESA QUE APóiAA PESQUISA BRASILEIRA

lh NOVARTIS

Histeria

Foi com prazer que li a reporta-gem ''Asmáscaras da histeria" (edição117). No entanto, gostaria de fazer al-guns comentários. Na página 44 estádito que a histeria não se enraíza emnenhuma causaorgânica, a ver-dade, o sintomahistérico não temrelação com umacausa orgânica.Como a histeriaé um comporta-mento de um servivo, ela está en-raizada na fisiolo-gia do organismo.Alguns estudostêm relacionadoseus sintomas comalterações do eixohipotalãmico- hi-pofisário-adrenale com alteraçõesrelativas ao sistema serotoninérgico.Na pagina 42 fala-se de sintoma ine-quívoco. Os sintomas histéricos só sãoinequívocos pela falta de correspon-dente orgânico. Os sintomas podemser de ordem pseudoneurológica,pseudogenital, dolorosos ou dissocia-tivos, podendo ou não se apresentarna forma de ataques. Também sentifalta de outras abordagens do assun-to, além da psicanalítica. Afora isto,é maravilhoso ver o tema vir à baila.

AMAURI GOUVEIA JR

Unesp - Departamento de PsicologiaBauru, SP

Veneno de aranha

A revista Pesquisa FAPESP (edi-ção 116) no artigo "O veneno sobrelongas pernas dentro de casa" fazconfusão entre descoberta e aprimo-ramento. Na verdade, ao informarque a esfingomielinase do veneno daaranha foi descoberto no Butantanem 1998, Pesquisa FAPESP deixa decitar o trabalho de L. J. Forrester et ai.,

que relataram tal achado na Univer-sidade de Missouri, em 1977.

JOÃo LUIZ COSTA CARDOSO

Hospital Vital Brazil/lnstitutoButantanSãoPaulo,SP

Resposta da pesquisadora DeniseTambourgi:

O programade pesquisa envol-ve aprimoramentode conhecimen-to e em nenhum

TroplNet_org

momento me co-loquei como pio-neira numa des-coberta. O que foidito é que o nossogrupo isolou e ca-racterizou as es-fingomielinasesde Loxosceles in-termedia, a princi-pal espécie causa-dora de acidentesno Brasil. Forres-

ter em 1977 isolou e caracterizouparcialmente esfingomielinase de L.reclusa, espécie americana do norte,Além disso, a demonstração cabal deque eram as esfingomielinases o prin-cipal componente tóxico, responsávelpelos principais efeitos do veneno dasaranhas Loxosceles, efetivou-se emfunção da purificação, caracterizaçãobioquímica, clonagem e expressãofuncional dessas proteínas, demons-tração da sua ação dermonecrótica ehemolítica dependente de comple-mento, e foi estabelecida original-mente em nosso grupo e reconhecidainternacionalmente, como atestam aspublicações em revistas científicas deimpacto como [. Immunology, BBRC,Blood, Immunology, J. Biol. Chem,MoI. Immunol, [. Invest. Dermatol,entre outras.

Cartas para esta revista devem ser enviadas parao e-mail [email protected]. pelo fax (1~ 3838'4181ou para a rua Pio XI. 1.500. São Paulo. SP.CEP 05468-901. As cartas poderão ser resumidas·por motivo de espaço e clareza.

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Pesquisa MARCOS MACARI

VICE-PRESIDENTE

CONSELHO SUPERIOR

ADILSON AVANSI DE ABREU, CARLOS VOGT, CELSO LAFER, HERMANN WEVER, HORÁCIO LAFER PIVA, HUGO AGUIRRE ARMELIN,

JOSÉ ARANA VARELA, MARCOS MACARI, NILSON DIAS VIEIRA JÚNIOR, VAHAN AGOPYAN, YOSHIAK1 NAKANO

CONSELHO TÉCNICO-ADMINISTRATIVO

RICARDO RENZOBRENTANI DIRETOR PRESIDENTE

JOAQUIM J. DE CAMARGO ENGLER DIRETOR ADMINISTRATIVO

CARLOS HENRIQUE DE BRITO CRUZ DIRETOR CIENTÍFICO

PESQUISA FAPESP

CONSELHO EDITORIAL LUIZ HENRIQUE LOPES DOS SANTOS (COORDENADORCIENTÍFICO),

CARLOS HENRIQUE DE BRITO CRUZ, FRANCISCO ANTÔNIO BEZERRA COUTINHO,

JOAQUIM J. DE CAMARGO ENGLER, LUIZ EUGÊNIO ARAÚJO DE MORAES MELLO, PAULA MONTERO,

RICARDO RENZOBRENTANI, WAGNER DO AMARAL, WALTER COLLI

DIRETORA DE REDAÇÃO MARILUCE MOURA

EDITOR CHEFE NELDSON MARCOI IN

EDITORA SÊNIOR MARIA DA GRAÇA MASCARENHAS

DIRETOR OE ARTE HÉLIO DE ALMEIDA

EDITORES CARLOS FIORAVANTI (CIÊNCIA}, CARLOS HAAG (HUMANIDADES),

CLAUDIA IZIQUE (POLÍTICAC&T), HEITOR SHIMIZU (VERSÃOON-LINE), MARCOS DE OLIVEIRA (TECNOLOGIA)

EDITORES ESPECIAIS FABRÍCIO MARQUES, MARCOS PIVETTA

EDITORES ASSISTENTES DINORAH ERENO, RICARDO ZORZETTO

CHEFE DE ARTE TÂNIA MARIA DOS SANTOS

DIAGRAMAÇÃO JOSÉ ROBERTO MEDDA, MAYUMI OKUYAMA

FOTÓGRAFOS EDUARDO CÉSAR, MIGUEL BOYAYAN

COLABORADORES ANA LIMA, ANDRÉ SERRADAS (BANCO DE DADOS),

BRAZ, EDUARDO GERAQUE (ON-LINE), GONÇALO JÚNIOR, LAURABEATRIZ, MANU MALTEZ, MÁRCIO GUIMARÃES DE ARAÚJO,

MARGÔ NEGRO, ROBERTO DE 50UZA CAUSO, ROGÉRIO ANTUNES, SÍRIO J. B. CANÇADO,

THIAGOROMERO(ON-ÜNE)E YURI VASCONCELOS

ASSINATURAS TELETARGET

TEL. (11) 3038-1434 - FAX: (11) 3038-1418 e-maili [email protected]

APOIO DE MARKETING SINGULAR ARQUITETURA DE MÍDIA

[email protected]

PUBLICIDADE TEL; (11)3838-4008

e-mail: [email protected] (PAULA ILIADIS)

IMPRESSÃO PLURAL EDITORA E GRÁFICA

TIRAGEM; 35.700 EXEMPLARES

DISTRIBUIÇÃO

CIRCULAÇÃO E ATENDIMENTO AO JORNALEIRO LMX (ALESSANDRA MACHADO)

TEL: (11) 3865-4949 [email protected]

GESTÃO ADMINISTRATIVA INSTITUTO UNIEMP

RUA PIO XI, Ne 1.500, CEP 05468-901 ALTO DA LAPA - SÃO PAULO - SP

TEL. (11) 3838-4000 - FAX: (11) 3838-418»

http://www.revistapesquisa.fapesp.br

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NÚMEROS ATRASADOS

TEL. (11) 3038-1438

Os artigos assinados não refletem necessariamente a opinião da FAflESP

É PROIBIDA A REPRODUÇÃO TOTAL OU PARCIAL

DE TEXTOS E FOTOS SEM PRÉVIA AUTORIZAÇÃO

FUNDAÇÃO DE AMPARO À PESQUISA DO ESTADO DE SÃO PAULO

SECRETARIA DA CIÊNCIA, TECNOLOGIA, DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO E TURISMO

GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO

CARTA DA EDITORA

Construções do mundo presente e futuro

Os nanotubos de carbono, pe- ças minúsculas só visíveis por meio de potentes microscópios

eletrônicos, tão difíceis de explicar em palavras claras e definições sintéticas, impuseram-se como o indiscutível as- sunto de capa desta edição de Pesquisa FAPESP, a última de 2005. É que esse - vá lá! - material, uma das grandes conquistas tecnológicas da década de 1990, que deverá fazer parte de no- vos equipamentos eletrônicos, medi- camentos avançados, tecidos tecno- lógicos e outros 1.001 produtos no futuro, já está sendo produzido nos laboratórios da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e comercia- lizado pela Fundação de Desenvolvi- mento de Pesquisa (Fundep), da mes- ma universidade. Entre os compradores já estão instituições de pesquisa e em- presas de São Paulo.

Os nanotubos, como explica o edi- tor de tecnologia, Marcos de Oliveira, a partir da página 62, medem de 1 a 3 nanômetros de diâmetro e até 1.000 nanômetros de comprimento - para ter uma idéia do que é isso, imagine um fio de seu cabelo dividido longi- tudinalmente 50 mil vezes, tome uma das partes resultantes, e eis aí algo de dimensões equivalentes ao minúscu- lo artefato. Com essas dimensões, eles possuem excelente condutividade elé- trica e uma resistência mecânica cem vezes maior que a do aço, além de fle- xibilidade e elasticidade. A reportagem que explica tudo isso é fascinante, mes- mo para quem acha difícil adentrar no mundo das novas tecnologias.

Enquanto mal se descortina o mun- do futuro que vai sendo desenhado por essas criações tecnológicas, as capas de revistas semanais expostas nas bancas de alguma forma estetizam o mundo contemporâneo, ordenam seu caos real, se esforçam para seduzir, atrair, escapando sempre que possível à velha noção de fato mais importante da se-

mana. É isso que têm demonstrado as mais recentes pesquisas e teses sobre a função das capas de revistas, aborda- das pelo editor de humanidades, Car- los Haag, a partir da página 78.

No campo da ciência, vale destacar as descobertas recentes sobre as estra- tégias muito particulares do T. cruzi, agente causador do mal de Chagas, para se reproduzir. Isso é resultado de pesquisa básica, sem nenhuma pro- messa de ter um uso previsível a curto prazo. Mesmo assim, como explica o editor assistente de ciência Ricardo Zorzetto, a partir da página 34, a des- coberta pode criar alternativas futuras para a busca de compostos mais efi- cientes para combater o protozoário que infecta cerca de 18 milhões de pessoas na América Latina.

Ejá que estamos falando de es- tratégias de controle de doen- ças, vale a pena ler, a partir da

página 10, a entrevista de Bernardo Galvão, personagem-chave do Pro- grama Nacional de Controle da Aids, desde o momento mesmo em que a doença apareceu, na década de 1980. Galvão, um baiano modesto, profun- damente comprometido com a me- lhoria das condições de vida do nosso povo, tem seu nome ligado ao isola- mento do HIV no país, aos bons re- sultados do controle da qualidade do sangue no Brasil, às atuais pesquisas com HTLV e muito mais. Com o au- xílio internacional de US$ 1 milhão que recebeu quando era um jovem pesquisador de 32 anos, há 28 anos, ele simplesmente viabilizou a monta- gem do importante Departamento de Imunologia da Fundação Oswaldo Cruz, no Rio, entre outras contribui- ções valiosas para a produção cientí- fica nacional. Vale a pena ler.

Boa leitura, e belas festas de final de ano.

MARILUCE MOURA - DIRETORA DE REDAçãO

PESQUISA FAPESP 118 ■ DEZEMBRO DE 2005 ■ 7

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MEMóRIA

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Rotas da eletricidade

Primeira usina hidrelétrica brasileira que gerou energia para população foi inaugurada há 116 anos

NELDSON MARCOLIN

energia elétrica tornou-se disponível no Brasil para

uso público quase ao mesmo tempo que no

exterior. Um conjunto de fatores contribuiu

para isso. O engenheiro alemão Werner Siemens inventou o dínamo em 1867, o que possibilitou a utilização industrial da eletricidade. Os meios de transmissão de energia em alta-tensão para distâncias mais longas, os transformadores e alternadores, tiveram desenvolvimento igualmente rápido. Essas conquistas possibilitaram a criação das redes para abastecer vias públicas, fábricas, comércio e residências. Além disso, a aceitação coletiva da eletricidade no século 19 foi rápida. O Brasil acompanhou de perto esse processo

8 ■ DEZEMBRO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP118

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Casa de máquinas de Marmelos-Zero no passado (ò esquerda) e em anos mais recentes: hoje virou museu

em boa parte graças ao interesse do imperador dom Pedro II, reconhecido entusiasta das novidades tecnológicas.

A cronologia de alguns fatos mostra bem essa simultaneidade no uso da eletricidade. No mesmo ano em que o norte-americano Thomas Edison inventou a lâmpada elétrica, em 1879, foi inaugurada a iluminação na Estação Central da Estrada de Ferro Dom Pedro II (depois chamada de Central do Brasil), no

Rio de Janeiro. Se Nova York foi a primeira cidade do mundo a ter iluminação pública, em 1882, alimentada por uma termelétrica, já no ano seguinte o então distrito de Campos, no Rio de Janeiro, foi o primeiro do país a desfrutar do mesmo serviço, com uma máquina a vapor. Também em 1883 entrou em operação uma pequena usina no ribeirão do Inferno, afluente do rio Jequitinhonha, em Diamantina (MG). Primeira hidrelétrica instalada no

Brasil, serviu por algum tempo a uma empresa mineradora.

Mas o que é considerada de fato a primeira usina hidrelétrica do país e da América Latina a fornecer energia elétrica para iluminação pública, a Marmelos-Zero foi instalada no rio Paraibuna, altura da cachoeira de Marmelos, em Juiz de Fora (MG). No início, em 1886, a idéia era ter iluminação a gás. No entanto, o industrial

Bernardo Mascarenhas e o banqueiro Francisco Batista de Oliveira conseguiram mudar a concessão original para iluminação elétrica. Para isso constituiu-se a Companhia Mineira de Eletricidade, dirigida por Mascarenhas, que começou a construir a usina em fevereiro de 1889 e a inaugurou em 5 de setembro do mesmo ano. No começo a operação era feita com dois grupos de geradores de 125 quilowatts cada, compostos de duas turbinas hidráulicas que acionavam, cada uma, dois alternadores monofásicos, sob tensão de 1.000 volts e freqüência de 60 hertz. Cento e oitenta lâmpadas incandescentes, de 32 velas, a 50 volts, compunham o sistema de iluminação pública de Juiz de Fora naquele ano. Dois anos depois, além do uso público, foram instaladas 700 lâmpadas para utilização doméstica.

Nos anos seguintes um terceiro grupo gerador juntou-se aos já em funcionamento e permitiu a modernização da indústria de toda a região, especialmente a têxtil. Em 1896 a usina Marmelos- Zero foi desativada e outras hidrelétricas tomaram seu lugar para aproveitar melhor o potencial da cachoeira. Mais de cem anos depois, já tombada pelo Patrimônio Histórico, a casa de força da usina foi restaurada pela Companhia Energética de Minas Gerais e hoje abriga o Museu Marmelos-Zero, a cargo da Universidade Federal de Juiz de Fora.

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ENTREVISTA: BERNARDO GALVAO

A batalha contra a Aids e outras lutas

MARILUCE MOURA

ealizado em Sal- vador de 22 a 25 de novembro úl- timo, o 16° En- contro Nacional de Virologia foi presidido por Bernardo Galvão Castro Filho, um pesquisador bra- sileiro muito es-

pecial. Galvão, como o chamam todos, tinha 32 anos, voltara havia pouco de Genebra, com o doutorado em imuno- logia concluído sob a orientação do pro- fessor Paul Henri Lambert, quando rece- beu um granida Organização Mundial da Saúde (OMS) para implantar em Salva- dor, na Bahia, um Centro de Imunologia Parasitária. Valor desse auxílio: US$ 1 milhão. Era dinheiro pra lá de considerá- vel para um jovem pesquisador brasilei- ro, ainda mais em 1977, na Bahia.

As dificuldades encontradas em sua terra para implantar o sonhado centro terminaram levando Galvão em dezem- bro do mesmo ano para a Fundação Os- waldo Cruz, a respeitada Fiocruz, no Rio de Janeiro. Ali, com o belo montante do Programa de Pesquisas em Doenças Tro- picais (TDR, na sigla em inglês), ele deu início à história do Departamento de Imunologia da instituição, que logo se transformaria num pólo de atração de jovens e talentosos pesquisadores e, poucos anos depois, teria papel decisivo no controle da Aids no país. A equipe sob o comando de Galvão isolou o vírus

HIV no Brasil, trabalhou contra sua di- fusão, definindo as bases para a triagem de sangue e para seu controle de quali- dade, entre outras importantes contri- buições tanto para a pesquisa científica quanto para a saúde pública no país.

Mas Galvão sempre procura mini- mizar seu papel nos feitos desse departa- mento ou nos trabalhos mais recentes no centro da Fiocruz em Salvador, para onde ele retornou em 1987 e hoje, aos 60 anos, vê-se a braços com pesquisas do vírus HTLV, novos programas de saúde pública e sempre um sem-número de projetos de forte compromisso social. Não bastasse isso

Esse baiano cordial, generoso, simul- taneamente cristão e comunista, nasceu no elegante Corredor da Vitória, não por ser filho de uma família rica de Sal- vador, mas porque seu pai, professor, educador toda a vida, mantinha um pen- sionato para jovens do interior que iam estudar na capital, no famoso Colégio Sofia Costa Pinto, localizado naquela rua. O pensionato era também a casa da família de Galvão, que achava absoluta- mente normal partilhar a mesa de al- moço diária com cerca de 40 pessoas. Casado com Aninha há 35 anos, pai de Karina e Verena, avô de Thiago e Ber- nardo, Galvão contou muitas e delicio- sas histórias na longa entrevista que concedeu para Pesquisa FAPESP. Abai- xo, seus principais trechos.

■ Eu gostaria que você falasse, sem falsa modéstia, de seu papel na estratégia do

Programa Nacional de Controle da Aids, quando ele começou lá pelos anos 1980. — Acho que a contribuição mais impor- tante do grupo que eu liderava na Fio- cruz foi implantar as bases da triagem de sangue para HIV no Brasil. E também implantar as bases do controle de quali- dade de sangue e do controle de qualida- de dos laboratórios. A Aids foi e é um mal muito grande, mas no bojo desse mal muitas coisas importantes acontece- ram. Porque como a Aids é uma doença transmitida pelo sangue, e como a bolsa de sangue fornecida por um doador in- fectado pode infectar várias pessoas, se não houvesse o controle da transfusão sangüínea, se não houvesse uma tria- gem do sangue desde aquela época, pen- so que a dimensão da doença no país te- ria sido muito maior. Por isso acredito que, dentro do que fizemos, a contribui- ção mais importante foi ter iniciado es- sa triagem em 1985. A doença foi reco- nhecida como uma síndrome em 1981.

■ Isto é, naquele período em que Robert Gallo e Luc Montagnier isolaram o vírus? — Não, isso foi depois. A síndrome foi notificada, divulgada e reconhecida co- mo síndrome em 1980/1981, graças à vigilância epidemiológica dos Estados Unidos, que é muito boa, embora o sis- tema de saúde, de uma maneira geral, não seja. Então, o que aconteceu? Expli- quei isso num artigo que o Ênio Can- dotti, editor da revista Ciência Hoje, me pediu para escrever. Nos reunimos, eu, Hélio Pereira e Euclides Castilho, e es-

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crevemos um artigo sobre a Aids. Mas quem colocou tudo numa linguagem fácil e acessível foi César Benjamim, editor associado. De um lado tinha essa síndrome que o CDC, de Atlanta (Cen- ter for Desease Control and Prevention), e outros pesquisadores começaram a notar e a verificar que existia ali alguma coisa diferente. O que se via eram adul- tos jovens, antes sadios, sem nada que indicasse uma imunodeficiência inata, e que inesperadamente apresentavam uma imunodeficiência. Nos Estados Unidos, eles viram de início cinco ou seis casos de jovens que apresentavam de repente o que a gente chama de in- fecções oportunistas, provocadas por patógenos que normalmente não cau- sam doenças ao homem. É preciso que o organismo esteja muito debilitado pa- ra que se instalem. Bem, foi constatado em Los Angeles, logo depois em Nova York, que eles tinham essas doenças, pneumonia por Pneumocystis carinii. E aí esses casos foram relatados para o CDC, que percebeu algumas coisas em comum a todos eles: a imunodeficiên- cia, uma baixa de linfócitos acentuadís- sima, e o que chamava a atenção era o fato de ocorrerem em homens, todos homossexuais. Isso foi se espalhando por todos os Estados Unidos, depois por toda a Europa, pelo Brasil e por ou- tros locais... Em 1982, estávamos diri- gindo o Departamento de Imunologia da Fiocruz, que resultará, como já lhe contei, daquele projeto de TDR. E como essa síndrome se caracterizava por uma deficiência imunológica gravíssima, tí- nhamos a ver com ela. Nesse meio tem- po, eu e Cláudio Ribeiro, um colega do departamento, fomos chamados por um pai desesperado, que estava com o filho com Aids no hospital, lá no Rio. E fomos ver esse rapaz. Era muito jovem, uns 26, 27 anos, e estava se ultimando, o que nos deixou muito impressionados, muito mobilizados. Não era preciso na- quele momento ser visionário para ima- ginar que aquela doença ia se espalhar pelo mundo todo, ia se espalhar no Bra- sil, que tinha características de compor- tamento e de cultura que permitiam isso. Então fizemos um projeto que foi imediatamente aprovado pelo CNPq [Conselho Nacional de Desenvolvi- mento Científico e Tecnológico] para estudar casos de Aids no Brasil. Quería- mos verificar se as alterações imunoló- gicas encontradas nos pacientes brasi-

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leiros eram semelhantes às encontradas em pacientes de outros países. *•

■ O projeto foi feito logo em 1983? — É, 1983. E, para isso, precisávamos do sangue de pessoas infectadas para po- der avaliar vários parâmetros como con- tagem de linfócitos. Esse sangue vinha para o laboratório, e era processado. Então houve uma reação muito forte de pesquisadores que achavam que não de- víamos trabalhar com esse material biológico. Enfim, era um problema de receio, por falta de biossegurança ade- quada. Saí da minha sala para transfor- má-la num laboratório de pesquisa de Aids, porque tínhamos que cumprir a missão principal da Fundação Osvaldo Cruz, que é fazer pesquisa e ensino, não importa em que, sempre que seja preci- so responder a questões de saúde públi- ca. Houve uma demanda e nós tínhamos que dar uma resposta.

■ A resistência ocorria entre pesquisadores da própria fundação? — Dentro do próprio departamento onde as coisas se passavam. Porque tí- nhamos um grupo de jovens que aceita- vam essa pesquisa e seus desafios, mas na realidade quase todo mundo tinha me- do de manipular materiais biológicos sem a devida biossegurança. Em 1983 foi fei- to o primeiro relato de identificação do vírus. Quem isolou o vírus, como você sabe, foi uma mulher, Françoise Barré- Sinoussi, que teremos o prazer de rece- ber para fazer a conferência de abertura no Encontro de Virologia. Ela faz parte do grupo de Luc Montagnier e foi a pri- meira autora do primeiro artigo sobre a identificação do vírus, publicado na revista Science. Quando saiu o artigo, Robert Gallo achou que não era justo aquilo com ele...

■ Ele se sentiu "bypassado". — Não sei nem se "bypassado", ele acha- va que não era justo porque realmente contribuiu muito para o isolamento do vírus. Só que não conseguiu isolar pri- meiro. Os dois grupos, francês e ameri- cano, contribuíram igualmente.

■ O trabalho tinha que ser assinado pelos dois, na verdade. — Lógico. O grande erro de Gallo foi ter negado essa possibilidade. Devia ter aceito. As coisas acontecem assim. Se você der uma olhada aqui num trabalho

que eu fiz para a Academia de Medicina [ Origem do HTLV-I em Salvador, Bahia: possível introdução pós-colombiana], so- bre outro retrovírus, vai ver que desde 1908 já havia estudos sobre os retroví- rus, sem se saber que eram retrovírus. E, por exemplo, Peyton Rous demonstrou em 1911 que sarcomas aviários eram causados por retrovírus, o que dois pes- quisadores japoneses confirmaram três anos depois. Mas a importância da des- coberta de Peyton Rous só foi reconhe- cida 55 anos depois, quando ele foi agraciado, em 1966, com o Prêmio No- bel de Medicina.

■ O que você quer dizer é que até o isola- mento e a identificação do vírus da Aids, Gallo contribuiu muito para que isso se tornasse possível. — Quero dizer que o caso dos retroví- rus é uma demonstração clara de como a pesquisa básica vai contribuindo aos poucos, sem nenhuma visibilidade para o grande público, para uma descoberta importante. A visibilidade se dá quan- do acontece um problema desse tipo da Aids, que chama a atenção. Na história dos retrovírus temos vários pesquisado- res que ganharam o Prêmio Nobel. Em 1970, por exemplo, Howard Temin e David Baltimore identificaram em neo- plasias causadas por retrovírus a enzima transcriptase reversa, que é o que carac- teriza o retrovírus, e ganharam o Nobel de Medicina em 1975. Gallo contribuiu com muita coisa, só que ele não foi o primeiro a isolar o HIV. O grupo dele isolou um vírus em 1980, que era um HTLV, parente próximo do HIV, mas com várias características diferentes. Ambos são transmitidos nos seres hu- manos da mesma maneira, mas com in- tensidades diferentes. Enquanto o HIV causa uma doença devastadora, o HTLV, pelo menos é o que se sabe até agora, só provoca desenvolvimento de doença em 5% dos indivíduos infectados. O HIV é uma pandemia, ocorre no mundo todo, e o HTLV ocorre em determinadas re- giões geográficas, e, com exceção do Ja- pão, só nos países pobres, [ver Pesquisa FAPESP, edição 114, de agosto de 2005]. Curioso é que na década de 1970 hou- ve muito trabalho sobre retrovírus, quando Gallo fez muitas contribuições, e em 1980 ocorreu um certo desestímu- lo, até que surgiu o HIV O grupo de Luc Montagnier identificou o vírus em 1983, e em abril de 1984 Gallo também iden-

tificou. Houve, então, aquela grande dis- puta sobre quem efetivamente identifi- cara primeiro o vírus.

■ E quando vocês fizeram o isolamento aqui? — Bem antes disso, antes de 1985, dois pesquisadores, conceituadíssimos no mundo da virologia, um casal fantástico — ela inglesa, chamada Margueritte Pe- reira, Peggy, e ele, Hélio Pereira, um bra- sileiro naturalizado inglês -, se interes- saram pelo trabalho com Aids que fazíamos aqui. Ela foi diretora do labo- ratório de saúde pública de Londres, ele foi chefe de departamento em universi- dades inglesas, e vinham muito ao Brasil. Ficamos muito amigos, graças a seu in- teresse por nosso trabalho. Eles sabiam a dimensão que tudo isso ia ter. É quando em abril de 1985 eles entram no labora- tório, me procuram, com duas garrafinhas de cultura, que eram as células infectadas pelo HIV, que Gallo tinha dado a eles pa- ra que pudessem trazer para o Brasil. E aí, a partir desse momento, tudo mudou. Nosso trabalho mudou de patamar, mu- dou de objetivo, porque começamos a tentar instalar uma técnica de diagnós- tico sorológico que possibilitasse fazer trabalhos de epidemiologia, saber quais grupos eram atingidos etc. e começar a criar os kits para diagnóstico. Então, na- quela época, tínhamos tudo, estávamos num centro de referência que tinha to- dos os equipamentos, as tecnologias to- das modernas, porque foi aplicado muito recurso para estudar imunologia para- sitária. Demonstrava-se mais uma vez que, quando se aplica em ciência básica, mais cedo ou mais tarde se pode ter uma resposta. Pudemos fazer o que fi- zemos porque tínhamos o domínio da- quela metodologia, da técnica.

■ Mas quando os dois frasquinhos foram trazidos pelo Hélio Pereira... — E Peggy, hein! Não podemos esque- cer dela. Começamos a expandir, fazer cultura. A gente podia fazer cultura de célula.

f ■ E aí vocês isolaram o vírus também aqui. — Não nesse ano, ainda. Em 1985 foca- mos nossa atenção em coisas mais prio- ritárias, mais urgentes, que era criar as bases de triagem nos bancos de sangue. Com isso em mente, começamos a ten- tar desenvolver uma metodologia que

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permitisse detectar os doadores que eram portadores de HIV. Por quê? Porque o HIV causa uma infecção crônica. Os in- divíduos são sadios, sem teste não se vê que estão infectados, até que apresentem Aids, uma síndrome fácil de diagnosti- car. Era como se fosse um iceberg, cuja ponta eram os indivíduos com Aids, e a grande massa de gelo submersa eram os indivíduos infectados, que infelizmente não sabiam e doavam sangue, coisa que muitos fazem para ajudar o próximo. E assim disseminavam o vírus. Esse era o grande problema naquela época: sem triagem do sangue, essa infecção ia se alastrar rapidamente. Começamos a tentar desenvolver uma metodologia, na verdade nada de original, porque os tes- tes já existiam, devíamos apenas adaptar para o HIV a metodologia que já domi- návamos para Chagas e leishmania. Então a partir da cultura de vírus preparávamos os antígenos virais, e adaptávamos as técnicas. E aí passamos a tentar fazer o Elisa, que é mais difícil. O Brasil tinha muita experiência numa técnica chama- da imunofluorescência, extremamente trabalhosa e subjetiva. Mas era o que tí- nhamos no momento, todos os bancos de sangue estavam equipados para fazer fluorescência, porque fazia para Chagas e outros agentes infecciosos. Aí é que veio a grande idéia de que era mais fácil para a gente produzir kits de imuno- fluorescência. O problema é que come- çamos a fazer isso em escala de pro- dução e transformamos o laboratório de pesquisa numa fábrica. Uma fábrica muito caseira, com um grupo de traba- lho muito jovem, trabalhando por turnos de duas horas. Nesse momento, meu es- critório passara a ser no corredor.

■ Com essas técnicas, o resultado falso po- sitivo não era um grande problema? — Era, porque um dos princípios do diagnóstico sorológico é que, feita a pri- meira reação por algum método, o re- sultado tem que ser confirmado por métodos de princípio e/ou antígeno di- ferente. A rigor, a questão envolvia dois problemas: um, era a triagem do banco de sangue, em nível de saúde pública, em que se buscava proteger uma comunida- de de ser infectada. E aí qualquer sinal de um resultado positivo tinha que ser leva- do em conta. Mas um outro problema se apresentava, mais individual, mas que não deixava de ser um problema tam- bém nosso, porque era preciso avisar al-

A Aids trouxe coisas terríveis, mas forçou a sociedade a se mobilizar como

jamais ocorrera

guém se o primeiro resultado fora posi- tivo, era preciso confirmar, porque não se ia dizer a alguém que estava infecta- do pelo HIV quando não se tinha certe- za. Não se pode destruir a vida do outro. Então tínhamos que ter testes confirma- tórios. Foi quando a Organização Mun- dial da Saúde [OMS] fez uma pressão muito grande e conseguiu inclusive im- portar testes Elisa para o Brasil. A técni- ca de fluorescência resolvia um pouco o problema brasileiro, mas era muito tra- balhosa. Você pode imaginar? Eram mi- lhares de bolsas para testar de forma muito artesanal, muito subjetiva. O pro- blema do Elisa era seu custo proibitivo, e o que aconteceu então foi que a Orga- nização Mundial da Saúde conseguiu comprar grandes quantidades do teste por um preço muito menor e distribuí- los, claro que com uma contribuição dos vários países. A partir desse momen- to esses testes foram implantados para os bancos de sangue. Mas o teste confir- matório mais amplamente utilizado no mundo, o Westernblot, continuava apre- sentando o mesmo problema: era ca- ríssimo para importar. E daí o Brasil e o Estado da Califórnia, que tinham expe- riência de uso da imunofluorescência

para o mesmo fim, passaram a utilizá-la, o que foi muito combatido nos grandes fóruns internacionais, na Organização Mundial da Saúde etc. Mas até hoje o Brasil a utiliza. Num determinado mo- mento a produção se tornou tão grande que houve uma decisão de transferi-la para Bio-Manguinhos, que passaria a cuidar disso em escala industrial. E Bio- Manguinhos ainda distribui a imuno- fluorescência para os bancos de sangue da rede pública. Assinamos um termo de que não podíamos em nenhum mo- mento empregar aquele material para fins lucrativos. Só podíamos utilizá-las na área da saúde pública. O fato é que acho que a Aids trouxe coisas horroro- sas, terríveis, devastadoras, mas ao mes- mo tempo forçou a sociedade a se orga- nizar para combatê-la. E, junto com ela, outros problemas passaram a ser mais controlados, porque as vias de trans- missão são as mesmas. Foi a partir da Aids que uma lei regulamentou toda essa questão das transfusões, doações, veio o controle da hepatite etc. Acho isso extremamente interessante, uma mobili- zação de toda a sociedade como nunca antes acontecera. Hoje se diz que o Bra- sil tem um programa exemplar de con- trole e tratamento da Aids.

■ No entanto, tenho dúvidas se será pos- sível mantê-lo a longo prazo devido ao custo elevado. — Por exemplo, por não produzirmos aqui determinados insumos, não sei se será possível manter a distribuição gra- tuita a longo prazo. Mas foi um aconte- cimento marcante a mobilização em tor- no da Aids, e não foi o governo que se antecipou, mas o cidadão que exigiu os seus direitos, mostrando a força que isso tem quando a sociedade está organizada. Por que outras doenças graves não tive- ram essa repercussão tão grande? Na mi- nha interpretação, o que ocorreu é que no Ocidente os grupos atingidos pela Aids já eram muito bem organizados por outras razões.

■ Você está falando dos homossexuais, ba- sicamente. — Sim, eles já tinham uma prática de organização, principalmente nos Esta- dos Unidos, e nesse caso se juntaram pa- ra exigir seus direitos. ,

■ Mas a qualidade do programa no Brasil tem a ver também com a sua condução,

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com a boa visão de saúde pública dos pes- quisadores envolvidos - e aí eu estou fa- lando também da Fiocruz, de seu grupo no Laboratório de Imunologia. — Sem dúvida, mas os pesquisadores são parte da sociedade. E quando disse que a sociedade se organizou em relação ao problema da Aids vale lembrar que ele atingiu, no início da epidemia, principal- mente pessoas de classe média alta, inte- lectuais, artistas, formadores de opinião e grupos extremamente organizados, com poder de mobilização. Em paralelo, há mesmo essa questão extremamente im- portante do papel da Fiocruz, sua missão maior, que é resolver problemas de saúde pública. Não importa o que você faça dentro da Fiocruz, é sempre para respon- der a questões de saúde pública. Então, o fato de ter esses pesquisadores já motiva- dos por esse compromisso social ajuda. Mas havia também todo o ambiente in- ternacional favorável, porque a Aids se apresentou logo como um problema mundial seriíssimo, e houve recursos na- quele momento de instituições externas, como o Banco Mundial, o que propor- cionou a implantação do programa com gente treinada em vários níveis, não só pesquisadores da área básica, mas epide- miologistas e outros especialistas. Quero lembrar aqui que a pessoa que realmen- te iniciou e escreveu todo esse projeto brasileiro para o Banco Mundial foi Lair Guerra de Macedo, uma nordestina, piauiense, que ficou seis ou sete anos no CDC e que, voltando ao Brasil, em 1985, veio muito bem treinada para essas gran- des batalhas epidemiológicas, com a mis- são de montar o programa. E foi ela, na realidade, quem organizou tudo isso. E conseguiu. Infelizmente perdas ocorre- ram também, muitas, durante esse pro- cesso. Por exemplo, Hélio e Peggy Pereira tiveram um acidente de carro, ela faleceu em 1987, ele faleceu depois. Lair teve um acidente de carro, ficou numa situação bastante difícil para voltar a trabalhar. Trabalhamos muito juntos. Participei da primeira comissão de Aids do Ministé- rio da Saúde, juntamente com Hebert de Souza, Betinho, que era extremamente ativa e diversificada. Nós, os pesquisado- res, os "cientistas" normalmente encerra- dos em suas torres de marfim, com co- nhecimento e raciocínio extremamente sofisticados, refinados, de repente come- çávamos a conviver com segmentos a que não estávamos habituados. Foi mui- to interessante. Luís Roberto Castelo

Branco gostava de lembrar que uma vez eu voltava da reunião da comissão, em Brasília, e a minha companheira de via- gem era a representante das prostitutas do Rio de Janeiro. Voltávamos juntos, no avião, conversando muito amistosamen- te, ela uma senhora já, aposentada. Então foi muito interessante essa convivência, você via os grupos atingidos se coloca- rem dentro das políticas, como alvos, e eles mesmos eram participantes da ela- boração, da implantação dessa política. Um dos grandes problemas que ainda então se apresentava era o da autonomia nacional para o desenvolvimento de tes- tes. A partir de 1983 e até 1985 todos os países desenvolvidos já tinham isolado seus vírus. Recebemos muitas propostas de colaboração, que na verdade eram unilaterais. Nós gostamos muito da cola- boração internacional, mas não do tipo proposto, em que um grupo de fora vi- ria, coletaria amostras de sangue no país, isolariam o vírus e continuaríamos sem competência para isso. Poderíamos sim, desse jeito, ter isolado o vírus muito mais cedo, mas tomamos outro caminho.

■ Qual? — Tomamos a decisão de que era me- lhor esperar para adquirir autonomia nacional. O grande problema de isolar o vírus não era falta de expertise ou de co- nhecimento. Qualquer laboratório de virologia com cultura de células podia isolar. O problema era identificar o ví- rus, precisava fazer detecção por trans- criptase reversa. Aí, junto com um grupo de jovens, resolvemos isolar o vírus.

■ Na verdade era você à frente, com um grupo de jovens. É só por modéstia que você diz de outra forma. — Não é bem assim. Acho que era o grupo todo, posso ter sido o líder mais velho... Nós tínhamos tudo para isolar, e conseguimos. Isso teve uma repercussão enorme, o laboratório se transformou totalmente. Éramos diariamente solici- tados pela mídia, mas tínhamos que continuar com nossos afazeres.

■ E você estava na televisão quase todo dia. — Isso era um problema gravíssimo para nós, porque não nos conformáva- mos com as notícias truncadas. Mas foi um momento muito interessante na Fio- cruz porque, como os jornalistas nos procuravam muito, brigávamos muito, mas ao mesmo tempo nos gostávamos

muito. E terminou surgindo uma idéia de fazer cursos. Os pesquisadores se mobilizaram para organizar cursos de biologia molecular para os jornalistas, e de tudo isso ficaram muitos relaciona- mentos excelentes.

■ Isso foi em 1986, 1987? — Em 1987, creio. Acho que alguma coisa ficou desse processo. Hoje sai mui- to mais notícias dessa área na imprensa.

■ Qual é a data de isolamento do vírus? — Posso dizer a data da publicação do artigo: maio de 1987. Era um isolamento só, mas teve uma repercussão impressio- nante. Lembro que fiz uma entrevista co- letiva, eu era jovem naquela época, não estava acostumado, ficava muito tenso, mas conseguia me virar. E era muito en- graçado, porque [Sérgio] Arouca estava conosco e dizia "como você tem paciên- cia!" Porque num determinado momen- to, uma daquelas repórteres da televisão me perguntou assim: "Você pode pegar aí o vírus com a pinça?" E passamos a ser reconhecidos na rua... isso foi difícil.

■ Vocês viraram estrelas. — Eu lembro que uma vez estava com minha mulher numa fila de cinema e veio uma pessoa me pedir um autógra- fo. Aquilo para mim foi... eu fiquei arra- sado, mortificado. Falei, mas eu não sou artista, como é que vou fazer isso? Foi um momento difícil, mas muito rico.

■ Vocês aprenderam a lidar com muitos públicos. — É... E lembro que em 1987, com essa coisa toda, a Fundação Banco do Brasil nos procurou para fazer um projeto. Fi- zemos, e o Banco do Brasil, acho que pa- ra aprová-lo rapidamente, constituiu um comitê. Nesse comitê tinha um médico que votou contra o projeto. Estávamos propondo isolar mais vírus, porque cer- tos vírus variam de região para região, e precisávamos fazer uma caracterização, pensando inclusive numa vacina futura específica para o Brasil. Isso era impor- tantíssimo naquela época. A própria fundação não aceitou a negativa do mé- dico e exigiu que eu fosse conversar com ele. Ficamos uma tarde inteira no con- sultório dele, discutindo a importância do projeto. Ele argumentava que isso já tinha sido feito nos Estados Unidos e que não era importante. Era na verdade puro preconceito. J

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■ Que horror! — Era um horror. E aí, mesmo reco- nhecendo que o projeto era importante, ele deu baixa prioridade. O projeto fi- cou engavetado no Banco do Brasil. E sabe quem finalmente tirou o projeto da gaveta?

■ Quem? — D. Eugênio Sales. Existia um progra- ma do Banco da Previdência na região do Mangue [zona tradicional de prosti- tuição bem próxima ao centro do Rio de Janeiro] para prostitutas, travestis, men- digos. Dois médicos que trabalhavam no programa me procuraram e começamos a trabalhar juntos. Daí resultou um estu- do de prevalência de HIV, sífilis e hepa- tite em mendigos doadores de sangue. Naquela época a doação era paga em de- terminados bancos de sangue privados, e os mendigos doavam para ter alguma grana para comer. Bem, d. Eugênio sabia da nossa existência, então ele me convi- dou e eu fui encontrá-lo. Passamos uma tarde inteira conversando, falei do veto do projeto no Banco do Brasil e ele tele- fonou para o presidente do banco, Ca- milo Calazans.

■ É o poder da Igreja levando ao encontro ciência e religião. — Ele perguntou por que o projeto esta- va engavetado, disse que era extrema- mente importante e tal, e o projeto foi desengavetado.

■ Vamos fazer um retrocesso. Toda essa sua história na Fiocruz começa com você, um jovem pesquisador, montando o De- partamento de Imunologia da instituição, com uma verba disponível de nada menos que US$ 1 milhão, que na época valia bem mais que o milhão de hoje. Vamos falar disso. — Foi uma experiência desafiadora, muito enriquecedora. O que aconteceu é que esse grant do programa de Pes- quisas em Doenças Tropicais da OMS permitiu que montássemos uma infra- estrutura e, com essa estrutura monta- da, o Departamento de Imunologia se tornou um pólo de atração para jovens, recém-doutores que estavam voltando ao país. Num discurso na solenidade pe- los 25 anos do departamento, em que me homenagearam, Cláudio Ribeiro disse o seguinte: "Quando você recebeu a verba da OMS, um colega da comu- nidade brasileira de imunologistas fez

Para mim é muito importante que o outro cresça, porque acredito na difusão do

Vfefel

conhecimento

um comentário que você não gostou (aliás, nem nós): "Você vai ter que pres- tar contas à sociedade desse dinheiro, Galvão'. Estamos aqui comemorando 25 anos do departamento, que você criou, e homenageando você, acho que são relatório e prestação de contas que falam por si sós". Lógico que não fui eu que criei, foi um grupo. O que eu que- ria dizer é que foi uma coisa muito de- safiadora, mas que talvez tenha me per- mitido algum sucesso. Minha mulher define bem essa coisa, é que eu sou um animador, gosto de gente junto de mim. Gosto de uma frase de Norberto Odebrecht: ele diz que o verdadeiro lí- der tem que se anular em prol do em- preendimento. É verdade que às vezes há conflitos, você solta idéias e as pes- soas se apropriam, há ciúmes, quando você reconhece que aquela idéia que inicialmente foi sua não é mais... Mas por outro lado isso é uma coisa muito salutar. Para mim é muito importante que o outro cresça, porque eu acredito na difusão do conhecimento e na sedi- mentação de grupos e de indivíduos trabalhando.

■ Quantos discípulos você ajudou a trans- formar em cientistas? — Não tenho discípulos, tenho colegas que trabalharam ou trabalham comigo. No Departamento de Imunologia foram umas 20 pessoas. Orientei teses de mes- trado, doutorado... E uma das coisas que me deixou muito feliz é que, quando re- solvi voltar para Salvador, vi que o de- partamento tinha muita gente brilhante para tocá-lo.

■ Então você voltou para Salvador em 1987, no auge de seu trabalho na Fiocruz do Rio.

— Sim, eu tinha naquele momento uma infra-estrutura muito boa, mas volta- mos para mais um desafio. Achávamos na ocasião que Salvador, devido às ca- racterísticas sociodemográficas mui- to semelhantes às de cidades africanas, com 80% mais ou menos de afrodes- cendentes em sua população, teria um padrão de disseminação da doença semelhante ao da África, onde já foi de- monstrado que a infecção pelo HIV ti- nha começado há muitos anos. Tam- bém naquele momento Arouca, que era presidente da Fiocruz, tinha um in- teresse muito grande em descentralizar as ações da fundação e queria reforçar o centro na Bahia. Mas a progressão da doença não se deu como então pensá- vamos.

■ E aí seu desafio não existia mais. — Mas tivemos a surpresa de verificar que Salvador é a cidade brasileira que tem a maior prevalência de HTLV no Brasil. Então hoje temos muitos traba- lhos com esse vírus, que atinge pessoas carentes, de baixa escolaridade, tem uma transmissão predominantemente he- terossexual e atinge mais as mulheres. Antigamente, duas doenças estavam as- sociadas ao HTLV: leucemia e uma do- ença neurológica que incapacita as pes- soas para andar e termina colocando-as em cadeiras de rodas. Hoje percebemos que a infecção do HTLV é sistêmica e atinge muitos outros órgãos, como os pulmões, a visão, as articulações etc. Hoje temos um Centro na Escola Ba- hiana de Medicina e Saúde Pública da Fundação para Desenvolvimento da Ciência, resultante de um convênio com a Fiocruz, que atende os indivíduos in- fectados, de maneira integrada nos as- pectos biopsicossociais. •

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I POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA

■ Clima de cooperação

Autoridades de sete países sul-americanos - Argentina, Brasil, Paraguai, Uruguai, Bolívia, Chile e Venezuela - formaram uma comissão cien- tífica incumbida de criar, já no próximo ano, o Centro Regional de Estudos e Pes- quisas em Meteorologia, com sede em Montevidéu. A deci- são foi anunciada numa reu- nião de ministros da Educa- ção dessas nações realizada em novembro na capital do Uruguai. O representante bra- sileiro na comissão é o pro- fessor de Física Osvaldo Leal de Moraes, da Universidade Federal de Santa Maria. O objetivo do novo centro é dis- seminar o conhecimento em meteorologia gerado por pes- quisadores dos países mem- bros, promover parcerias, formar recursos humanos e elaborar projetos multinacio- nais que ajudem a lidar com os riscos climáticos na região. "O estudo do clima e o ma- nejo dos riscos associados a sua variabilidade são de vital importância para os países do Mercosul, onde a produção agropecuária gera um por- centual significativo das ex- portações e a matriz energéti- ca tem um forte componente hidroelétrico", justificou o

Cérebros em fuga Um estudo divulgado pe- lo Banco Mundial mostra que os países mais pobres do mundo são proporcio- nalmente os mais prejudi- cados com a evasão de cé- rebros para nações ricas. Segundo a pesquisa, entre 25% e 50% da força de tra- balho de nível universitário de países como Moçambi- que, Uganda e El Salvador vive no exterior, em algu- ma das 30 nações desenvol-

vidas que pertencem à Or- ganização para a Coopera- ção e o Desenvolvimento Econômico (OCDE). O porcentual chega a 80% na Jamaica e no Haiti. Já em países do Terceiro Mundo mais desenvolvidos, como índia, China, Indonésia e Brasil, a evasão não ultra- passa 5%, ainda assim uma sangria importante. O estudo foi feito com base em recenseamentos

dos 30 países da OCDE. Para Devesh Kapur, pro- fessor da Universidade do Texas e autor de um do li- vro sobre a fuga de cére- bros, a evasão nos países muito pobres cria um cír- culo vicioso que perpetua a miséria. "A perda não é só de profissionais, mas de um pedaço considerável da classe média", disse Ka- pur ao jornal The New York Times. •

documento que lançou as ba- ses para a instalação do cen- tro. Rafael Terra, pesquisador uruguaio que participou da elaboração do documento, disse ao site SciDev.Net que o grande objetivo da entida-

de é a criação de programas de pós-graduação em me- teorologia. A administração será feita por um conselho superior integrado por re- presentantes de cada país membro. •

■ Bolsas em dobro no Chile

O Chile vai dobrar o núme- ro de bolsas de pós-doutora- mento financiadas pelo go- verno. Foram aprovados 52 projetos, que correspondem a 44% das propostas apre- sentadas ao Concurso Nacio- nal de Pós-Doutorado de 2006. No ano passado, o con- curso patrocinou 21 iniciati- vas. As propostas abarcam áreas como microbiologia, ciências ambientais, biologia celular, oceanografia, astro- nomia e química de recursos naturais. O concurso busca estimular a produtividade e a liderança científica dos postulantes favorecidos ao

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■ •V • • • « E — ■

conceder uma bolsa que lhes permite dedicar de manei- ra exclusiva à pesquisa por dois anos. O Fundo Nacio- nal de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (Fondecyt) vai destinar US$ 1,15 milhão (o equivalente a R$ 2,5 milhões) para o pri- meiro ano de execução dos projetos. O crescimento do número de propostas e a sua qualidade pesaram bastante na decisão de ampliar as bol- sas. "Queremos ampliar as oportunidades para nossos jovens talentos financiando bolsas de pós-doutoramen- to" , disse ao site SciDev.Net Luis Gutiérrez, subdiretor de Fondecyt. A produção cien- tífica chilena só é superada, na América Latina, pela do Brasil e do México. Mas su- pera os dois países quando se analisa a produção per ca- pita, com 70 artigos publica- dos para cada 1 milhão de habitantes. No Brasil, a pro- porção é de 39 artigos por milhão de pessoas. •

■ Biotecnologia une a Ásia

Será sediado na índia um centro de treinamento em biotecnologia destinado a pesquisadores de toda a Ásia. A iniciativa, que vai custar US$ 7 milhões, será

bancada por vários países da região e pela Unesco, o órgão das Nações Unidas para edu- cação, ciência e cultura. Ao promover redes de pesquisa unindo diferentes países, o centro busca estimular par- cerias e desenvolver centros regionais. O centro terá um banco de dados com infor- mações sobre a pesquisa em biotecnologia em todo o continente. "Países como a índia, a China e a Malásia exibem competência cres- cente em biotecnologia apli- cada à agricultura e à saúde", disse o paquistanês Anwar Nasim, presidente da Federa- ção das Associações de Bio- tecnologia da Ásia. Ele admi- te que a forte competição tecnológica travada entre es- sas nações pode ser uma bar- reira para criar parcerias em pesquisas de ponta, mas acha que há espaço para co- laborações. "Essas nações só terão a ganhar comparti- lhando experiências e espero que sejam generosas com os vizinhos que estão atrás na corrida da biotecnologia", afirmou. Nasim diz que a Unesco fará esforços diplo- máticos para remover as bar- reiras que impedem o traba- lho conjunto de cientistas da índia e do Paquistão, vizi- nhos que se ameaçam com armas atômicas. •

■ Combate à malária em três fronts

Numa das maiores doações privadas de que já se teve no- tícia, o fundador da Micro- soft, Bill Gates, anunciou a destinação de US$ 258,3 mi- lhões (cerca de R$ 570 mi- lhões) para pesquisa sobre a malária. A verba, distribuída pela fundação filantrópica Bill e Melinda Gates, será dividida em três partes. A maior delas, de US$ 107,6 milhões, caberá aos estágios finais do desenvolvimento de

uma vacina contra a malária, que vem sendo testada em Moçambique pelo médico espanhol Pedro Alonso. Ou- tros US$ 100 milhões serão destinados ao projeto Medi- cines for Malária Venture (MMV), que pesquisa novos medicamentos contra a doen- ça. "Nosso objetivo é pro- duzir uma variedade de re- médios que custam U$ 1 ou menos por pessoa tratada", afirmou Chris Hentschel, do MMV. Os restantes US$ 50,7 milhões serão investidos na Malária R&D Alliance, que desenvolve novos inseticidas e métodos de controle de mosquitos. Tais pesquisas es- tão a cargo da Escola Britâ- nica de Medicina Tropical de Liverpool. "Milhões de crianças já morreram de ma- lária porque elas não têm a proteção de uma rede ao re- dor da cama ou porque não receberam o tratamento ade- quado", justificou Bill Gates. Ele advertiu, contudo, que sua doação terá efeitos limi- tados no controle da doença. Estima-se que, para reduzir à metade o número de infec- tados nos próximos cinco anos, seria necessário inves- tir anualmente US$ 3,2 bi- lhões, o mesmo também para diminuir em 50% até 2010 o número de mortes causa- das pela malária. •

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ESTRATéGIAS MUNDO

Rebelião chinesa

Oitenta mil chineses estu- dam nos Estados Unidos. São atraídos pela excelência das universidades norte-ameri- canas, que, por sua vez, con- sideram-nos alunos esforça- dos e bem preparados. Um protesto liderado por estu- dantes chineses na Universi- dade Yale mostra que a reali- dade nem sempre combina com as expectativas dos visi- tantes. A causa do protesto foi a iminente expulsão de

Xuemei Han, 26 anos, aluna de segundo ano do Departa- mento de Ecologia e Biologia Evolucionária. Em junho, ela foi avisada de que seu desem- penho estava abaixo do exi- gido. Por isso seria desliga- da. Ela contestou a avaliação. Afinal foi aprovada no exame de qualificação na primeira tentativa e, depois de tentar algumas vezes, conseguiu também passar nos testes de proficiência em inglês. Han

fez o que a maior parte dos estudantes chineses jamais sonharia em fazer: entrou com um processo contra Yale, alegando que os professores na verdade estão insatisfeitos com seu domínio do inglês e não se dispõem a lhe dar ajuda extra na preparação de manuscritos. "O problema é que sou a única chinesa em meu departamento. Em ou- tros cursos, os estudantes chineses acabam ajudando

Ciência na web

uns aos outros", disse a estu- dante à revista Nature. Mais da metade dos 274 estudan- tes de Yale oriundos da China assinou uma declaração de apoio a ela. O comando da universidade acabou autori- zando-a a transferir-se para o Departamento Florestal, on- de há um orientador dispos- to a acompanhá-la. Ela recu- sou a oferta, pois perderia a bolsa de estudos se mudasse de curso. •

Envie sua sugestão de site científico para [email protected]

http://www.unesp.br/universofisico 0 portal divulga para leigos os avanços da física anunciados em agências de notícia e revistas científicas.

http://nationalacademies.org/evolution/ 0 site mostra o estado da arte sobre a Teoria da Evolução, para defendê-la dos ataques de grupos religiosos nos EUA.

http://worldwind.arc.nasa.gov/moon.html Basta baixar um software para visitar a superfície da Lua, a partir de imagens feitas pela sonda Clementine em 1994.

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ESTRATéGIAS BRASIL

O resgate da CTNBio

Os nomes dos 12 especialis- tas que integrarão a nova Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) serão conhecidos até o dia 24 de dezembro. Nesta data esgota-se o prazo para que a comissão especial, cons- tituída pelo ministro da Ciência e Tecnologia, Sér- gio Rezende, apresente a lista tríplice com nomes de titu- lares e suplentes que repre- sentarão as áreas de saúde humana, animal, vegetal e ambiental.

A comissão especial foi criada por Rezende no dia 24 de novembro, um dia de- pois da publicação do de- creto que regulamentou a Lei de Biossegurança per- mitindo a recomposição da CTNBio - formada por 27 membros -, cujas ativida- des estão suspensas desde maio. A expectativa do mi- nistro é que a CTNBio volte

a se reunir, ainda este ano, e retome as análises de mais de 400 processos que en- volvem autorização para a pesquisa, para a liberação comercial de organismos geneticamente modificados (OGMs), entre outros. In- tegram a comissão especial Radovan Borojevic, da Uni- versidade Federal do Rio de Janeiro; Marcello André Barcinski, da Universidade de São Paulo (USP); Ricar- do Renzo Brentani, diretor presidente da FAPESP; Ro- dolfo Rumpf, da Empresa Brasileira de Pesquisa Agro- pecuária (Embrapa); Jorge Guimarães, da Universida- de Federal do Rio Grande doSul(UFRGS);AronJur- kiewcz, da Universidade Federal de São Paulo; José Oswaldo Siqueira, da Uni- versidade Federal de Lavras (UFL/MG); Ivan Sazima, da Universidade Estadual de

Feijão transgênico criado pela Embrapa

Campinas (Unicamp); Ima Célia Guimarães Vieira (Mu- seu Paranaense Emílio Goel- di); Elíbio Leopoldo Rech Filho, da Embrapa; e Ernes- to Paterniani, da Escola Su-

perior de Agricultura Luiz de Queiroz, da USP. Eles fo- ram indicados pelas socie- dades científicas Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e Acade- mia Brasileira de Ciências (ABC).

No mesmo dia 24 de novembro Rezende enca- minhou aos demais minis- térios que compõem a CTNBio solicitação para que apresentem o nome de seus representantes. Diver- gências entre os membros do governo sobre o quorum para a aprovação da comer- cialização de transgênicos atrasaram a regulamenta- ção e comprometeram o plantio de OGMs. Venceu o pleito dos ministérios do Meio Ambiente e da Saúde, e a liberação comercial so- mente será aprovada se contar com dois terços dos votos da comissão. •

■ Rede ganha mais velocidade

A Rede Nacional de Ensino e Pesquisa (RNP), que interliga universidades públicas e cen- tros de pesquisa em todos os estados brasileiros, ganhou uma nova estrutura, com ca- pacidade de transmissão de dados 24 vezes maior que a anterior. De 2,5 gigabytes, al- cançará agora 60 gigabytes, o que permitirá, entre outros ganhos, a implementação de ferramentas como videocon- ferências e comunicação por

voz através da internet. Vin- culada ao Ministério da Ciên- cia e Tecnologia, a rede inter-

liga cerca de 240 instituições e atende a mais de 1 milhão de usuários. Por meio dela, os

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pesquisadores comunicam-se entre si e têm acessos à inter- net. A infra-estrutura dá su- porte a projetos de pesquisa e inovação em áreas como bio- tecnologia, genômica, astro- nomia, climatologia, ciências da saúde, entre outras. "A nova rede possibilitará avan- ços na pesquisa, no desen- volvimento e na indústria de softwares e contribuirá para a diminuição das desigualda- des regionais por meio do in- tercâmbio de informações", disse o diretor-geral da RNP, Nelson Simões. •

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ESTRATéGIAS BRASIL

Sangue jovem Os vencedores do XXI Prê- mio Jovem Cientista, cujo tema foi "Sangue: fluido da vida", foram anunciados no dia 10 de novembro pelo Conselho Nacional de De- senvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), orga- nizador do prêmio. Na cate- goria Graduado, para pes- quisadores com menos de 40 anos, o prêmio principal coube à bióloga Ana Beatriz Gorini da Veiga, 29 anos, formada na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Ela estudou componentes do veneno de taturana, que provoca uma síndrome hemorrágica, em busca de possíveis aplicações no tratamento de doenças cardiovasculares, como a trombose. Na categoria Es- tudante de Ensino Superior, para alunos de escolas téc-

nicas ou de cursos superio- res que tenham menos de 30 anos de idade, a vence- dora foi Amanda Meskaus- kas, 22 anos, do Instituto Is- raelita de Ensino e Pesquisa Albert Einstein, de São Pau- lo. Ela integra uma equipe que desenvolve técnicas para ampliar in vitro o nú- mero de células-tronco pre- sentes em amostras de san-

gue do cordão umbilical. Na categoria Estudante de En- sino Médio, o primeiro lu- gar foi de Natália Évelin Martins, 16 anos, aluna da Escola Estadual Olegário Maciel e bolsista do Centro de Pesquisas René Rechou, em Belo Horizonte (MG), que propôs uma técnica la- boratorial de detecção da doença de Chagas com me-

nos possibilidade de dar fal- so resultado positivo.

A organização do prê- mio também conferiu uma menção honrosa a Ricardo Pasquini, professor da Uni- versidade Federal do Para- ná, pioneiro na realização dos transplantes de medula óssea no Brasil e responsá- vel por mais de 1.700 desses procedimentos. Por fim, a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) foi agraciada na categoria Mé- rito Institucional, em reco- nhecimento a sua excelên- cia acadêmica. A Unicamp foi a instituição com maior número de pesquisas ins- critas no concurso. Partici- pou da disputa com 24 tra- balhos de um total de 181 pesquisas. Os trabalhos ven- cedores serão publicados em livro. •

■ Software para divulgar e Amazônia

O acesso a publicações e pes- quisas sobre a Amazônia es- tará disponível pela internet, graças à implantação do Sis-

tema Eletrônico de Editora- ção de Revistas (Seer). Trata- se de um software, dotado de ferramentas de editoração ele- trônica, que auxilia os edito- res científicos nas etapas do processo de preparação de

periódicos científicos. O Seer foi traduzido e adaptado pelo Instituto Brasileiro de Infor- mação em Ciência e Tecno- logia (Ibict). É baseado no software desenvolvido pelo Public Knowledge Project

(Open Journal Systems) da Universidade British Colum- bia, no Canadá. O treinamen- to para utilização do progra- ma começou a ser ministrado por especialistas do Ibict para profissionais de uma série de

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instituições da Região Norte, como a Universidade Federal do Pará e o Museu Paraense Emílio Goeldi. •

■ Sob nova direção

O engenheiro eletrônico Gil- berto Câmara, 49 anos, é o novo diretor do Instituto Na- cional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Vinculado à institui- ção há 25 anos, já foi chefe da Divisão de Processamento de Imagens e coordena desde 2001 a área de Observação da Terra (OBT). Formado pelo Instituto Tecnológico de Ae- ronáutica (ITA), tem mestra- do e é doutor em computa- ção pelo Inpe. •

■ O caso da Rede Onsa

A Rede Onsa (Organization for Nucleotide Sequencing and Analysis), rede de labo- ratórios integrantes do Pro- jeto Genoma-FAPESP, tor- nou-se objeto de estudo acadêmico. Em artigo publi- cado na edição de novembro da revista Economy and So- ciety, dois pesquisadores da Universidade de Manchester, no Reino Unido, analisam o caminho inovador trilhado pelo Brasil ao mobilizar um conjunto de centros de pes- quisa para mapear pioneira- mente o genoma da Xylella fastidiosa, causadora de uma praga de laranjais, e criar competência no campo da ge- nômica e da bioinformática. "O ponto central é mostrar que o Brasil conduziu a ciên- cia e a tecnologia em genô- mica em novas direções, des- vendando novas fronteiras, ao mesmo tempo que opera- va num palco global", escre- veram os autores Mark Har- vey e Andy McMeekin. •

A sociedade do conhecimento "Um dos pressupostos es- senciais da chamada socie- dade ou economia do co- nhecimento é, para muito além da capacidade de pro- dução e de reprodução in- dustriais, a capacidade de gerar conhecimento tec- nológico e, por meio dele, inovar constantemente pa- ra um mercado ávido e nervoso nas exigências de consumo." Tais palavras fi- zeram parte do discurso do presidente da FAPESP, Car- los Vogt, ao receber no dia 18 de novembro o título de doutor honoris causa da Escola Normal Superior de Letras e Ciências Humanas (ENS-LSH) em Lyon, na França. O tema era mais que oportuno. A sociedade do conhecimento, conceito que define um tipo de so- ciedade já não baseada na produção agrícola ou in- dustrial, mas na capaci- dade de pesquisar, inovar e produzir informação, é o tema do relatório lançado em novembro pela Unesco, braço da ONU para a Edu- cação, a Ciência e a Cul- tura. "Na economia tipi- camente industrial, a lógica de produção era multipli- car o mesmo produto, mas-

sificando-o para um nú- mero cada vez maior de consumidores. Costuma- se dizer que na sociedade do conhecimento essa lógi- ca de produção tem o sinal invertido: multiplicar cada vez mais o produto, num processo de constante di- ferenciação, para o mesmo segmento e o mesmo nú- mero de consumidores", definiu.

Vogt discorreu sobre o conhecimento e seus limi- tes. "Todo conhecimento é útil. Como o fundamento da moral é a utilidade, é possível afirmar que a uti- lidade do conhecimento o torna ético por definição. Nesse sentido, não há co- nhecimento inútil, já que a

ação de conhecer está vol- tada para proporcionar fe- licidade, prazer e satisfação à sociedade", disse. "O co- nhecimento é útil porque, como outras ações éticas do ser humano, correspon- de à necessidade de uma prática desejável, aquela que nos leva a buscar a fe- licidade de nossos seme- lhantes e nela sentir o pra- zer de sua realização no outro." Professor titular em semântica lingüística da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) des- de 1969, Vogt foi reitor da instituição entre 1990 e 1994 e coordena o Labora- tório de Estudos Avança- dos em Jornalismo (Lab- jor), da Unicamp. •

■ Divulgador da ciência

O biólogo Jeter Jorge Bertolet- ti recebeu no dia 10 de novem- bro em Budapeste, na Hun- gria, o Prêmio Kalinga 2005 para a Popularização da Ciên- cia, concedido pela Unesco, o órgão das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cul- tura. Diretor do Museu de

Ciências e Tecnologia da Pon- tifícia Universidade Católica (PUC) do Rio Grande do Sul, Bertoletti é o quinto brasilei- ro agraciado com a honraria, concedida anteriormente ao jornalista José Reis (1974) e aos professores Oswaldo Fro- ta Pessoa (1982), Ennio Can- dotti (1998) e Ernst Hambur- ger (2000). O prêmio, com recursos da Fundação Kalin-

ga, da índia, destina-se a pro- fissionais que contribuem para a divulgação e a inter- pretação de questões cien- tíficas. Bertoletti idealizou e implantou vários projetos na PUC gaúcha, entre os quais o Museu de Ciências e Tecnolo- gia, o Museu Itinerante, a Es- cola-Ciência e o Pró-Mata - Centro de Pesquisas e Con- servação da Natureza. •

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POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA

AMBIENTE

O mundo depois de Kyoto Especialistas prevêem mais cobrança para o Brasil controlar emissões de dióxido de carbono

CLAUDIA IZIQUE

O Brasil deve se preparar para assu- mir o compromisso de redução de emissão de gases de efeito es- tufa que provavelmente constará de futuros acordos internacionais. Até 2012 valem as regras estabe-

lecidas pelo Protocolo de Kyoto, que, na distribuição de res- ponsabilidades entre os 154 países signatários, atribuiu às 30 nações mais desenvolvidas a tarefa de diminuir 5% de suas emissões em relação ao total registrado em 1990. Mas na 1 Ia Conferência das Partes (COP 11), realizada em Mon- treal, no Canadá, no final de novembro, iniciaram-se os pri- meiros entendimentos para a formulação de regras para o período posterior a 2012, e o Brasil - quinto maior respon- sável pelas emissões mundiais de gases de efeito estufa, atrás apenas dos Estados Unidos, Rússia, China e Japão - deve ser chamado a dar uma contribuição mais expressiva.

Esse cenário foi o pano de fundo dos debates da II Con- ferência Regional sobre Mudanças Globais: América do Sul, realizado em São Paulo, entre os dias 6 e 10 de novembro. "O Brasil tem que negociar os acordos para 2012 apresentan- do propostas de redução de emissão de dióxido de carbono", afirma Carlos Alfredo Joly, do Instituto de Biociências da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). A expecta- tiva é de que o país repita a atuação que teve nas negociações que antecederam a assinatura do Protocolo de Kyoto, quan- do contribuiu para a formulação do Mecanismo de Desen- volvimento Limpo (MDL) que autorizou os países desenvol-

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vidos a adquirir créditos de carbono ge- rados por empresas de nações emergen- tes, criando um mercado estimado em € 34 bilhões até 2010, do qual o Brasil é o segundo maior beneficiário, atrás somente da índia.

Nos entendimentos para o período pós-Kyoto, no entanto, a elaboração de qualquer proposta dependerá de estu- dos mais detalhados sobre o impacto do aquecimento global nas diversas re- giões do Brasil que permitam formular recomendações de políticas ambien- tais, capacitar especialistas para elabo- ração de cenários das mudanças climá- ticas e subsidiar negociações futuras, conforme avaliação dos participantes do encontro. "Ainda não temos mode- los climáticos refinados para fazer aná- lises, nem base para comparação das mudanças no ecossistema", alerta Jo- ly. Os resultados iniciais dos modelos climáticos elaborados pelo Centro de Previsão de Tempo e Estudos Climá- ticos (CPTEC), do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), só estarão concluídos no próximo ano.

Pouco se sabe também sobre o im- pacto das mudanças de clima na saúde da população e na disseminação da ma- lária, dengue e meningi- te, doenças transmitidas por insetos. "O clima tem efeito na biologia dos ve- tores e patógenos", lem- bra Ulisses Confalonieri, pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). "Em termos de saúde humana, eventos climá- ticos extremos deverão estar relacionados a chu- vas ou secas." Nesse caso, seria preciso adotar medidas preventivas para reduzir a vulnerabilidade das co- munidades em área de risco. Uma das recomendações da II Conferência, aliás, é que as ações mitigadoras das conse- qüências das mudanças climáticas con- templem a população menos favoreci- da, que seria afetada em maior escala.

A alteração do ciclo das chuvas po- derá ter implicações também econômi- cas e comprometer outros países da América do Sul. Na província de Santa Fé, na Argentina, por exemplo, a ocor- rência de chuvas com mais de 100 milí- metros não era freqüente até os anos 1960. Agora são registradas até 30 vezes

por ano. "Alterações nas vazões dos rios dessas regiões influem diretamente na disponibilidade de água para a geração de energia elétrica", afirma Vicente Bar- ras, da Universidade da Argentina, que participou do encontro.

As negociações para as metas de re- dução de emissões a partir de 2012, no entanto, serão ainda mais complicadas que as do período que antecedeu o Protocolo de Kyoto, prevêem os espe- cialistas em relações internacionais. "As questões do meio ambiente e da pobreza, que vinham se impondo na agenda global, perderam momenta- neamente o espaço alcançado, em ra- zão do combate ao terrorismo", analisa Jacques Marcovitch, da Faculdade de Economia e Administração e ex-reitor da Universidade de São Paulo (USP). Além disso, o Japão e os países da União Européia - que, ao lado dos Es- tados Unidos, são responsáveis por 65% das emissões globais acumuladas - têm mantido os hábitos de consumo de energia, inclusive o uso do carvão, ante a elevação do preço do petróleo. "Mantido o ritmo atual, esses países não cumprirão as metas estabelecidas por Kyoto", ele prevê.

essa rodada de entendi- mento que agora se inicia, os diversos protagonistas - cientistas, governos e em- presas - deverão manter seu compromisso com os ob-

jetivos globais de redução de emissões de gases de efeito estufa e com o desen- volvimento de tecnologias limpas e efi- cientes, prevê Marcovitch. Mas já é pos- sível adiantar algumas discordâncias entre as partes. "As dissonâncias verifi- cam-se na repartição das responsabi- lidades, na forma de alcançar os obje- tivos almejados, nos mecanismos que viabilizem redução de emissões e na mobilidade de tecnologias limpas."

A comunidade científica pede, por meio de manifesto conjunto das acade- mias nacionais de ciências lançado este ano, a realização de um estudo interna- cional para definir alvos de concentra-

ções de gases de efeito estufa, o desen- volvimento de tecnologias eficientes para uso de energia limpa e a identifi- cação de medidas - com relação custo- benefício favorável - que possam ser imediatamente adotadas para uma re- dução substancial das emissões causa- doras das mudanças climáticas.

De outro lado estão as empresas glo- bais que assumiram os compromissos estabelecidos por Kyoto e ingressaram no mercado de crédito de carbono e agora buscam meios e modos de redu- zir os custos dos projetos. Em declara- ção que precedeu o último encontro do G-8, em Gleaneagles, na Escócia, elas pleiteavam o estabelecimento de um esquema global de mercado de emis- sões com vigência até 2030 e extensão até 2050, a definição de limites para as emissões de gases e outros mecanismos de mercados para a comercialização de certificados de emissões, o desenvolvi- mento de tecnologias limpas, a simpli- ficação dos procedimentos do MDL pa- ra reduzir custos, entre outros. "É caro incorporar preço de redução aos custos de energia. Quando são repassados aos consumidores, estes exigem benefícios", diz Marco Antônio Fujihara, diretor da PricewaterhouseCoopers Brasil. Algu- mas companhias de energia da União Européia, ele conta, já estão propondo aos governos trocar investimentos em redução de emissão por redução de ta- xas e impostos.

Quem paga a conta? - "As negociações internacionais estão centradas na re- partição do ônus", analisa Luiz Gylvan Meira, do Instituto de Estudos Avança- dos da USP. Existe tendência de maxi- mização de ganhos que leva em conta os custos de emissões, danos de mudan- ças, esforços de adaptação, entre outros, e uma enorme dificuldade de repartir esses custos no tempo - afinal, estima- se que serão necessários 40 anos para reduzir os impactos das emissões atuais. Nesse imbróglio, na análise de Meira, três aspectos cruciais têm que ser acor- dados: "Como rebater para hoje os cus- tos distribuídos no tempo? Qual o fator de aversão ao risco? Quais os custos mar- ginais de redução de emissões?" Para Marcovitch, aos protagonistas brasilei- ros cabe agora influir na configuração das bases legais das decisões que devem resultar da COP 11. •

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POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA

O biodiesel é nosso

Para ganhador de Nobel de Química, Brasil precisa de parceiros para manter liderança nos combustíveis renováveis

3a Conferência Nacional de Ciência, Tecnologia e

Inovação reuniu mais de 2 mil cientistas,

empresários e repre- sentantes de diver-

sos ministérios, em Brasília, entre os dias 16 e 18 de novembro, e a principal conclusão foi que o Brasil precisa investir em seu potencial inovador, de acordo com informação divulgada pela asses- soria de Comunicação do Ministério da Ciência e Tecnologia.

Essa recomendação, aliás, foi enfaticamente sublinhada por um cientista estrangeiro: o neo- zelandês Alan MacDiarmid, vencedor do Nobel de Química em 2000 pela descoberta e estudo de

polímeros condutivos. "O Brasil representa um gran- de caso de sucesso na pro- dução e utilização dos com- bustíveis renováveis. Tem enorme potencial, está dois ou três anos à frente dos outros países e ainda des- ponta como um dos prin-

cipais fabricantes de veículos bicombustíveis", afirmou o pesquisador. Ele advertiu, no entanto, que em pouco tempo o país perderá essa posição de liderança para os Estados Unidos e algumas nações européias se não buscar parcerias e dividir custos das pesquisas com outras nações.

Para MacDiarmid, a energia é um dos dez principais problemas que a humanidade terá de enfrentar nos próximo 50 anos e o Brasil é um país privilegiado nessa corrida contra o tempo. "Nós podemos projetar um futuro em que o bioálcool se transformará em uma commoditie internacio- nal", prevê. Bom seria se o Brasil tivesse a mes- ma visão de futuro que teve na década de 1970, quando criou o Programa Nacional do Álcool (Proálcool). "Foi o único país que teve essa visão."

A falta de investimento na inovação poderá comprometer não apenas a posição do Brasil no mercado mundial de energia, mas também a tec- nologia nacional de agricultura tropical, conside- rada uma das melhores do mundo, desenvolvida pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuá- ria (Embrapa) e outros institutos públicos de pes- quisa. O principal gargalo é a falta de recursos para a pesquisa, reconheceu o ministro da Agricultu- ra, Roberto Rodrigues. O orçamento da Embra- pa, ele exemplificou, corresponde a menos de 0,6% do Produto Interno Bruto (PIB). Isso sem falar na falta de infra-estrutura e logística, fatores

que, na sua opinião, levam à perda de competiti- vidade do país.

A falta de investimento em pesquisa nas em- presas também é obstáculo à inovação. O setor privado destina apenas 0,42% do PIB para pes- quisa e desenvolvimento (P&D), ante uma média de 2% destinada à inovação nos países mais de- senvolvidos. Outro indicador negativo é o baixo porcentual de pesquisadores brasileiros em em- presa que não passa de 23%. Para o presidente do Conselho de Política Industrial e Desenvolvi- mento da Confederação Nacional da Indústria (CNI), Rodrigo Loures, a falta de investimento do setor privado em P&D resulta do fato de não existir, na prática, "vontade política para fazer inovação". "Precisamos ter uma meta definida para ampliar o número de empresas de inovação tecnológica das atuais 160 para 4 ou 5 mil em cinco anos." Ele sugeriu um esforço conjunto para construir um ambiente econômico propício ao empreendedorismo, mas listou uma série de obstáculos para a inovação, entre eles a burocra- cia, a alta taxa de juros e a falta de recursos finan- ceiros. "A inovação também tem que ser feita na gestão pública."

Sustentabilidade - O lento avanço da inovação faz contraponto com o ritmo com que progride a pro- dução científica nacional, que cresce a uma taxa de 8% ao ano e de forma equilibrada entre as diver- sas áreas do conhecimento, sublinhou Eduardo Moacyr Krieger, presidente da Academia Brasilei- ra de Ciências (ABC). "Essa é uma taxa de cresci- mento notável", comentou. Esse desempenho tem sido um dos fatores de atração de investimentos estrangeiros ao país. Krieger citou pesquisa recen- te publicada pela revista inglesa The Economist, com dirigentes de grandes empresas mundiais, que colocou o Brasil no sexto lugar na lista de in- tenção de investimentos, atrás da China, Estados Unidos, índia, Reino Unido e Alemanha. "Esse é o momento em que o governo, a comunidade cien- tífica e as empresas privadas deveriam aproveitar para inserir o Brasil em um círculo virtuoso que consiga transferir o conhecimento ao setor pro- dutivo, de modo a gerar riqueza e melhorar a qua- lidade de vida da população", concluiu.

Carlos Henrique de Brito Cruz, diretor cien- tífico da FAPESP, ressaltou que as idéias inovado- ras são um insumo importante para o desenvolvi- mento de um país. Mas a capacidade de "usar conhecimento" não deve estar diretamente atrela- da à capacidade de "gerar conhecimento". Para ele, o Brasil tem demonstrado forte capacidade de ge-

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rar conhecimento no mundo acadêmico. "O que falta é a repetitividade da geração de riqueza com base no conhecimento nacional", ressaltou. Isso faz com que a indústria brasileira ainda sinta di- ficuldades em criar tecnologias inovadoras que sejam suficientemente relevantes para se trans- formar em patente. "Em 2004 o Brasil depositou 106 patentes nos Estados Unidos, enquanto a Co- réia ultrapassou 4 mil", comparou. "O pesquisador brasileiro precisa entender que qualquer produto que tenha perspectiva de ser negociado deve, an- tes de tudo, ser patenteado", enfatizou.

Além da disposição dos pesquisadores para proteger o conhecimento, o aumento no volu- me de depósito de patentes depende também de maior agilidade do Instituto Nacional de Proprie- dade Industrial (INPI), cuja reestruturação foi amplamente debatida na conferência. Roberto Ja- guaribe, presidente do instituto, afirmou que um dos seus maiores desafios é resolver problemas operacionais e estimular o uso das informações patentárias, que atualmente não ultrapassam a média de quatro consultas diárias. "Esse número é irrisório", observou. As questões do orçamento e do equipamento, ele garantiu, foram, em boa me- dida, solucionadas. E ponderou que as deficiên- cias no processo de inovação brasileiro não são exclusivamente do INPI. "Propriedade intelectual é apenas parte da solução."

O ministro da Ciência e Tecnologia, Sérgio Rezende, era o mais otimista em relação ao avan- ço da inovação. Citou uma lista de conquistas, entre elas a Lei de Inovação, a criação das ações transversais e a ampliação do Programa de Apoio à Pesquisa em Empresas (Pappe). "É fundamen- tal que ocorra uma integração entre a política de ciência e tecnologia e a política industrial. E vá- rias ações estratégicas foram feitas nesses últimos anos para que essa convergência ocorresse."

O ministro aproveitou para garantir que os recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimen- to Científico e Tecnológico (FNDCT) - formado com verbas dos fundos setoriais - terão, no má- ximo, 40% de contingenciamento no próximo ano, com perspectivas de chegar a 0% em 2009.

Todas as conclusões da 3a Conferência Nacio- nal de Ciência, Tecnologia e Inovação serão reu- nidas em documento a ser apresentado ao Con- selho Nacional de Ciência e Tecnologia e ao Congresso Nacional. "Queremos que a ciência, a tecnologia e a inovação passem a ser usadas como instrumento básico para o desenvolvimento sus- tentável", afirmou Carlos Aragão, coordenador- geral da conferência. •

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I POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA

AVALIAÇÃO

O clube da excelência Rankings internacionais evidenciam o desempenho das quatro melhores universidades brasileiras

FABRíCIO MARQUES

A Universidade de São Paulo (USP), segundo uma série de parâmetros, é a mais impor- tante instituição pública de

_ ensino superior do Brasil. Tem 75.962 alunos, ofere-

ce 221 programas de pós-graduação e, sozinha, é res- ponsável por um quarto da produção científica nacio- nal. Não é tão simples situar a USP, ou qualquer outra grande universidade brasileira, entre as melho- res do mundo. No ano passado, o jornal britânico The Times publicou pela primeira vez um ranking das 200 melhores universidades do planeta - e não havia nenhum representante brasileiro. A metodolo- gia do levantamento mudou e, na segunda edição do ranking, divulgado em novembro, a Universidade de São Paulo, enfim, apareceu. Está em 196° lugar. É a única instituição da América do Sul a figurar no le- vantamento - e a segunda da América Latina, sendo superada pela Universidade Autônoma do México (Unam), que está na 96a posição.

A mudança na metodologia ajuda a entender a ascensão da USP. Em 2004 tinha peso preponderan- te na lista do The Times a opinião de 2.375 acadêmi- cos entrevistados em todos os cantos do mundo. "Rankings são instrumentos importantes para uma universidade avaliar seu desempenho e estabelecer os desafios para o futuro. Mas víamos esse levantamen- to britânico mais como um indicador de prestígio do que como ferramenta objetiva de avaliação", diz o pró-reitor de Pesquisa da USP, Luiz Nunes de Olivei- ra. A produtividade da Universidade de São Paulo é crescente - o número de artigos publicados em revis- tas científicas avança a uma velocidade de 10% ao ano -, mas isso era ofuscado pelo prestígio de insti- tuições de países desenvolvidos com muita tradição, e não o mesmo desempenho. Na edição de 2005 a opinião dos acadêmicos perdeu espaço (de 50% para 40% do peso final) e, além de dados sobre citações de pesquisas em revistas científicas, regime de dedica-

ção dos professores, número de docentes e de alunos e a presença de quadros estrangeiros na instituição, inseriram-se novos critérios, como uma consulta a grandes empresas sobre a qualidade da formação su- perior de seus profissionais. "A idéia é evitar distor- ções que privilegiem universidades grandes e tradi- cionais em detrimento de instituições menores e não tão conhecidas, mas igualmente produtivas", explica Martin Ince, coordenador do ranking do The Times. Com a mudança, a Alemanha, por exemplo, que ti- nha 17 universidades no ranking de 2004, conseguiu emplacar apenas nove instituições em 2005.

Comparando-se os dados de 2004 e 2005, as pri- meiras posições pouco mudaram. A liderança cabe à Universidade Harvard e, em segundo lugar, aparece o Massachusetts Institute of Technology, ambos nos Estados Unidos. As universidades britânicas de Cam- bridge e de Oxford ocupam respectivamente a ter- ceira e a quarta colocações, seguidas de um pelotão norte-americano formado por Stanford, California- Berkeley, Yale, Califórnia Institute of Technology e Princeton. No primeiro time, a alteração mais signi- ficativa foi a ascensão da École Polytechnique de Pa- ris do 27° para o 10° lugar - e a queda do Instituto Federal de Tecnologia de Zurique, rebaixado para o 21° lugar por ser especializado demais para os novos padrões do ranking.

As universidades brasileiras vinham prestando mais atenção a um outro ranking internacional, publica- do desde 2003 pela Shangai Jiao Tong University, da China, que aponta as 500 melhores universidades do planeta. Há quatro universidades brasileiras nessa lis- ta: a USP, a Estadual de Campinas (Unicamp), a Fe- deral do Rio de Janeiro (UFRJ) e a Estadual Paulista (Unesp). Neste levantamento o desempenho é me- dido por indicadores bastante concretos. A quanti- dade de artigos publicados nas revistas Science e Na- ture, por exemplo, tem peso de 20% na avaliação de cada instituição. Respondem por outros 20% as cita- ções de artigos da instituição em outras publicações

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científicas, tradicional medida de impacto da produ- ção acadêmica. O tamanho da instituição vale 10% do peso. As grandes universidades brasileiras saem- se bem nesses indicadores - o número de artigos cien- tíficos brasileiros publicados cresceu quase 50% nos últimos quatro anos. Mas em outros parâmetros sim- plesmente não marcam pontos: a existência de profes- sores ou ex-alunos que ganharam grandes prêmios científicos, como o Nobel, eqüivale a até 30% da pon- tuação final.

Visibilidade - A análise dos dados de 2004 e de 2005 do ranking da Shangai University revela um desem- penho ascendente das universidades brasileiras. A USP foi da 190a posição no ranking de 2004 para o 146° lugar em 2005. A Unicamp saltou 114 posições: da 367a em 2004 para a 253a em 2005. A UFRJ, que estava em 368° lugar em 2004, chegou em 364° em 2005. E a Unesp, 465° lugar em 2004, foi ao 461° nes- te ano. Esse avanço é lastreado por um aumento de produtividade - mas, em alguns casos, não só por ele. A existência de um ranking fez com que as insti- tuições se preocupassem em valorizar pontos fortes e em corrigir pontos fracos. O exemplo da Unicamp é emblemático. O salto no ranking deveu-se, em cer- ta medida, a um esforço para tornar mais visível sua produtividade. "Tomamos várias iniciativas, como a padronização do nome e do endereço da universida- de nos trabalhos dos docentes. Antes, uns colocavam Unicamp, outros State University, outros Estadual de Campinas, o que dificultava a tarefa dos ranquea- dores para medir a produção", diz Daniel Pereira, pró-reitor de Pesquisa da Unicamp. "Dar visibilida- de é fundamental. Por isso também passamos a enviar J informações e comentários para a Universidade de Shangai e colocamos na página da Pró-Reitoria grá- ficos e informações sobre a produção acadêmica da Unicamp, o que poucas universidades fazem", afirma Pereira. Num desses gráficos, a Unicamp sugere que é proporcionalmente mais produtiva do que a USP,

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pois fica à frente quando se divide a quantidade de artigos publicados pelo número de docentes. Embora respon- da por 11% da produção brasileira publicada na base de dados Thomson- ISI (a USP é responsável por 26%), a Unicamp divide essa produção por 1.800 docentes. Já a USP tem 4.868 professores. Um dos efei- tos do ranking, como se vê, é estimular uma sau- dável competição entre universidades. ^

A USP também moni- tora sua situação nos ran- kings internacionais, mas suas preocupações são de outra natureza. "Começa- mos a fazer um trabalho com o objetivo de levar nossos pesquisadores a investigar mais problemas na raiz. Em geral, nossas melhores pesquisas são, na verdade, seqüências ou desdobramentos de pes- quisas feitas no exterior", diz o pró-reitor Luiz Nu- nes de Oliveira. "Traba- lhos originais têm mais chance de produzir arti- gos de impacto e, even- tualmente, até de render um Prêmio Nobel." Nu- nes cita exemplos: "O trânsito de São Paulo ofe- rece material de pesquisa que poderia ser aprovei- tado por diferentes dis- ciplinas, da sociologia à matemática. Mas há pou- ca investigação sobre es- se tema. Também podería- mos aprofundar a pesquisa em doenças tropicais. Parecem temas regionais, mas há muita pesquisa desse tipo publicada nas revistas Nature e Science". Outra preocupação da USP é a internaciona- lização da universidade, um quesito va- lorizado nos rankings. "Todos concorda- ram na teoria, mas ainda falta definir o que isso é na prática. Uns acham que é participar mais de congressos, outros consideram que é ter mais estudantes estrangeiros aqui dentro", diz Nunes.

Não por acaso as quatro universi- dades brasileiras reconhecidas entre as 500 melhores são as que se consolida- ram nas últimas décadas. No caso das

três instituições paulistas teve impor- tância a autonomia financeira e um flu- xo regular de recursos, garantidos pela legislação. "Graças a isso foi possível in- vestir de modo adequado em ensino, pesquisa e extensão, que são os três pi- lares de uma grande universidade", diz Marcos Macari, o reitor da Unesp. Vice-

presidente da FAPESP, Macari ressalta a importância da Fundação. "Não adian- taria ter docentes de alto nível de com- petência sem que eles tivessem recursos para pesquisa. A FAPESP reconhece a qualificação dos pesquisadores", afir- ma. No caso da UFRJ, o desempenho se deve a uma tradição de excelência e aos recursos destinados por empresas como a Petrobras ao Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa de Engenharia (Coppe), apesar das di- ficuldades financeiras que as federais sofreram nas últimas décadas.

Num artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo, o economista Rogé-

rio Werneck, professor da PUC do Rio, assinalou a importância de a USP des- pontar no ranking do The Times, mas considerou desfavorável a situação do Brasil. "A Unam e a USP são as duas únicas universidades latino-america- nas. Mas a lista contém 21 instituições de países em desenvolvimento asiáti-

cos", escreveu Werneck. "Da China, há nada me- nos do que dez universi- dades, quatro delas de Hong Kong. Entre as três instituições da índia, está o Instituto Indiano de Tec- nologia, classificado em invejável 50° lugar. Há três universidades da Co- réia do Sul e duas de Cin- gapura. As outras três são da Malásia, de Taiwan e da Tailândia. Mesmo ten- do em conta as falhas que o ranking certamente tem, não há a menor dúvida de que o Brasil aparece mal na foto."

Liderança - A compara- ção entre o Brasil e os asiá- ticos é pertinente porque pertencem a um raro gru- po de nações que, na con- tramão do mundo em de- senvolvimento, conseguiu consolidar grandes uni- versidades e ampliar sua produtividade acadêmi- ca. "A China instituiu um forte sistema de mérito que transforma um pro- fessor recém-contratado em professor titular se ele

consegue publicar um artigo numa grande revista, como a Nature", diz Nu- nes, o pró-reitor de Pesquisa da USP. "O desempenho da Coréia do Sul se deve a investimentos estruturais em educação e, no caso do Brasil, é resulta- do do sistema de pós-graduação criado há três décadas que, a despeito das difi- culdades, se auto-alimenta" afirma. A USP assumiu a liderança desse sistema, mas ele se espalha por outras institui- ções. "Há dez anos a metade das teses de doutorado do Brasil saiu da USP. Hoje esse quinhão é de 25%. Isso é óti- mo, pois mostra a expansão de outras instituições", diz Nunes. •

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I POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA

GESTÃO

Reitora Suely Primeira mulher a comandar a USP, professora de farmácia quer fortalecer a graduação

s mulheres ainda são minoria entre os qua- se 5 mil docentes da Universidade de São Paulo (USP). Para cada dois homens que lecionam na universidade, há apenas uma mulher. Mas uma delas,

pela primeira vez nos 71 anos de his- tória da instituição, vai dirigir a maior universidade pública brasileira. Suely Vilela Sampaio, professora da Facul- dade de Ciências Farmacêuticas de Ribeirão Preto (FCFRP), foi nomeada reitora pelo governador Geraldo Alck- min, no dia 23 de novembro. Pró-rei- tora de Pós-graduação na gestão de Adolpho Melfi, Suely, 51 anos, foi a se- gunda colocada no primeiro turno da eleição, apenas 14 votos atrás do então vice-reitor, Hélio Nogueira da Cruz. Mas tomou a liderança no segundo turno, que definiu a lista tríplice enca- minhada ao governador, no qual vo- tam apenas os membros do Conselho Universitário e dos conselhos centrais. "A escolha representa o espaço impor- tante da mulher na sociedade moder- na", elogiou Alckmin.

A nova reitora anunciou que sua grande prioridade será o fortalecimen- to da graduação e disse que um dos seus maiores desafios será ampliar a pre- sença de estudantes das escolas públi- cas na universidade. Não será, já alertou, por meio de cotas, mas sobretudo por medidas que ajudem os alunos carentes a se preparar para o ingresso na USP. Uma das metas é ampliar o número de

Suely Vilela: desafios

vagas noturnas. "Nos últimos anos, hou- ve um aumento considerável no núme- ro de vagas. Mas não avançamos o sufi- ciente para garantir a diversidade dos nossos alunos", afirmou Suely. No últi- mo vestibular, a USP ofereceu 9.952 va- gas, contra 7.811 em 2001. Mas apenas 20% dos aprovados eram egressos do ensino público. Também planeja am- pliar o caráter internacional da USP. "É preciso dar mais mobilidade aos do- centes, para realizar estágios ou pesqui- sas com profissionais de fora."

Suely acredita que foi eleita pela co- munidade da USP por conta de suas ações recentes, desenvolvidas na pós- graduação da universidade. "Sempre houve um diálogo com professores e

alunos e todos os temas eram colo- cados em votação somente depois de estarem bem discutidos e acei- tos", afirmou. "Fui eleita pelas idéias e propostas, não por ser mulher ou de um campus do interior, mas es- ta escolha representa uma mudan- ça de paradigmas na USP." Ela deve anunciar os nomes de seus pró-rei- tores no dia 20 de dezembro.

Nascida em 1954 numa fazen- da em Ilicínea, interior de Minas Gerais, Suely fez toda a formação superior na USP de Ribeirão Pre- to, desde a graduação em farmácia e bioquímica, concluída em 1975, mestrado em 1980, doutorado em 1985, até o pós-doutorado em 1990 e livre-docência em 1991. Desde 1996 é titular do Departamento de Análises Clínicas, Toxicológicas e Bromatológicas da FCFRP. A par- tir de 2002 assumiu a pró-reitoria de Pós-graduação. Sua carreira cien-

tífica foi dedicada a pesquisas na área de toxinas, principalmente venenos de serpentes.

Professora colaboradora da Univer- sidade Estadual Paulista (Unesp), Suely atuou como professora visitante na Uni- versité de Nice (França) em 1993, Uni- versidade do Chile (1996), Universida- de da Costa Rica (1997), University of London (Inglaterra), em 1999, Univer- sità Degli Studi - Parma (Itália), Uni- versidad de La Habana (Cuba), Rutgers University (EUA), Universidad de Barce- lona (Espanha) e Ohio University (EUA) em 2004. Divorciada, tem um filho, um advogado de 24 anos. Mantém dois en- dereços: um flat em São Paulo e uma casa em Ribeirão Preto. •

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CIÊNCIA

LABORATóRIO MUNDO

Os sutis efeitos das mudanças climáticas

Em um artigo de revisão pu- blicado na Nature em 17 de novembro, um grupo da Or- ganização Mundial da Saú- de (OMS) e da Universidade de Wisconsin, Estados Uni- dos, assinala que a elevação de temperatura registrada nas últimas três décadas pode já estar causando cer- ca de 150 mil mortes anual- mente, por elevar a morta- lidade causada por doenças respiratórias e cardíacas. Além disso, o aquecimento global tende a elevar a inci- dência de doenças como malária e diarréia, princi- palmente em países subde- senvolvidos. As conclusões casam-se com as de outro trabalho, do New England Journal of Medicine, segun- do o qual o aquecimento do planeta pode de fato estar associado à ocorrência de mais problemas de saúde, como os casos de asma nos Estados Unidos, que qua- druplicaram nas últimas duas décadas. Outro estu- Folha de 55 milhões de anos: rumo ao norte, mais frio

do da Nature mostra que a quantidade de água pode cair de 10% a 40% na África equatorial e na Bacia do Prato em algumas décadas. Um trabalho que saiu na Science em 11 de novembro indica o que as alterações climáticas podem ter causa- do nas plantas e o que, em situações análogas, se pode esperar no futuro, a partir das folhas fósseis de um pe- ríodo de intensas mudanças climáticas, há 55 milhões de anos, desenterradas das ro- chas da Bacia Bighorn, no Estado deWyoming, noroes- te dos Estados Unidos. Es- ses registros sugerem que árvores e arbustos migra- ram 1.500 quilômetros para o norte em resposta à eleva- ção da temperatura, que passou de 5o para 10° Celsius em cerca de 10 mil anos, um tempo curto para a geolo- gia. Antes só se sabia que nessa época houve uma ex- tinção em massa de comu- nidades de animais. •

■ Os riscos dos sedativos

Dormir mais, à custa de remé- dios, nem sempre compensa - ao menos para os idosos, os riscos podem superar os be- nefícios. Uma análise de 24 es- tudos feitos entre 1966 e 2003 com 2.417 pessoas com 60 anos ou mais, publicada no British Medicai Journal, indi- cou que os efeitos colaterais de sedativos como os benzo-

diazepínicos - tonteira, perda de equilíbrio e quedas - fo- ram freqüentes a ponto de se pensar que tratamentos não medicamentosos poderiam levar a resultados melhores no tratamento de insônia. •

■ Sexos diferentes, remédios diferentes

Não é discurso feminista. Acu- mulam-se evidências de que os medicamentos para ho-

mens e para mulheres deve- riam ser diferentes: a maioria foi testada em homens, mas podem não ter a mesma efi- cácia em mulheres (BBC News). Segundo Anita Hold- croft, pesquisadora do Impe- rial College, de Londres, não só os cérebros dos homens e mulheres são diferentes, mas o próprio cérebro das mu- lheres se modifica ao longo da vida, em resposta à flutua- ção do nível de hormônios,

que pode interferir no de- senvolvimento das doenças e mesmo no funcionamento dos medicamentos. Durante a gravidez, por exemplo, o cé- rebro das mulheres encolhe, mas volta ao normal depois do parto. Dick Swaab, do Ins- tituto Holandês de Pesquisa do Cérebro, em Amsterdã, de- fende a idéia de que as doen- ças devem ser vistas como masculinas e femininas, em razão do sexo do cérebro -

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definido durante a gestação, entre outros fatores, pelos ní- veis de hormônios: níveis mais altos de testosterona determi- nam o cérebro do homem e de estrógeno, o cérebro da mulher. O sexo do cérebro faz homens e mulheres serem mais propensos a doenças diferentes: mulheres apresen- tam mais depressão e esclero- se múltipla que os homens, que, por sua vez, têm mais mal de Parkinson. Swaab de- monstrou que há receptores para hormônios sexuais nas células que formam o eixo de estresse: nas mulheres há mais receptores de estróge- no e nos homens, mais recep- tores de hormônios sexuais masculinos (nas mulheres, o estrógeno protege os neurô- nios, que de outro modo iriam degenerar). Em laboratório, ratas sem ovário mostraram uma condição similar ao Par- kinson em ratos. Se recebiam estrógeno, readquiriam a pro- teção contra a doença. Em ra- tos castrados, que perdiam a fonte de testosterona, a de- generação dos neurônios era reduzida. Porém, quando re- cebiam estrógeno, o dano piorava. Administrar estróge- nos nos dois sexos parece le- var a efeitos opostos, concluiu Glenda Gillies, a pesquisadora do Imperial College respon- sável por esse estudo. •

■ Aranhas que caçam presas com sangue

Não deveria haver aranhas nas casas do Quênia e de Uganda construídas às margens do Lago Vitória. São muito es- curas, e as aranhas saltadoras precisam de muita luz para ver. Mas então por que esta- vam lá? Ximena Nelson, da Universidade Macquarie, da Austrália, imaginou que deve- ria haver algum tipo de presa

Uma saltadora: de preferência, sobre mosquitos sangüíneos

de interesse. Ela e sua equipe então foram à caça e desco- briram: são os mosquitos que estão por toda a região, in- cluindo o Anopheles gambiae, transmissor da malária. Mas a aranha Evarcha culicivora não quer um mosquito qual- quer. Ximena verificou que

as aranhas se aproximavam de mosquitos fêmeas que ha- viam se alimentado de sangue havia pouco tempo, mas não se interessavam tanto pelas fêmeas que se nutriram de açúcar ou de machos que não estavam cheios de sangue. As aranhas escolhem as presas pelo odor e pelo tamanho, mas a busca de sangue supe- rou essa preferência. Não se sabe por que se adaptaram pa- ra se alimentar de sangue, mas este é o primeiro caso em que um animal escolhe a presa com base no que ela tenha comido. A única outra pos- sibilidade, lembra Ximena, seriam as pessoas, já que ali- mentamos o gado de modo que o gosto seja o melhor possível. •

■ Sempre é bom reler Darwin

No supervigiado mundo da ciência parece que nunca é demais perguntar se uma idéia é mesmo original. Ge- neticistas norte-americanos relataram em setembro na Na- ture mutações de uma planta, a Arabidopsis, que não esta- vam nos cromossomos das plantas matrizes, mas teriam sido herdadas de gerações pré-

vias. Os autores dessa desco- berta propuseram então um modelo teórico em que um tipo de RNA (ácido ribonu- cleico) poderia ser transmi- tido por múltiplas gerações. Seria uma forma de explicar o fenômeno, que eles acredi- tavam ter descoberto. Sema- nas depois, porém, em um artigo na revista Trends in Plant Science, Yongsheng Liu, do Instituto Henan de Ciên- cia e Tecnologia, da China, derrubou o suposto pionei- rismo ao mostrar que o na- turalista inglês Charles Dar- win previu esse fenômeno em 1868 no livro A variação de animais e plantas sob do- mesticação. Esse mecanismo,

Darwin: a origem das idéias

que ele chamava de reversão ou atavismo, explicaria não só o reaparecimento de caracte- rísticas ancestrais, mas tam- bém o surgimento de traços dos avós não nos filhos, mas nos netos. Yongsheng Liu lembra que Darwin descre- veu quase todos os fenôme- nos relevantes da genética, como mutações, dominância e hibridização. Arne Munt- zing, ex-presidente da Socie- dade Mendeliana, sugere que os geneticistas leiam Darwin no original porque seus estu- dos são bastante ricos em da- dos experimentais que ainda poderiam ser úteis. •

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Algo errado no cromossomo 15

Tornou-se clara a origem ge- nética de uma doença extre- mamente rara, a síndrome de Johanson-Blizzard, até hoje com cerca de 60 casos regis- trados no mundo. Descrita em 1971, pode ser identifica- da por meio de seus sinais ex- ternos, principalmente pela falta de parte do couro cabe- ludo, narinas bastante redu- zidas, surdez, má-formação dos dentes e retardamento mental. Ocasiona também al- terações nas glândulas tireói- des e no pâncreas. A origem dessa síndrome encontra-se em mutações em um gene lo- calizado no cromossomo 15, concluiu um grupo de gene- ticistas coordenado por Mar- tin Zenker e André Reis, da Universidade de Erlangen- Nuremberg, Alemanha. Desse estudo, publicado na Nature Genetics, participaram três brasileiros: Reis, Marta Viei- ra, da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo, e Vera Lopes, da Universidade de Campinas (Unicamp). A análise das amostras de san-

Outra seca à vista no Sul A Rede de Estações de Climatologia Urba na, da cidade gaúcha de São Leopoldo, está alertando desde setembro: o Rio Grande do Sul, que este ano já enfrentou uma seca que derrubou a produção agrícola, pode passar por outra estiagem em 2006, em conseqüência de La Nina, o resfriamento do Pacífico equatorial, que atinge princi- palmente a região dos Pampas, que inclui o

o amarelo representa as regiões mais quen- tes que as em vermelho). O Noaa, centro norte-americano de estudos atmosféricos, confirma a possibilidade de chegada de La Nina. Pode chover menos também por causa da redução da umidade que viria da Amazônia e foi absorvida pelos furacões do Caribe. Em setembro e outubro choveu mais que o normal no Sul, mas o excesso

gue colhidas de 15 famílias de nove países mostrou que o gene truncado é o UBR1, res- ponsável pela produção da enzima ubiquitina ligase. Sem funcionar direito, o UBR1, ainda durante a gestação, causa uma inflamação no pâncreas que leva à destrui- ção das células acilares, que produzem enzimas que aju-

dam a absorver gorduras. Surgem daí as diarréias, que podem levar à desnutrição. Esse mecanismo agora é co- nhecido, mas "não são neces- sários testes complexos para estabelecer o diagnóstico ou realizar o aconselhamento genético da família", diz Vera. O diagnóstico e o aconselha- mento, segundo ela, podem

ser realizados por geneticista clínico com base nas mani- festações da síndrome. "Da mesma maneira, é possível, junto com o pediatra, iniciar

complicações da doença e melhorar a qualidade de vida dos portadores dessa doença." No Brasil, até agora, foi des- crito só um caso, em 2002.

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Ganhos e perdas da queima da cana

As queimadas da cana-de-açú- car, feitas para eliminar as fo- lhas secas antes da colheita, lançam ao ar moléculas pre- cursoras de partículas ácidas que podem permanecer em suspensão na atmosfera du- rante dias e serem carregadas pelo vento para áreas muito distantes, além de provocar problemas respiratórios. Por quase dois anos, a equipe do químico Arnaldo Alves Car- doso, da Universidade Esta- dual Paulista (Unesp), colheu amostras do ar em Araraqua- ra, interior paulista, e dimen- sionou as mudanças na com- posição da atmosfera entre a safra e a entressafra. A quei- ma da cana eleva em até 40% a concentração no ar dessas partículas muito finas, ricas em potássio, nitrogênio e enxofre, que antes nutriam as plantas. "Como o solo perde nutrien- tes, os agricultores têm de usar mais fertilizante na safra seguinte", diz Cardoso. Leva- dos pelo vento, esses nutrien- tes podem acelerar o cresci- mento das plantas nas matas próximas. Os efeitos das quei- madas foram detalhados em três artigos - o mais recente na Environmental Sciences and Technology-, feitos com Gise- le Rocha, da Unesp, e Andrew Allen, da Universidade de Bir- mingham, Reino Unido. •

Preconceito na cadeira de dentista

A raça - ou, mais precisamen- te, o aspecto racial - de uma pessoa pode influenciar na de- cisão de um dentista em extrair ou tratar um dente cariado, concluiu um estudo realizado por pesquisadores da Univer- sidade Federal de Pernambuco (UFPE). A conclusão é o re- sultado de um estudo feito em Recife com 297 dentistas. To- dos eles avaliaram a mesma si- tuação: extrair ou tratar um dente molar bastante cariado? Examinaram imagens deta- lhadas do dente, viram as fo- tos das pessoas que seriam tra- tadas e souberam que eram de pobres em bom estado de saúde, que relatavam apenas uma dor moderada no mo- lar. A equipe coordenada por Etenildo Dantas Cabral, da UFPE, apresentou-lhes dois

cenários, elaborados de tal forma que apenas a raça do paciente era diferente, e pe- diu-lhes que contassem o que fariam. Segundo o estudo pu- blicado na Community Den- tistry and Oral Epidemiology, 9,4% dos dentistas, valor con- siderado estatisticamente re- levante, preferiram extrair o molar dos pacientes negros, mas tratar o dos pacientes brancos. No entanto, nenhum dentista, independentemente do nível socioeconômico, de- cidiu extrair o dente de um branco e tratar o de um ne- gro. Para os autores desta pesquisa, as conclusões mos- tram o peso de comporta- mentos estereotipados e re- forçam a importância de os cursos de odontologia ofere- cerem também um pouco mais de ciências humanas, que poderiam ajudar a redu- zir o preconceito racial. •

Sem medo da física quântica

A física quântica parece com- plicada. De fato é. Mas ao me- nos seus conceitos essenciais podem ser compreendidos e, melhor ainda, apreciados, sem torturas ou fórmulas miste- riosas, por meio de livros co- mo A face oculta da natureza - O novo mundo da física quântica (Editora Globo). O autor, Anton Zeilinger, um fí- sico da Universidade de Viena que escreve de modo que até os não-físicos entendem, des-

zados há cem anos que con- solidaram conceitos como superposição e emaranha- mento. As novidades contra- riam o conhecimento estabe- lecido, mas pouco a pouco começaram a explicar o com- portamento dos átomos e das partículas subatômicas, além de criar uma área cada vez mais comentada, por causa dos computadores quânticos e da criptografia. Página por

das descobertas e conhecer um pouco melhor persona- gens ora mais conhecidos, ora menos, como Albert Einstein, Max Planck ou Werner Hei- senberg. A revisão técnica do livro é de George Matsas, pes- quisador do Instituto de Físi- ca Teórica da Universidade Estadual Paulista (Unesp).

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CIÊNCIA

BIOQUÍMICA

Reproduçãocü Identificação de região do núcleo do Trypanosoma cruzi pode facilitar o combate ao mal de Chagas

RICARDO ZORZETTO

A costumados a ser mal recebidos durante milhões J^K de anos, os parasitas da família do Trypanosoma f^^k cruzi, causador da doença de Chagas, desenvol- / ^^à veram mecanismos próprios de funciona- / ^^L mento que lhes permitem escapar das defesas I ^^k dos organismos que invadem e se reprodu- / ^^k zir com rapidez. No momento de se dividir i ^^L e originar outra célula idêntica, esses pro- i ^^k tozoários não seguem a estratégia de ou-

-^^^— ^KK tros organismos formados por células com núcleo. Na etapa inicial de produ-

ção de proteínas, em vez de decodificarem um gene por vez, os pa- rasitas da família do Trypanosoma cruzi lêem todos os genes de uma vez. Nesse momento, a longa molécula espiralada de DNA, que contém os genes, esparrama-se pela periferia do núcleo do pa- rasita. Só depois que essa cópia simultânea dos genes termina é que a mensagem de cada gene é separada e começa a produção de pro- teínas que vão formar seus descendentes.

Biólogos da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) iden- tificaram a região do núcleo onde se concentram centenas de cópias de um único gene, o SL (spliced leader ou seqüência líder), essen- cial para organizar essa aparente bagunça. É ele que vai marcar, em cada um dos outros genes já copiados, o ponto a partir do qual deve começar a produção das proteínas. Os genes SL se acumulam em uma região bem central do núcleo da célula: a fábrica de transcri- ção do gene SL. Essa descoberta pode criar alternativas para a bus- ca de compostos mais eficientes para o protozoário que infecta cerca de 18 milhões de pessoas na América Latina. "Se conseguirmos evi- tar que essa fábrica de transcrição se forme, talvez possamos impe- dir que esses parasitas se reproduzam", diz o biólogo Sérgio Schenk-

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Detalhe do núcleo do Trypanosoma cruzi: genes essenciais à reprodução se concentram na área em rosa

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Fábrica desmontável

Quando o Trypanosoma cruzi (à esquerda) vai se reproduzir, forma-se a fábrica de transcrição (detalhe em rosa) e a maioria dos genes (em azul-escuro na imagem à direita) se espalha pela periferia do núcleo

man, coordenador do grupo que des vendou as peculiaridades dessa fa- mília de protozoários, que inclui o Trypanosoma brucei, causador da doença do sono, e representantes do gênero Leishmania, que pro- vocam a leishmaniose.

O mecanismo especial de reprodução é bem diferente do funcionamento clássico de uma célula - seja a de um ser humano, seja a de uma esponja. De certo modo, uma célula normalmen- te lembra uma cidade grande. Só que em vez de carros e pessoas transitando por ruas há milhões de estruturas que carregam ou interpretam os genes - além de moléculas de proteínas, açúca- res e gorduras -, sendo transportadas o tempo todo para fora ou para dentro do núcleo, por sua vez cercado por um espaço superpovoado, o citoplasma. O núcleo eqüivale a uma prefeitura e coordena as atividades executadas con- tinuamente na célula. É de lá que saem os comandos que indicam se é hora de aumentar os estoques de proteínas e se preparar para a reprodução ou se é tem- po de descansar e economizar energia.

rmazenados dentro do nú- cleo, os genes integram a longuíssima molécula em forma de uma esca- da em espiral - o ácido desoxirribonucléico,

DNA. Os genes guardam os comandos celulares como se fossem livros de leis arquivados na prefeitura. Como estão escritos em uma linguagem muito espe- cífica, esses comandos são copiados e interpretados antes de seguirem adian- te, para serem executados no citoplas- ma. Nesse processo de cópia e interpre- tação, denominada transcrição, cada trecho de DNA correspondente a um gene é lido por enzimas e transformado em uma molécula de material genético menos complexa, o ácido ribonucléico, ou RNA. Entre as quase dez formas de RNA já descobertas, uma em especial - o RNA mensageiro - atravessa a mem- brana que envolve o núcleo e leva uma cópia simplificada dessa informação

aos ribossomos, unidades produtoras de proteínas espalhadas pelo citoplas- ma. É assim na maior parte dos seres vivos, exceto com os protozoários da fa- mília Trypanosomatidae.

Parece que até agora só esses proto- zoários apresentam a fábrica transcri- tora de genes SL, descrita pela equipe da Unifesp na Eukaryotic Cell. Essa re- gião do núcleo é rica em RNA polime- rase II, enzima capaz de ler e interpre- tar a informação contida no gene SL. Essas enzimas geram uma molécula de RNA criado a partir do gene SL, o SL- RNA, que vai aderir a uma das extremi- dades das cópias dos outros 22.500 ge- nes do Trypanosoma cruzi, indicando que já pode ser iniciada a produção de proteínas no citoplasma.

Transformação intensa - Schenkman e seu aluno de doutorado Fernando de Macedo Dossin mostraram também que essa fábrica é montada cada vez que o parasita vai se reproduzir. Nessa fase seu núcleo apresenta-se como uma es- fera quase perfeita. Bem próximo ao centro dessa esfera, a fábrica de trans- crição do gene SL assume a conforma-

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ção de um pequeno globo e funciona a pleno vapor. No fim do período repro- dutivo, o protozoário passa por uma intensa transformação em apenas três dias e seu núcleo se torna alongado. Nesse estágio o parasita não se repro- duz mais, mas se encontra pronto para infectar os mamíferos, e sua fábrica de transcrição se torna menos ativa, com seus componentes dispersos pelo nú- cleo. Liberado nas fezes do barbeiro, o Trypanosoma chega à corrente sangüí- nea, penetra nas células humanas e re- torna à forma reprodutiva.

Como pessoas que se unem em um mutirão, a fábrica de transcrição se re- compõe no centro do núcleo e cerca de 200 cópias do gene SL se agrupam em uma área rica em enzimas RNA poli- merase II. Para o parasita, é mais efi- ciente construir essa fábrica nos perío- dos em que é preciso produzir muito e desativá-la quando o consumo cai. Não se sabe ao certo por que isso ocorre no núcleo dessa família de protozoários, mas há algumas hipóteses. Dossin acre- dita que a concentração de RNA po- limerase II em uma região específica torne mais eficiente a transcrição.

Em um estudo anterior, publicado em 2002 na Eukaryotic Cell, Schenk- man e Maria Carolina Elias já haviam observado outro tipo de mudança na estrutura nuclear do Trypanosoma cru- zi. Quando o parasita assume sua for- ma reprodutiva e inicia a transcrição do gene SL, os demais genes migram para a periferia do núcleo, onde são co- piados. Só no fim do período reprodu- tivo os genes voltam a se distribuir pe- lo núcleo. Para Schenkman, esse talvez seja o mecanismo pelo qual a ativida- de dos genes do parasita é regulada.

O PROJETO

Organização nuclear e controle da expressão gênica

MODALIDADE Projeto Temático

COORDENADOR SéRGIO SCHENKMAN - Unifesp

INVESTIMENTO R$ 818.071,51 (FAPESP) R$ 482.518,54 (FAPESP)

Nas últimas décadas, microscópios mais potentes - e capazes até mesmo de produzir imagens tridimensionais do interior de células vivas - têm permiti- do aos biólogos constatar que o núcleo das células é tão complexo que deixa- ria pasmo o botânico escocês Robert Brown, que descreveu essa estrutura celular pela primeira vez em 1831.

Aparentemente existem regiões bem definidas do núcleo das células que, à semelhança de bairros operários, agru- pam fábricas de RNA às quais os genes se dirigem no momento da transcrição. Outras regiões, por sua vez, parecem servir de depósito para diversos com- postos que se deslocam até os genes no momento da duplicação celular. O trânsito de moléculas de DNA, RNA e proteínas no interior do núcleo é tão elevado a ponto de biólogos e bio- químicos o compararem à movimenta- ção - aparentemente caótica - de pes- soas e vagões de trem nos horários de maior movimento de uma estação de metrô. Uma análise detalhada, porém, revela que esses movimentos são tão precisos quanto os do mecanismo de um relógio suíço. •

PESQUISA FAPESP 118 ■ DEZEMBRO DE 2005 ■ 37

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CIÊNCIA

SAÚDE

Diagnóstico em forma de luz

Uso de laser ajuda a diferenciar os tecidos sadios dos alterados por câncer

uando preci- sam diferen- ciar com exa- tidão se um tecido é sadio ou tem cân- cer, os médi- cos geralmen- te recorrem à biópsia. Reti- ram um pe- daço do ma- terial suspeito e o enviam

para um exame laboratorial, que dirá, com um determinado grau de confia- bilidade, se a amostra contém células tumorais ou não e de que tipo elas são. Em breve, é possível que os profissio- nais da saúde contem com um outro aliado para fechar o veredicto, a cha- mada espectroscopia de fluorescência, nome técnico para o uso de um feixe

de laser no diagnóstico de doenças, em especial de tumores. Experimentos feitos por pesquisadores do Instituto de Física de São Carlos da Universida- de de São Paulo (IFSC/USP) indicam que a metodologia consegue distin- guir de forma rápida, não-invasiva e confiável um tecido normal de outro com câncer - pelo menos se o pacien- te for um hamster e o órgão afetado pela doença for a língua. "Nos roedo- res, nosso grau de acerto no diagnósti- co de tumores nesse órgão é de 96%, um resultado muito bom", afirma o fí- sico Vanderlei Salvador Bagnato, coor- denador dos estudos com a nova técni- ca e do Centro de Pesquisa em Óptica e Fotônica (Cepof) do IFSC/USP, que, ao lado do Cepof da Universidade Es- tadual de Campinas (Unicamp), for- ma um dos dez Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) financia- dos pela FAPESP.

Os testes com o equipamento de fluorescência, uma fina cânula ou lan- terna que emite um feixe de laser sobre a área a ser analisada e absorve a luz de- volvida pelo tecido biológico, foram fei- tos em 72 roedores. Alguns animais eram sadios, outros tinham câncer em diver- sos graus de desenvolvimento e havia os que estavam em estágio terminal. Os bichos eram examinados a cada duas semanas com o equipamento e foram acompanhados por cinco meses. Por ora, o diagnóstico fornecido por essa abordagem consegue apenas separar os roedores em dois grandes grupos: os que têm câncer e os que não têm. O mé- todo, que ainda precisa ser refinado, não é capaz de discriminar se um tumor se encontra em estágio inicial, interme- diário ou avançado, nem fornecer o seu grau de agressividade. "Cada tipo de le- são celular tem características comuns e diferentes de outras formas de lesão",

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afirma a dentista Cristina Kurachi, que conduziu o trabalho com os ratos e con- cluiu o doutorado em óptica em São Carlos. "No momento, queremos enten- der o que há em comum nas respostas ópticas fornecidas por qualquer tipo de tumor de língua." Há ainda estudos, em estágio preliminar, sobre o uso do

0 PROJETO

Diagnóstico por fluorescência

MODALIDADE

Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid)

COORDENADOR

VANDERLEY SALVADOR BAGNATO - IFSC/USP

INVESTIMENTO

R$ 90.000,00 por ano (FAPESP)

laser para identificar tumores de pele, também em hamsters.

A equipe de Bagnato tem boa expe- riência no emprego da espectroscopia de fluorescência para fins de diagnósti- co. Há três anos, os pesquisadores do IFSC criaram um aparelhinho baseado nessa tecnologia capaz de apontar com precisão e de forma instantânea se uma laranjeira foi acometida de cancro cítri- co, doença provocada pela bactéria Xan- thomonas axonopodis pv. Citri, que pro- voca dezenas de milhões de reais de prejuízo à citricultura paulista. O racio- cínio que norteia o emprego de feixes de laser, seja em amostras de vegetais ou animais, é o mesmo. As moléculas do tecido em questão absorvem uma parte da luz disparada pela cânula e reemitem uma fração alterada do laser original- mente jogado sobre elas. Essa resposta luminosa, que é captada e reprocessa- da pelo equipamento de espectrosco-

Feixe de laser: técnica distingue na língua

de roedores células normais das tumorais

pia, contém informações sobre a com- posição do tecido examinado. Em ou- tras palavras, quando em contato com o laser, o tecido normal e cada tipo de tu- mor exibem uma assinatura óptica es- pecífica. "Estamos comparando os es- pectros de tecidos sadios e alterados para criarmos padrões ópticos que di- ferenciem rapidamente células normais de células com câncer", diz Cristina.

Os próprios cientistas são os pri- meiros a admitir que a eventual adoção de métodos de diagnóstico por fluores- cência não tem como objetivo substi- tuir a forma tradicional de identificar tumores ou outras doenças. A técnica que lança mão do laser seria uma ferra- menta a mais à disposição do profissio- nal da saúde. "Na biópsia convencional, a subjetividade está presente em muitas etapas do trabalho", comenta Bagnato. "Queremos criar uma forma de diag- nóstico capaz de dar respostas mais obje- tivas e rápidas, que permita aos patolo- gistas localizar até lesões pré-malignas, em estágio muito inicial."

Em caráter experimental, o gastro- enterologista Orlando de Castro e Silva Júnior, da Faculdade de Medicina de Ri- beirão Preto da USP, usou, com bons re- sultados, o equipamento desenvolvido em São Carlos para delimitar com pre- cisão a extensão de tumores no fígado presentes em dez pacientes que sofre- ram cirurgia para remoção do câncer. Nesses casos, por mais experientes que sejam os profissionais responsáveis pela operação, quase sempre fica uma ponta de dúvida: será que todo o tumor foi re- tirado na excisão ou sobrou algum nó- dulo em alguma área vizinha? A vanta- gem da espectroscopia de fluorescência é fornecer uma resposta em tempo real, durante a própria cirurgia, a essa per- gunta. "Mas ainda precisamos testar o equipamento em mais 40 ou 50 casos para termos certeza de que ele é real- mente eficaz no diagnóstico de tumo- res hepáticos", pondera Silva Júnior, que também experimenta, com os colegas de São Carlos, a técnica de fluorescên- cia no trabalho de triagem de fígados doados para transplante. •

PESQUISA FAPESP 118 ■ DEZEMBRO DE 2005 ■ 39

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CIÊNCIA

rQUITO

BIOLOGIA

Caçadores de vírus Equipe da pesquisadores vai à Amazônia para vigiar a entrada de doenças emergentes

FABRíCIO MARQUES

férias de julho fo- ram de muito tra- balho para um grupo de pes- quisadores e estudantes da

Universidade de São Paulo (USP). A bordo de um jipe e de uma picape, eles se embrenharam por trilhas na Floresta Amazônica com a missão de coletar ma- terial biológico de aves, insetos e outros animais. Objetivo: municiar pesquisas que buscam rastrear a chegada de doen- ças como a gripe aviaria ou a febre do oeste do Nilo, transportadas por aves migratórias. A escolha da Amazônia não foi casual. De um lado, a riqueza de sua biodiversidade e o impacto do desma- tamento descontrolado favorecem o sur- gimento de viroses emergentes. De ou- tro, a Região Norte do Brasil é a porta de entrada das principais rotas migra- tórias de aves, que podem trazer essas moléstias. "A vigilância epidemiológica da região é importantíssima", explica o biólogo Luciano Matsumya Thomazel- li, participante da expedição.

Encerrada a empreitada, na qual percorreram cerca de 9 mil quilôme- tros passando por dez estados brasilei- ros, voltaram a São Paulo de bagagem cheia. Haviam coletado amostras de sangue, fezes e secreção oral de mais de 400 patos, perus, aves silvestres, insetos e morcegos, que agora são analisadas no Instituto de Ciências Biomédicas

(ICB) da USP. Nesse tipo de levanta- mento, os pesquisadores buscam en- contrar os primeiros sinais da entrada das doenças emergentes e, assim, defla- grar com rapidez estratégias de pre- venção e de tratamento. Os primeiros resultados desse esforço mostram que, por enquanto, não há indícios de ani- mais infectados. Mas o monitoramen- to vai continuar e deve estender-se por vários estados. O temível vírus H5N1, que produziu epidemias em países asiá- ticos, foi detectado em aves migrató- rias achadas mortas em vários países da Europa.

A importância da expedição, capi- taneada pelo professor de virologia da USP Edison Luiz Durigon, pode ser compreendida por vários parâmetros. Em primeiro lugar, foi testada com su- cesso uma estrutura móvel de monito- ramento capaz de sair de São Paulo e chegar por terra a lugares remotos e pou- co acessíveis. "Ê um desafio que tere- mos de cumprir no caso da emergência de alguma doença desconhecida. Agora estamos preparados para isso", diz Du- rigon. A qualquer momento, podem partir de novo, a bordo do jipe Land Rover e da picape Ford com capacidade para transportar dez pessoas, duas bar- racas, um barco, equipamentos de la- boratório e um gerador elétrico. Tal apa- rato é um apêndice de um projeto maior. A idéia é que colete material para abas- tecer o Laboratório Klaus Eberhard Ste-

wien, criado há dois anos no ICB, o pri- meiro no país com o padrão NB3+ (ní- vel de biossegurança 3+). É quase o máximo possível para a pesquisa civil - há instalações mais sofisticadas somen- te em países desenvolvidos.

Em segundo lugar, a viagem foi útil para treinar futuros pesquisadores. En- tre os oito integrantes que viajaram com Durigon e outros quatro que compuse- ram a equipe de retaguarda, contam-se oito alunos de doutorado, um de mes- trado e três de iniciação científica. A maioria enfrentou nessa viagem sua primeira grande experiência de campo. "Nunca mais vou olhar uma amostra num tubo de ensaio da mesma forma que antes. Aprendi a respeitar o traba- lho de quem obtém o material", diz Jansên de Araújo, biólogo e aluno de doutorado do ICB. A viagem também foi importante por motivos que não ca- bem propriamente em currículos aca- dêmicos. Se a expedição prestou-se ao amadurecimento dos pesquisadores, também foi rica em aventura e em ex- periência de vida. Teve desde passagens cinematográficas (como a da ponte que desmoronou segundos após a passagem dos carros) até ataques de nervos, racio- namento de comida e pelo menos um tombo com ferimentos. Sem falar dos personagens curiosos que o grupo co- nheceu ao longo dos 29 dias de viagem.

Eram 13 horas do dia 3 de julho quando a expedição, contando oito pes-

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JOÃO PESSOA

:C!FE

Os estudantes percorreram 9 mil quilômetros em dez estados (mapa ao fundo): coleta de material de aves migratórias serviu como treinamento

PESQUISA FAPESP118 ■ DEZEMBRO DE 2005 ■ 41

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soas, partiu do estacionamento do ICB, na Cidade Universitária. A saída coroou um esforço de superação do biólogo e doutorando Luiz Francisco Sanfilippo. Responsável pela equipe de campo, ele dividiu com o aluno de graduação Ri- cardo Lieutaud a tarefa de montar a es- trutura da expedição. Poucos dias antes da partida, descobriu que o barco foi entregue fora das especificações pedi- das e teve de jogar duro com o forne- cedor, que acabou trocando a merca- doria. Também se aborreceu com o atraso na entrega da capota da picape Ford. Lieutaud, convocado para a via- gem, não pôde ir por conta de um pro- blema familiar. Foi substituído por Mi- guel Augusto Golono, biólogo e aluno de doutorado, r

Quatro dias depois, após pernoitar em Três Lagoas (MS), Coxim (MS), Cuiabá (MT) e Comodoro (MT), o grupo chegaria ao primeiro destino, o núcleo de estudos do ICB em Monte Negro, em Rondônia, a 250 quilômetros de Porto Velho. Permaneceriam ali por uma semana, coletando material e aquecendo-se para o que en- contrariam pela frente. Con- tando com uma boa estrutura - o núcleo do ICB dispõe de la- boratórios, alojamentos e co- municação -, arriscaram-se nas primeiras capturas. Abriam re- des às 4h30 da manhã para capturar insetos e aves.

Ao cabo da temporada em Monte Negro, a expedição ganharia um nono integrante. A bióloga Carolina da Silva Ferreira, aluna de mestrado do ICB, convenceu os colegas a deixarem-na ir junto. Carolina estava em Monte Negro havia dois meses, fazendo a pesquisa que servirá de base à sua dissertação. Entediada com a longa temporada lon- ge de casa, uma de suas poucas diversões era consumir o baratíssimo sorvete de açaí vendido em Monte Negro - quatro bolas por apenas R$ 2,50. "Em dois me- ses, já tinha engordado 10 quilos", lem- bra a bióloga. Nas semanas seguintes, não apenas perderia o peso acumulado como protagonizaria algumas das situa- ções mais difíceis da expedição.

A saída de Monte Negro, com desti- no a Manaus, aconteceu às 11 horas do dia 15 de julho. Os pesquisadores pla- nejavam cumprir o trecho de 680 qui-

lômetros em um dia e avisaram um gru- po que os esperava em Belém que, se em três dias não dessem notícia, deve- riam procurar ajuda. Pernoitaram num hotel em Humaitá, cidade amazonense logo após a divisa com Rondônia, e, na manhã do dia 16, mergulharam no pior momento da viagem: a rodovia BR 319, intransponível no período de chuvas, um calvário mesmo no período de seca e para quem viaja em jipes de trilha. Sem imaginar o que teriam pela frente, cometeram uma temeridade - levaram pouca comida. "Pediram para eu com- prar 20 pães para a viagem e eu com- prei 40, mas foi pouco", lembra o biólo- go Jansen de Araújo. A estudante de biomedicina Tatiana Lopes Ometto, alu- na de iniciação científica, resume o que aconteceu: "Saímos felizes e entusias- mados, mas conforme os buracos da estrada se sucediam, o sorriso foi desa- parecendo. Uns estavam preocupados. Outros, bastante nervosos".

o caminho depa- raram com um homem numa mo- tocicleta. Era um morador das re- dondezas que re-

cebera do governo amazonense a in- cumbência de fazer a manutenção das pontes de madeira da BR. O homem sugeriu que voltassem. Isso porque a última ponte da estrada caíra havia pou- cos dias. "Fomos adiante mesmo assim porque o Land Rover e a picape passam sobre pequenos rios", diz o professor Durigon. O homem recomendou que parassem para dormir num vüarejo qui- lômetros adiante. K.

Os obstáculos eram tantos e as con- dições da estrada tão precárias que a certa altura o grupo parou para deci- dir se deveria mesmo ir adiante. Fize- ram uma votação sob a sombra do barco que a picape carregava. A maio- ria optou por seguir viagem - uma das poucas vozes dissonantes foi a de Luiz Francisco Sanfilippo, não por acaso o membro da expedição que melhor co- nhecia a região. A tensão atingiu o nível

máximo quando uma ponte desmoro- nou segundos após a passagem dos car- ros. Agora não havia mesmo como vol- tar para trás. O tempo foi passando, o sol se pôs - mas nada de aparecer o tal vilarejo descrito pelo homem da moto- cicleta, ou de qualquer vestígio de vida humana. O mais estressado com a situa- ção era Miguel Golono. A beira de um acesso nervoso, exigia todos os três pães a que tinha direito. Foi acalmado pelos colegas. Eram 23 horas daquele sábado de lua crescente quando, extenuados, resolveram montar acampamento no meio da estrada, num quinhão de asfal- to que a floresta e as chuvas esquece- ram-se de engolir.

Alguns, como Luiz Sanfilippo, dor- miram mesmo ao relento - só mais tarde ele saberia que onças habitam a região. "Aquela parada foi um paraíso. Pensei comigo, estamos vivos, vamos dormir'", lembra Tatiana Ometto. Os pãezinhos foram consumidos com apreensão - ninguém sabia dizer quan- to tempo ainda gastariam naquele arre- medo de estrada. Acordaram cedo e, às 6 da manhã, já estavam na estrada. No- vos contratempos, claro, estavam à es- pera. Carolina Ferreira, a bióloga que se juntou à equipe em Monte Negro, so- freu um acidente. Ela e o colega Mario Luiz Figueiredo, biólogo e aluno de dou- torado, estavam incumbidos de anali- sar as condições das pontes antes que os carros passassem. Numa dessas vis- torias, Carolina caiu num desvão e qua- se despencou no rio. Passou o restante da viagem com dores e escoriações.

Duas preocupações marcaram este trecho da viagem. Uma era a tal ponte que não existia mais, conforme anteci- para o homem da motocicleta. O gru- po teve uma boa surpresa. Encontra- ram uma ponte novinha em folha, construída horas antes por uma equipe que estava instalando um cabo óptico entre Manaus e Porto Velho. A outra preocupação era o atraso. Programado para levar um dia, esse trecho da via- gem já durava três - e eles não tinham como se comunicar. Estavam comple- tamente isolados. Celulares não pegam naquele pedaço da floresta. "Não faria a viagem de novo sem um telefone por satélite", diz Durigon. /

A 5,5 mil quilômetros dali, na Ilha do Mosqueiro, no Pará, a equipe de apoio formada pela biomédica Daniel-

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Amost dos animais estão sendo analisadas

em laboratório de alta segurança

le Leal de Oliveira e as biólogas Juliana Rodrigues e Lílian Keller, exasperava-se com a falta de notícias. Começaram a discutir o que fazer e a procurar telefo- nes de socorro. Às 23 horas do dia 17 de julho, o telefone da casa onde estavam finalmente tocou. Elas correram a aten- der. Em vão. A ligação caiu. Como o número ficou registrado, retornaram a ligação. Do outro lado atendeu alguém num telefone comunitário em Careiro Castanho, no Amazonas, a 88 quilôme- tros de Manaus. "Era um morador. Per- guntei se tinha um homem barbudo por perto", diz Danielle, referindo-se ao biotipo de Edison Durigon. "Disseram que sim. Ufa. Eles tinham conseguido."

Nos dois dias seguintes relaxaram a tensão fazendo a manutenção dos car- ros, embarcados de balsa para Belém, e preparando-se também para viajar à capital paraense - agora de avião. Che- garam à Ilha do Mosqueiro, a 79 quilô- metros da capital paraense, às 21 horas do dia 19 de julho. O objetivo era visi- tar criadores de patos nos arredores de Belém. O grupo de apoio formado por Danielle, Juliana e Lílian já havia rastrea- do endereços e visitado criadores, des- de granjas a moradores que criam no

quintal de casa, pedindo autorização pa- ra que os pesquisadores, quando chegas- sem, fizessem a coleta de material bio- lógico. Percorreram localidades como Marabitana, Vigia, Santa Bárbara, San- to Antônio do Taruá e Santa Isabel. A criação de patos é antiga na região - o pato no tucupi é comida típica do al- moço do Círio de Nazaré, festa religio- sa do Pará. "A gente ia parando de casa em casa e explicando para as pessoas. Alguns se recusavam. A maioria pergun- tava: o meu pato vai morrer?", lembra Juliana. Não morriam, ela alertava. Só era preciso tirar um pouco de sangue.

Nesses lugares é comum os mora- dores criarem patos, porcos, galinhas e outros animais domésticos, todos jun- tos, no quintal de casa. É a partir dessa convivência excessivamente próxima en- tre homens e animais que evolui o con- tágio de doenças como a gripe aviaria, moléstia veterinária capaz de infectar seres humanos. O temor é que muta- ções do vírus da gripe do frango ga- nhem meios de se transmitir entre os homens, produzindo uma pandemia. "Tiramos fotos desses lugares e elas parecem com cenas do Vietnã, onde já houve um surto humano da gripe do frango", diz Durigon. "Os elementos são os mesmos: residências rurais po- bres, cercadas de bichos. Numa das ca- sas, as galinhas chocavam na cozinha."

A estada paraense, que durou uma semana, foi produtiva. Coletaram ma- terial de aves silvestres, patos e perus, e conheceram lugares e pessoas que ja- mais vão esquecer. "Foi tocante ver

aquelas pessoas simples nos ajudando. Teve um homem que foi de bicicleta buscar um pato para que a gente pudesse colher material", diz a aluna da

Veterinária Renata Ferreira Hur- tado. Lá conheceram uma certa dona Maroquinha, humilde cam- ponesa que brindou os pesquisa- dores da USP com um banquete extraído de seu quintal, com direi- to a patos e perus temperados com coentro e urucum, guarnições de arroz, feijão e mandioca, e creme de cupuaçu de sobremesa. "Eles são muito pobres, mas ninguém passa fo- me", diz Durigon.

A viagem de volta para São Paulo, a bordo novamente do Land Rover e da picape Ford, duraria quatro dias, com paradas em Imperatriz (PA), Paraíso do Tocantins (TO) e Goiânia (GO). Felizes com o sucesso da empreitada, os pesqui- sadores exibiam, contudo, as marcas da aventura. Vários viajaram debilitados por gastroenterites. A bióloga Carolina Ferreira, aquela que se juntou ao grupo em Rondônia e se machucou ao des- pencar de uma ponte de madeira, pas- saria os meses de agosto e setembro em repouso. Logo que chegou a São Paulo descobriu que contraíra hepatite A na viagem. Foi assim que perdeu os 10 quilos acumulados pela orgia de sorve- tes na temporada em Monte Negro. •

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CIÊNCIA

Predadores Plano propõe estratégias para salvar as raias e os tubarões da costa brasileira

redadores de mares e rios, os tubarões e as raias que habitam ecossistemas brasileiros vivem o seu dia de caça. Nas últimas duas décadas, a pesca abusiva colocou na lista dos animais sob ameaça de extinção vários elasmo-

brânquios - classe que reúne os tubarões, as raias e os ca- ções, os quais, em comum, têm o esqueleto formado ape- nas por cartilagens. Pesquisas realizadas no Brasil baseiam a inclusão nessa lista de espécies que já foram bastante prevalentes na costa nacional como a raia Rhinobatos hor- kelii, o tubarão-quati (Isogomphodon oxyrhynchus), o tu- barão-boca-de-velha-listrado (Mustelus fasciatus), o pei- xe-serra {Pristis spp.), o tubarão-mangona (Carcharias taurus) ou o tubarão-anjo (Squatina spp). Esses animais têm crescimento relativamente lento, tardam a ingressar na idade adulta e reproduzem-se com parcimônia. Não há sequer justificativa econômica para o infortúnio dos elasmobrânquios. Isso porque são raras as espécies que têm valor econômico, como é o caso da raia Dasyatis marianae, vendida para uso ornamental em aquários, ou do tubarão-toninha (Carcharhinus signatus), cujas carne e barbatanas são apreciadas. Na verdade, a imensa maioria de tubarões e raias são capturados por pesquei- ros que buscam outros alvos, como cardumes de atum. Mortos, acabam descartados. Ou então, para não perder a oportunidade, os pescadores arrancam produtos de algum valor, como dentes (usados como ornamentos) e barbatanas de tubarão (ingrediente de sopas em países asiáticos) e lançam as carcaças de volta ao mar. asiáticos) e lançam as carcaças de volta ao mar.

Faz anos que um grupo de oceanógrafos e ictiolo- gistas alerta para o extermínio dos elasmobrânquios, mas agora eles tiveram a chance de apresentar uma es- tratégia para garantir a sobrevivência das espécies. Tra- ta-se do Plano Nacional de Ação para a Conservação e o Manejo de Peixes Elasmobrânquios no Brasil, que su- gere uma série de medidas, como a moratória na explo- ração de algumas espécies, o aumento do controle dos barcos pesqueiros e ò banimento de técnicas de pesca lesivas a tubarões e raias. O diagnóstico ampara-se em

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Tubarões-mangona: desaparecidos da costa sul brasileira

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quase 200 artigos científicos. Encami- nhado ao Ministério do Meio Ambien- te, é o resultado de dois anos de traba- lho de 12 pesquisadores membros da Sociedade Brasileira para o Estudo de Elasmobrânquios (Sbeel), que traba- lham em diferentes regiões do Brasil. O plano recomenda um esforço de pes- quisa para conhecer melhor a biologia desses peixes e suas dinâmicas popula- cionais. Na costa brasileira, são conhe- cidas 85 espécies de tubarões e 55 de raias. O número, considerado modes- to, seria o reflexo do ainda vasto desco- nhecimento científico sobre tubarões e raias do Brasil. "Como os elasmobrân- quios não são os alvos diretos de pesca- rias, sua pesquisa não é considerada prioritária por órgãos financiadores", diz a oceanografia Rosângela Lessa, pro- fessora da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE) e organiza- dora do documento.

Os pesquisadores admitem que é difícil sensibilizar agências de fomento e o público leigo para a necessidade de preservar espécies que protagonizam filmes de suspense e de terror. Mas, lem- bram, tubarões e raias são importantes para a biodiversidade de mares ou rios. "Eles fazem parte da cadeia alimentar e, se forem eliminados, podem produzir um desequilíbrio ecológico em cascata cujos contornos nem sequer podemos imaginar", diz Ricardo Rosa, pesquisa- dor da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). "Além disso, o estigma é in- fundado. Das mais de 400 espécies de tubarões, não mais do que uma dú zia é realmente perigosa."

Entre as espécies mais preju- dicadas, destaca-se uma varie- dade da raia-viola, a Rhinoba- tos horkelii, que, conhecida pelo tamanho avantajado, chega a atingir 1,3 metro de diâmetro. Até o início da década de 1980 era abundante na costa do Rio Grande do Sul. Hoje está criticamente ameaçada. Entre 1985 e 1997 houve um declínio de 85% de sua população na platafor- ma sul brasileira, por conta da pesca exagerada de outras espécies. O plano de manejo é drástico em relação a esta raia-viola. Propõe a moratória da pes- ca, com proibição de sua comercializa- ção no Brasil por tempo indetermina- do, até que dados científicos atestem a recuperação de suas populações.

s costas das regiões Sudeste e Sul do Brasil são as mais

afetadas, de acordo com o diagnóstico do plano

de ação. No Sul, a ex- pansão da atividade

pesqueira do Brasil começou em 1947, com o desenvolvimento de uma técnica capaz de capturar peixes a até 50 metros de profundidade. A pesca de espécies oceânicas começou em 1959, com o uso de espinhei para a pesca de atum. O es- pinhei é um equipamento de pesca bas- tante utilizado, que consiste em uma li- nha principal unida a outras secundárias dotadas de anzóis para fisgar os peixes. Em 1998, a frota que faz esse tipo de pes- ca direcionou-se para alguns tipos de tubarões, devido à valorização de suas nadadeiras no mercado internacional.

Mas a carne não costuma ter valor co- mercial. Por isso, os pescadores arran- cam as nadadeiras e devolvem os ani- mais ao mar, às vezes ainda vivos. Como o controle da exploração costuma se dar no desembarque dos pesqueiros, essa prática escapa da fiscalização. /

Um estudo feito em 2000 pelo pes- quisador Carolus Maria Vooren, da Fundação Universidade Federal do Rio Grande (Furg), avaliou que a frota de barcos que fazem pesca a espinhei do Sudeste e Sul foi responsável pela cap- tura de 186 mil exemplares de tubarões em 1997 - dos quais 156 mil foram des- cartados no mar, depois de retirados produtos lucrativos. O dado sugere que 83% dos tubarões capturados nem che- garam a ser desembarcados. Entre os tu- barões de grande porte, uma das maio- res vítimas é o mangona (Carcharias taurus), que sumiu das regiões Sudeste e Sul. Dois fatores determinaram o de- clínio. Como sua distribuição restringia- se à faixa costeira, a espécie tornou-se

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vulnerável às pescarias em águas rasas. Em segundo lugar, sua fecundidade é baixa, de apenas dois filhotes por ni- nhada, o que atrapalha a recomposi- ção num ambiente hostil. Outro abuso é a exploração de raias-manta (Manta birostris) na costa de Santa Catarina, o que é proibido.

Na região central da costa brasilei- ra, que abrange os estados da Bahia, Espírito Santo e Rio de Janeiro, a pesca de tubarões e raias tem importância econômica, social e cultural. A carne de raia é bem-vinda na preparação de mo- quecas e há mergulhadores que captu- ram animais vivos para vender como peixes ornamentais. Estatísticas apon- tam queda na população desses peixes na Bahia entre 1998 e 2002. No caso das raias, o volume caiu de 6% para 2% do total de toneladas de pesca. Entre os ca- ções, a queda foi de 4,7% para 0,8%. Próximo às regiões urbanas, o problema é a poluição. Na baía de Todos os Santos há registros de raias-viola do tipo Rhi-

nobatos percellens capturadas com de- formidades congênitas.

Frota arrendada - No Nordeste, o mais preocupante é a abertura da explora- ção de atum para barcos arrendados por outros países. Do total de peixes capturados por essa frota, até 25%, na maioria das vezes acidentalmente, são elasmobrânquios. Em 1998 estavam em atividade dois barcos atuneiros nacio- nais e 16 arrendados para países como Belize, Espanha, Portugal, Taiwan e Gui- né Equatorial. Esse número aumentou para 29 barcos nacionais e 69 arren- dados em 2002.0 crescimento da frota não foi acompanhado pela estrutura de monitoramento da pesca. "Temos in- formações de que ainda é comum a prática proibida de arrancar as barba- tanas dos tubarões e jogar as carcaças de volta ao mar", diz Rosa, da UFPB. Entre os tubarões estudados, o galha- branca-oceânico (C. longimanus) é um dos mais vulneráveis. Já o tubarão-azul

(C. glauca), espécie de alta fecundidade, com aumento populacional de 5% ao ano, corre menos risco.

Curiosamente, um dos principais esforços de pesquisa no Nordeste não atinge nenhum animal ameaçado de desaparecer. Trata-se do Carcharhinus leucas, o tubarão-cabeça-chata, objeto de um projeto capitaneado pela Univer- sidade Federal Rural de Pernambuco. Vem a ser a espécie que atacou cerca de 50 surfistas em Recife nos últimos 12 anos. O objetivo do projeto é estudar os ciclos biológicos e analisar fatores am- bientais relacionados aos ataques. Dá- se como certo que as agressões têm a ver com a construção do porto de Sua- pe, que mudou a configuração do estu- ário e pode ter empurrado os tubarões em direção a Recife.

Já na costa norte, chama atenção o desconhecimento sobre a fauna marinha e de água doce. "As metas de maior urgência são a coleta de dados biológi- cos dos desembarques e a implementa- ção de um programa de observadores de bordo para a frota da região", diz a bióloga Patrícia Charvet Almeida, doutoranda da UFPB, uma das poucas pesquisadoras de elasmobrânquios em atividade no norte do Brasil. "Até o mo- mento, só foram levantadas informa- ções sobre exploração, alimentação e reprodução de 12 espécies", afirma. "A costa norte ainda trará novidades quan- to à diversidade de espécies de elasmo- brânquios."

O ecoturismo, que é visto como uma saída ambientalmente sustentável de desenvolvimento, é um grande ini- migo das raias de água doce em algu- mas partes da região amazônica. Elas são alvo da chamada "pesca negativa". Trata-se de uma forma suave de classi- ficar a matança. Donos de hotéis ou de empresas mandam matar raias que ha- bitam áreas rasas das praias de água doce. Ocorre que, quando os turistas pisam nelas, levam ferroadas. O feri- mento é extremamente dolorido e muitas vezes de difícil cicatrização.

O plano de manejo está nas mãos do Ministério do Meio Ambiente, que deci- dirá o que fazer com as sugestões. A ex- pectativa é que ao menos uma parte das sugestões seja incorporada à legis- lação de conservação ambiental. •

FABRíCIO MARQUES

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-CIÊNCIA

ASTROFÍSICA

O grande ímã .da „

Via Láctea Força gravitacional de enorme estrutura situada a 500 milhões de anos-luz puxa nossa galáxia em sua direção

MARCOS PIVETTA

1\T ^^^k I radicados nos Estados Unidos e Inglaterra,

^H autodenominado os Sete Samurais, mos- ^H trou que a Via Láctea e outras galáxias vizi-

—m4L_ ^ nhas se moviam mais rapidamente do que a velocidade estimada de expansão do Uni-

verso. Uma anomalia cosmológica parecia arrastá-las 400 quilômetros por segundo acima do esperado em direção às constelações de Hidra e Centauro. A explicação para tal aceleração inesperada deveria ser a pre- sença de uma quantidade colossal de massa não-identificada nessa re- gião do Universo, que funcionaria como um ímã gravitacional para a nossa e outras galáxias adjacentes. Como um Grande Atrator, termo cu- nhado pelos cientistas para designar o fenômeno. Desde então, muitos astrofísicos tentaram (e ainda tentam) localizar a origem da perturbação, sem chegar a uma resposta definitiva. Num artigo a ser publicado ainda este ano na revista científica européia Astronomy and Astrophysics, uma equipe internacional de pesquisadores, com a participação de um brasi- leiro, afirma ter identificado a estrutura que responde por metade do efeito Grande Atrator. Seria o supercluster Shapley, um megaagrupamen- to de galáxias distante um pouco menos de 500 milhões de anos-luz de nós (um ano-luz eqüivale à distância percorrida pela luz em um ano, cer- ca de 9,5 trilhões de quilômetros).

Descoberto na década de 1930 pelo astrônomo norte-americano Har- low Shapley, esse supercluster, composto por 44 clusters (agrupamentos) menores, cada um com centenas ou milhares de galáxias, se situa ao norte da constelação de Centauro e é visível apenas do hemisfério Sul terrestre,

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Desenho da Via Láctea {ao lado) e imagem de Andrômeda (alto): movimento das galáxias se acelera em razão do supercluster Shapley

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sempre com o auxílio de telescópios. Seu formato é o de uma nuvem ovala- da de galáxias. De seus clusters centrais emanam raios X, indício de que ali há gás a temperaturas superiores a 10 mi- lhões de graus Celsius. Devido às suas gigantescas proporções, Shapley é con- siderado por alguns astrofísicos como a maior estrutura localizada no chama- do Universo local, que engloba tudo que existe a uma distância de uns 500 milhões de anos-luz da Terra. "Ele é cerca de 40 vezes maior que o grupo local de galáxias", compara Laerte Sodré, do Ins- tituto de Astronomia, Geofí- sica e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo (IAG/USP), um dos autores do trabalho. O grupo local, do qual fazem parte a Via Láctea, Andrômeda e outras três deze- nas de galáxias, mede aproximadamen- te 3 milhões de anos-luz.

O supercluster Shapley apresenta números impressionantes. A começar por seu comprimento, que se estende por 120 milhões de anos-luz. Sua densi- dade também é quase inimaginável: se fosse uma bola, seu volume seria equi- valente ao de uma esfera com raio de 80 milhões de anos-luz. Sua massa, de acor- do com os cálculos do estudo, é aproxi- madamente 5 x 1.016 vezes maior que a do Sol. Os astrofísicos não sabem quan- tas galáxias existem em toda essa estru- tura, mas conhecem a velocidade de 5.701 delas. Enfim, o supercluster é uma estrutura descomunal, muito rara no Cosmos, cuja força gravitacional arras- taria em sua direção nossa galáxia e suas vizinhas. "Falta agora descobrir uma quantidade de matéria idêntica a Sha- pley, na mesma direção do Cosmos, pa- ra explicarmos o movimento particular de nossa galáxia", afirma o astrofísico Dominique Proust, do Observatório de Paris, principal autor do novo estudo sobre a natureza do Grande Atrator, que também inclui pesquisadores chilenos, argentinos e australianos.

Uma das dificuldades dessa linha de pesquisa é obter dados confiáveis sobre a massa contida num supercluster. Sem esse tipo de informação, fica difícil es- timar a ordem de grandeza do campo gravitacional que pode emergir dessa megaestrutura. Em busca da possível fonte do Grande Atrator, a equipe mul-

tinacional de astrofísicos primeiramen- te calculou, ou consultou os registros disponíveis, a velocidade de recessão de 8.632 galáxias situadas na direção das constelações de Hidra e Centauro, a re- gião do Cosmos para a qual a Via Lác- tea está sendo puxada.

maioria dessas galáxias per- tence ao supercluster Shapley. Outras são de áreas vizi- nhas, como o supercluster Hidra-Centauro, ou de clusters menores. A velo-

cidade de recessão registra o ritmo com que um objeto se distancia de seu ob- servador. Em 1929, o astrofísico norte- americano Edwin Hubble - o primeiro homem a mostrar que o Universo es- tava em expansão e não era estático - estabeleceu a lei cosmológica de que, quanto mais longe se encontrava uma galáxia da Via Láctea, mais rapidamen- te ela se afastava de nós. Em outras pa- lavras, quanto mais distante estiver uma galáxia, maior é a sua velocidade de re- cessão. E ter em mãos esse tipo de regis- tro, além de dados sobre a luminosidade das estrelas e galáxias, ajuda a abastecer os modelos usados pelos astrofísicos para estimar a densidade de objetos e formações celestes de grande porte.

Se a proposta do novo estudo esti- ver correta, pelo menos metade do Grande Atrator está localizada a uma distância do grupo local de galáxias bem maior do que apontavam estima- tivas anteriores. A maioria dos traba- lhos defende a idéia de que essa ano- malia gravitacional é provocada por estruturas cósmicas mais próximas da Terra, situadas entre 150 milhões e 250 milhões de anos-luz. Antes e na direção de Shapley há um outro megaagrupa- mento de galáxias e clusters de galáxias, o supercluster Hidra-Centauro, distan- te aproximadamente uns 200 milhões de anos-luz. Certos pesquisadores acre- ditam que a matéria reponsável pelo efeito Grande Atrator se encontra em algum ponto desse supercluster, que é o mais próximo da Via Láctea. "Cer- tamente, é possível que o supercluster

Shapley forneça uma parte significati- va do Grande Atrator, mas as evidên- cias que vi até agora sugerem que uns dois terços do efeito total vêm de re- giões mais próximas", diz o astrofísico inglês Donald Lynden-Bell, da Univer- sidade de Cambridge, um dos Sete Sa- murais que descobriram essa pertur- bação gravitacional.

A equipe liderada por Dominique Proust, do Observatório de Paris, como era de esperar, não concorda com a vi- são do britânico. "O supercluster Hidra- Centauro está situado em frente ao Sha- pley, mas ele não poderia produzir o campo gravitacional necessário para jus- tificar o deslocamento do grupo local de galáxias em sua direção", pondera o astrofísico francês. "Esse movimento deve ser associado a uma estrutura com muito mais massa, o Shapley." Laerte Sodré bate na mesma tecla. "O assunto não está resolvido, mas nosso estudo indica que o Shapley dá uma contribui- ção importante para o Grande Atra- tor", afirma o pesquisador do IAG/USP. Na verdade, o artigo da Astronomy and Astrophysics sustenta a tese de que esse supercluster é muito maior do que se imaginava - portanto capaz de originar campos gravitacionais ainda mais for- tes - e possui "pontes" que o ligam ao supercluster Hidra-Centauro, situado mais próximo da Via Láctea.

Dinâmica do Universo - Determinar a natureza do Grande Atrator é, sem dú- vida, importante para a compreensão das estruturas celestiais que alteram os movimentos da Via Láctea, galáxia no interior da qual, em meio a centenas de bilhões de estrelas, estão o Sol, a Terra e os demais planetas do sistema solar. Mas a relevância desse campo de estudos tem repercussões ainda mais fundamentais: pode ajudar a entender melhor as va- riáveis que atuam sobre a dinânica do Universo, que, segundo a teoria mais aceita no meio científico, está se expan- dindo desde o Big Bang, a hipotética explosão primordial que teria criado o Cosmos há 13,7 bilhões de anos. Hoje há evidências de que a distribuição de matéria no Universo não é uniforme. Algumas regiões do espaço são aparen- temente grandes vazios, sem matéria visível, enquanto outras apresentam enormes concentrações de estrelas e galáxias, dando origem a megaestrutu-

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A misteriosa matéria escura (em azul] em torno de um grupo de galáxias: Shapley tem sete vezes mais partículas invisíveis que visíveis

ras cósmicas, como os superclusters. Mesmo no interior dessas gigantes for- mações cósmicas a presença de maté- ria não é igual em todos os seus setores. Em outras palavras, não é fácil ter uma noção clara da densidade de todo o Universo ou mesmo de algumas de suas zonas. "Os modelos cosmológicos dependem muito desse tipo de dado", afirma Proust, que, além de astrofísico, e, apesar do sobrenome literário, é mú- sico (toca órgão na igreja de Notre-Da- me da Assunção em Meudon, nos arre- dores de Paris, e já gravou CDs com a obra de autores como o britânico Wil- liam Herschel, astrônomo e composi- tor que viveu entre 1738 e 1822). "Uma das questões atuais é descobrir por que parece faltar matéria no Universo."

A região do Cosmos que seria a fon- te de metade do Grande Atrator não é exceção a essa regra. A parte visível de Shapley parece ser apenas a ponta do supercluster, acreditam os cientistas. No aparente vazio que existe entre seus mi- lhares de galáxias deve haver muita ma- téria escura, um misterioso tipo de par- tícula que aparentemente não emite nem absorve luz. "Há mais ou menos se- te vezes mais matéria escura que visível em Shapley", estima Sodré. A existência desse tipo de matéria, aceita pela maioria dos astrofísicos, só pode ser inferida pe- la influência de seu campo gravitacional sobre corpos vizinhos. Se, por exemplo, o movimento de uma galáxia ou uma estrela é afetado em uma proporção não compatível com a massa visível dos ob- jetos cósmicos em suas redondezas, essa perturbação costuma ser explicada pela presença, nessa região do espaço, de par- tículas invisíveis às formas diretas de observação cósmica. Até o final da dé- cada passada, cogitava-se que mais de 90% do Universo era composto por ma- téria escura. Desde então, com a desco- berta da ainda mais intrigante energia escura, uma força que funcionaria como um contraponto à gravidade, afastando, em vez de atrair, a massa dos corpos celestes, a quantidade de matéria escura passou a ser calculada em cerca de 23% do total do Universo (a matéria visível responderia por meros 4% do Cosmos e a energia escura, por 73%). Se esse ra- ciocínio estiver correto, Shapley, o cora- ção do Grande Atrator, é possivelmente um dos pontos do Universo local com mais matéria e energia escuras. •

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CIÊNCIA

FÍSICA

As longas asas dos neurônios

Quantidade e eficiência das conexões dependem essencialmente da forma das células nervosas

CARLOS FIORAVANTI

Dessa vez não são neurologistas, mas físicos e engenheiros que apresentam propostas novas - e aparentemente úteis - sobre os neurônios e o funcionamento do cérebro. Uma equipe do Instituto de Física de São Carlos demons- trou que a capacidade de os neu- rônios se conectarem não de- pende apenas dos caminhos já trilhados ou das ligações já esta-

belecidas. Depende também da própria forma dos neurô- nios: quanto mais ramificado for um neurônio, mais cone- xões poderá estabelecer com outros neurônios.

A conclusão parece óbvia, mas nem por isso deixa de ser importante. No Brasil é provavelmente a primeira vez que o sistema nervoso é analisado por meio da Teoria das Re- des Complexas, um dos artifícios matemáticos pelos quais se busca uma visão integrada dos fenômenos da natureza. Esse caminho leva também a outras conclusões, nem tão evidentes. Pode-se agora entender melhor, por exemplo, por que a informação circula com diferentes velocidades no sistema nervoso. Segundo os físicos, o tráfego é mais lento no córtex, a camada mais superficial do cérebro, por- que os neurônios se distribuem de modo relativamente uniforme em um espaço plano e todos se conectam com seus vizinhos. As mensagens são mais velozes quando saem de um ponto do córtex e seguem para regiões mais distan- tes por meio de conexões de longo alcance, com menos in- termediários.

A Teoria das Redes Complexas oferece outras formas de explicar a origem de alguns tipos de retardamento mental, que, vistas por esse olhar, resultariam não da falta de cone-

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Neurônios artificiais (células ganglionares da retina) em crescimento:

dendritos e axônios expandem-se um pouco

a cada instante, atraídos pelo campo elétrico produzido

pelos outros neurônios

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xões, como se pensava, mas de seu ex- cesso, que atrapalha o fluxo de informa- ções. Em qualquer pessoa, o número e a eficiência das conexões regem tanto os fenômenos involuntários, como os bati- mentos cardíacos, quanto os voluntários, como a escolha da roupa pela manhã.

Em conseqüência de fatores genéti- cos e de estímulos ambientais, varia muito a forma dos neurô- nios, que podem ser pou- co ou muito ramificados. Suas ramificações podem ser curtas ou longas. As curtas são os dendritos, que recebem as informa- ções de outros neurônios. As longas, chamadas de axônios, com cerca de meio metro, enviam as mensagens. A arquitetura dessas células, ao permitir estabelecer mais ou menos conexões com outras, pode determinar as cone- xões e influenciar o funcionamento do cérebro, o comportamento humano e mesmo o desenvolvimento de algumas doenças. Foi o que demonstrou a equi- pe de São Carlos, por meio de análise de dados biológicos fornecidos por outros grupos de pesquisa e de simulações em computador do comportamento das re- des de neurônios.

Segundo esse grupo, a forma do neurônio casa-se com sua função, do mesmo modo que as asas curtas das ga- linhas as impedem de voar, enquanto as asas das andorinhas, proporcional- mente mais longas, lhes permitem am- plos vôos. Segundo Luciano da Fon- toura Costa, coordenador da equipe do Instituto de Física de São Carlos da Universidade de São Paulo (USP), essa interdependência entre forma e função dos neurônios constitui um paradigma pouco explorado pela neurobiologia.

"O funcionamento global do siste- ma nervoso depende totalmente da for- ma, que, por sua vez, determina as in- terconexões entre os neurônios", diz David Schubert, coordenador do labo- ratório de neurobiologia celular do Ins- tituto Salk, dos Estados Unidos. Costa assinou com Schubert um estudo pu- blicado na revista especializada Journal of Neuroscience sobre a aglomeração dos neurônios, que pode ser determi- nada pela adesão entre eles e com o ambiente extracelular: quando se agru-

pam muito, podem surgir problemas como o mal de Alzheimer. "A forma das células nervosas muda muito em doen- ças como o Alzheimer", observa Schu- bert. "Entender a forma dos neurônios e como ela é regulada é essencial para desvendar o funcionamento do sistema nervoso em condições normais ou pa- tológicas."

osta, dessa vez com a parti- cipação do pós-doutorando Marconi Barbosa, verificou que grupos de neurônios com o mesmo número de ele- mentos, cada um deles com

o mesmo número de conexões, mas com formas distintas, podem funcionar de modo diferente. A conclusão emergiu de um experimento em computador no qual se fixou um conjunto de neurônios e se simulou uma função - a memória. De modo geral, a memória mais ou me- nos afiada depende de pelo menos duas variáveis: as ramificações e o espalha- mento dos neurônios. "No caso da me- mória", observa Costa, "o melhor é que os neurônios apresentem ramificações com uma ampla distribuição espacial". Em um trabalho feito com Fernando Rocha e Silene Lima, da Universidade Federal do Pará (UFPA), Costa anali- sou a distribuição dos fotorreceptores - neurônios especializados em captar luz - da retina de um roedor, a cutia (Dasy-

0 PROJETO

Desenvolvimento e avaliação de métodos originais e precisos em análise de formas e imagens de visão computacional

MODALIDADE Projeto Temático

COORDENADOR

LUCIANO DA FONTOURA COSTA - IFSC-USP

INVESTIMENTO R$ 1.571.439,06 (FAPESP) R$48.000,00 (CNPq) US$ 180.000,00 (Human Frontier Science Program)

procta agouti). O resultado, publicado na Applied Physics Letters, indica que não existe melhor ou pior espalhamen- to dos neurônios. "Dependendo da si- tuação", diz Costa, "os dois tipos de dis- tribuição funcionam bem".

Costa e o veterinário Marcelo Belet- ti, da Universidade Federal de Uberlân- dia (UFU), de Minas Gerais, demons- traram como se organizam os canais internos dos ossos que abrigam as arté- rias e as veias por onde flui o sangue que irriga e nutre a medula óssea, cen- tral de produção das células sangüíneas. Essas estruturas esponjosas, conhecidas como canais de Havers e de Volkmann, obedecem a uma hierarquia similar à das ruas e avenidas de uma cidade: há caminhos principais e secundários e al- ternativas mais longas ou mais curtas. Como proposto em um artigo na Physkal Review Letters, há sempre um caminho mínimo entre dois pontos, além de redundâncias: se um canal en- tope, o sangue encontra desvios que compensam o bloqueio. ^

As conclusões resultam do estudo de um fragmento de fêmur de gato, cortado em finíssimas fatias e converti- do em imagens. A reconstrução tridi- mensional do osso revelou uma rede de canais com 852 nós e 1.016 conexões. Nela as equipes de Costa e Beletti en- contraram elos menos importantes, que podem ser fechados sem proble- mas, e os essenciais, cuja perda prejudi- ca a irrigação sangüínea. É um conhe- cimento que pode ajudar a planejar cirurgias, implantes ou tratamentos médicos mais seguros.

Pequeno mundo - A Teoria das Redes Complexas está alimentando uma vi- são mais integrada dos organismos vi- vos, a chamada biologia de sistemas ou systems biology. "As redes complexas são adequadas para modelar e repre- sentar os problemas em biologia dos sistemas por incorporarem as transfor- mações da própria rede, com a perda ou acréscimo de elementos ou de cone- xões", diz Costa.

Essa abordagem já explicou uma ca- racterística inesperada das interações sociais, ao propor que a distância entre as pessoas era bastante pequena e qual- quer uma poderia alcançar outra sem muitos intermediários: existem em mé- dia seis estágios de separação entre dois

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A estrutura das conexões entre os canais de um osso {pontos vermelhos são os nós): desvios evitam obstruções

habitantes quaisquer da Terra. Teori- camente, qualquer leitor desta revista pode conhecer alguém que conhece al- guém que conhece a supermodelo Gi- sele Bündchen. É o chamado pequeno mundo, expressão a que os físicos e so- ciólogos ajudaram a dar consistência.

Uma das conseqüências da aplica- ção dessa teoria é que às vezes alguns elementos de um conjunto - pessoas, células, genes ou proteínas - são mais importantes que outros. Cinco anos atrás, o físico húngaro Albert-László Barabasi, hoje na Universidade de No- tre Dame, Estados Unidos, mapeou as conexões entre as páginas da internet e descobriu que elas seguiam a chamada lei de escala: poucos nós - os hubs - fa- zem muitas conexões, concentrando o fluxo de informações da teia de com- putadores. Os hubs são como os aero- portos, a exempo do de Cumbica, na Grande São Paulo, que centraliza o trá- fego aéreo nacional.

Os artifícios matemáticos dessa teo- ria reduzem fenômenos diferentes a conjuntos de conexões entre dois ou mais pontos. Barabasi aplicou esse con- ceito a outros problemas da biologia de

sistemas, como a rede de interação de proteínas: algumas são mais importan- tes que outras e, se danificadas, podem pôr em risco o funcionamento do orga- nismo que ajudam a formar.

Uma sociedade de neurônios - Costa começou a aplicar os conceitos da Teo- ria das Redes Complexas em 2002. Foi quando o físico Dietrich Stauffer, da Universidade de Colônia, Alemanha, o convidou para analisar o funcionamen- to das redes neuronais seguindo os pa- drões de conexão de Barabasi. De acordo com o modelo clássico, cada neurônio se liga com todos os outros mais próxi- mos, mas a realidade não é assim tão de- mocrática. Stauffer e Costa chegaram a um modelo mais realista por meio das redes livres de escala, um dos filhotes mais férteis das redes complexas, que leva à formação de hubs. De acordo com essa abordagem, alguns neurônios se- riam mais importantes e teriam mais conexões que outros.

"Os neurônios são como indivíduos, que aprendem a viver em sociedade, o cérebro", compara Costa. "Mais estímu- los tendem a estabelecer mais conexões

entre os neurônios, mas podem também reduzir as conexões." Segundo ele, o funcionamento do cérebro depende dessas conexões, selecionadas desde o nascimento. O cérebro de um recém- nascido contém cerca de 100 bilhões de neurônios. Após migrarem para seus lugares definitivos, as células nervosas estabelecem o maior número possível de conexões com outros neurônios - cerca de 1 trilhão a mais do que seriam capazes de usar. Há quem acredite que lá pelos 10 anos de idade sobrevivam apenas as conexões mais usadas, em razão dos estímulos do ambiente.

Costa acredita que tem em mãos fer- ramentas versáteis, que poderiam aju- dar a estudar e solucionar outros pro- blemas, a exemplo da identificação de autores de textos literários, interpreta- ção de imagens ou a expressão de genes durante o desenvolvimento animal. Mas também sabe que só a matemática não resolve tudo. "Trabalhos como esses só se desenvolvem com especialistas de mui- tas áreas, que não só fornecem dados biológicos, mas também são indispen- sáveis na interpretação dos resultados das pesquisas." •

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Biblioteca de

Revistas Científicas

disponível na internet www.scielo.org

Recentemente, cinco periódicos brasileiros foram incluídos nas bases de dados do Institute for Scientific Information (ISI), da Thomson Scientific, e constam na Master Journal List. São eles: a Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical, aceita para indexação nas bases de dados Current Contents/ Clinicai Medicine e Science Citation Index Expanded; e os periódicos Journal of Venomous Animais and Toxins including Tropical Diseases, Revista Brasileira de Botânica, Papéis Avulsos de Zoologia e Revista do Instituto de Medicina Tropical de São Paulo, selecionados para as bases de dados Biological Abstracts e Biosis Previews. Desde 2002, um número crescente de periódicos da coleção da Scientific Electronic Library Online (SciELO) tem sido selecionado para indexação em importantes bases de dados internacionais, como Medline, Embase e bases de dados da Thomson/ ISI Scientific. 0 aumento da presença dos periódicos de qualidade dos países ibero-americanos nos índices internacionais é um dos objetivos principais do projeto SciELO que vem sendo atingido sistematicamente nos últimos anos.

■ Ciência

Produção intelectual

Os pesquisadores da Escola Paulista de Me- dicina da Universidade Federal de São Paulo (EPM/Unifesp) Fábio Xerfan Nahas e Lydia Ma- sako analisaram todas as variáveis que se de- vem conter na publicação de um estudo cientí- fico. "O título é a maior arma para convencer o leitor de que vale a pena ler o artigo", descre- vem os autores do artigo "Análise dos itens de um trabalho científico". "Por esta razão deve ser curto e ao mesmo tempo completo, de fácil compreensão e traduzir a proposição do traba- lho." A introdução visa situar o leitor sobre o que se passa na literatura mundial sobre o as- sunto. Deve ser concisa e objetiva, principal- mente no caso de artigos para revistas, além de demonstrar a relevância do estudo de for- ma bem resumida, com citações e estatísticas. O objetivo do estudo deve ser colocado ao fi- nal da introdução. "O objetivo é a pergunta à qual o estudo se propõe a responder e, ao final, deverá fazê-lo, seja positiva ou negativamen- te", dizem. O texto mostra que a introdução e o resumo dão a primeira impressão ao revisor do periódico. Dessa forma, merecem especial atenção do autor, pois aumentam a chance de aceitação do artigo. Em métodos, devem ser descritos a amostra e os procedimentos reali- zados durante o experimento. Os detalhes que limitam e descrevem a amostra devem ser co- locados neste momento. Já os resultados de- vem ser relatados com clareza e podem ser ex- postos de três modos: no texto, para valores únicos ou poucos dados; em tabelas que faci- litam a apresentação de alguns tipos de dados; ou em gráficos que podem dar a noção de evo- lução, comparação e frações de um total. "Os resultados não devem ser repetidos no trabalho em suas diversas formas de apresentação. Se os valores forem colocados na tabela, os mesmos não devem ser apresentados em gráficos", re- comendam os autores. No item resultados, os valores devem ser apenas relatados e nunca co- mentados ou justificados. A interpretação dos resultados deve ser colocada no item discus- são. "A discussão é a essência do artigo cien- tífico. Expressa as opiniões dos autores em relação ao tema em estudo e permite compa- rações dos resultados obtidos com os dados

disponíveis na literatura." É neste momento que o autor pode discorrer com maior liberdade so- bre o tema, fazendo suas hipóteses e conside- rações. São colocados os futuros caminhos a serem estudados sobre o assunto. Atualmente alguns periódicos incluem a conclusão como último parágrafo da discussão, sem colocá-la em item separado. "Obrigatoriamente os au- tores devem concluir com a resposta à questão inicial do trabalho colocada no objetivo. Todo trabalho deve ter pelo menos esta conclusão", afirmam os autores do artigo.

ACTA CIRúRGICA BRASILEIRA - SãO PAULO 2005

VOL. 20 - SUPL. 2 -

www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=Soio2- 865020050oo8oooo4&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

■ Agricultura

Nichos ecológicos

Durante três períodos diferen- tes, dez famílias de uma comuni- dade de agricul- tores de Minas Gerais consumi- ram 76 diferentes refeições que foram analisadas. O estudo "Ni- cho ecológico de agricultores familiares da re- gião sul do Estado de Minas Gerais (Brasil)", assinado por Nivaldo Nordi e colaboradores, investigou os meses de setembro de 1995 (fim da estação seca), dezembro de 1995 (estação chuvosa) e abril de 1996 (fim da estação chu- vosa). Além de defender a utilização do con- ceito de nicho ecológico como um dos princi- pais para estudar o ser humano e sua relação com o meio ambiente, o estudo discutiu os re- sultados obtidos nos contextos sociocultural, econômico e agrário. A comunidade analisada pareceu depender marcadamente de determi- nados itens alimentares, mostrando pouca va- riação sazonal em sua dieta, e também ser auto-suficiente quanto ao suprimento alimen- tar, com satisfatório estado nutricional. A lar- gura do nicho alimentar para as famílias de pe-

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quenos agricultores estudadas esteve sempre abaixo de 50%, com alta sobreposição sazonal, variando de 72% a 80%. Em termos econômicos, os dados mos- tram ainda que o sistema de produção dos agriculto- res oferece a eles uma independência apenas relativa do mercado. Em compensação, metade dos alimentos ingeridos foi produzida pelas próprias famílias. Além disso, do ponto de vista social, a cooperação no traba- lho e a troca de alimentos permitem que ocorra uma maior consolidação das relações humanas entre os gru- pos familiares da comunidade.

BRAZILIAN JOURNAL OF BIOLOGY - vou 65 - N° 1 - SãO

CARLOS - FEV. 2005

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69842005000ioooo9&lng=pt&nrm=iso&tlng=en

■ Tecnologia

Fenômenos informacionais

Como conseqüência das recentes tecnologias, sur- gem novas áreas de interesse dentro da bibliotecono- mia e ciência da informação que necessitam ser exami- nadas. A webometria é uma dessas áreas de estudo que vêm adquirindo importância crescente para as análises quantitativas na internet. O artigo "Os links e os estudos webométricos", de Nadia Vanti, bibliotecária da Uni- versidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), re- flete exatamente sobre isso: o surgimento de diferentes conceitos quantitativos aplicados à internet. O estudo evidencia o conceito de webometria, sua abrangência, aplicações e possíveis denominações. São assinaladas as suas diferenças com a cibermetria e estabelecidas as relações que estes dois métodos mantêm com outros conceitos tradicionais. "A webometria é o estudo dos aspectos quantitativos da construção e uso dos recur- sos de informação, estruturas e tecnologias na web" ex- plica Nadia. O artigo analisa também um recurso que vem despertando grande interesse entre os pesquisa- dores no assunto, não só por facilitar a navegabilida- de entre sítios dentro da web, mas também por consti- tuir um dos indicadores mais relevantes dentro dos estudos webométricos: os chamados weblinks. "É pos- sível observar a utilidade que os weblinks revestem não só para os internautas como uma ferramenta de movi- mentação dentro da web, mas também a informação que eles proporcionam ao pesquisador que busca esta- belecer as relações entre determinadas áreas do conhe- cimento", afirma Nadia. Segundo o artigo, atualmente a web constitui a mais rica fonte de informação já conhe- cida pela humanidade. Assim sendo, não surpreende que pesquisadores que habitualmente se dedicavam a estudar os sistemas de informação tradicionais vol- tem-se agora para a investigação de como este ambien- te virtual pode ser utilizado, organizado e avaliado. "Pode-se concluir que a webometria representa área fundamental dentro da biblioteconomia e ciência da informação. Nesse sentido, é importante incorporar os

diversos setores sociais que produzem e consomem in- formação para flexibilizar os critérios classificatórios da disciplina, abrindo suas fronteiras para os novos fe- nômenos informacionais", aponta a pesquisadora.

CIêNCIA DA INFORMAçãO - VOL. 34 - JAN./ABR. 2005

N° 1 - BRASíLIA ■

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i9652005000ioooo9&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

■ Radiologia

Comparação Brasil e Austrália

Bons exemplos do ou- tro lado do mundo, se tra- zidos para o Brasil, pode- rão aumentar a segurança dos pacientes, sem prejuí- zo da qualidade dos exa- mes radiológicos mais co- muns. O trabalho "Estudo comparativo das técnicas radiográficas e doses entre o Brasil e a Austrália", de autoria de Ana Cecília Pedrosa de Azevedo, da Escola Nacional de Saúde Pública Sér- gio Arouca da Fundação Oswaldo Cruz, e colabora- dores, comparou técnicas radiográficas em uso nos dois países. No total, quatro tipos de exames foram avaliados: o de tórax, de abdome, de pelve e de coluna torácica em três projeções: ântero-posterior, póstero- anterior e lateral. Na Austrália, todos os equipamentos são digitais, enquanto no Brasil os aparelhos são con- vencionais. Os valores médios de entrada na pele do radiofármaco e da dose efetiva desses medicamentos foram consideravelmente mais altos no Brasil do que na Austrália. A única exceção foi detectada nos exames de tórax, mais baixos aqui. As maiores diferenças en- contradas foram para os exames de pelve (26 vezes maior no Brasil) e de coluna torácica (43 vezes maior no Brasil). Nos hospitais australianos, os programas de controle e garantia de qualidade fazem parte da rotina nos serviços de radiologia. Contam com equipamen- tos digitais de última geração e os serviços possuem uma equipe de física médica atuante. Esse conjunto de iniciativas resulta na produção de imagens radio- gráficas de alta qualidade, com baixas doses e índices de rejeição próximos a zero. Tais resultados apontam para a necessidade de estimular a implantação de ações semelhantes em toda a rede hospitalar brasileira. No entanto, analisando os resultados dos exames de tó- rax, concluímos que doses baixas também são possí- veis no Brasil se forem empregadas técnicas radiográ- ficas adequadas.

RADIOLOGIA BRASILEIRA - VOL. 38 - N° 5 - SãO PAULO - SET./OUT. 2005

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39842005000500007&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

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I TECNOLOGIA

■ Robô e jogos para criança deficiente

Videogames interativos e um braço robótico são partes da tecnologia que engenheiros biomédicos do Instituto de Tecnologia de Nova Jersey, nos Estados Unidos, usaram para ajudar crianças com paralisia cerebral a aperfeiçoar seus movimentos, reduzir a rigidez em suas articulações e viver com mais independência. Os pesquisadores trabalharam com um braço robótico pro- gramado para realizar movi- mentos repetitivos intensos de braços e dedos e que será adaptado às necessidades das crianças. Elas farão exercícios enquanto assistem a jogos de realidade virtual usando uma luva computadorizada que ajudará a movimentar os de- dos. Também foi criado um videogame interativo sem con- trole manual, acionado com movimentos do corpo. •

Satélite Envisat: imagens da Terra que ajudam no controle ambientai

Proteção via satélite

Um sistema de vigilância por satélite está ajudando a proteger a merluza-negra (Dissostichus eleginoides), um peixe ameaçado de ex- tinção, de embarcações pes- queiras piratas nos arre- dores das ilhas Kerguelen, situadas entre o sul do oceano Indico e a Antárti- ca. Os navios são atraídos pela possibilidade de pescar a valiosa espécie que está nos mares há 40 milhões de anos. O peixe também é co- nhecido como "ouro bran- co" por conta do alto preço que alcança no mercado negro. Para controlar as embarcações em volta das ilhas pertencentes à França, a empresa CSL, subsidiária da agência espacial francesa

nas Kerguelen: hábitat da merluza-negra

CNES, utiliza um sistema de vigilância baseado nas imagens dos satélites Envi- sat e Radarsat-1. Com essa medida, o número de in- cursões pesqueiras ilegais nos arredores da ilha foi re- duzido em 90%. Com o au- xílio de radares de aviões, as imagens, enviadas em tem-

po real para uma estação terrestre nas ilhas Kergue- len, são automaticamente processadas para distinguir os ecos dos radares dos na- vios na zona vigiada. As em- barcações autorizadas têm um transmissor de satélite a bordo e podem ser loca- lizadas e identificadas. •

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BRASIL

Novo canal de comunicação

Miniprotótipo aprovado no túnel de vento

■ O avião de uma asa só

Quem tem pavor de sentar nas fileiras de poltronas que ficam ao lado das asas de um jato vai se sentir desconfortá- vel se o novo projeto de aero- nave da Nasa vier realmente a deixar os campos de prova e ganhar os ares. O avião-asa, que consumiria 20% a menos de combustível devido ao seu design, não tem estrutura tu- bular, tampouco cauda, como os modelos de hoje. Condu- zido remotamente por uma tripulação de três pilotos, um miniprotótipo dessa futurista aeronave - com 5% das di- mensões de um eventual mo- delo comercial e pesando 36 quilos - foi aprovado em no- vembro em testes de desem- penho realizados num túnel de vento da agência espacial norte-americana, situado no Centro de Pesquisas Langley em Hampton, no Estado da Virgínia. Um dos desafios que ainda faltam ser vencidos pa- ra que a idéia, um sonho de

mais de dez anos, decole de vez é encontrar um jeito de pressurizar por igual todo o interior do avião-asa. •

■ Câmera tira fotos sempre em foco

Deixar alguém fora de foco em uma fotografia não será mais lamentado se uma câ- mera fotográfica desenvolvi- da por uma equipe de pes- quisadores da Universidade Stanford, comandada por Pat Hanrahan, chegar ao mercado. Para corrigir o foco eles adap- taram dezenas de microlentes em uma câmera convencio- nal entre a lente principal e o sensor digital. Essas micro- lentes gravam cada ângulo de raio de luz captado pela câ- mera que depois podem ser usados para corrigir a foto- grafia por meio de um soft- ware. O invento poderá ser útil principalmente para me- lhorar as imagens de micros- cópios e de câmeras de segu- rança, além das fotografias de objetos em velocidade. •

Consumidores com deficiên- cias auditivas necessitam de um canal de comunicação adaptado para serem atendi- dos pelas empresas. Foi pen- sando nesse universo que che- ga a 4,7 milhões de pessoas no Brasil, dos quais 1,3 mi- lhão não ouve absolutamente nada, de acordo com o Censo do Instituto Brasileiro de Geo- grafia e Estatística (IBGE) de 2000, que a empresa Koller & Sindicic criou a Central de Atendimento ao Surdo (CAS) em parceria com o Fundação Centro de Pesquisa e Desen- volvimento (CPqD), de Cam- pinas. "A central permite às empresas abrir um canal de comunicação novo com con- sumidores e clientes com defi- ciência auditiva", diz Alexan- dre Sayão, gerente da empresa.

Para que a comunicação possa ser feita, é necessário que o deficiente auditivo utilize um telefone público ou residencial especialmente moldado para surdos, dotado de um teclado alfanumérico. Tudo o que ele envia e recebe

aparece no visor luminoso do telefone. Na empresa, o aten- dimento é feito com o TS-PC, um dispositivo telefônico aco- plado a uma central telefôni- ca, que possui secretária ele- trônica, histórico de ligações, discagem rápida para dez nú- meros telefônicos, mensagens personalizadas e agenda tele- fônica. A CAS começou a ser desenvolvida em 2001, quan- do a Koller ainda estava abri- gada no Centro Incubador de Empresas Tecnológicas (Cie- tec), na Cidade Universitária em São Paulo.

Hoje o novo sistema já está em funcionamento em empresas como Sadia, TIM, Ache, Claro e Porto Seguro. "É um produto voltado para empresas que possuem call center e que mantêm relacio- namento com o consumidor", diz Sayão. A CAS serve tam- bém como um sistema alter- nativo e personalizado para a empresa não depender do ser- viço Central de Intermedia- ção Surdo-Ouvinte (Ciso), oferecido pela Telefônica. •

Telefone público para surdos com teclado alfanumérico

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LINHA DE PRODUçãO DRASIL

Garrafa PET substitui tijolo Garrafas plásticas de refri- gerante e de água descarta- das podem substituir tijo- los, blocos cerâmicos e de concreto no sistema cons- trutivo denominado Casa PET, concebido na Uni versidade Federal de Santa Catarina (UFSC) com o objetivo de apro- veitar um mate- rial abundante e durável para habitações de interesse social. As paredes da casa são formadas por painéis pré-fabricados de 65 e 85 centímetros de lar- gura por 265 centímetros de altura, compostos de co- lunas verticais de garrafas plásticas - produzidas de

poli (tereftalato de etileno), o PET -, cortadas e encai- xadas, reforçadas com tre- liça plana de aço e revesti- das com argamassa.

As instalações elétricas e hidráulicas são colocadas durante a fabricação dos painéis. A pesquisa que tem

como objetivo a constru- ção de uma casa térrea de 57 metros quadrados, com dois dormitórios e possi- bilidade de ampliação, teve início em 2003 e é o tema da dissertação de mestra- do da arquiteta Thaís Loh- mann Provenzano, orienta-

Casa é montada com painéis compostos de colunas verticais de garrafas e argamassa

da pelo professor Fernan- do Barth, do Laboratório de Sistemas Construtivos da universidade. "A leveza e a rigidez dos painéis pré- fabricados facilitam a fa- bricação, o transporte e a montagem das habitações", diz Thaís. •

■ Próteses oculares biocompatíveis

Plástico, cálcio e fósforo são a base de um novo material, chamado de compósito bioa- tivo, desenvolvido para re- constituir partes do rosto próximas aos olhos compro- metidas por acidentes ou doenças. A pesquisa, que teve início em 2000, foi coordena- da pelo professor Rodrigo Lambert Oréfice, do Depar- tamento de Engenharia Me- talúrgica e de Materiais da Universidade Federal de Mi- nas Gerais (UFMG). O mate- rial também pode ser usado como prótese ocular. Ele sur- giu da necessidade dos ci- rurgiões do setor de Plástica Ocular do Hospital São Ge- raldo, em Belo Horizonte,

mantido pelo Departamento de Oftalmologia da universi- dade, em trabalhar com um material biocompatível, fácil de ser manipulado e com preço acessível.

Atualmente as próteses usadas são importadas dos Estados Unidos. Como são feitas basicamente de polieti- leno, plástico utilizado para

várias aplicações, elas funcio- nam como material inerte, que apenas substitui as par- tes danificadas, como tecidos, cartilagens, ossos ou mesmo o globo ocular. Com o uso da cerâmica bioativa, que tem em sua composição cálcio e fós- foro, materiais semelhantes aos encontrados no osso hu- mano, ocorre uma interação

entre o implante e o tecido. "O novo material pode ser manipulado não só na forma, como também na textura, nas propriedades de rigidez e de maleabilidade", diz Oréfi- ce. O que facilita bastante o trabalho dos cirurgiões. •

■ Amplificadorda Unicamp em revista

A revista norte-americana Photonics Spectra destacou na sua edição de novembro os avanços mostrados pelo Am- plificador Paramétrico de Fi- bra Óptica, Fopa na sigla em inglês, que está em desenvol- vimento no Centro de Pesqui- sa em Óptica e Fotônica (Ce- Pof) na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Esse tipo de amplificador, que se-

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rá usado na amplificação dos sinais de laser nas telecomu- nicações, é objeto de uma cor- rida tecnológica mundial da qual participam, além da Uni- camp, a Universidade Stan- ford e os Laboratórios Bell da empresa Lucent, nos Estados Unidos, mais companhias ja- ponesas, australianas e fran- cesas, como a Alcatel. O artigo foi baseado num paper publi- cado na IEEE Phtonics Tech- nology Letters de setembro. Enquanto os equipamentos atuais trabalham com fre- qüências de apenas 30 nanô- metros (nm), o Fopa brasilei- ro já atinge os 58 nm. Isso eqüivale a vários amplificado- res usados atualmente. "Ainda

poços tem água salina, antes de ser utilizada ela precisa passar por um processo de dessalinização. Para isso, o Instituto Eco-Engenho, uma organização não-governamen- tal (ONG), desenvolveu um dessalinizador solar térmico em que o vidro, utilizado nes- ses equipamentos, foi substi- tuído por uma película plástica resistente aos raios ultraviole- ta. "Testamos vários materiais até identificar o mais adequa- do, que não ressecasse ao sol", diz David Cerqueira, diretor técnico e um dos sócios do Eco-Engenho.

O dessalinizador é cober- to por duas películas de vi- nil, uma preta, para absorver

Dessalinizador: água destilada para hidroponia

podemos avançar mais", diz o professor Hugo Fragnito, co- ordenador do projeto. A re- vista Pesquisa FAPESP apre- sentou o Fopa na sua edição 81, em junho de 2002. •

■ Água tratada com película plástica

Uma solução simples e barata está ajudando peque- nas comunidades do interior de Alagoas a suprir as neces- sidades básicas de água tan- to para consumo como para projetos de hidroponia. Co- mo na região a maioria dos

o calor, e outra transparente, responsável por retê-lo. No fundo, uma lâmina capta a água que, aquecida pelo sol, evapora e se condensa nas pa- redes do plástico transparen- te. A água é então captada em uma calha lateral e levada pa- ra o reservatório de abasteci- mento. "O equipamento ser- ve não só para dessalinização, mas também para tratamen- to da água", explica Cerquei- ra. O projeto teve o apoio da Agência Norte-Americana pa- ra o Desenvolvimento Inter- nacional (Usaid). O tamanho depende da necessidade. •

Patentes

Inovações financiadas pelo Núcleo de Patenteamento

e Licenciamento de Tecnologia (Nuplitec) da FAPESP. Contato: [email protected]

Laser no processo de cristalização de polímero

Plásticos em menos tempo

Novo processo industrial permite monitorar com mais precisão o momen- to em que materiais poli- méricos cristalinos, como garrafas de refrigerante e água, pára-choque de car- ros e peças de engrena- gem são cristalizados den- tro do molde, levando à economia de preciosos segundos no processo de fabricação e, com isso, a uma redução nos custos industriais. Ao mesmo tempo é feito o controle de produção de cada pe- ça, independentemente de seu tamanho, volume ou forma. A inovação, desen- volvida no Departamen- to de Engenharia de Ma- teriais da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), é formada por um sistema óptico, que pode ser adaptado a qual- quer máquina injetora, composto por um molde metálico, um laser, duas fibras ópticas, um detec- tor e um atenuador de la-

ser. Tudo acoplado a um computador ou laptop. O monitoramento é feito com base na medida de luz. Quando o laser atra- vessa o polímero fundi- do, a intensidade da luz é elevada. No momento em que o polímero começa a cristalizar, ela começa a diminuir porque durante o processo de cristaliza- ção o material aumenta a sua opacidade. Além de polímeros cristalinos, o processo serve também para materiais amorfos, como o polimetilmeta- crilato, mais conhecido como acrílico.

Título: Sistema óptico

e método para monitorar

a cristalização de materiais

poliméricos durante

a moldagem por injeção

Inventora: Rosário Elida

Suman Bretas,

Alessandra Lucas Marinelli

e Marcelo Farah

Titularidade: UFSCar

e FAPESP

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CAPA

Nanotubos no mercado Dimi linutas peças de carbono já estão à venda para universidades e empresas

MARCOS DE OLIVEIRA

Os nanotubos de carbono ainda não estão nos super- mercados nem em lojas es- pecializadas, mas já é possível adquirir no Brasil e com tec- nologia nacional essas peças

minúsculas só vistas com potentes microscópios eletrôni- cos. Elas medem de 1 a 3 nanômetros (nm) de diâmetro e até 1.000 nm de comprimento, medidas comparáveis a um fio de cabelo dividido 50 mil vezes na forma longi- tudinal. Os nanotubos de carbono são uma das grandes conquistas tecnológicas nascidas na década de 1990 e hoje estão sendo produzidos nos laboratórios da Uni- versidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e comercia- lizados pela Fundação de Desenvolvimento da Pesquisa (Fundep) da mesma instituição.

Entre outras qualidades os nanotubos possuem exce- lente condutividade elétrica e uma resistência mecânica cem vezes maior que a do aço e, ao mesmo tempo, flexibilidade e elasticidade. São características que os credenciam a uma infinidade de aplicações importantes em ciência e tecno- logia. Podem, por exemplo, interligar nanochips de silício, na indústria eletrônica, compor polímeros para torná-los mais resistentes ou deixar tecidos impermeáveis e cerâ- micas mais reforçadas. Na área médica também são bem- vindos porque são biocompatíveis e podem, por exemplo, liberar de forma mais segura e gradual um medicamento em um ponto específico do corpo humano ou carregar moléculas para o interior das células e ser um componen- te básico na arquitetura de nanomáquinas biológicas.

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Esses pequeníssimos tubos já se tor- naram uma mercadoria em várias par- tes do mundo. Algumas poucas em- presas produzem o material ainda em grande parte para experimentos e de- senvolvimento de produtos de alta tec- nologia no Japão, na China e nos Esta- dos Unidos. Um exemplo é um colete à prova de balas fabricado com nanotu- bos que o tornam mais leve, maleável e resistente que os convencionais. Talvez por isso e também por um possível uso na energia nuclear e na produção de ar- mamentos e bombas, os Estados Uni- dos vetaram a exportação desse pro- duto alegando interesses estratégicos. A proibição já foi comprovada por pes- quisadores brasileiros que receberam negativas de empresas norte-americanas para a importação desse material.

produção de nano- tubos da UFMG,

além de mostrar a capacidade

científica na- cional e for-

mar pesquisadores na área, também cria independência tecnológica para o país. Essa história começou a ser elabo- rada a partir de 1999 no Laboratório de Nanomateriais do Departamento de Fí- sica, sob a coordenação do professor Luiz Orlando Ladeira. "Nossas inovações na síntese de nanotubos de carbono foram no processo e no equipamento para pro- duzi-los em larga escala", diz Ladeira. Com o avanço nos estudos percebeu-se que era hora de tornar esse material dis- ponível para um maior número de pes- quisadores. A idéia foi disponibilizar os nanotubos para outras universidades, institutos de pesquisa ou empresas bra- sileiras que teriam um acesso mais faci- litado ao material, sem a necessidade de importá-lo. Assim, com as vendas inicia- das a partir de setembro deste ano, a Fundep já comercializou nanotubos de carbono para uma universidade e para uma empresa brasileira. Até o início de novembro, foram 60 gramas (g) de na- notubos vendidos ao preço de US$ 30 o grama, totalizando US$ 1,8 mil,

que serão divididos entre os pesquisa- dores, com um terço, e a UFMG, com dois terços, já descontados 5% da Fun- dep. No mercado internacional, o preço varia entre US$ 60 e US$ 200, depen- dendo do grau de pureza. Assim o pro- duto nacional, que possui alta qualida- de e oferece opções de manipulação em várias áreas, tem preço competitivo.

As primeiras vendas brasileiras fo- ram para o Instituto de Química de São Carlos (IQSC) da Universidade de São Paulo (USP) e para uma empresa pau- lista que os pesquisadores preferem não revelar o nome. "Estamos negociando com mais três empresas grandes das

quais também não podemos falar o nome por determinação de cláusula de sigilo", afirma Francisco Eduardo Fer- reira da Cunha, analista de transferên- cia de tecnologia da Fundep, responsá- vel pela comercialização do produto.

O incentivo inicial para o desenvolvi- mento dos nanotubos na UFMG partiu do professor Marcos Pimenta, do mes- mo Departamento de Física, que, em 1997, num ano sabático, trabalhou no Instituto de Tecnologia Massachusetts (MIT), nos Estados Unidos. "Trabalhei com nanotubos lá e quando voltei in- centivei o professor Luiz Ladeira a de- senvolvê-los porque minha área é a es-

Uma rápida história Os nanotubos de carbono foram descobertos pelo físico

japonês Sumio Iijima, em 1991, pesquisador da empresa NEC no Japão. Com um microscópio eletrônico de varredura, ele encontrou nanotubos e nanopartículas sobre um eletrodo quan- do estudava a síntese de fullerenos, que são arranjos de carbono no formato de bolas de futebol e possuem gomos hexagonais nas ligações entre os átomos. Os fullerenos foram descobertos em 1985 pelos norte-americanos Robert Curl e Richard Smal- ley (falecido no último dia 28 de outubro), da Universidade de Rice, e pelo inglês Harold Kroto, da Universidade de Sussex. Foi a primeira formulação estável de uma molécula essencial- mente feita de carbono, depois dos bem conhecidos grafite e diamante, encontrados na natureza. Esse resultado rendeu o Prêmio Nobel de Química, em 1996, aos três pesquisadores. O nanotubo viria a ser a quarta forma de uma molécula só de áto- mos de carbono. Inicialmente, Iijima, que hoje também é pro-

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pectroscopia óptica e ele já tinha expe- riência no estudo de carbono", conta. "Eu já trabalhava com carbonos espe- ciais desde 1996 e aí parti para tentar fazer nanotubos", diz Ladeira. /

Na fabricação dos primeiros exem- plares não faltaram criatividade e até uma modalidade original de reciclagem de instrumentos científicos. "Eu estava pensando em como fazer os nanotubos quando lembrei de um equipamento de crescimento de cristais obsoleto que estava há dez anos parado no meu la- boratório", conta Ladeira. "Aí o trans- formei em uma máquina que fizesse nanotubos de carbono." Quanto custou

essa adaptação? "Praticamente nada. Não dá nem para contabilizar."

Processo contínuo - Na máquina trans- formada, os pesquisadores consegui- ram produzir o primeiro nanotubo em 2001. "Era um processo semicontínuo em que, durante a produção, era ne- cessário abrir diversas vezes a câmara onde eles são produzidos. Depois en- contramos uma maneira de produzir de forma contínua por muito tempo", revela Ladeira. "No momento estamos desenvolvendo um novo processo de síntese contínua que poderá atingir a produção de 20 a 25 g por dia."

Estrutura de um nanotubo: uma folha enrolada de átomos de carbono dispostos de forma hexagonal

A disponibilidade de nanotubos pa- ra o sistema de pesquisa científica e inovação no Brasil é de extrema impor- tância em um momento que essas pe- ças de carbono estão cotadas para ser- vir a muitos experimentos científicos e uso na indústria. A própria aquisição do IQSC da USP mostra a diversidade e as possibilidades que se abrem com os nanotubos de carbono. O professor Sérgio Spinola Machado e sua aluna de mestrado Cláudia Razzino adquiriram 20g do produto da Fundep na forma de um pó enegrecido semelhante ao mi- neral que lhe dá origem, o grafite, den- tro de um pequeno recipiente de vi- dro. Eles vão utilizar os nanotubos na formulação de biossensores capazes de identificar a contaminação por pesti- cidas em alimentos ou na água de rios. "Usaremos os nanotubos para imobili- zar uma enzima, a acetilcolinesterase, que tem sua ação inibida pelos pestici- das durante o processo analítico", afir- ma Machado. "Assim vamos resolver um problema dos eletrodos (para a passagem de corrente elétrica na análise) feitos de carbono vítreo que possuem superfície lisa e servem de suporte para a enzima. A estrutura tridimensional dessa molécula se ajeita melhor nos po- ros dos nanotubos que são fixados no

: de Meijo, no Japão, desco- briu nanotubos formados com diversas folhas. Em 1993 ele e o pesquisador da IBM, Don Befhu- ne, formataram o nanotubo com apenas uma fo- lha de carbono. Daí para a frente diversas formas de produção e aperfeiçoamento dessas peças sur- giram em todo o mundo. Além de todas as qua- lidades e utilidades atribuídas aos nanotubos, já existiu inclusive quem o indicasse para fazer liga- ções diretas com a Estação Espacial Internacional, a ISS na sigla em inglês, que hoje sobrevoa a Ter- ra. Seria uma ligação, entre o chão terráqueo e a estação, capaz de levar suprimentos até o espaço. Uma idéia ainda não levada a sério, mas que mos- tra o quanto vai longe a imaginação com os na- notubos de carbono.

Outro aspecto, esse sim levado a sério, são as possíveis interferências dessas minúsculas peças no ambiente natural ou no corpo humano, como

nos casos de transporte até um tumor de drogas anticâncer. "Esse nanotubo vai ficar, provavel- mente, no organismo para o resto da vida do in- divíduo", diz o professor Luiz Ladeira, da UFMG. "A probabilidade é que não aconteça nada por- que são feitos de carbono, como a maior parte do nosso organismo, mas precisamos saber com cer- teza." Para Marcos Pimenta, também da UFMG, "as válvulas cardíacas são feitas de carbono e, se os riscos existirem, seriam muito pequenos, como, por exemplo, no caso de eles perfurarem alguma célula". Também estão nessa discussão possíveis problemas ambientais do tipo: o que aconteceria se nanotubos caíssem num rio? São questões que começam a ser analisadas em várias partes do mundo e no Brasil. "Iniciamos um projeto com o Instituto de Ciências Biológicas da UFMG para estudar a biodistribuição dos nanotubos de car- bono em seres vivos", revela Ladeira.

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eletrodo." Presa apenas na superfície lisa, a enzima fica estabilizada como se estivesse achatada e a sua atividade di- minui. Assim, com os nanotubos, o processo de análise de pesticidas deverá ficar mais preciso e eficiente, jí

Os nanotubos que a UFMG dispo- nibiliza são do tipo single wall, ou pa- rede única, em que apenas uma folha composta de átomos de carbono ganha a forma de tubo. Outra forma existente é a de paredes múltiplas, em que várias folhas de carbono são enroladas na for- ma de tubo. Esse tipo de nanotubo tam- bém é um dos objetos de estudo do gru- po da UFMG, que no período entre 2004 e 2005, por exemplo, publicou quatro trabalhos na revista científica Physical Review Letters.

O nanotubo de parede única é um potencial candidato para duas espera- das revoluções tecnológicas deste século na indústria eletroeletrônica e na medi- cina. Nesta última área, pesquisadores de todo o mundo buscam maneiras de levar os nanotubos carregados com an- ticorpos e citotoxinas até um tumor canceroso, com o objetivo de aniquilar as células doentes. "Um dos nossos so- nhos aqui na UFMG é produzir esses nanomísseis inteligentes para trata- mento de câncer", revela Ladeira.

Espaguete: nanotubos de parede única produzidos em larga escala

Na indústria eletroeletrônica, o na- notubo de carbono tipo single wall é apontado como a ligação ideal para os futuros nanochips, substituindo total- mente o silício usado hoje. Nesse caso os nanotubos fariam as ligações entre transistores e diodos de um circuito eletrônico, numa situação que melho- raria os desempenhos dos componen-

tes e de todo o sistema. Conexões seme- lhantes, entre postes de dióxido de silí- cio, com nanotubos já foram testadas na UFMG e comprovadas com imagens de microscopia eletrônica de varredura. Alguns grupos de pesquisa no mundo, como os pioneiros da Universidade Harvard, nos Estados Unidos, em 1998, já produzem experimentalmente tran-

Fabricando nanotubos O carbono possui uma característica que é a

auto-organização. Quando dentro de uma câma- ra sob condições especiais de temperatura, pres- são e outros parâmetros, os átomos de carbono se agrupam em forma de tubo espontaneamente. "É da natureza do carbono se formatar assim", diz o físico Marcos Pimenta, professor da UFMG. O trabalho dos pesquisadores é dar as condições necessárias para que se formem os pequenos tu- bos. "Dentro das câmaras precisamos controlar temperatura, pressão e outros parâmetros de for- ma bem precisa", diz Ladeira. A técnica inicial usa- da na UFMG foi a descarga por arco elétrico, onde os nanotubos de carbono crescem junto com na- nopartículas metálicas que catalisam sua reação de formação. "Vaporizamos carbono em uma câ- mara com gás hélio, junto com metais como ní- quel, a temperaturas entre 3.700° e 4.000°C. Dentro da câmara existem dois eletrodos que estabelecem uma corrente elétrica, levando o material a se transformar em uma mistura gasosa de níquel e

carbono. Quando esse vapor esfria, o níquel não consegue suportar mais a quantidade de carbono dissolvida em seu interior e assim ele expulsa o carbono, levando à formação de nanotubos." O resultado é um emaranhado de fios que mais lembram um prato de espaguete.

Outra técnica que está sendo usada pelos pes- quisadores de todo o mundo é a tecnologia chama- da Deposição Química na Fase Vapor, ou Chemical Vapor Deposition (CVD). Nesse caso, os nano- tubos são produzidos numa reação de termode- composição em um gás hidrocarboneto, como o metano, dentro de uma câmara, com temperatu- ras entre 600° e 1.000°C, que contém também pó cerâmico com nanopartículas de metais. Nesse processo, os nanotubos de carbono são formados sobre esse material cerâmico. A tecnologia CVD é mais barata e a mais usada atualmente. O Labo- ratório de Nanomateriais da UFMG possui dois equipamentos de CVD. "Um nós importamos e o outro nós fizemos aqui", afirma Ladeira.

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Floresta: nanotubos de carbono de paredes múltiplas

sistores e diodos com nanotubos de car- bono. Uma empresa norte-americana, a Nantero, de Woburn, Massachusetts, por exemplo, desenvolveu um sistema para fabricação de chips CMOS, da si- gla em inglês de metal oxido semicon dutor complementar, e agora planeja um sistema de memória para putadores baseado em nanotubos que será oferecido ao mercado como substituto das atuais me mória RAM, de randômica ou aleatória memória de acesso

Os primeiros passos na eletrônica já fazem imaginar que os nanotubos são candi- datos a se instalar dentro de computadores e em qual- quer outro tipo de aparelho eletrônico nos próximos anos. "Hoje toda a comu- nidade de pesquisadores de semicon- dutores está interessada em nanotubos de carbono", diz Pimenta. Ainda faltam resolver muitos problemas na produ- ção dessas peças para fins eletrônicos e estabelecer as ligações entre os elemen- tos de um circuito eletrônico, por exem- plo. "As pesquisas ainda estão num es- tágio distante da aplicação comercial."

Uma característica dos nanotubos que favorece a sua inclusão no mundo da eletrônica, embora o carbono não seja um elemento condutor por exce- lência, é a capacidade de eles possuí- rem condutividade elétrica. O segredo está na forma de enrolar a folha de car-

bono de um nanotubo. "Conforme se enrola a folha de grafite, o material po- de se comportar com propriedades ele- trônicas distintas, como um semicon- dutor ou um metal", explica Ladeira.

>laneja . com- A abos j^^ ado f^k A s propriedades eletrônicas

são obtidas pela forma como os hexágonos de átomos de carbono são orientados em relação ao eixo do tubo (fe-

nômeno chamado de quirialidade). "No fiozinho do nanotubo, os elétrons estão confinados e caminham em uma só direção de forma unidimensional. Eles se movimentam sem colisões com os átomos de carbono, o que se traduz numa condutividade elétrica muito me- lhor que a do cobre", diz Ladeira.

Com longas paredes de espessura de um átomo, flexíveis e altamente re- sistentes, os nanotubos de carbono são também bons absorvedores e armaze- nadores de gases. Um dos usos previs- tos será a utilização dos nanotubos no transporte e no acondicionamento de hidrogênio nos sistemas de células a combustível, os equipamentos que transformam esse gás e o oxigênio em

energia elétrica. "As suas características permitem o acúmulo de gases entre e dentro dos tubos colocados lado a lado como canudinhos de refrigerante, além de fixarem moléculas gasosas em suas superfícies para algum tipo de análise como um nariz eletrônico, por exem- plo", diz Pimenta. Esse projeto é uma das linhas de estudo da recém-criada Rede Nacional de Pesquisa em Nanotu- bos de Carbono, financiada pelo Conse- lho Nacional de Desenvolvimento Cien- tífico e Tecnológico (CNPq). "Reunimos 15 universidades como a USP, a Esta- dual de Campinas (Unicamp), e as fe- derais do Rio de Janeiro (UFRJ), Flu- minense (UFF), do Paraná (UFPR), do Maranhão (UFMA), do Pará (UFPA), de Santa Maria (UFSM), no Rio Gran- de do Sul, e de Juiz de Fora (UFJF) e La- vras (UFLA), em Minas Gerais", diz Pi- menta, coordenador da rede.

Transferência tecnológica - As aplicações vislumbradas nos projetos, agora reuni- dos em rede, são variadas como a mis- tura de nanotubos com polímeros ou resinas de modo a aumentar as proprie- dades mecânicas e térmicas no revesti- mento de aeronaves, ganhando mais re- sistência e leveza em relação ao aço (seis vezes mais leves).

"Um aspecto fundamental na rede é ter nanotubos disponíveis em grande escala para os grupos trabalharem sem se preocupar em produzi-los", analisa Pimenta. Aí entra novamente a impor- tância da produção do grupo do pro- fessor Luiz Ladeira. A UFMG já repassa os nanotubos gratuitamente para pro- jetos de pesquisa em que o grupo de pes- quisadores da universidade esteja en- gajado. Isso acontece com a Unicamp, a Universidade Federal do Ceará e o Centro de Desenvolvimento da Tecno- logia Nuclear da Comissão Nacional de Energia Nuclear. Com a demanda crescendo e a universidade não sendo propriamente um local para produção de peças de cunho científico e tecnoló- gico em larga escala, os pesquisadores já imaginam a formação de uma em- presa para a fabricação de nanotubos. "Isso vai depender do mercado", diz Ladeira. Outra possibilidade é a trans- ferência de tecnologia para uma em- presa que invista na produção, pagan- do royalties para os pesquisadores e para a universidade. •

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I TECNOLOGIA

FARMÁCIA

A terapia da artemísia «^ _.<4)1 «tf

Medicamento contra a malária derivado da planta chinesa será produzido no Brasil

DlNORAH ERENO

Febre alta e calafrios são os sinto- mas mais marcantes da malária, doença causada por um organismo de apenas uma célula, os proto- zoários chamados Plasmodium ou plasmódio, e transmitida ao ho- mem pela picada de mosquitos do gênero Anopheles. A Amazônia brasileira concentra a quase totali- dade dos casos na América Latina, com registro médio de cerca de

450 mil por ano. O quadro previsto para este ano não é muito alentador. Estima-se que o número chegue a mais de 600 mil casos, com cerca de 200 mil novos no Estado do Amazonas, metade dos quais apenas em Manaus.

Como não existem vacinas para combater a doença, um dos tratamentos recomendados pela Organização Mundial da Saúde (OMS) é feito com medicamentos de- rivados da artemisinina, o princípio ativo extraído da artemísia (Artemisia annua), um arbusto que ocorre na- turalmente na China e no Vietnã, onde é usado há mui- tos séculos pela população, em forma de chá, para tra- tamento da febre da malária.

Embora a doença seja endêmica no Brasil, só agora, com os resultados de pesquisa realizada pelo Centro Plu- ridisciplinar de Pesquisas Químicas, Biológicas e Agrí- colas (CPQBA), da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), um medicamento feito a partir das folhas da artemísia será totalmente produzido no país pela empre- sa Labogen, de Indaiatuba, no interior de São Paulo. Em 2006, a planta produzida no Brasil será processada e transformada em antimalárico. Atualmente a matéria- prima para elaboração dos remédios usados para trata- mento da malária é importada da China e do Vietnã. "O grande problema é que o material importado apresenta variações grandes no teor de pureza, resultando num produto sem padronização", diz a pesquisadora Mary Ann Foglio, coordenadora da pesquisa na universidade.

"Sem contar que é importante o país ser auto-suficiente na produção de um medicamento tão necessário."

O estudo da artemísia no centro de pesquisas da Unicamp teve início em 1988, quando foi estabelecido um intercâmbio entre o CPQBA e o governo chinês. Em uma pesquisa científica realizada na China na década de 1970, a planta mostrou ter atividade antimalárica. Na época, foram avaliadas várias das espécies do gênero ar- temísia, para ver qual delas combatia a febre da malária. Nesse estudo foi constatado que apenas duas apresenta- vam atividade de fato. E uma delas era a Artemisia annua, que lá cresce com facilidade e tem altos teores de artemi- sinina, que chegam a 1,2% do peso da planta seca. Com base nesses resultados, os pesquisadores brasileiros decidi- ram trazer a planta para o Brasil. Para isso, conseguiram sementes da China, do Vietnã e de outras regiões da Ásia.

Impasse resolvido - O primeiro passo consistia em adaptar a artemísia às condições climáticas do Sudeste brasileiro, já que é uma planta originária de clima tem- perado, com inverno rigoroso e verão com bastante lu- minosidade, mas não tão quente quanto o dessa região. "Quando se tentou cultivar essa espécie no Brasil, a plan- ta crescia rapidamente, florescia mais depressa ainda, mas não produzia quase nada da substância de interesse", con- ta Mary Ann. Os resultados iniciais foram decepcionan- tes. As variedades com alto teor de artemisinina tinham pouca biomassa, enquanto aquelas com muita biomassa tinham baixo teor dessa substância. Esse impasse só foi resolvido quando foram desenvolvidos híbridos capazes de resistir ao clima do Sudeste, resultantes de estudos feitos pela equipe do pesquisador Pedro Magalhães, coordenador da Divisão de Agrotecnologia do CPBQA. Com isso o florescimento da planta foi retardado para que houvesse tempo de a substância química de interes- se ficar acumulada nas folhas. Esses híbridos chegam hoje a aproximadamente 1% de artemisinina, resultados bem próximos dos obtidos das plantas chinesas. "Isso

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w Princípio ativo está concentrado nas folhas da artemísia

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foi demorado, mas avançamos muito", diz Mary Ann.

Quando o trabalho foi iniciado, as primeiras espécies apre- sentavam teores inferiores a 0,01%. Era um índice extremamente baixo, difí- cil de conseguir isolar e inviável economicamente. Ao mesmo tempo que foi feito o trabalho de aclima- tação da planta, os pes- quisadores começaram a estudar o processo de ex- tração da artemisinina e a desenvolver metodologias analíticas eficientes. Só assim é possí- vel monitorar a quantidade da subs- tância na planta e no extrato e quan- to está se perdendo no processo.

Em 1998, dez anos depois de ini- ciados os estudos com a artemísia, a Unicamp entrou com pedido de pa- tente para o processo de obtenção dos extratos de isolamento da artemisini- na pura. "Na patente nós garantimos 98% de pureza da substância", diz Ma- ry Ann. A

Cumprida essa etapa com sucesso, os pesquisadores começaram a observar que era descartada uma grande quanti- dade de resíduo produzido durante o processo de isolamento da substância de interesse. Para extrair a artemisinina das folhas secas utiliza-se um solvente orgânico. O resultado inicial é um caldo grosso, parecido com um chá verde ex- tremamente concentrado. Mas à medi-

da que o processo de purificação avan- ça obtém-se um cristal branco, que é a forma pura da artemisinina.

orno a folha tem ape- nas 1% dessa substân- cia, isso significa que os outros 99% são com- postos de várias subs- tâncias, como clorofi-

las, graxas e outros componentes que são eliminados. "Achamos interessante estudar esses componentes descartados para avaliar um possível interesse far- macologia) nesse material", diz Mary Ann. "E realmente constatamos que ele é muito rico em substâncias que de- monstraram atividade farmacológica." Essas substâncias já foram testadas em ratos para tratar lesões decorrentes de úlceras gástricas induzidas, com resul- tados positivos. Além disso, verificou-se em modelos in vitro que elas têm ativi- dade antiproliferativa em oito linhagens de células tumorais humanas. São estu- dos que ainda estão em andamento.

Depois de conseguir definir os pa- râmetros de cultivo da planta e de extra- ção e isolamento da artemisinina, era necessário ter uma metodologia analí- tica validada para garantir a qualidade do produto que será colocado no mer-

cado. Essa inclusive é uma das exigên- cias da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Para isso, os pesqui- sadores desenvolveram uma metodolo- gia analítica validada para a cromato- grafia líquida de alta eficiência. Por essa técnica, uma luz ultravioleta permite visualizar separadamente todas as subs- tâncias químicas dos extratos de plan- tas. Como a molécula da artemisinina não é visível no ultravioleta, foi utili- zado um detector universal de índice de refração, que gera um sinal elétrico intenso para determinada quantidade de amostra. A pesquisa que resultou na validação da metodologia, que garante a reprodutibilidade, exatidão e precisão da análise, teve início em 2002 e foi fi- nanciada pela FAPESP.

Com todas as etapas cumpridas, fal- tava viabilizar a produção em escala in- dustrial. E isso tornou-se possível com a assinatura do contrato de transferência de tecnologia para a Labogen, em junho deste ano, feito pela Agência de Inova- ção (Inova) da Unicamp. "Estamos re- passando para a empresa toda a tecno- logia já estabelecida de obtenção de sementes, extração do material vegetal e processos de produção, com o apoio do controle de qualidade que desenvol- vemos", diz Mary Ann. "Acreditamos que até o final de 2006 já teremos feito todos os testes para o lançamento", diz José Machado de Campos Neto, diretor executivo da empresa. "Na primeira fase produziremos apenas o princípio ativo, que será vendido para os laboratórios

Presença antiga no planeta A malária é uma doença parasitá-

ria que faz parte da história da hu- manidade. Dados obtidos em fósseis indicam que a doença originou-se na África e que o protozoário que a pro- duz está presente na Terra há tanto tempo quanto o próprio homem, ou ainda mais. Para a Organização Mun- dial da Saúde (OMS), a malária é a doença tropical e parasitária respon- sável pelo segundo maior número de óbitos no mundo, perdendo apenas para a Aids. Estima-se que mais de 1 milhão de crianças morre por ano no continente africano com a doença ou

por complicações decorrentes, como anemia e insuficiência renal. Cerca de 40% da população mundial, o que corresponde a aproximadamente 2,4 bilhões de pessoas, vive em áreas com risco de transmissão da malária, que ocorre em mais de cem países.

Uma mesma pessoa pode pegar a doença dezenas de vezes. O mosqui- to contamina-se ao picar um doente e então passa a transmiti-la. A conta- minação também pode ocorrer, mais raramente, pelo uso de seringas infec- tadas, transfusão de sangue ou da mãe para o bebê, no momento do parto.

Após a contaminação, os sintomas aparecem entre nove e 40 dias, de- pendendo da espécie de plasmódio. No Brasil, a malária é registrada des- de 1587. A partir da década de 1870, com o início da exploração da borra- cha, tornou-se um grande problema de saúde pública. Na década de 1940 ocorriam em torno de 6 milhões de casos por ano no Brasil, reduzidos, por conta de campanhas de combate à doença, para 52 mil casos em 1970. Logo em seguida, com a ocupação da Amazônia, os casos voltaram a au- mentar na região.

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farmacêuticos que já têm registro do medicamento." Um desses laboratórios que já produzem o antimalá- rico com a matéria-prima importada é a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) do Rio de Janeiro.

Em setembro, mudas da planta, de cerca de 12 centímetros, foram levadas para a fazenda da empresa. No final de janeiro, elas te- rão atingido 2 metros e es- tarão prontas para serem processadas. Na primeira fase serão cerca de 100 quilos de planta seca, na se- gunda, 1,5 tonelada e no terceiro ano serão proces- sadas 3 toneladas de plan- ta. "Apenas 1 quilo da subs- tância pura é suficiente para tratar as necessidades da malária grave no Bra- sil", diz Mary Ann. Essa quantidade poderá ser ob- tida já na primeira fase do projeto, com o processa- mento dos 100 quilos de planta seca. O excedente que será produzido pela empresa nas fases subse- qüentes poderá ser exportado para paí- ses como a África, que registra mais de 100 milhões de casos por ano, a maio- ria provocada pelo protozoário Plas- modium falciparum, a forma mais gra- ve da doença. Para essa forma, a OMS recomenda que o tratamento seja feito sempre com artemisinina associada a outros medicamentos, como a mefloqui- na. "Essa associação é uma orientação recente que tem um apelo muito gran- de", diz o médico infectologista Marcos Boulos, professor de Moléstias Infec- ciosas e Parasitárias da Faculdade de Me- dicina da Universidade de São Paulo.

Existem mais de cem plasmódios, mas no homem só quatro espécies pro- duzem a doença. Além do falciparum, o vivax, o malariae e o ovale. Os proto- zoários são transmitidos de uma pessoa para outra pela picada de mosquitos Anopheles. No Brasil, a malária é causa- da por duas espécies de plasmódios, pe- lo vivax, que é a forma branda, e pelo falciparum, a grave. O chá utilizado há séculos nos países do Sudeste Asiático

Início do processo de purificação da artemisinina

para tratar a febre da malária só tem efeito para a forma branda da doença, que em alguns casos, mesmo sem tra- tamento, regride naturalmente. Para as

OS PROJETOS

i. Implementação do processo de obtenção do antimalárico a partir da Artemisia annua 2. Aplicação em cromatografia líquida de alta eficiência na análise da variação sazonal das lactonas sesquiterpênicas presentes em Artemisia annua

MODALIDADE i. Chamada pública MCT/MS/ Finep- Bioprodutos 2. Linha Regular de Auxílio a Pesquisa

COORDENADORA MARY ANN FOGLIO - Unicamp

INVESTIMENTO i. R$ 490.000,00 (Finep) 2. R$ 117.120,00 e US$ 11.161,00 (FAPESP)

formas graves, pode inclu- sive criar resistência para o protozoário, como já acon- teceu com derivados do quinino, também extraído originariamente da casca da árvore quina {Cinchona pubescens) e muito usado desde 1908 no Brasil. V

Menos poluente - Como a artemisinina não é solúvel em água nem em óleo, ela precisa passar por transfor- mação química para que seja solúvel em um solven- te que possa ser adminis- trado ao homem. Dois de- rivados da artemisinina, o arteméter e o artesunato de sódio, solúveis em óleos e água, representam alter- nativas eficazes no trata- mento da doença e permi- tem a aplicação na forma endovenosa e intramuscu- lar. Coube à pesquisadora Vera Rehder, da Divisão de Química Orgânica e Far- macêutica da CPQBA, me- lhorar esse processo de se- mi-síntese. "A síntese total da artemisinina, que é a

produção total do princípio ativo em laboratório, é possível, mas é muito mais viável economicamente obter o extrato a partir da folha da planta e transformá-lo em duas reações quími- cas", diz Mary Ann. O processo é mais rápido, barato e menos poluente.

O medicamento utilizado atualmen- te no Brasil para o tipo grave da doen- ça é aplicado na forma injetável, em três doses. Hoje outras formas de adminis- tração, como a oral, estão sendo pesqui- sadas pelo Instituto de Tecnologia em Fármacos - Far-Manguinhos, labora- tório vinculado à Fiocruz, que trabalha com a matéria-prima importada para produzir o antimalárico. O grande obs- táculo até agora para esse tipo de for- mulação é que a artemisinina é dissol- vida no estômago. Novas formulações apontam para sua dissolução no intes- tino, onde ganha a circulação sangüí- nea de forma mais eficaz. Vencida essa barreira, a região amazônica poderá se beneficiar da matéria-prima produzida aqui mesmo, em todas as etapas. •

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I TECNOLOGIA

COMPUTAÇÃO

Cientistas associados Grupo de profissionais se une em pequena empresa e inova no formato empresarial

vontade e o sonho de fazer tecnolo- gia dentro de uma empresa fizeram dois amigos, Antô-

nio Valério Netto, 33 anos, e Cláudio Adriano Policastro, 35, a formatar um tipo de empreendimento que agrega, ao mesmo tempo, vários profissionais em projetos distintos com o objetivo de produzir inovação. Os dois, com pós- graduação em computação e matemá- tica computacional pelo Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação (ICMC) da Universidade de São Pau- lo (USP), montaram a empresa em 2003 na cidade de São Carlos assim que viram aprovado o primeiro proje- to, dentro do Programa Inovação Tec- nológica em Pequenas Empresas (Pipe) da FAPESP, que prevê o desenvolvi- mento de um software para auxiliar na redução de perdas em redes de distri- buição de energia elétrica utilizando sistemas computacionais avançados em três dimensões (3D) baseados em rea- lidade virtual. Depois eles consegui- ram financiamento do Pipe para mais outros quatro, mais três bolsas de pós- doutorado empresarial do Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientí- fico e Tecnológico (CNPq), além de ou- tras seis bolsas do Programa de Capaci-

tação de Recursos Humanos para Ati- vidades Estratégicas (RHAE), também do CNPq. No total, a empresa possui 32 profissionais, sendo oito doutores e quatro mestres. Entre 2005 e 2006, a empressa vai receber investimentos em torno de R$ 1,5 milhão da Fundação e quase R$ 200 mil do CNPq e da Finan- ciadora de Estudos e Projetos (Finep).

"A empresa também possui três só- cios eméritos que, além de coordenar projetos específicos, participam de to- do o planejamento estratégico", conta Valério Netto. Com o objetivo de fazer ciência e tecnologia, a empresa rece-

beu logo no início o nome ambicioso de Cientistas Associados Desenvolvi- mento Tecnológico. "Recebemos mui- tas críticas por isso, inclusive por ser um nome não-comercial, mas nossa intenção é a militância e a responsabili- dade de transformar o conhecimento científico em tecnologia e, conseqüen- temente, em riqueza."

Instalada no Centro Incubador de Empresas Tecnológicas (Cinet) da Fun- dação Parqtec, a Cientistas desenvolve, como projeto mais perto de seguir para o mercado, um jogo de futebol de robôs que vai abranger as áreas de educação,

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entretenimento e pesquisa. Serão duas versões. A primeira será destinada a alunos do segundo grau ou universitá- rios. O objetivo é que eles pro- gramem todo o sistema por meio de softwares específicos, com cada jogador-robô tendo, pre- viamente, uma função no cam- po de jogo, com táticas e estraté- gias. "Esses robôs servem para a iniciação à programação e tam- bém como plataforma de acesso à robótica." A outra versão será oferecida ao mercado como um pebolim, um jogo também cha- mado de futebol totó, em que as varetas que sustentam os jogadores se- rão substituídas por joysticks. "Dentro de alguns meses vamos colocá-lo para testes em uma casa de jogos eletrônicos, num shopping, afirma Valério Netto.

A idéia dos empresários-cientistas não é fabricar no futuro os robôs e seus sistemas. "Isso não está no nosso mo- delo de empresa. Nossa função é pros- pectar tecnologia e suas possíveis apli- cações. Depois do produto pronto, vamos captar investidores, licenciá-lo ou mesmo vender todo o projeto para ou- tra empresa. Não queremos ser 100% donos do robô." Nesse sentido, a em- presa está aberta para aqueles que têm um projeto na cabeça e gostariam de transformá-lo em um negócio. "Recebe- mos profissionais que têm uma idéia e partimos para uma ampla análise. Se o resultado se mostrar positivo comercial- mente, fazemos o planejamento do ne- gócio e, quando necessário, a captação de recursos para desenvolvimento. À

medida que o projeto amadurecer, ele pode ser transformado em uma unida- de de negócio dentro da empresa."

or enquanto, os sócios não recebem pró-la- bore e a maioria dos colaboradores é remu- nerada por meio de bolsas. "Temos que via-

bilizar a empresa primeiro." A Cientis- tas também possui um departamento de negócios e alianças responsável por prospectar projetos de Pesquisa e De- senvolvimento (P&D), além de oferecer serviços de consultoria tecnológica pa- ra a iniciativa privada. Nos últimos me- ses foram contratados pequenos proje- tos por um período de 30 a 60 dias, cujos valores serviram para o pagamen- to do custo fixo da empresa.

Os sócios da Cientistas sabem que o caminho para o sucesso é longo, como mostraram os erros e acertos do pas- sado. "Começamos desfocados. Mesmo com a minha experiência profissional, em duas empresas multinacionais e a do Cláudio, que possuía uma empresa de desenvolvimento de software e de prestação de serviço na área de infor- mática, começamos a desenvolver e a produzir softwares e equipamentos que não tinham demanda de mercado. Aí mudamos os parâmetros e procuramos

o que o mercado oferece ou quais serão as necessidades nos próximos anos." Assim, a diversidade de projetos é gran- de mas se concentra na informática. Um dos mais recentes é da área de bio- informática, que tem como parceiros a Fundação Butantan e o Centro de Bio- tecnologia Molecular Estrutural do Ins- tituto de Física de São Carlos da USP, um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) da FAPESP. O proje- to é uma demanda dos pesquisadores do Butantan e foi denominado de AbE- vo, sigla em inglês para Evolução de Anticorpos. Os primeiros anticorpos a serem gerados por essa metodologia se- rão dirigidos contra toxinas da bactéria Escherichia coli e contra uma toxina do veneno da cascavel.

"Quando terminarmos esse traba- lho teremos um protótipo de um soft- ware que poderá ser retrabalhado e oferecido a empresas da indústria far- macêutica e de biotecnologia, na for- ma de serviço ou produto", diz Valério Netto. Na área de instrumentação bio- tecnológica, a empresa desenvolve um equipamento miniaturizado para aná- lise de DNA em parceria com o Cen- tro de Óptica e Fotônica (Cepof), ou- tro Cepid da FAPESP, e o Instituto de Química de São Carlos da USP. O equi- pamento deverá ser mais barato e apre- sentar inovações em relação aos equi- pamentos similares importados para uso em exames de paternidade, crimi- nais e de detecção de transgênicos. Esse projeto foi apresentado à empresa e é coordenado pelo hoje sócio emérito Sandro Hillebrand, químico com dou- torado em física pela USP.

A empresa ainda mantém parcerias por meio de projetos com a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e a Universidade Federal da Paraíba. Com tudo isso, os empresários- cientistas associados querem mostrar que podem desenvolver tecnologia dentro de um inovador formato em- presarial. "Nós queremos mostrar tam- bém que não é por falta de opção de emprego no meio acadêmico, ou mes- mo empresarial, que essas pessoas tra- balham na empresa. A grande maioria de nossos colaboradores tem o objetivo de gerar tecnologia dentro de uma em- presa brasileira." •

MARCOS DE OLIVEIRA

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I TECNOLOGIA

ELECOMUNICAÇÕES

Empresa domina o processo de fabricação de equipamentos ópticos que amplificam o sinal de luz

YURI VASCONCELOS

ma peque- na empresa nascida na Universida- de Estadual de Campi-

nas (Unicamp) coloca o Brasil na van- guarda das comunicações por redes de fibras ópticas, em que as transmissões são feitas por laser. Criada em 2003, a Sun Quartz é uma das poucas empresas no mundo que dominam a tecnologia para fabricação de fibras ópticas conhe- cida como deposição axial na fase de vapor, cuja sigla em inglês é VAD (de Vapor-phase Axial Deposition). Esse pro- cesso apresenta diversas vantagens so- bre métodos similares e permite o de- senvolvimento de fibras amplificadoras que intensificam o sinal do laser. O do- mínio do processo de fabricação desses componentes é importante porque a maior parte da estrutura mundial de te- lecomunicações atual baseia-se em redes ópticas, capazes de transmitir grande vo- lume de dados com muito mais segu- rança e rapidez entre cidades próximas ou de um ponto a outro do planeta. A expectativa da Sun Quartz, que está ins- talada na Incubadora de Empresas de Base Tecnológica da Unicamp (Incamp) e contou com financiamento do Pro- grama Inovação Tecnológica em Peque- nas Empresas (Pipe), é colocar suas fi-

bras ópticas no mercado no primeiro semestre de 2006. No momento, elas es- tão em testes nos laboratórios da Padtec, uma das maiores fabricantes brasileiras de sistemas de comunicações ópticas. Atualmente as fibras amplificadoras usadas no Brasil são todas importadas.

Ao contrário das fibras ópticas co- muns, as fibras especiais são dopadas com érbio, um elemento químico natu- ral conhecido como terra-rara. A do- pagem é a introdução de um elemento químico para mudar as propriedades de um material. No caso, o érbio serve para amplificar o sinal luminoso que se propaga nos cabos ópticos na forma de laser. Elas são fundamentais porque, na medida em que a luz trafega por uma rede óptica, ela vai sendo absorvida e seu sinal é atenuado. Para recuperar a amplitude do sinal original, a saída é instalar amplificadores ópticos ao lon- go da rede, cujo principal componente são as fibras de érbio, como a fabricada pela empresa campineira. "Para uma ligação entre as cidades de São Paulo e Campinas, distantes uma da outra cer- ca de 90 quilômetros, é preciso colocar no meio do caminho um amplificador óptico. Em torno de 20 a 30 metros de fibra de érbio são usados nesse sistema, conhecido como amplificador óptico à base de fibra de érbio (EDFA). Nas ci- dades, as fibras especiais são utilizadas

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nos pontos de distribuição do cabea- mento", explica o físico Carlos Kenichi Suzuki, professor da Faculdade de En- genharia Mecânica da Unicamp e sócio da Sun Quartz.

Com diâmetro um pouco maior que um fio de cabelo, as fibras ópticas surgiram nos anos 1970 e desde lá têm sido cada vez mais utilizadas na transmis- são de dados via internet, TV a cabo, telefonia fixa e móvel, e várias outras apli- cações envolvendo imagem e som. Isso acontece porque os cabos ópticos podem transmitir muito mais infor- mações do que os sistemas convencionais de comunica- ção, que empregam fios de cobre, freqüências de rádio ou micro- ondas. As fibras ópticas são formadas por um núcleo central, que é por onde a luz transita, e têm diâmetro de 3,5 mi- crômetros (no caso das fibras de érbio) a 9 micrômetros (nas fibras comuns), sendo 1 micrômetro igual a 1 milíme- tro (mm) dividido por mil. A camada externa da fibra que envolve o núcleo, conhecida como casca, serve para for- necer isolação óptica e possui espessu- ra média de 125 micrômetros, ou 0,125 mm. A matéria-prima básica para fa- bricação das fibras é o quartzo, tam- bém usado na produção de células so- lares e microchips. E o Brasil possui a maior reserva deste mineral no planeta.

O domínio da tecnologia de fabri- cação de fibras ópticas é importante em razão do alto valor agregado desse pro- duto. Enquanto 1 quilo de quartzo cus- ta cerca de US$ 0,10 e 1 quilo de silí- cio não passa de US$ 1, a fibra óptica dopada com érbio vale um milhão de vezes mais e chega a custar US$ 100 mil o quilo. Essas fibras também são bem mais caras do que as convencio- nais. Um quilômetro de cabo óptico comum sai por cerca de US$ 20 a US$ 30, enquanto a mesma metragem de fi- bra amplificadora vale de US$ 10 mil a US$ 15 mil. "Trata-se de um mercado milionário. Em 2001 estimava-se que o setor de aparelhos de amplificação óp- tica girava em torno de US$ 4 bilhões. Hoje esse número deve ser bem maior", diz o pesquisador. Quando começar a produzir comercialmente, a Sun Quartz irá abastecer o mercado interno, que

hoje compra as fibras dopadas com ér- bio do exterior, e se tornar exportadora do produto. "Além das fibras, podere- mos vender também a tecnologia VAD, porque temos o pleno domínio dela e o instrumental utilizado no processo foi inteiramente desenvolvido por nós."

arlos Suzuki explica que todos os fabricantes na- cionais de fibras ópti- cas utilizam a tecnolo- gia MCVD (Modified Chemical Vapor Depo-

sition), criada pelos Laboratórios Bell, dos Estados Unidos, há mais de 30 anos. "A principal vantagem comercial da tecnologia VAD, desenvolvida no Ja- pão, é que, ao contrário do processo MCVD, ela não necessita da importa- ção de tubos de sílica. Isso torna nosso produto mais barato", afirma o cientis- ta. Os tubos, usados para fazer o núcleo e a casca da fibra, esclarece Suzuki, não são produzidos no país. Além disso, a tecnologia de deposição axial na fase de vapor emprega como matéria-pri- ma um subproduto do silício que é dez vezes mais barato do que o emprega- do na metodologia MCVD. Outra im- portante vantagem comparativa da tec- nologia do sistema VAD é que as fibras ópticas de nova geração, capazes de transmitir a luz por distâncias bem mais longas, só são possíveis de ser pro- duzidas por esse processo, porque ele corrige um efeito indesejado que atenua o sinal luminoso, conhecido como fe- nômeno de espalhamento Rayleigh, coi- sa que a tecnologia MCVD não faz. ,

Elevada automação - O processo de fa- bricação das fibras ópticas da Sun Quartz pode ser dividido em cinco eta- pas e é completamente automatizado. Ele permite o controle das propriedades do produto final, como a distribuição da nanoporosidade e o índice de refra- ção. A primeira etapa consiste na fabri- cação de uma preforma porosa de sí- lica nanoestruturada, uma espécie de bastão leitoso de cerca de 60 milímetros de diâmetro por até 30 centímetros de

comprimento. Cada preforma, elemen- to precursor da fibra óptica, pode dar origem a 4 quilômetros de fibra. Ela é produzida com o uso de um maçarico especial instalado dentro de uma câma- ra de deposição e já possui todas as ca- racterísticas da futura fibra. O passo seguinte é fazer a adição dos elemen- tos que fornecerão as características de amplificação. A dopagem da sílica é rea- lizada com a imersão da preforma numa solução contendo íons de érbio, que proporciona o efeito especial de ampli- ficação. A dopagem da preforma garan- te que os íons de érbio penetrem em sua estrutura em nível atômico.

Terminada essa fase, a preforma so- fre um tratamento termoquímico para secagem e purificação. O objetivo é re- mover de sua estrutura elementos inde- sejáveis como hidroxilas (OH) e metais de transição (ferro, cromo, níquel etc.) que causam perda na potência do sinal. Depois o material sofre novo tratamen- to térmico em um forno de consolida- ção de alta temperatura e com atmosfe- ra controlada para torná-lo totalmente transparente e livre de microbolhas, uma imperfeição que prejudicaria o perfeito funcionamento das fibras ópti- cas. Por fim, o vidro transparente é alon- gado e sofre uma deposição externa de nanopartículas de sílica para a forma- ção da casca, responsável pela proteção mecânica do núcleo por onde a luz transita. A partir desse ponto, a fibra de sílica nanoestruturada sofre uma série de alongamentos e novas deposições até que o núcleo e a casca atinjam os diâmetros esperados. "É um processo altamente complexo e que depende de uma enorme variedade de fatores para dar certo", afirma Suzuki. Para certifi- car-se de que a fibra tem qualidade e possui as características desejadas, ela passa por uma ampla bateria de testes para caracterização das propriedades estruturais, ópticas e de amplificação, como microscopia eletrônica de var- redura, espalhamento e espectrometria de raios X.

As fibras ópticas amplificadoras são apenas um dos produtos desenvolvidos pela Sun Quartz, que opera dentro do Laboratório Ciclo Integrado de Quart- zo da Faculdade de Engenharia Mecâni- ca da Unicamp e mantém vínculo com o Centro de Pesquisas em Óptica e Fo- tônica (CePOF), instalado na universi-

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Processo de fabricação de fibras ópicas na Sun Quartz: domínio da tecnologia é credencial para o mercado externo

dade, um dos Centros de Pesquisa, Ino- vação e Difusão (Cepid) financiados pela FAPESP. A empresa também do- mina o processo de fabricação de fibras ópticas sensoras e de lentes de alta ho- mogeneidade óptica para uso na região de luz ultravioleta. As fibras sensoras têm um largo leque de aplicações e são empregadas como sensores de pressão e temperatura, proporcionando medi- das em tempo real em operações de monitoramento de dutos de petróleo, gás e água. Também podem ser utiliza- das em praças de pedágio para controle de passagem de veículos e como detec- tores de presença em aplicações ligadas ao setor de segurança. "Essas fibras têm estrutura distinta das dopadas de érbio, sendo que o núcleo é mais espesso e pode atingir 0,8 milímetro de diâme- tro. Elas custam a partir de US$ 1 o me- tro e, até onde conhecemos, não exis- tem fabricantes nacionais do produto", conta o executivo da Sun Quartz.

As lentes de alta resolução são pro- dutos que estão na fronteira do conhe-

cimento. Elas são componentes impor- tantes na fabricação de microchips de nova geração e são fundamentais para aumentar a resolução espacial de seus componentes (transistores, capacitores, diodos etc), em virtude da ultra-alta homogeneidade à luz ultravioleta de pequenos comprimentos de onda, e, conseqüentemente, a velocidade de

O PROJETO

Fibras ópticas amplificadoras de sflica dopadas com érbio

MODALIDADE

Programa Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas (Pipe)

COORDENADOR

CARLOS KENICHI SUZUKI - Unicamp/Sun Quartz

INVESTIMENTO R$ 307.627,00 e US$ 12.700,00 (FAPESP)

operação do processador do computa- dor. Essas lentes são utilizadas em equi- pamentos chamados Stepper que fabri- cam os microchips por meio de uma tecnologia conhecida como litografia óptica. "Existem poucos fabricantes des- ses equipamentos no mundo, entre eles a Canon e a Nikon. Essas indústrias precisam de lentes de alta homogenei- dade na região do ultravioleta, que só podem ser fabricadas a partir da tec- nologia VAD", explica Suzuki. Aconte- ce que as empresas que dominam essa tecnologia estão direcionadas apenas para a fabricação de microchips. Assim, a Sun Quartz quer ocupar um nicho de mercado até então pouco explorado nesse setor. O processo de fabricação das lentes já é dominado e agora a empresa está fazendo ajustes para dei- xar o produto com as especificações re- queridas pelo mercado. Para aumentar a perspectiva comercial da empresa, Suzuki esteve, no final de outubro, no Japão, onde visitou empresas e discutiu parcerias. •

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I HUMANIDADES

HISTORIA

Longe de Deus, perto dos EUA Estudo de Moniz Bandeira disseca formação do império americano

CARLOS HAAG

m velho e lamentoso adágio mexicano afirma: "Que azar o nosso. Estar tão longe de Deus e tão perto dos Esta- dos Unidos". Da nação jo- vem que arrancava suspiros

dos iluministas europeus pela sua "passion de Vega- lité", nas palavras de Alexis de Tocqueville, a América hoje, pouco mais de dois séculos de seu nascimento, conseguiu que boa parte do globo chegasse a um consenso negativo sobre ela, algo antes visto como uma "turrice" invejosa esquerdista. O país parece pairar sobre o mundo, orgulhoso de seu isolacionis- mo, sempre disposto a começar uma nova guerra em nome da liberdade, que, afirmam, teria sido inven- tada lá pelos founding fathers em 1776. Curiosa falá- cia, já que o pai da pátria, George Washington, já ad- vertia, em 1796, que "qualquer excesso militarista é

daninho para a liberdade, particularmente para a li- berdade republicana".

"Este desprezo dos Estados Unidos pela sobera- nia dos outros povos, o unilateralismo de sua políti- ca internacional, o militarismo, a arrogância e a pre- potência, a pretensão de reformar o mundo à sua imagem e semelhança, o pretexto de promover a de- mocracia como rationale para a deflagração ou par- ticipação em guerras não afloraram como resultado dos atentados do 11 de Setembro, mas nos primór- dios da formação do país", afirma o historiador Luiz Alberto Moniz Bandeira, autor de Formação do impé- rio americano, um sólido estudo sobre como o "impé- rio da liberdade" faz de tudo para dar "liberdade ao império". "Para compreender esse processo de per- versão da democracia, que rompeu a vida civilizada e estabeleceu um estado de guerra permanente, foi que me propus a escrever sobre a formação do império

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americano como epílogo da globaliza- ção do sistema capitalista, que é um todo mundial e não uma soma de eco- nomias nacionais", analisa o professor.

A idéia desse mundo global, com a América no comando, Moniz foi bus- car em Karl Kautsky, um discípulo de Marx, desprezado pela esquerda a favor de Vladimir Lênin, para quem o impe- rialismo seria a expressão do "capitalis- mo agonizante, em decomposição". A prática, observa o historiador, deu razão a Karl, e não a Vladimir. "Kautsky afir- mou que se podia aplicar ao imperialis- mo o mesmo que Marx dissera sobre o capitalismo, isto é, que o monopólio ge- rava a concorrência e essa o monopólio, numa competição furiosa, o que levou

os grupos financeiros a conceber a idéia do cartel. Segundo ele, não era impossí- vel que o capitalismo entrasse em nova fase, marcada pela transferência dos mé- todos dos cartéis para a política inter- nacional, a fase do ultra-imperialismo." A teoria de Kautsky é de uma lógica no- tável: o imperialismo como fruto do ca- pitalismo industrializado precisa expor- tar seus capitais para sobreviver, o que fazia da guerra de conquista uma ne- cessidade econômica, já que era preciso garantir mercado para despejar as mer- cadorias produzidas. O problema é que essas guerras, como a competição entre as empresas, eram dolorosamente custo- sas. Daí a ousadia da antevisão: de tan- to baterem cabeças, as grandes potên-

cias acabariam por formar um "truste universal, um único Estado mundial, sujeito ao capital financeiro dos vito- riosos, que assimilaria todo o resto".

Bush - A visão das potências se devo- rando umas às outras, que Lênin ven- dera como certeza de que o socialismo triunfaria, único sobrevivente dessa guerra entre capitalistas, foi definitiva- mente abafada em 1976, com o estabe- lecimento do Grupo dos Sete (ou oito), o G-7, a reunião das grandes econo- mias para coordernar a economia glo- bal, confirmando, assegura Moniz, a previsão de Kautsky, de que ocorreria uma exploração conjunta do mundo pelo capital financeiro, embora essa in- tegração não eliminasse a competição comercial e as contradições entre as po- tências industriais. A frente das quais estão os Estados Unidos. Longe de uma inovação de Bush Júnior, essa tendên- cia para o messianismo, nota o profes- sor, marcou a formação do povo ame- ricano, a América renovando a tradição judaica. "Nós, os americanos, somos o povo escolhido, o Israel do nosso tem- po; carregamos a arca das liberdades do mundo. Deus predestinou grandes coi- sas para a nossa raça e o resto das na- ções logo seguirá na nossa esteira", es- creveu, em 1850, o criador da baleia branca Moby Dick, Herman Melville. "O povo americano, como os israelitas, passou a se considerar o mediador, o vínculo entre Deus e os homens da Ter- ra", lembra o professor, A

Os peregrinos que saíram da Europa para a aventura no Novo Mundo, onde fundaram a colônia que se transforma- ria nos Estados Unidos, se considera- vam "protagonistas de um exercício de excepcionalismo, crentes de que eram capazes de um papel que outros povos não podiam desempenhar". Já em 1912, recorda Moniz, o embaixador do Brasil em Washington, Domício da Gama, re- sumiu o que era o espírito ianque: "O duro egoísmo individual ampliou-se às proporções do que se poderia chamar de egoísmo nacional". "Não sem razão, em janeiro de 2003, um alto funcioná- rio do Departamento de Estado, ao ser indagado até que ponto os Estados Uni- dos se dispunham a delegar sua sobe-

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rania, ao juntar-se a instituições multi- laterais ou tratados internacionais, de- clarou: 7f dependi. Infere-se que a única soberania intangível é a da América e somente ela tem o direito de decidir o que deve ou não internacionalmente respeitar", observa o pesquisador. As- sim, o país vai, ao longo de sua história, oscilar entre o isolacionismo e o expan- sionismo até, enfim, assumir na admi- nistração atual "o desprezo pela sobera- nia de outros Estados, o unilateralismo e o militarismo, que eram latentes e por vezes se manifestavam, converteram-se em normas oficiais de sua política inter- nacional".

Foi um longo caminho, embora per- corrido rápida e dubiamente. No iní- cio do percurso estava a Dou- trina Monroe, a "América para os americanos", formulada em 1823 pelo presidente James Monroe, que isolava os Estados Unidos do Velho Mundo, refor- çando o desejo de George Was- hington, para quem "a Europa tem interesses sem relação com os nossos, senão remotamen- te", mas, ao mesmo tempo, con- tinha a "praxidade" de Thomas Jefferson, que afirmava ter "a América um hemisfério para si mes- ma", de um expansionismo explícito. Que começou, aliás, dentro do seu pró- prio território, com a conquista do oes- te e a compra de vastas áreas adjacentes ao seu (como a Louisiana, da França) pertencentes a países europeus.

O progresso industrial pedia novas áreas de consumo e logo o imenso ter- ritório americano pareceu pequeno. Com o espírito do "destino manifesto", analisa o historiador, os EUA viram que era preciso "estender a área de liberda- de". A dubiedade da Doutrina Monroe foi funcional nisso e o precursor no uso da "brecha" ideológica do ideal do iso- lacionismo foi o presidente Theodore Roosevelt, inventor da política do big stick, o porrete pela democracia. "Roo- sevelt foi a primeira 'presidência im- perial' dos EUA, já que pela primeira vez foram administradas possessões perto e longe do seu território, alcan- çou influência dominante no Caribe e na América Central, transformando a

sua Marinha na segunda mais podero- sa do mundo e, assim, convencendo os demais países a levar seriamente as suas políticas e conselhos", analisa Moniz.

O país logo compreendeu que as restrições do mercado doméstico exi- giam um movimento militar de expan- são. Assim, em 1848, a guerra forjada contra o México, o ataque e a anexa- ção do Havaí, em 1898, e, naquele mes- mo ano, o confronto com o que resta- va do império espanhol, fustigado por um movimento de libertação em Cuba. Usando um incidente com um navio americano, o USS Maine, ancorado em Havana, os EUA intervieram militar- mente em Cuba e a tomaram como uma espécie de protetorado.

ouço depois foi a vez das Filipinas, onde também se travava um movimento de liber- tação contra os espa- nhóis, que perderam

para a América o que restava dos seus domínios no Caribe e no Pacífico. Ces- sava tudo o que a antiga musa cantava e outro império se levantava. Ou, nas palavras de Teddy Roosevelt, em 1904, "a adesão à Doutrina Monroe podia forçar a América, embora de forma re- lutante, a exercer um poder de polícia internacional" no caso de "wrong doing or impotence" em países do hemisfério ocidental. O ápice desse primeiro mo- vimento ocorreu após o fim da Primeira Guerra Mundial, quando o expansio- nismo imperial alemão foi derrotado e os americanos saíram do conflito enri- quecidos e todo-poderosos.

E foi a nova tentativa tedesca de com- petir com os mercados dos EUA que le- vou Franklin Roosevelt, nos anos 1930 e 1940, a se dedicar a reverter a tendên- cia isolacionista americana e partir pa- ra o conflito. Moniz lembra as várias provocações feitas pela América ao Ja- pão e à Alemanha, e evitadas, para que ambos rompessem relações com os

americanos. A guerra, observa o histo- riador, era um imperativo categórico para Roosevelt e Pearl Harbor foi o pre- texto de que o presidente precisava. Há mesmo quem afirme que ele cutucou os japoneses ao extremo e sabia do ata- que de 7 de dezembro à base e calou- se, ainda que, palavras do secretário da Marinha, Frank Knox, Roosevelt "ex- pected to get hit but no so hurt". Mas, nota o pesquisador, nem só de armas vivem os impérios. /

Em 1944 o acordo de Bretton Woods criou o Fundo Monetário Internacio- nal, o FMI, e o Banco Mundial. "O fa- tor fundamental nas políticas do Fun- do não emanou da sua capacidade de decidir que Estado merecia assistência, mas seu princípio de condicionalida- de. Quem recebesse ajuda seria obri- gado a satisfazer determinados objeti- vos, o que outorgava ao FMI ingerência nas políticas internas de cada país", afir- ma Moniz. "A partir da Primera Guer- ra, com o enfraquecimento da França e da Inglaterra, os EUA emergiram como potência hegemônica e consolidaram essa posição após a Segunda Guerra, modelando também o sistema econô- mico internacional em conformidade com seus interesses, sob a égide do Banco Mundial e do FMI. A liberdade pela qual os foundingfathers se bateram passou a se identificar, cada vez mais, com o capitalismo de consumo, o free- enterprise. O free world passou a signifi- car o mundo do free-markef, explica o historiador.

Medo - A exceção não deixou de confir- mar a regra. Governos democratas e republicanos podiam ter divergências, mas todos, com raras exceções (Jimmy Carter, por exemplo), continuaram a exercer seu poder pelo globo pela for- ça direta das armas ou pela intervenção branca (via FBI e CIA). "O militarismo foi o meio privilegiado encontrado pe- lo capitalismo americano para sua acu- mulação de capital. Desde o início do século 20, tornou-se necessário alimen- tar continuamente a indústria bélica e os grandes negócios, nos quais milita- res e industriais se associavam, forjan- do clima de ameaças, um ambiente de medo, de modo a compelir o Congres-

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so a aprovar vultosos recursos para o Pentágono e órgãos de defesa", analisa o pesquisador. Daí a necessidade cons- tante de "novos inimigos" que eram substituídos ao longo do tempo, de co- munistas a fundamentalistas islâmicos, passando pela guerra contra as drogas. De que outra maneira, pergunta-se Mo- niz, entender a razão do aumento cres- cente do orçamento militar americano mesmo com o fim da Guerra Fria? Mais: "Os governantes e políticos americanos em seu extremado nacionalismo, jamais admitiram o nacionalismo nos povos da América Latina ou de qualquer outra região do mundo". Mas podia-se nego- ciar, vez ou outra, recorda o historiador, com ditaduras, se do interesse dos EUA, como foi o caso dos militares brasileiros, Saddam, Pinochet, entre tantos outros. Surge com força o antiamericanismo, ressaltado no Oriente Médio pela alian- ça forte com Israel. "O 'terrorismo in- ternacional', que após a revolução islâ- mica no Irã aparece nos discursos dos líderes americanos, como o novo inimi-

go, substituiu o 'comunismo internacio- nal'. Tudo para justificar os altos gastos com defesa." Não culpem só George W.

Gigante - O conflito Leste-Oeste é dei- xado de lado e a nova retórica fala do clash de civilizações, cristianismo ver- sus islamismo, tudo no bojo da questão primordial do acesso às reservas petro- líferas, pois o gigante tem pés de barro e necessita de matérias-primas. Após a primeira guerra no Iraque, reunindo militarismo e racionalismo econômico, surgem os chamados "falcões" (Wolfo- witz, Cheney, Perle, referências da atual administração americana), funcionári- os civis do Pentágono que defendiam a "guerra preventiva", atacar antes para impedir o surgimento de um rival. Com eles veio também o Consenso de Wa- shington, que encorajava a privatização, a desregulamentação das economias e a liberalização do comércio. Dos outros. "A redução do papel do Estado, o Esta- do-mínimo, significava, em meio do pro- cesso de globalização do capital, a redu-

ção da soberania dos Estados nacionais, transferindo o poder econômico para as corporações transnacionais, a maio- ria norte-americanas", avalia Moniz. Kautsky parece cada vez mais correto.

E o movimento externo foi acom- panhado internamente. "A democracia continuou, como desde os tempos de Theodore Roosevelt, identificada com o conceito de 'good government', que significava não o respeito às liberdades públicas e aos direitos individuais, mas a manutenção da estabilidade." Moniz diz que a escolha de Bush para gover- nar os EUA confirma que a democracia americana nas décadas recentes come- ça a claudicar e mostrar sinais de ter perdido a sua direção. O que não é algo tão recente, já que "a política pós-11 de Setembro não foi um turning point na política exterior dos EUA, apenas deu ímpeto a tendências que sempre existi- ram. Bush deve ser visto como um ator que recita falas consolidadas mais do que um dramaturgo que acaba de es- crever uma nova peça". •

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HUMANIDADES

COMUNICAÇÃO

Decifra-me ou devoro-te O que se esconde atrás das capas de revistas e das primeiras páginas dos jornais

CARLOS HAAG

ILUSTRAçõES

HéLIO DE ALMEIDA

o princípio era o verbo. Mas ele, sozinho, não vendia muita revista e jornal, em especial num mundo onde a luz se fez e encheu-se de imagens fotográficas. "O sol se reparte em crimes/ espaçonaves, guerrilhas/ em caras de presidentes/ bomba e Brigitte Bardot/ O sol nas bancas de revistas/ me enche de alegria e de preguiça/ Quem lê tanta notícia?" Se Caetano Veloso, em 1967, já se perdia no mar anárquico de manchetes oferecido aos passantes, imagine hoje, com televisão, internet e outros meios, como é difícil atrair um lei- tor para que ele pare, olhe e compre um dado jornal ou revista, tudo a partir de um mero pedaço de papel colorido: a capa ou a primeira página.

"A capa é a janela que conduz o leitor a um mundo ilustrado, que ele percorre todos os dias: a realidade enquanto montagem", diz o historiador Boris Kossoy, pro- fessor da USP. "O tema central da publicação apresentado apenas de forma séria não basta, pois o leitor tem uma expectativa de emoção e a revista promete isso. Nada de tédio, o que importa é o choque. A realidade deve ser estetizada para co- municar, o simples documento do fato da semana deve ser embalado com cores vivas e a capa deve 'gritar'para se destacar das concorrentes." Para o estudioso em semiótica Nilton Hernandes, que pesquisou a revista Veja, em seu doutorado re- centemente concluído na USP, a capa nega o caos do cotidiano humano ao eleger o grande "fato" para o qual todos os outros devem se subordinar, hierarquizando o resto dos acontecimentos. "Isso é parte de um ritual aguardado pelo leitor", explica. Esse é fato razoavelmente recente.

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"Quando os jornais surgiram no Bra- sil, no século 19, não havia diferença en- tre a primeira página e o resto do jornal. Só quando a imprensa foi se industriali- zando é que foi surgindo essa distinção, cuja origem também pode ser explicada pela ligação forte, numa sociedade co- mo a nossa, de pouca tradição letrada, entre palavra e imagem", diz o historia- dor Marco Morei, autor de Palavra, ima- gem e poder, da editora DPA. "As pri- meiras páginas ou capas são uma atualização dos murais, pasquins, car- tazes, sem falar dos rumores de boca a orelha." Mas se o rumor de boca para a orelha, no caso dos jornais, é imediato, no das revistas ele demora mais a che- gar. O tempo divide a primeira página, do jornal, a capa, da revista, e determi- na como eles devem se aproximar do seu público. "A capa é mais 'vendedora que a primeira página, pois ela tem ba- sicamente uma matéria que destaca. O

jornal tem compromissos com os fatos dominantes da véspera", lembra o jor- nalista Luiz Weiss. O jornal dura no dia; a revista fica atual por sete dias, dando um tempo maior para as pessoas se sen- tirem informadas. Cada qual, então, as- sume a sua aproximação do "comprador de notícias". Assim, a primeira página funcionaria, nota o também jornalista Matinas Suzuki Jr., como uma "amos- tra grátis, uma história sortida e disper- sa, disponível a todos que podem vê-la presa às bancas". "Ela é a folha mais im- pessoal do jornal e a que procura o pú- blico mais indiferenciado: nela todos devem se reconhecer", observa. É o po- lêmico ideal do "espelho do mundo".

"Nos jornais, a luta pela capa é tare- fa cotidiana. Inúmeras fotografias são vistas até que uma seja eleita. Trabalha- se com riscos calculados, controlados pela experiência dos editores, e, apesar da pressão do fechamento, o equilíbrio

da página é sempre procurado. A pri- meira página não tem a necessidade do espetáculo, com que lidam as capas das semanais", ananlisa Kossoy. "Quando, por exemplo, várias primeiras páginas tra- zem a mesma foto, com o mesmo as- sunto, aceitamos isso naturalmente, ao contrário da competição das revistas." Ao mesmo tempo que isso gera a supos- ta maior "seriedade" dos jornais, esse "despojamento" continua atrelado a uma necessidade de venda, embora o discurso oficial possa ser mais "ético" e "objetivo". "O jornalista vai além: ele não só assume o olhar do leitor como atribui a si mesmo a missão moral de orientar a visão do público. Em nome do espec- tador da notícia, ele disciplina o mun- do, hierarquiza os acontecimentos", acre- dita Suzuki. Nesse movimento, o leitor, de sujeito, vira espectador.

"Na primeira página, maquiada, além de seduzir o leitor, há a indução

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do sujeito da notícia: diz-se que o que acontece e quem foi o responsável, ope- ração disfarçada na conjugação em ter- ceira pessoa. Considera-se que o leitor precisa ter seu mundo organizado na ca- pa, ao qual ele assiste. Não é sujeito, mas objeto a ser seduzido, dominado. Note-se que será a primeira pági- na a conseguir isso", afirma Ana Cristina Silva, autora da tese de doutorado O tempo e as imagens de mídia, da Unesp. "O homem que olha a primeira página es- tendida na banca tem o seu pensamento onde apenas ele sabe, é silencioso. Esse ser é desqualificado como sujeito e leitor. O mundo foi para ele _ mastigado, a ele é oferecido um mundo seguro, controlado, com um certo 'domínio' sobre o acontecer." E quem são esses que lêem tanta notícia? "O problema não é apenas que poucos lêem, mas esses poucos lêem mal. Não basta ler, não basta ler muito, é preciso ler bem", lembra o jornalista Caio Túlio Costa, do Instituto DNA Brasil. Afinal, numa primeira página há muito o que ver e nem sempre imagem e texto pare- cem estabelecer um casamento ideal e

claro. "Isso é ilusório, pois essa desco- nexão abre um campo para a metáfora como composição de significados por meio da justaposição da sintaxe visual, imagens e textos", explica Elizabeth Luft, doutora em semiótica.

persuasão, no caso dos jornais, está justamente na ausência de significados ou na falta de cren- ça de que determinada cons- trução metafórica tenha sido 'arquitetada'. Para não se sentir enganado, o leitor pode optar pela falta de sentido, no en- tanto ele já está envolvido pelo percurso metafórico. A sensação de que algo é estra-

nho numa primeira página permanece e o poder desse tipo de metáfora é mui- to mais emotivo", avisa.

Ainda assim, avalia Túlio Costa, os jornais "estão num mato sem cachorro, sem norte e sem guia". "As capas são como uma coleção de déjà vu em rela- ção ao que internet, rádios e TVs de- ram no dia anterior e nenhum jornal, nem no exterior, vem conseguindo su- perar esse desafio. Um scholar america-

no acredita que os jornais impressos vão desaparecer em 2043", conta. Já as revistas vão bem, obrigado.

A ponto mesmo de se verificar, nes- sa atual crise política, uma inversão de valores consagrados. "No Brasil, quem tem rabo preso deixou há muito de te- mer as primeiras páginas do dia seguin- te. Teme as capas das revistas no fim da semana. O que se vê, cada vez mais, são as manchetes dos grandes jornais serem, por exemplo, a capa da Veja transplanta- da", analisa Weiss. Os magazines surgem nos EUA na virada do século 20, quan- do o país se industrializou e os leitores se transformaram em consumidores. "A dinâmica da revista de grande circu- lação atual é o leitor visto como consu- midor em potencial e o editor torna-se um especialista em grupos de consumi- dores. Uma vez encontrada uma fórmu- la de atração, ela tende a se repetir, mês a mês, ano após ano. Afinal, é um mer- cado com taxa de mortalidade altíssima e mesmo os líderes nunca estão numa posição segura. Para sobreviver, uma re- vista tem de acompanhar as mudanças de seu público", observa Maria Celeste Mira, autora de O leitor e a banca de jor- nais, obra que teve o apoio da FAPESP.

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É o plugging, como analisado por Ador- no e Horkheimer, esse sistema de enre- damento do leitor que, enquanto conso- me, tem seus gostos sondados para que a cada semana se possa agradá-lo ainda mais. Não sem razão, enquanto os jor- nais minguam, a Veja é a quarta maior revista do globo. "Nessa era do marke- ting, é imprescindível conhecer o leitor, que obriga todas as revistas a se refor- mularem constantemente, que leva as editoras a sondar os seus desejos." Para resistir, é impossível não morder a maçã.

"Uma revista como a Veja tem de apagar da memória do leitor a sua maior limitação: o grande intervalo de tempo entre a coleta de dados, a edição e a dis- tribuição nas bancas. O lapso temporal gera uma série de inconvenientes, em es- pecial após a internet etc. O principal objetivo de uma capa de revista, não só de Veja, está ligado principalmente à busca do efeito de atualidade para con- correr com as mídias mais rápidas", ana- lisa Hernandes. Segundo o pesquisador, a manchete é o resultado dessa busca, que deve resultar num produto que tra- ga uma sensação de presente alargada, um "agora" que, paradoxalmente, deve manter-se vibrante enquanto a revista

tiver que ser consumida. A antecipação, o "furo", é um caminho. Mas, na maio- ria dos casos, a interpretação funciona como elemento de atualização que, uni- da ao fato gerador, cria a sensação de novidade. "Podemos afirmar que, para manter o efeito de atualidade de deter- minadas notícias, em função do lapso entre coleta e divulgação, revistas como Veja devem obrigatoriamente produzir um grande número de textos interpre- tativos ou opinativos."

O veículo revista nasceu sob a égide do tempo contado: homens, e principal- mente mulheres, precisariam o máximo de informação no mínimo tempo possí- vel, como um fastfood editorial. O mode- lo de Veja foi a revista Time americana, cujos princípios eram a organização das notícias em setores e "mostrar" para o leitor o que elas significavam, sem ne- nhum ideal de neutralidade ideológica ou imparcialidade. "A partir de Veja será criada uma nova série de departamen- tos, como os de pesquisa de mercado, marketing e assinaturas, e foram essas mudanças que livraram a revista do fra- casso inicial", lembra Maria Celeste, cuja proposta era "estampar na capa o assunto que marca a semana". O mesmo

se deu com IstoÉ e, mais recentemente, com Época. "Todas vêm optando por fa- lar sobre os interesses imediatos dos 10% da população que têm a capacidade fi- nanceira para sustentar a sobrevivência dessas publicações diante da concorrên- cia dos novos meios de comunicação", explica Maria Alice Carnevalli, autora da tese de doutorado "Indispensável é o leitor", defendida na ECA-USP. Anali- sando e comparando as edições das três semanais em 2000, a pesquisadora des- cobriu que 50% das manchetes de capa, ou seja, metade das capas analisadas, trouxeram fait divers (dietas, sexo, saú- de, como manter seu emprego etc), en- quanto 27% trataram de assuntos fac- tuais desvinculados da periodicidade ou saíram com furos de reportagem. Os assuntos ligados diretamente à semana ficaram em último lugar, com apenas 23% das capas, sendo o caso mais acen- tuado o de Veja, que dedicou aos acon- tecimentos da semana apenas seis capas durante um ano, ou 12% do total. ,

Analistas da Meio e Mensagem des- cobriram que quem pode comprar re- vista é consumidor em potencial e, as- sim, ela se torna a mídia privilegiada do mercado publicitário. Curiosamente, as

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revistas são, ao mesmo tempo, conside- radas como "meios de maior credibili- dade" e "transmissoras de idéias". "As ca- pas trazem um potencial de leitura que sonda qual é o norte do público que lhe dá legitimidade, em que se pauta, qual é o seu imaginário", afirma Ana Cristi- na. "Pesquisas mostram que política não vende, a não ser no caso de cri- ses graves, como o caso do pre- sidente Collor e agora. Elio Gas- pari costuma dizer que, para baixar a vendagem de uma re- vista, basta colocar temas liga- dos ao Congresso", conta Ma- ria Alice. Vários fatores tiraram das revistas o interesse em aprofundar na economia e na política. O fim do regime mili- tar, por exemplo, foi um deles, já que, observa a pesquisadora, havia desaparecido a posição ideológica de contestação à ditadura e os efeitos da inflação galopante sobre a economia. Da mesma forma, as privati- zações fizeram com que o leitor perdes- se o interesse pelo Estado, como ocor- ria quando oito a cada dez empregos estavam ligados a uma esfera governa- mental. "Hoje a obrigação da revista se-

manal é dizer ao leitor que ele pode ser feliz, viver menos angustiado, cuidar me- lhor da saúde e conseguir se dar bem numa empresa privada." Só assim po- de-se entender por que as três maiores semanais do país deram como capa o novo livro do mago Paulo Coelho. Mas nem tudo é fait divers.

omo observa a professora Celes- te Mira, a atuação política ini- cial de Veja fez dela uma revista de amplitude nacional que con- quistou o mercado e hoje sua força ideológica reside no seu poder mercadológico. "As capas das revistas têm, de certa forma, o poder da agenda setting, ou se- ja, de colocar temas em pauta, criar opiniões e mudar o país. Se nem sempre consegue impor o

que pensar, seguramente impõe sobre o que pensar. Podem estar brincando com fogo", avalia o historiador Fernan- do Lattman-Weltman, da FGV. "Uma revista não é um partido político e pre- cisa avaliar o impacto que sua manche- te pode ter sobre a sociedade e a demo- cracia brasileira ao defender certas teses,

como a capa de Veja sobre o desarma- mento, ou divulgar informações sem ter provas, como no caso das capas sobre a ligação entre PT e as Farcs ou o ouro de Cuba." O cientista político Wander- ley Guilherme dos Santos, do Instituto Universitário de Pesquisa do Rio de Janeiro (Iuperj), vai ainda mais longe: "A mídia é capaz de construir não só a agenda pública de discussão, mas a agen- da do governo. Enquanto os partidos competem pelo poder, a grande im- prensa disputa o monopólio de dizer o que fazer com ele. Nas democracias es- táveis, a capacidade de uma capa de re- vista ou jornal de afetar a estabilidade institucional é reduzidíssima".

Tudo se amplifica, observa Hernan- des, pela tendência das revistas, em suas manchetes, de se aproximar do leitor, do "você". "É algo como nós somos o seu veículo, nós vamos falar pela maioria si- lenciosa que não aparece nos discursos intelectuais'", completa Weltman, que lembra como os veículos aprenderam, com os tempos de censura, a passar, com precisão, mensagens subliminares ao seu leitor, só que agora num outro viés ideológico e de mercado. "O público de Veja se sente inteligente por ler a revis-

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ta, por fazer parte do clube, ser diferen- te dos outros sem ter que se assumir de uma forma ideológica. O jornalismo dá ao leitor a confirmação de um status, embora, em verdade, a revista, em boa parte do tempo, esteja apenas falando o que ele, o leitor, quer ouvir." Num para- doxo interessante, os porta-vozes da ob- jetividade, que têm suas vendas calca- das nessa isenção, são justamente os mais parciais. Weltman lembra que a Folha criou o espírito do "rabo preso com o leitor" para vender mais e ganhar fide- lidade do público, um jornal com "elei- torado". "Veja está abusando dessa prá- tica e age com seu grupo com a lógica de um partido: assim como há quem use a estrelinha do PT na lapela, você tem quem diga que é leitor da revista."

Há mesmo quem analise as capas por meio de suas cores e cortes de fotos, como Luciano Guimarães, autor de As cores na mídia e professor da Unesp. "No jornalismo brasileiro, durante a censu- ra militar, a mensagem de entrelinhas foi consagrada como forma de escapar ao controle. Hoje não haveria mais ne- cessidade disso. No entanto, o que se po- de perceber é que esses recursos são atualmente utilizados para alterar de

forma obscura o imaginário daqueles que consomem mídia, principalmente em períodos que antecedem o processo eleitoral", avisa. Assim, observa o pes- quisador, o uso do azul e do amarelo nas capas cujos temas eram positivos ou li- gados ao governo anterior, cujo partido usa as mesmas paletas. Em contraposi- ção, o vermelho aparece associado, sal- vo exceções, como cor da negativida- de, da esquerda e, quando associado ao preto, presente nas capas que trataram de corrupção, golpes etc. Outro fator importante é sempre "personalizar" as crises com fotos de pessoas específicas: inflação associada ao ministro da Fa- zenda, corrupção a um dado dirigente etc. De preferência, para acentuar o as- pecto negativo, o retrato da "crise per- sonificada" aparece em dose.

Se essa tradição promete ficar, a preferência pelo fait divers está em qua- rentena. Uma pesquisa recém-divulga- da, The State of News Media 2005, um raio X da mídia americana, revela que a estratégia de buscar assuntos genéricos e leves não está mais dando resultado e, por lá, as revistas estão perdendo leito- res, que, além de terem um leque de re- vistas especializadas para poder esco-

lher, agora desejam conteúdos mais densos. "Aqui isso ainda não está ocor- rendo. Embora não se possa ter certeza, já que a atual crise política reúne o mer- cado e a ideologia. As revistas podem manipular as informações político-par- tidária-econômicas e ao mesmo tempo chamar a atenção em suas capas daque- les que não estão nem aí para a política, já que a crise de agora é um espetácu- lo midiático puro", observa o cientista político Eduardo Ferreira Souza, autor de Do silêncio à satanização, da editora Annablume. Para Caio Túlio Costa, vai ser complicado fugir das capas asserti- vas, opinativas. "Depois de deitar e ro- lar com o conceito de objetividade, a indústria de comunicação viu esse ideal se desgastar e passou a tentar ser, de verdade, objetiva. Mas com esse mar de blogs, sites etc, uma a rede rasteira, opi- nativa, parcial, houve um refluxo, o que reforçou novamente a necessidade de a indústria ser assertiva, ainda que im- parcial. E isso é impossível." Kossoy é ainda mais pessimista: "Capas sóbrias não sobrevivem numa cultura que bus- ca emoção e reality shows". É o dilema da esfinge sem compaixão: "Eu te deci- fro e te devoro". •

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HUMANIDADES

TEATRO

O teatro e a invenção da estrela Pesquisadora investiga como e por que a modernização do palco brasileiro a partir da década de 1940 abriu espaço para a consagração de grandes atrizes

elembrar os maiores personagens do teatro brasileiro nos últimos 50 anos remete a, principalmente, nomes de grandes atrizes - Cacilda Becker, Fernanda Montenegro, Maria Delia Costa, Tônia Carrero, Bibi Ferreira, Cleyde Yaconis e Marília Pêra, entre outras. Até a década de 1940, porém, o palco pertencia aos homens, que não se furtavam em usar roupas femininas para representar o sexo oposto. Até então, a mulher desempenhara um pa- pel secundário tanto diante da platéia quanto nos basti- dores. Não havia também a função de diretor e a drama- turgia nacional estava mais para os espetáculos populares

de comédia, ancorados no "ponto", que ajudava os atores a lembrar o texto. Dois fatos aparentemente isolados se tornariam fundamentais para mudar esse

contexto e, assim, levar à modernização do teatro brasileiro e a redefinir a presen- ça da mulher na representação. Primeiro, a turnê da companhia francesa liderada por Louis Jouvet (1887-1951) pela América do Sul, em 1941. Durante sete meses, ele e mais 25 pessoas - além de 35 toneladas de equipamentos - encantaram 11 países com os mesmos luxuosos cenários parisienses. No Brasil, apresentaram-se no Rio de Janeiro e em São Paulo. Jouvet ainda morou quatro meses no Rio.

Soma-se a isso o processo de "metropolização" de São Paulo nos aspectos cultu- ral e intelectual. Ou seja, por meio da consolidação da Universidade de São Paulo (USP), com a vinda de professores europeus - entre eles, Jean Maugué, Claude Lévi- Strauss, Pierre Monbeig e Roger Bastide —, a construção do Museu de Arte de São Paulo (Masp), o movimento da revista cultural Clima, a fundação da Companhia Cinematográfica Vera Cruz e a chegada da televisão em 1950. O evento mais repre- sentativo para o palco, porém, foi a fundação, em 1948, do Teatro Brasileiro de Co- média (TBC), considerado um marco na dramaturgia brasileira por sua profissiona- lização e modernização temática.

O que teriam a ver, entretanto, Louis Jouvet, o TBC e o destaque que ganharam as atrizes? A resposta está sendo investigada por Heloísa Pontes, professora do De- partamento de Antropologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e pesquisadora do Pagu, Núcleo de Estudos de Gênero da Unicamp. "Presenças mar- cantes - História social e etnográfica das relações de gênero no teatro brasileiro,

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1940-1968" é um trabalho de livre do- cência que está em sua etapa final e deve ser concluído no próximo ano, quando deverá ser publicado em livro.

Ancorada em ampla pesquisa, He- loísa está próxima de fechar um que- bra-cabeça que vai nos ajudar a ter uma visão científica de tudo que aconteceu com o teatro brasileiro na segunda me- tade do século 20. Seu propósito é mostrar a transformação fundamental na cena nacional a partir de década de 1940 - cujo marco simbólico foi a en- cenação de Vestido de noiva, de Nelson Rodrigues (1912-1980), em 1943.0 tea- tro e as classes sociais tiveram, então, uma proximidade em termos da cons- trução de uma linguagem moderna do perfil social, intelectual e cultural de seus praticantes.

ssa história co- meçou a ser contada com o ensaio "Louis Jouvet e o nas- cimento da crí-

tica e do teatro brasileiro modernos", publicado na revista Novos Estudos CE- BRAP, em novembro de 2000. Depois a pesquisa foi ampliada para incluir o caso da atriz francesa radicada no Bra- sil Henriette Morineau (1908-1990), que também participou da segunda turnê do ator pela América Latina. Heloísa con- ta que estabeleceu como pano de fundo "o exame dos deslocamentos, das redes de sociabilidade e das relações de ho- mens e mulheres que atravessaram fron- teiras nacionais e de gênero". Assim pro- curou rastrear o impacto e a presença dos dois artistas franceses na cena tea- tral brasileira do século passado.

Jouvet é descrito não só como um grande ator e diretor, mas um observa- dor e ensaísta atento às experiências teatrais. Deixou vários escritos sobre dramaturgia, cenografia, direção e con- tribuiu decisivamente para a renovação da cena teatral francesa. Sua inusitada vinda para a América do Sul - que se prolongou por quatro anos, devido à guerra - colocou-o em conexão com o

Brasil. Coube a ele trazer alguns dos es- petáculos teatrais de ponta na Europa e até mesmo influenciar diretamente na montagem de Vestido de noiva, consi- derada marco zero do moderno teatro brasileiro.

Dirigida pelo polonês Ziembinski e encenada por Os Comediantes, a peça foi montada, segundo depoimentos de vários ex-integrantes do grupo, graças também à influência que Jouvet exer- ceu sobre eles no período. Em contato com jovens talentos brasileiros, o fran- cês teria sugerido que rompessem com a tradição naturalista do teatro e ado- tassem a idéia de que o texto é central, fundamental, quase sagrado. Cabia ao diretor lhe dar voz, o que estabelecia sua necessidade e importância. Disse ainda que, mesmo assim, só alcançaria nível internacional quando surgisse um dramaturgo à altura. Nelson Rodrigues preencheu de imediato o posto, i

Henriette Morineau, em vez de vol- tar à França com Jouvet, passou a mo- rar no Brasil. "Ela teve uma atuação im-

portante no teatro carioca, contribuiu diretamente na formação de vários ato- res e atrizes." Como Fernanda Montene- gro, considerada a maior atriz viva do país. Em 1953, na Companhia de "Ma- dame", como era chamada Morineau, Fernanda deu a guinada necessária pa- ra a sua profissionalização como atriz, graças à influência decisiva que dela re- cebera. "Ela me fez ver que eu tinha en- contrado uma profissão qualificada, dis- ciplinada, conseqüente." Para Fernanda, Morineau mantinha sempre a distância própria de uma primeira figura do elen- co, não permitia intimidades, mas for- java sempre um caráter teatral.

A chegada da missão francesa, cujos professores passaram a fazer parte da USP, contribuiu decisivamente para uma transformação capital nos hábitos intelectuais. "Eles mostraram a indisso- ciabilidade entre teoria, método e pes- quisa e insistiram que os modernos métodos de investigação das ciências humanas deveriam ser aplicados aos estudos de dimensões variadas da cul-

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tura e da sociedade brasileiras", diz He- loísa. Enquanto isso, diretores estran- geiros - como Adolfo Celi, Gianni Rat- to, Ruggero Jaccobbi - revolucionaram as artes cênicas, ao implantar novos procedimentos num sistema cultural diverso e complexo, sem precedentes na história brasileira.

Essa investigação levou-a a concluir que "havia uma clara demarcação de fronteiras simbólicas entre o trabalho dos diretores, todos eles homens, e o das atrizes". Apesar disso, acrescenta, não se deve perder de vista que mais cedo do que em outras esferas da atividade cul- tural as mulheres que perseguiram a carreira no palco conquistaram o bem simbólico mais prezado nesse domínio: "nome próprio" e tudo que dele decor- reu - notoriedade, prestígio e autorida- de. "Exemplo vigoroso da importância das mulheres no interior de um campo de produção cultural, o caso do teatro abre pistas instigantes para adensarmos a etnografia das relações de gênero a partir de novas chaves analíticas."

O Teatro Brasileiro de Comédia vi- rou pólo difusor de uma nova era tea- tral porque, além de dar importância ao texto e à direção, viu-se a virada de papéis para as mulheres. Elas passariam a protagonizar peças, enquanto os ato- res viravam empresários. Como explicar isso? "Para entender as condições sociais, intelectuais, institucionais e as relações de gênero que estão na base da forma- ção e da consolidação do teatro mo- derno, é preciso destacar ainda o papel central das atrizes que saem do TBC e formam suas companhias, quase sem- pre com seus parceiros amorosos."

Elite - Nesse processo surgem elemen- tos para se pensar a história social da cultura no Brasil. Um dos aspectos mais importantes é que o teatro passou a atrair um público novo e influente, que era a elite paulistana - enquanto, no Rio, continuaria com programas dirigi- dos para platéias mais populares. Nesse momento apareceram dois nomes re- novadores - além de Nelson Rodrigues,

Jorge Andrade (1922-1984). "Por se- rem uma atividade muito importante na agenda intelectual e cultural, as pe- ças começam a ser discutidas, fazia-se teatro de repertório com disciplina muito grande, de preocupação autoral e presença de diretores estrangeiros."

O esforço de Heloísa aponta alguns questionamentos e exclusões para ex- plicar o fenômeno. "Se considerar, por exemplo, a necessidade de adotar a mulher para papéis femininos, é deixar de lado que uma das essências do tea- tro está em burlar convenções." Quer dizer, durante séculos, coube aos ho- mens representar papéis femininos com a cumplicidade e a licença das platéias. "Os antropólogos sempre mostraram que existe uma relação for- te entre corpos, marcas no corpo, pro- cesso de renomeação e aquisição de prestígio. Deixando de lado essa ciên- cia, a sociologia da cultura tem revela- do correlação entre corpo, prestígio e aquisição de nome próprio."

Assim aconteceu com as atrizes. Começaram a representar o novo tea- tro que surgia e que atingiria seu clí- max no decorrer da década de 1960. Aliás, a beleza não era um elemento cen- tral nessa consagração do sexo femini- no. Pelo contrário, podia servir como um impedimento. Que o digam Tônia Carrero e Maria Delia Costa, que tive- ram de provar que tinham mais talento que um rosto bonito. No caso de Tônia, o elogio da crítica só veio duas décadas depois, em 1965, quando fez o papel de uma prostituta em A navalha na carne, de Plínio Marcos. Para confirmar essa regra, Cacilda e Fernanda estavam lon- ge do padrão de beleza vigente.

Atualmente, Heloísa desenvolve a última parte da pesquisa: dimensionar a importância da televisão na consagra- gação desse novo teatro que surgia. Sim, porque, na primeira década, como ter um aparelho de TV era um luxo per- mitido somente às famílias ricas, esta- beleceu-se uma programação elitista na qual os chamados teleteatros - pe- ças escritas para televisão e transmiti- das a partir do palco - ocuparam o ho- rário nobre da programação. Também vai comparar a trajetória das grandes estrelas, origem social e inserção na ce- na teatral antes e depois do TBC, pre- sença na televisão e relação com os di- retores estrangeiros. •

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RESENHA

No fio da navalha Textos de Novais se esbatem entre a arte e a ciência

JOSé JOBSON

DE ANDRADE ARRUDA

Todos aqueles que privamos da intimidade

intelectual de Fernan- do Novais bem sabe- mos: lê muito, reflete como poucos, escreve moderadamente, por- que extremamente exigente com a natureza do conteúdo traduzido na sua escrita. Um perfeccionista, pois se esme- ra no burilar detalhado de seu texto que, fina- lizado, resplandece o brilho da obra de arte: um clássico. Este é o qualificativo justo para seu Por- tugal e Brasil na crise do antigo sistema colonial, que, desde sua primeira edição, em 1979, trans- formou-se em referência incontornável para to- dos os estudiosos do período colonial. Impecável no seu acabamento, modelar no perfeito entrelaça- mento entre forma e conteúdo. Simples; sóbrio; sem excessos ornamentais; correto; apurado; es- tético; um texto imorredouro, independentemen- te das alterações de conteúdo e senso explicativo que a pesquisa ulterior viesse a prodigalizar. Nes- tes termos, para além de uma obra histórica, transformou-se numa obra de ficção histórica, de refinado acabamento literário, pureza de ex- pressão, originalidade e forma irrepreensível. Um modelo a ser imitado no gênero; lido e co- mentado nas escolas; um clássico na acepção do termo por ser sempre moderno; pedagógico e paradigmático, por seu vigor que alimenta a re- novação historiográfica, mesmo que tomado em seu viés antitético.

Definitivamente alojado na galeria dos gran- des intérpretes do Brasil, o mais novo professor emérito da USP brinda a comunidade científica e os leitores em geral com seu Aproximações - Es- tudos de história e historiografia, primorosa edi- ção que merece o autor e a editora Cosac Naify. É preciso que se diga que não foi o ego do autor que originou a obra. Foi a invenção de seus alu- nos de pós-graduação que, reunidos em semi- nário comemorativo pela passagem dos 70 anos de Fernando Novais, decidiram registrar a data

Aproximações - Estudos de história e historiografia

Fernando Novais

Cosac Naify

440 páginas

R$ 69,90

com esta publicação. Uma selecta apreciável de tex- tos do autor de natureza vária, subdivididos em dois agrupamentos, um de história, outro de his- toriografia, completada por compilação de cinco entrevistas por ele conce- didas entre 1989 e 2004, que, ao longo de 64 pá- ginas, fala de seu mundo da história, um quase

ensaio de ego-história. A coleção de estudos da primeira parte inclui textos, em sua grande maio- ria, de difícil acesso a seus leitores. Mas incluem também reflexões seminais, que vertebram sua obra inteira e, adaptados, integram seu clássico já referido. A seleção realizada exclui textos con- sagrados, a exemplo do capítulo sobre o "Capi- talismo tardio e sociabilidade moderna", publi- cado no volume 4 da História da vida privada no Brasil, em parceria com João Manuel Cardoso de Mello, o que talvez se explique por se alojar fora do período colonial, que concentra o gros- so de sua produção intelectual. Na segunda par- te, o objeto de sua atenção desloca-se da história em si para a reflexão sobre seus cultores, um cer- rado diálogo com as obras históricas, exercício historiográfico do mais alto nível, sobretudo na tradução temporal do significado de grandes in- térpretes do Brasil, tais como Capistrano de Abreu, Celso Furtado, Caio Prado Júnior, Sérgio Buarque de Holanda, entre outros.

O título é criativo. Foge ao batido Selected Es- says. Tem a vantagem de revelar as inquietações que se abatem sobre o historiador, formado na melhor tradição do marxismo crítico, mas fusti- gado pelo vendaval do pós-modernismo histo- riográfico, que minou algumas de suas certezas absolutas, sobretudo no que diz respeito ao pa- pel da cultura no processo histórico. Aproxima- ções transmite ao leitor a sensação de um título incompleto, pois bem poderia ter sido Aproxi- mações à história, mas ele se explicita no subtí- tulo: Estudos da história e historiografia, grafado na sobrecapa. Não é de menor importância elu- cubrar sobre o significado do título na trajetória do próprio Fernando Novais, assumido como

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objeto historiográfico. Enquanto Aproximações alude ao literário, remete ao alegórico, uma das formas do discurso pós-modernista apontado por Hydnum White, o subtítulo traciona a ale- goria para a materialidade objetiva, a história tout court. Aproximações indica a dificuldade, ou mesmo impossibilidade, de se chegar ao conhecimento abso- luto. Uma concessão à Nova História a tisnar sua heterodo- xia marxista, mas Aproximações remete também ao cálculo, ao espírito analítico que se aloja no coração do constructo mar- xista em que se enraíza Fernan- do Novais, sobejamente conhe- cido por sua vinculação com o distinguido Seminário Marx. A acepção resultante seria enten- der por aproximações a busca de uma síntese entre velha e nova história, que somente um his- toriador que realizou a longa travessia da segunda metade do século 20 como objeto e sujeito da história poderia realizar. Por esta via, aproxi- mações têm também o sentido de recolha de memória, de avaliação de trajetória intelectual.

O título remete, portanto, a uma concepção histórica que se esbate entre a arte e a ciência, dimensão científica que, contudo, prevalece no conteúdo do livro, pois em sua grande maioria foi produzido entre os anos 1950 e 80, fase de hegemonia inconteste, entre nós, das interpre- tações alicerçadas no marxismo. A complexi- dade historiográfica de nosso tempo se reflete no corpo seleto de pesquisadores, professores e intelectuais formados por Fernando Novais. Expressa-se na apresentação de Pedro Puntoni, que sobreleva a dimensão marxista de seus tex- tos; na "orelha" de Laura de Mello e Sousa, que enfatiza sua abertura para a dimensão cultural. Ambos, Pedro e Laura, belos exemplos da aber- tura intelectual de Fernando Novais, sempre disponível a acolher o ar fresco das renovações historiográficas, sem cair nos modismos fáceis ou abandonar as convicções longamente acalen- tadas, um espaço de criatividade para seus dis- cípulos e amigos, não obrigados a seguir a fatu- ra do mestre.

Há, visivelmente, dois Fernandos; filhos uni- vitelinos do perseverante mestre-escola Laurin- do Novaes Júnior. O segundo Fernando Novais nasce em 1997, no texto Condições da privacida- de na Colônia, que, por sua força teórica e meto- dológica, poderia ter figurado na segunda parte do livro. Travejado no velho e bom marxismo,

rais está na galeria dos grandes intérpretes doBra;

teve que responder ao impacto da Nova Histó- ria, da tarefa de dirigir uma coleção sobre a His- tória da vida privada no Brasil. Em meio ao re- nhido combate entre historiadores ancorados na visão de totalidade, epistemologicamente enrai- zados no marxismo, e aqueles dotados de uma

visão fragmentária, narrativa, avessa ou mesmo hostil aos re- cursos da teorização no seu pri- vilegiamento de um relativismo subjetivo, Fernando Novais in- corporou a sábia virtude da me- diação.

No prefácio da obra, não constante desta coletânea, critica a Nova História por não elaborar um aparato conceituai adequa- do à abordagem dos novos te- mas, apontando aí sua fragilida- de essencial pelo acentuamento do caráter narrativo, reconhe- cendo na própria abertura para novas temáticas e o conseqüente enriquecimento do discurso his- toriográfico sua virtude prima-

cial. Para contornar a sensação transmitida pela Nova História, a de pairar no ar, em permanen- te suspensão, por não trabalhar as formas de es- truturação da sociedade, do Estado, da vida ma- terial, propôs um novo arranjo metodológico, através do qual os fragmentos se incrustassem na reconstituição mais compreensiva do pro- cesso histórico, repondo o cotidiano da vida privada na formação histórica brasileira, enla- çando de modo renovado velha e nova história. É por essa via que, sem abrir mão dos pressu- postos mais gerais, implícitos nas determina- ções do antigo sistema colonial, repõe a escravi- dão como relação social dominante, a partir da qual perscrutaria a esfera do cotidiano e da inti- midade, definida pela ambigüidade presente na descontinuidade, desconforto, instabilidade, pro- visoriedade, desterro, que emblematizam a vida na Colônia.

Por esta via, vislumbramos uma saída, um caminho estreito, nos dizeres de Roger Chartier, para quem rechaça, ao mesmo tempo, a redução da história a uma atividade literária de simples curiosidade, livre e aleatória, e a apreensão de sua cientificidade, um reduzido espaço de mano- bra para o historiador que quiser, como Fer- nando Novais, equilibrar-se no fio da navalha, que é operar entre a história artefato literário e a história discurso científico.

JOSé JOBSON DE ANDRADE ARRUDA é historiador e professor titular da USP/Unicamp/USC.

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LIVROS

Mapas e história: construindo imagens do passado Jeremy Black Edusc 424 páginas, R$ 62,00

Um fascinante e inovador estudo sobre o mapeamento do passado e de como ir de um lugar para outro nem

sempre foi uma mera questão de análise geográfica. O autor, professor da Exeter University, na Inglaterra, inicia o seu livro com uma historiografia dos atlas e mapas. Ao longo do caminho vamos conhecendo como esse mapeamento podia servir a interesses alheios, sejam ideológicos, sejam teológicos. Como o mapa da Guerra Fria, que "unia" URSS e EUA.

Edusc (14) 3235-7111 www.edsuc.com.br

Carta a Christophe de Beaumont e outros escritos sobre religião e moral Jean-Jacques Rousseau Estação Liberdade 237 páginas, R$ 37,00

Esta edição traz reunião inédita em língua portuguesa de cartas e textos

do filósofo francês Jean-Jacques Rousseau. O livro foi lançado na programação do Colóquio Rousseau, na Unicamp, realizado em outubro. São cartas dirigidas a amigos do pensador, como as Cartas morais, a Carta ao senhor de Voltaire, as Cartas a Malesherbes e, é claro, a famosa Carta a Beaumont.

Estação Liberdade (11) 3661-2881 www.estacaoliberdade.com.br

História econômica: estudos e pesquisas Alice Piffer Canabrava Editora Hucitec/Editora Unesp/Fipe 315 páginas, R$ 40,00

Uma das figuras de proa da moderna historiografia econômica brasileira, Alice Canabrava tem aqui

agrupados os seus melhores textos e análises. Entre os principais artigos dessa antologia: "Uma economia em decadência", "Terras e escravos", "As chácaras paulistanas", "A influência do Brasil na técnica do fabrico de açúcar nas Antilhas francesas e inglesas".

Editora Unesp (11) 3242-7171 www.editoraunesp.com.br

Geraldo Ferraz e Patrícia Galvão: a experiência do suplemento literário do Diário de S. Paulo, nos anos 40 Juliana Neves Annablume/FAPESP 214 páginas, R$ 35,00

Entre 1946 e 1948, o extinto Diário de S. Paulo publicou um suplemento sobre literatura editado pela escritora e ativista Pagu e seu marido, o crítico de arte Geraldo Ferraz. São Paulo se transformava em metrópole e os dois conseguiram reunir as cabeças pensantes da época moderna.

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As mulheres ou os silêncios da história Michelle Perrot Edusc 520 páginas, R$ 68,30

Um livro que virou clássico entre os estudos sobre gênero e feminismo. A historiadora da Universidade de

Paris mostra as muitas dificuldades enfrentadas pelas mulheres na construção de suas reais identidades. Os obstáculos iniciam-se pelo chamado "apagamento" dos traços públicos e privados do sexo feminino no século 19, o que dificulta para os cientistas sociais e historiadores a localização da mulher dentro de contextos sócio econômicos. O livro mostra como se deu esse "apagar" e como ele foi superado hoje.

Edusc (14) 3235-7111 www.edusc.com.br

Independência: história e historiografia István Jancsó (organizador) Editora Hucitec/FAPESP 934 páginas, R$ 120,00

Resultado do Seminário Internacional Independência do Brasil: História e Historiografia, esse

imenso compêndio é uma fonte preciosa de pesquisa para todos aqueles que estudam o tema. Entre os vários artigos: "A visão estrangeira da independência do Brasil"; "A independência brasileira na historiografia portuguesa"; "A retórica da recolonização", "Independência no papel".

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94 ■ DEZEMBRO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP 118

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CLASSIFICADOS PeiqeTeCniiiiilFAPESP

UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA':JÚLIO DE MESQUITA FILHO"

A Universidade Esladual Paulisla "Julio de Mesquila Filho" realizará Concursos Públi-cos de Títulos e Provas poro conlralação de docentes nos Unidades abaixo relacio-nadas.Titu/ação mínima: DoutorRegime Jurídico: CLTRegime de Trabalho: Regime de Dedicaçõo Integral à Dacência e à Pesquisa(RDIDP)FCL/Araraquara: Língua Espanhola I a V, literatura Espanhola I a 111e literaturaHispano-Americana I a 111(inscrições até 4/12/05); Língua Espanhola I a VIQ/Araraquara: Química InorgânicaFCL/Assis: Estatística I e 11;Teoria da literatura I e 11;Técnicas de Exames eAconselhamento Psicológico I e 11FC/Bouru: Didática e Prática de Ensino de Psicologia I a V; Didático da EducaçãoFísica, Prática de Ensino em Educaçõo Física Escolar I o IV, Prática de Ensino: ProjetosInterdisciplinares em Modalidades Esportivas I e 11e Prático de Ensino: ProjetosInterdisciplinares em Atividades CorporaisFE/Bouru: Introdução à Ciêncio da Computaçõo, Computaçõo e Métodos Numé-ricos e linguagem de Alto NívelFCA/Botucatu: Informática Aplicada à Agricultura, Infarmática Aplicada, Elemen-tos de Geoestatística e GeoprocessamentoFM/Botucatu: Patologia Geral e Anatomia Patológica Geral; Clínica PediátricaGeral; Dermatologia Infeccioso e Parasitária; Gastroenterolagia CirúrgicaIB/Botucatu: Física 111,Elelromagnetismo e Eletrônica Experimental; Evoluçõo; Pró-tica de Ensino de Biologia I e 11FHDSS/Franca: Projetos de Investigaçõo Prática; Política Internacional e PolíticaExterno: Mecanismos de Integraçõo; História MedievalFE/llha So/teíra: Inlroduçõo à Ciência da Computaçõa e Processamento de Da-dos; Física I a IV; Etologia, Bioclimatologia Zootécnica, Exterior e Julgamento Animale EqüinoculturaFFC/Marília: Documentaçõa Audiovisual, Planejamento e Gestão de Arquivos,Automaçõo em Arquivos, Arquivos Especializados e Empresariais e Gestõo Elelrônicade Documentos; História das Relações Internacionais no Mundo Moderno e Históriae Diplomacia no Século XX; Saúde Pública e Epidemialogia, Bioquímica, Fisiologiado Exercício, Noções de Enfermagem, Farmacologia, Biofísica, Pneumologia, e Geria-tria, Gerontologia e ReumatologiaFCT/Presidente Prudente: Projeto I, 11e 111;Química Inorgânica I, 11e 111;Dese-nho e Representação Gráfica e linguagens Visuais - Percepção e ExpressãoIB/Rio Claro: Prático de Ensino - Ensino Fundamenlall e 11,Prática de Ensino - EnsinoMédio I e 11,Metodologia do Ensino Fundamental e Metodologia do Ensino MédioIGCE/Rio Claro: Metodologia em Geografia, Quantificaçõo em Geografia, Téc-nicas de Pesquisa em Geografia Física e ClimatologiaIBILCE/São José do Rio Preto: Prática de Leitura em língua Portuguesa, Práti-ca de Redaçõo em língua Portuguesa, Estilística da língua Portuguesa e TópicosEspeciais de Língua Portuguesa; língua Italiana I a IV; Filosofia do Educação I e 11eFundamentos Epistemológicos do Pesquisa Educacional; Geometria Analítica eVetares, Geomelria Euclidiana e Geometria Diferencial; Cálculo Avançado e Cálcu-lo Diferencial e Integral 111;Ecologia Geral e Parasitologia; Bioquímica I e 11e Bioquí-mica de Alimentos

Regime de Trabalho: Regime de Turno Completo (RTC)FHDSS/Franca: Direito Romano

Outros Concursos Públicos paro provimento de cargos de Professor Assistente lcrornautorizados conforme Despacho do Reitor, Prof. Dr, Marcos Macari, de 17/11/2005,publicado no Diário Oficial do Eslado de São Paulo, de 18/11/2005, no página 35.

Para o provimento de cargos de Professor Titular já estõa ou serõo abertas inscriçõesnas seguintes Unidades:FO/Araraquara: Diagnóstico Bucal; RadiologiaFE/Bouru: Vibrações, Higiene e Segurança no Trabalho (inscrições até 11/12/05)FHDSS/Franca: Direilo Processual Civil (inscrições até 18/01/06)FE/llha Solteira: Mecânica dos Fluidos I e 11(inscrições até 12/02/06)IB/Rio Claro: Teoria do Treinamento Desporfivo (inscrições até 20/02/06)FO/São José dos Campos: Anatomia (inscrições até 12/02/06)

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PESQUISA FAPESP 118 • DEZEMBRO DE 2005 • 95

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Tasmânia

ROBERTO DE SOUZA CAUSO

Josiel Monte evitava encarar diretamente a fogueira — desfrutava a visão da Via Láctea despejada acima de sua cabeça, e não queria ofuscar-se.

O walkie-talkie estalou e a voz anasalada da profa. Kristie Carroll soou bastante clara, na noite fria: — Monte? Já terminamos por aqui. Estaremos de volta em uma hora.

— Certo, Kristie. Vou guardar o acampamento. Ele era professor visitante de biologia junto à Universidade de New South Wales, Austrália. Um em-

baixador dos marsupiais sul-americanos, no reino onde os marsupiais eram soberanos. Desde o início sentira-se um membro júnior na confraria de especialistas do Departamento de Zoologia. No Brasil ele tinha nome e um sólido nicho profissional; ali, era pouco mais que uma curiosidade acadêmica. Associa- da a isso, havia a solidão. Por isso, quando Alan Briggs, o chefe do departamento, convidou-o para uma atividade de campo, viu-a como chance de estreitar os laços com ele e Carroll, sua assistente.

Sorriu. Briggs no início "esquecera" de informá-lo da real natureza da expedição: procurar evidências da existência do tigre-da-tasmânia, ou tilacino. O último exemplar conhecido da espécie morreu em 1936, no zoológico de Hobart, a capital da ilha. Lembrou-se de imagens em película do tilacino mostran- do o corpo alongado de cauda rígida, a cabeça canina, o flanco listrado e a expressão alerta. Imagens da terrível solidão sépia de um animal exilado das matas, exilado do futuro, condenado a um registro desbotado e a uma presença nebulosa no sentimento coletivo de culpa da humanidade.

Pois ainda se falava em avistamentos do animal, alguns mesmo fora da ilha. Gente na Austrália (e até na Inglaterra) dizia tê-lo visto. Na Tasmânia propriamente, as últimas buscas se deram em meados da década de 1990, sem sucesso. O predador marsupial existira em Papua e por toda a Austrália, mas fora encurralado na Tasmânia com a chegada do dingo, um mamífero placentário da família dos cães e pre- dador mais agressivo. Uma vez restrito à ilha que se pendurava como um brinco ao sul da Austrália, o ti- lacino foi massacrado pelos recém-chegados criadores de ovelhas, em luta breve mas definitiva.

O casal de biólogos não acreditava realmente na idéia de o tilacino ter sobrevivido. Recebiam bem a pausa em suas atividades acadêmicas — e o incentivo financeiro do milionário australiano que pa- trocinava, discretamente, a expedição. Ele participava no esforço de clonar o tilacino de volta à vida. Se encontrassem animais vivos, como afirmavam as testemunhas, poderiam somar sua variedade genéti- ca aos exemplares fósseis que formavam a base do projeto de clonagem, e então criar e manter uma po- pulação viável.

Briggs e Carroll estavam lá embaixo no vale, entrevistando o fazendeiro que era a última "testemunha" da existência do animal. Estar no sopé do pico Ossa, acompanhando-os e guardando o acampamento, era para Monte como participar de uma busca pela mula-sem-cabeça ou pelo mapinguari nos campos e sel- vas do Brasil. Por mais que se afirmasse que tigres-da-tasmânia sobreviventes teriam adquirido uma ti- midez quase sobrenatural, após a escala em que foram caçados ou envenenados, não podia mais haver tilacino algum vivendo uma guerrilha contra o Homem naquelas montanhas...

Monte fechou os olhos. Desejava estar errado. Tornou a abri-los. O que teria franqueado a ele a visão? Talvez o seu olhar estrangeiro... ou a solidão que sentia e o fa-

ria se sintonizar com o estranho sentimento de perda que existia por trás das notícias de avistamentos. O animal deixou o abrigo das rochas e caminhou timidamente para dentro do acampamento. Era

maior do que Monte imaginara. As orelhas giravam para a frente e para trás em sua cabeça, e o focinho

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comprido subia e descia, enquanto ele circundava devagar a fogueira, os olhos cintilantes de labaredas voltados para Monte.

Chegou mais perto de onde ele estava, farejou o ar, bocejou. As mandíbulas se abriram num ângulo surpreendente. Monte pôde sentir o seu hálito de carnívoro, e o cheiro não bem canino do seu pêlo. O ti- lacino chegou até ele, farejou o seu braço, e então se sentou sobre um dos flancos. Ficou ali ao seu lado, observando a fogueira.

Monte estendeu a mão esquerda para tocá-lo. Moveu-a devagar, como se realmente pudesse assustar a aparição. Seus dedos nunca encontraram a pelagem parda, não traçaram as listras que cobriam as an- cas e parte das costas. O braço todo foi fustigado por um formigar intenso, um estertor e o desfalecimen- to dos nervos. Monte recolheu-o. O tilacino não mudou de posição; apenas olhou-o de soslaio e piscou, como que embaraçado por sua própria imaterialidade.

A mente do cientista vivia um estado alterado de consciência? A razão ia dormir e cedia o lugar dian- te da tela de sua visão para o mito? Não era o Homem o vigia do mundo? O sentinela solitário diante da fogueira da mente? E quando a razão não respondia mais às ansiedades do espírito, um outro olhar de- via manter a vigia e dar testemunho. Mas Josiel Monte era testemunha do quê? De que a culpa do ser humano por suas vítimas ia mais longe e mais fundo do que imaginava? Ou de que os animais também produziriam os seus fantasmas, assombrando o Homem com uma presença fugidia ou tranqüila como esta, e não odiosa e irada como os fantasmas humanos? Teria ainda a aparição nascido não de sua men- te, mas da própria terra que também sonhava e lamentava a ausência de um de seus filhos? Talvez cada espécie extinta deixasse uma ferida no coração de Gaia, saudades fundas da mãe que sente a perda do fi- lho como mutilação da própria carne.

Monte e o tilacino ficaram ali junto ao fogo, como um homem e seu cão partilhando o acampamen- to e o que os dois representavam: o ponto em que o mundo natural e o mundo humano se tocavam e um se despedia do outro, antevendo a fronteira intransponível ainda não traçada. Nessa penumbra vigora- va ainda uma estranha completude.

Talvez fosse esse sentimento a fonte última dos avistamentos do tilacino. E que a vergonha se mistu- rava à sensação de perda pelo que fora deixado para trás, no caminhar da espécie humana.

Briggs e Carroll retornaram, passada a prometida hora de subida da montanha. — Oh, você parece bem — a mulher disse. — Alan e eu pensamos que ficaria entediado, aqui sozinho. O fantasma do tigre-da-tasmânia era invisível para eles. Castigo ou bênção?, Monte perguntou silen-

ciosamente à aparição ao seu lado, que ainda tinha as orelhas alertas, as chamas se refletindo em seus olhos. Os dois, companheiros um do outro, contemplavam uma segunda fronteira traçada no chão do precário acampamento. Que olhos podiam ver o que havia para ser visto?

— De fato — disse. — Estou bem, como há muito não estava. Briggs disse que devia ser o ar da montanha, fazendo Monte sorrir. Ao seu lado, o tilacino bocejou. Ficou junto dele a noite toda, para ir embora apenas ao nascer do sol.

ROBERTO DE SOUSA CAUSO tem contos publicados em dez países, é autor do estudo Ficção científica, fantasia e horror no Brasil e do romance A corrida do rinoceronte.

PESQUISA FAPESP 118 ■ DEZEMBRO DE 2005 ■ 97

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Page 99: Os pequenos notáveis

PESQUISA RESPONDE caso do embolismo, quandovocê tem a efervescência dosgases dissolvidos no sanguehumano. Você tem efervescên-cia em geologia. Tem lagosvulcânicos que chegam a cau-sar catástrofes. E na botânicaela ocorre dentro das plantas.

12.11.2005

• Sabrina Canassa, redatorade São Paulo

- Por que e quanto tempo ofeijão precisa ficar de molhoantes de ser cozido? Temgen-te que diz que é duas horas ereceitas que pedem até doisdias.

PROMOÇÃODA SEMANA

Feijão de molho: para eliminar açúcares não-digeríveis 05.11•2005

• Carina Coelho,nutricionista daUniversidade de São Paulo

- O feijão tem que ser deixa-do de molho porque em suacasca há alguns açúcares, cha-mados oligossacarídeos, quecausam gases e desconfortointestinal, visto que nosso in-testino não é capaz de digeri-los. Por isso, é importante dei-xar o feijão de molho, para queesses açúcares saiam da cas-ca. Assim, ao ser cozinhado, ogrão fica mais digerível. Alémdesses açúcares, o feijão apre-senta outros compostos anti-nutricionais que também cau-sam algum desconforto. En-tão é preciso deixar o feijão demolho, mas não um ou doisdias. Duas ou três horas já sãoo suficiente para tirar essescompostos. E é muito impor-tante não usar a água em queo feijão ficou de molho paraa cocção. É preciso usar outraágua para cozinhar.

em que fiz pesquisa, sempregostei e gosto cada vez mais.Estou com quase 70 anos enão pretendo parar nunca.Acho que é uma atividade cria-tiva. Suas novidades fazem agente rejuvenescer. Não há ro-tina de trabalho cansativa.Sempre há alguma coisa nova.Mesmo as áreas mais antigasapresentam novidades o tem-po todo. Eas mais novas, comoa nanotecnologia e a informa-ção quântica, que nasceram hácinco ou dez anos, são camposde estudo bastante abertos anovidades. Pouca coisa já foidescoberta nessas áreas e es-pera-se que muitos avançossejam feitos em 15 ou 20 anos,ou até em mais tempo. É umfuturo que a gente ainda nãodomina. Há muita pesquisa aser feita.

tes do Pesquisa Brasil as ou-tras tantas possibilidades doestudo que vem desenvolven-do em conjunto com cientistasfranceses:

• Produção- O que você faz para evitarmachucados e contusões quan-do pratica exercícios?

• Nassab M. T. Galante,de São Paulo

- Não faço nenhum exercício,infelizmente. Portanto, faço amelhor "prevenção". Vocês nãoacham? Gostaria muito de ga-nhar seis meses de assinaturada revista. Assim ficarei maistempo sem fazer exercícios.Espero que vocês encarem (aresposta) com bom humor.Um grande abraço. E parabénspelo programa, que ouço nosábado à tarde, enquanto pre-paro o jantar.

• Alberto TufailePrimeiro, a pesquisa trata deefervescência. A formação debolhas no champanhe se dáatravés da efervescência. Esseé um fenômeno que tem inte-resse para várias áreas: medi-cina, geologia, botânica. E, atéo momento, ninguém tinha ob-servado a efervescência sobesse aspecto, ocorrendo numafibra de celulose, num nívelmicroscópico. Então você temaplicação da efervescência no

NOTA

19.11•2005

PROFISSÃO PESQUISA • Apresentadora- Mais do que uma festa, apesquisa sobre o borbulhardos vinhos espumantes - cha-mados erroneamente de cham-panhe aqui no Brasil- é umatarefa cheia de utilidades.Além da possibilidade de usoda produção dos pesquisado-res para aplicações no merca-do vinícola, o físico da Univer-sidade de São Paulo AlbertoTufaile explicou para os ouvin-

19.11.2005

• Nelson Velho, físicoda Universidade Federaldo Rio de Janeiro

Entendi a razão de fazer pes-quisa depois que comecei afazê-Ia. Antes de iniciar a car-reira universitária, ou de pes-quisador, a gente não sabe oque vem adiante. Mas possodizer que, ao longo dos anos Champanhe: bolhas nascem de fibras de celulose

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