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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA E METODOLOGIA DAS CIÊNCIAS Os princípios de Psicologia de William James: compromissos e consequências de uma filosofia da ação Paulo Gilberto Bertoni Orientação: Prof.ª Dr.ª Débora C. Morato Pinto. Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia e Metodologia das Ciências da Universidade Federal de São Carlos como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Doutor em Filosofia. São Carlos Setembro de 2010

Os principios de psicologia

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DE SO CARLOSCENTRO DE EDUCAO E CINCIAS HUMANAS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM FILOSOFIA E METODOLOGIA DAS CINCIAS

    Os princpios de Psicologia de William James: compromissos e consequncias de uma filosofia da ao

    Paulo Gilberto Bertoni

    Orientao: Prof. Dr. Dbora C. Morato Pinto.

    Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Filosofia e Metodologia das Cincias da Universidade Federal de So Carlos como parte dos requisitos necessrios para a obteno do ttulo de Doutor em Filosofia.

    So CarlosSetembro de 2010

  • Ficha catalogrfica elaborada pelo DePT da Biblioteca Comunitria/UFSCar

    B547pp

    Bertoni, Paulo Gilberto. Os princpios de psicologia de William James : compromissos e consequncias de uma filosofia da ao / Paulo Gilberto Bertoni.. -- So Carlos : UFSCar, 2011. 194 f. Tese (Doutorado) -- Universidade Federal de So Carlos, 2010. 1. Filosofia. 2. James, William, 1842-1910. 3. Pensamento. 4. Self (Filosofia). 5. Conhecimento. I. Ttulo. CDD: 100 (20a)

  • Aos meus pais, pelo apoio e pelo exemplo.

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  • Agradecimentos

    minha famlia, especialmente minha irm Luci, pelo carinho e incentivo.

    Aos companheiros de kendo (arte da esgrima japonesa), particularmente ao meu mestre, o sensei Yashiro Yamamoto, por quem nutro um sentimento de

    gratido que s aumenta com o tempo.

    Aos professores dos departamentos de Psicologia e Filosofia da Universidade Federal de So Carlos. Em especial ao professor Bento Prado Jr.

    (in memoriam) pelo clima intelectual que criou e cultivou com tanta maestria. E ao professor Abib, responsvel por meu interesse em William James; a quem

    devo, tambm, o mote que deu incio a essa tese (ainda que eu tenha demorado tanto tempo para perceb-lo).

    Aos meus amigos, por cada encontro.

    professora Dbora, pela pacincia com que lidou com meu temperamento inconstante.

    Indira, por todos os sorrisos e cores que pe em minha vida.

    E Ana, pela cumplicidade nos bons e nos maus momentos.

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  • Resumo

    Esta tese investiga a poro da obra de William James (1842-1910) dedicada Psicologia, tendo como sua fonte principal o livro The Principles of Psychology, publicado em 1890. Seu ponto de partida um roteiro alternativo de leitura proposto pelo prprio James no prefcio do livro e que serve para acompanhar a forma pela qual os avanos da Nova Psicologia influenciaram na construo da disciplina no sculo XIX. Este o tema de nosso captulo inicial e que nos ofereceu as diretrizes do que denominamos de uma teoria da ao. No segundo captulo, procuramos articular essas indicaes com a exposio do pensamento como um fluxo e tambm com as consideraes sobre o self. No terceiro, abordamos as relaes entre aquilo que o autor trata como uma psicologia da cognio e seus desdobramentos para uma teoria do conhecimento. Finalmente, utilizamos as concluses obtidas nesse percurso para defender a tese de que o Principles, ou a psicologia jamesiana, deve ser compreendido como uma psicologia da ao, que tem sua base em uma filosofia da ao incorporada, implcita ou explicitamente, pelo autor. Percorre toda nossa pesquisa a tenso criada entre os pressupostos dualistas assumidos inicialmente por James e as concluses sugeridas por uma anlise mais minuciosa do texto.

    Palavras-chave: William James, ao, pensamento, self, conhecimento.

    Abstract

    This work analyzes the psychological texts of William James (1842-1910), specially his Principles of Psychology, published in 1890. We begin following an alternative itinerary of reading proposed by James in the preface of the book, which also allows us to understand how the New Psychology has influenced the construction of psychological field in 19th century. We present this in our first chapter trying to show what we call a theory of action. In the second chapter, the previous conclusions are articulated with James exposition of the thought as a stream and with his considerations of the Self. In the third, we investigate the relations between his psychology of cognition and his posterior epistemology. Finally, we postulate that The Principles must be understood as a psychology of action, which has its basis in a philosophy of action incorporated, consciously or not, by James. We emphasize onward the research the tension created between the dualistic point of view assumed by James and the conclusions suggested by a closer reading.

    Key words: William James, action, thought, self, knowledge.

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  • ndice

    Introduo p. 6

    Captulo I: A conscincia na ao e a impulsividade da conscincia: os contornos de uma filosofia da ao

    p.17

    Algumas consideraes sobre o sistema nervoso p. 22O instinto p. 29A emoo p. 35O hbito p. 41A vontade p. 46A teoria do autmato p. 52Concluses p. 58

    Captulo II: Introspeco, fluxo do pensamento e subjetividade: uma aproximao com o empirismo jamesiano. p. 63O objeto e os mtodos da Psicologia p. 65O pensamento como um fluxo p. 70A seleo como aspecto primordial do pensamento p. 72A mudana no pensamento e a crtica ao pressuposto atomista p. 73A continuidade sensvel e a unidade do pensamento p. 76O pensamento e seu objeto p. 84A conscincia do self p. 88Uma aproximao descritiva com o self emprico p. 91A gnese dos selves p. 96A identidade pessoal e o problema do Sujeito p. 99Concluses p. 105

    Captulo III: uma psicologia da cognio ou esboo de uma epistemologia? p. 108Uma indicao do problema do conhecimento p. 110Da sensao experincia como campo de conscincia p. 117Ateno e concepo p. 123Discriminao e comparao p. 131Percepo p. 138Uma psicologia da crena p. 142Concluses p. 151

    Captulo IV ( guisa de concluso): O PrP como uma psicologia da ao

    p.154

    Em busca de uma noo de cincia p. 156Uma reviso do mtodo p. 165O problema da liberdade p. 169 possvel falar em uma tradio jamesiana na Psicologia? p. 181Concluses p. 187

    Consideraes finais p. 190Referncias bibliogrficas p. 192

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  • I think is better to sacrifice property to popularity1

    Em certa ocasio perguntaram ao polmico Domingos de Oliveira se havia algo

    de autobiogrfico em uma de suas obras. Sua resposta foi enftica: Toda obra

    autobiogrfica. A observao, em seu contexto, reivindica como alicerce para a

    vivacidade e o significado da obra as experincias e inquietaes do prprio artista,

    destacando no apenas a impossibilidade de estabelecer uma fronteira definida entre os

    dois, mas, mais do que isso, apostando no sentido positivo dessa aproximao.

    Esse valor parece se modificar no contexto acadmico, no qual a expresso

    individual tomada, com muita frequncia, como ausncia de objetividade; criando

    uma prtica que recorrentemente esconde a falta de assunto ou competncia atrs de um

    tecnicismo que, ao mesmo tempo em que protege o autor das crticas, e de sua

    profundidade, faz do trabalho uma atividade incua e oferece, para pouqussimos

    leitores, um produto frio e distante que parece muito pouco til fora de seu ambiente

    profissional.

    Comentrio obrigatrio e talvez o nico ponto de convergncia na vasta e

    diversificada tradio de intrpretes de William James (1842-1910), essa aproximao

    entre vida e obra (no necessariamente em tom positivo) no como mera coincidncia

    entre interesses pessoais e produo acadmica, mas em uma relao que poderamos

    chamar de simbitica. Pagamos tradio esse tributo obrigatrio na forma em que o

    argumento assume sua dimenso mais poderosa: a voz do crtico.

    William James o meu filsofo favorito. No existe praticamente nenhuma opinio

    dele com a qual eu concorde. E no porque eu ache que seus argumentos so

    usualmente ruins (...) A atrao por James, o filsofo, se d porque, para mim, ele o

    melhor exemplo que conheo de uma pessoa fazendo filosofia; no existe a tentativa de

    esconder a pessoa atrs da obra, nenhuma maneira de discutir a ltima sem recorrer

    primeira, nenhum modo de se fazer crer que exista uma forma de filosofar que no seja

    pessoal (Flanagan 1997, p. 47).

    1 William James, The principles of Psychology, p. 545.

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  • Pluralidade, no sentido forte da expresso, o que podemos indicar como trao

    fundamental da vida e da obra de William James. Nascido nos EUA, foi acostumado,

    desde muito cedo, a longas temporadas na Europa. Educado em uma atmosfera crist,

    James viveu intensamente a religio, mas tomou-a tambm como objeto de investigao.

    Interessado em arte, fluente em vrios idiomas, socivel e comunicativo, ansiava pelo

    ambiente cultural das grandes cidades, mas no dispensava o refgio no campo, entre as

    montanhas, onde costumava exaltar a superioridade das maravilhas de Deus frente s

    dos homens. Defensor do rigor cientfico, oriundo da formao nas cincias biolgicas,

    props um programa para a Psicologia como cincia natural, mas mantinha, igualmente,

    um interesse pelos fenmenos sobrenaturais que desafiavam estes mesmos pressupostos.

    Ciente da necessidade da experimentao e do rigor tcnico de anlise, nunca deixou,

    tambm, de cultivar a atitude de livre pensador, obrigando-se, reiteradamente, ao

    exerccio de encarar cada fato ou conceito da maneira mais neutra e generalista possvel,

    indicando nessa prtica o real valor da atitude filosfica.

    com essa diversidade, que se reflete em sua obra e que nela refletida, que nos

    deparamos e aqui acompanharemos pelo vis de sua psicologia.

    Os Princpios de Psicologia

    Em 1890, James publica seu The principles of psychology2, uma obra que

    marcaria um momento significativo em sua carreira acadmica e tambm na prpria

    histria da disciplina. Como no poderia deixar de ser, no caso dele, a elaborao do

    texto foi conturbada, inconstante, ambgua e, acima de tudo, intensa. O livro traz a

    marca do ecletismo, da erudio e do esprito apaixonado de James; materializa seus

    dilemas pessoais e intelectuais uma distino artificial que, de forma curiosa,

    ilustram a prpria condio da Psicologia naquele (?) momento.

    O caminho de James em direo Psicologia, especificamente ao tipo de prtica

    denominada de cientfica, comea a ser desenhado no perodo em que esteve na Europa

    nos anos de 1867 e 1868. Durante essa pausa em seus estudos mdicos, ocasionada por

    motivos de sade, ele manifesta sua curiosidade pela pesquisa ligada ao sistema nervoso

    e fisiologia dos sentidos, fato que, aliado s suas frustraes com a perspectiva de

    carreira mdica ou de naturalista, indicavam uma possvel direo profissional. James

    2 As referncias ao livro sero feitas pela sigla PrP.

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  • manifesta nesse perodo, tambm, um interesse pela psicopatologia, como podemos

    contatar pelos livros adquiridos durante essa viagem3.

    Anos mais tarde, ele inicia sua carreira docente e, aps o trabalho como

    instrutor em Fisiologia e Anatomia, James oferece, em 1875/6, seu primeiro curso,

    como professor assistente, As relaes entre Psicologia e Fisiologia, um curso no

    qual ele introduz em Harvard o estudo da psicologia fisiolgica desenvolvida

    principalmente na Alemanha. At ento, aquilo que era ensinado como psicologia na

    instituio era, na verdade, uma espcie de filosofia da mente, particularmente

    interessada em uma metafsica da alma e em problemas morais (Perry 1935; Evans

    1981). Sua iniciativa pioneira traria para a instituio a pesquisa experimental em

    Psicologia e seria responsvel pelo redirecionamento de toda tradio norteamericana

    (Perry 1935, Hall 1879, Boring 1950), substituindo a antiga psicologia de gabinete

    (armchair psychology) (Evans 1981; Robinson 1985).

    Em 1878, aps as primeiras publicaes propriamente acadmicas, James

    convidado pelo editor Henry Holt para a elaborao do PrP. O convite inicial para o

    texto sobre psicologia da Amercian Series havia sido feito a John Fiske, psiclogo

    amador, discpulo de Spencer e, na ocasio, bibliotecrio em Harvard (Evans 1981, p.

    xlii), que, ao recusar a oferta, indicou o nome de James. Seguindo esta sugesto, Holt

    formalizou o contato com James e o plano foi estabelecido com a ressalva, por parte do

    autor, de que, infelizmente, ele no seria capaz de terminar o texto em menos de dois

    anos. Ao propor, com certo constrangimento, essa data inicial, James no poderia

    imaginar que o projeto levaria no dois, mas doze anos at sua concluso.

    Podemos enumerar vrios fatores para compreender o longo tempo despendido

    no trabalho, fatores estes que, tambm, nos ajudam a justificar o prprio estilo do texto.

    Em termos prticos, o trabalho concorria com as atividades acadmicas e domsticas do

    autor, alm, claro, de suas recorrentes oscilaes de sade e de humor; mas este,

    naturalmente, no o aspecto mais importante da questo. Qualquer um que tenha

    alguma familiaridade com o PrP sabe que grande parte da responsabilidade pelo longo

    tempo do trabalho est na vasta gama de influncias apresentadas pelo autor. O

    montante de informao j seria justificativa suficiente para a dificuldade, mas preciso

    tambm destacar que o trabalho realizado por James, alm de ser reconhecido como

    uma grande reviso da psicologia de sua poca (Perry 1935; Ayer 1968, 1998; Myers 3 A aquisio do Medizinische Psychologie de Lotze, em 1867, e, em 68, o Pathologie und Therapie der psychischen Krankheiten de Wilhelm Griesinger. Posteriormente, James se aproximar da psiquiatria francesa, especialmente de Charcot e Janet. Ver Perry (1935).

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  • 1981, 1986; Evans 1981), assume uma feio bastante pessoal; trata-se de um processo

    de levantamento, compilao, mas, acima de tudo de anlise crtica e de posicionamento

    prprio sobre os mais diferentes temas. Em outras palavras, ele no estava apenas

    compondo um trabalho sistemtico na psicologia, mas fazendo observaes, procurando

    hipteses aceitveis e travando uma batalha vigorosamente polmica (Perry 1935, vol.

    II, p. 40).

    O reconhecimento pelo pioneirismo no estabelecimento de uma psicologia

    cientfica nos EUA (Taylor 1992) j revela a tradio experimental da psicofsica e da

    psicofisiologia, praticadas, principalmente, na Alemanha como parte central do texto. O

    livro, no entanto, percorre diversos outros caminhos. A nova psicologia apresentada

    em um debate estreito com as psicologias tradicionais e, muitas vezes, com uma

    tradio filosfica mais ampla. A proximidade com as cincias mdicas revela-se,

    particularmente, no exame dos avanos da neurofisiologia. E, na contramo de diversos

    de seus contemporneos mais ortodoxos, James aventurou-se tambm pelo campo

    denominado psicologia anormal, em especial, pela psicopatologia e pelos fenmenos

    considerados paranormais (psychical research) (Perry 1935; Evans 1981; Myers 1981;

    Boring 1950; McDermott 1986; Taylor 1984).

    Boa parte do material foi apresentada, separadamente, bem antes da publicao

    do PrP. J no ano seguinte ao convite, 1879, o autor comeou a publicar, na forma de

    artigos, os principais resultados de sua pesquisa muitos deles j na forma definitiva

    com que foram incorporados ao livro. Essa estratgia contribuiu para uma das crticas

    mais comuns ao texto: sua falta de sistematizao (Hall 1891, Ward 1892, Ladd 1892),

    chegando ao ponto de considerar James como um impressionista na Psicologia (Hall

    1891). Retomaremos esse problema da organizao em breve, mas importante apontar

    algumas das justificativas para a escolha dessa dinmica de trabalho.

    Segundo Perry (1935), h dois fatores de ordem prtica. O primeiro deles, com o

    qual estamos hoje habituados, a necessidade de publicao tcnica para as promoes

    acadmicas. Tambm de natureza prtica o fato da remunerao oferecida por vrios

    dos peridicos, o que contribua para um incremento no oramento familiar. O outro

    fator era de natureza mais psicolgica. Para algum que reconhecia a dificuldade de

    manter-se trabalhando, sistematicamente, em um grande empreendimento, a

    organizao temtica e a publicao em etapas servia como forma de indicar o fim de

    algum tpico e liberar a cabea de tais preocupaes.

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  • A correspondncia do autor evidencia o quo traumtico foi o processo,

    especialmente sua concluso, e tambm revela suas impresses quanto situao da

    Psicologia e sua prpria capacidade intelectual. Um dos trechos mais ilustrativos o da

    carta enviada ao seu editor falando sobre o tamanho final do texto e suas concluses. O

    livro, diz ele, atesta duas coisas: primeiro que no h tal coisa como uma cincia

    psicolgica e segundo que William James um incapaz (em Perry 1935, vol. II, p. 48).

    Por sorte, a histria encarregou-se de desmentir esse comentrio pelo menos sua

    ltima parte.

    To variados quanto os temas tratados no livro so os interesses e a formao de

    seus intrpretes, tornando-o fonte viva e atual para pesquisa. Podemos encontrar uma

    convergncia em boa parte dos comentrios sobre o PrP, seja em relao s suas

    virtudes ou aos pontos polmicos, independentemente, neste ltimo caso, da adeso ou

    crtica ao ponto sustentado por James. Fatos incontestveis so sua riqueza e erudio, a

    considerao do texto como obra de referncia sobre a psicologia do sculo XIX, sua

    influncia no estabelecimento do projeto cientfico para a Psicologia e suas tenses com

    a Filosofia e a Fisiologia. Inegveis, tambm, a leveza de estilo e a profundidade

    descritiva do autor.

    No que diz respeito s polmicas, a primeira delas, como j indicamos, destaca

    uma ausncia de sistematizao do texto, como se no fosse possvel trat-lo, ao p da

    letra, como um livro, mas simplesmente como um amontoado de informaes (Hall

    1891, Baldwin 1890, Ward 1892, Ladd 1892). Outro aspecto ressalta aquele que deveria

    ser seu ponto central: a apresentao de uma psicologia cientfica. Os crticos indicam

    que a defesa da cientificidade proposta pelo autor fundamentada muito mais em

    hipteses e especulaes de natureza terica do que propriamente em evidncias

    experimentais (Hall 1891 e Ladd 1892), caracterstica que, alm de no apresentar a

    base adequada para a disciplina, revelaria o descumprimento de sua prpria

    recomendao de afastar a Psicologia da Filosofia.

    Para compreendermos, de forma geral, essas crticas, basta acompanharmos a

    apresentao feita por James em seu prefcio. A primeira informao explicitada a

    relao do trabalho com o curso de psicologia ministrado pelo autor, com a ressalva de

    que ainda que seja verdade que alguns dos captulos so mais metafsicos4 ( PrP,

    vol. I, p.5) o livro pode ser usado pelos iniciantes. Esse alerta inicial parece passar

    4 Via de regra, as tradues ao longo do texto so nossas, as excees sero apontadas nas ocasies adequadas.

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  • despercebido ao leitor quando, pouco depois, ele destaca a necessidade de a Psicologia,

    para tornar-se uma cincia natural, comportar-se como tal; ou seja, assumir, de forma

    no crtica, certos dados e abrir mo de desafiar os elementos entre os quais obtm suas

    prprias leis, e a partir dos quais suas prprias dedues so conduzidas (PrP, vol. I,

    p. 6). Em outras palavras, a Psicologia deve manter-se estritamente no universo dos

    problemas empricos e afastar-se de quaisquer consideraes sobre as questes ltimas

    relativas aos fenmenos estudados. Ele acrescenta, ainda, que neste ponto de vista

    estritamente positivista consiste a nica caracterstica do livro qual eu me sinto

    tentado a clamar originalidade (PrP, vol. I, p. 6). O resultado dessa atitude deliberada

    uma massa de detalhes descritivos, que passa por questes com as quais apenas uma

    metafsica a par do peso de sua funo poderia esperar lidar de forma satisfatria

    (idem).

    Veremos que a admisso do estado cru em que as informaes apresentadas se

    encontram, aliada publicao anterior dos artigos separadamente, no conduz,

    necessariamente, interpretao do texto como mera compilao, na qual a ordem dos

    captulos seria completamente aleatria. H razes significativas para defender o

    contrrio (Evans 1981; Perry 1935); no se trata de ausncia de articulao interna,

    como o prprio James assinala em algumas circunstncias5, mas de uma articulao

    contrria ao modelo tradicional que est, justamente, sendo criticado. No entanto, antes

    de entrarmos nesse tema, acompanhemos um pouco mais o prefcio.

    Constatamos que o autor apresenta, de fato, alguns pressupostos a serem

    assumidos sem discusso. A Psicologia, cincia da mentes individuais finitas, assume,

    como seus dados, (1) pensamentos e sentimentos (feelings) e (2) um mundo fsico no

    tempo e no espao com o qual eles coexistem e o qual (3) eles conhecem (PrP, p. 6,

    grifos do autor). E tambm indica qual seria o objeto da nova cincia e seu principal

    desafio. Eu tratei nossos pensamentos instantneos como um todo6 e considerei as

    meras leis de sua coexistncia com estados cerebrais como as leis ltimas de nossa

    cincia (idem).

    A Psicologia parte, portanto, da posio dualista assumida pelas cincias

    naturais e pelo senso comum; supe, por um lado, um mundo psquico e, por outro, um

    mundo fsico e conta com o fato de sua coexistncia e, tambm, com a relao

    cognitiva; ou seja, o mundo psquico conhece e sente o mundo fsico. O segundo trecho 5 Briefer Course (daqui em diante, simplesmente BC) e o prefcio edio italiana do PRP.6 Essa pequena frase contm o cerne da crtica psicologia das faculdades e ao associacionismo e sintetiza, de forma precisa, o projeto jamesiano.

    11

  • citado indica o pensamento como objeto da psicologia e a identificao da correlao

    deste com os estado cerebrais como o objetivo final desta disciplina. Trata-se de

    postular, novamente o dualismo, mas agora especificamente em seu aspecto

    mente/corpo. Como veremos, uma das peculiaridades do projeto jamesiano identificar

    nas condies orgnicas o componente explicativo da psicologia. O dualismo entre o

    psquico e o fsico pensado agora no sentido de que o ltimo condio para o

    primeiro.

    O problema do dualismo sujeito/objeto geralmente discutido pelos

    comentadores em relao consistncia entre o PrP e o restante da obra de James,

    particularmente, seu empirismo radical (Myers 1981, 1986; Evans 1981; McDermott

    1976). Frequentemente, o dualismo assumido como posio provisria (Perry 1935;

    Taylor 1996) e estritamente metodolgica, um estratagema para apresentao do

    projeto psicolgico (Myers 1981) e sugere-se que a leitura de sua psicologia seja feita

    sob orientao de seu pensamento posterior, no qual sua posio filosfica est

    definitivamente explicitada (Myers).

    Em relao ao problema mente/corpo a crtica mais severa. Eminentemente

    preocupado com a tradio espiritualista nos EUA, e declaradamente partidrio da

    aplicao da metodologia das cincias naturais Psicologia, a nfase dada explicao

    causal do estado mental pelo estado cerebral foi por vezes interpretada como uma tese

    materialista (Evans 1981; Myers 1981; Ladd 1892), seja ele um materialismo

    propriamente metafsico, que reduziria a ordem psquica fsica, ou um materialismo

    metodolgico, no no sentido de reduzir todo psquico ao fsico, mas localizando no

    ltimo toda explicao causal da investigao psicolgica.

    O que observamos, portanto, um movimento por parte dos intrpretes mais

    favorveis no sentido de atenuar a tenso criada pela posio positivista assumida por

    James seguindo a perspectiva das cincias naturais, considerando-a como etapa

    provisria no caminho de sua reflexo posterior ou como mero estratagema

    metodolgico. Em ambos os casos, a interpretao feita luz filosofia posterior e

    parece interessada, principalmente, em defender sua consistncia.

    A estrutura do PrP

    12

  • O itinerrio de nossa investigao, esbarra, em certa medida, no problema,

    descrito anteriormente, relativo organizao do PrP; isto , a acusao de

    desarticulao interna do texto. Na organizao original dos Princpios, o captulo I

    apresenta o campo da Psicologia, retrata as tradies pr-cientficas, delineia o objeto

    da disciplina e, principalmente, indica uma caracterstica importante da nova maneira de

    encarar os fenmenos psicolgicos: a nfase nos aspectos orgnicos que os possibilitam

    uma atitude em sintonia com o interesse pelo estudo do sistema nervoso no sculo

    XIX. Os captulos seguintes, do segundo ao quarto, indicam quais aspectos do sistema

    nervoso, particularmente do crebro, so importantes para o estudo dos fenmenos

    mentais. O V e VI, intitulados, respectivamente, The automaton-theory e The mind-stuff

    theory, so dedicados anlise das implicaes filosficas de algumas teses elaboradas

    a partir de consideraes sobre o sistema nervoso, como, por exemplo, a possibilidade

    de um reducionismo mecanicista e uma confirmao do esquema associacionista no

    nvel neural. O captulo VII trata do aspecto metodolgico da disciplina e o VIII, The

    relations of minds to other things, explicita o aspecto cognitivo da mente, destacando a

    diferenciao entre duas formas de conhecimento.

    A partir do captulo IX, The stream of thought, que trata do pensamento, objeto

    da Psicologia, como um fluxo, a mente passa a ser estudada de dentro. At o captulo

    XXII, James se dedica propriamente aos fenmenos mentais, como, por exemplo, o

    pensamento, a memria e a imaginao, alm da sensao e da percepo. Do XXIII ao

    XXVI, o foco est na produo do movimento; ou seja, na ao em suas diversas

    modalidades. Um comentrio sobre a hipnose, captulo XXVII, e algumas

    consideraes sobre conhecimento emprico e a priori, XXVIII encerram o texto.

    Podemos interpretar o distanciamento desse planejamento do livro com o

    modelo associacionista clssico como uma das fontes da crtica de desorganizao

    (Perry 1935; Evans 1981; Myers 1981). Os manuais eram estruturados de forma a

    seguir, na prpria apresentao dos temas, o percurso sinttico da formao do contedo

    mental; isto , daquilo que seria considerado mais simples, as sensaes, ao mais

    complexo, percepes e conceitos. De acordo com Evans, o roteiro seguido por James

    perfeitamente adequado sua proposta.

    Como vimos, o projeto de James ope-se s psicologias tradicionais, segundo ele

    pr-cientficas. Para Evans, os dez primeiros captulos do PrP consistem na

    apresentao da nova metodologia cientfica da psicologia, a partir das cincias

    mdicas, e tambm como forma de desconstruo das teses dessas psicologias e na

    13

  • apresentao do objeto da psicologia entendido como nossos pensamentos instantneos

    tratados como um todo. A partir da construo dessa tese em oposio s outras, o

    leitor poderia, ento, apreciar a investigao dos fenmenos psicolgicos sob esse novo

    prisma. O prprio James reage s crticas7, destacando, justamente, que seria uma

    orientao associacionista que guiaria essa forma de propor uma ordem adequada dos

    temas.

    Fato curioso, no entanto, a sua indicao, a despeito da defesa da coerncia na

    disposio dos captulos, para que o leitor iniciante altere essa ordem em uma primeira

    aproximao com a disciplina. Para o estudante, James sugere que aps a leitura dos

    quatro captulos iniciais, ele siga diretamente para o captulo XXIII (The production of

    movement) e continue, em sequncia, a leitura sobre o Instinto, as Emoes e a Vontade

    e que s a partir da retorne ao captulo V8.

    O novo roteiro destaca, claramente, o percurso que vai da exposio do campo

    da Psicologia, passa pelas consideraes iniciais sobre o sistema nervoso, apresenta a lei

    do hbito neural e salta para os diversos mecanismos de ao. Somente depois disso,

    interessante que o iniciante retorne ao captulo V, sobre a teoria do autmato. Embora

    possa parecer contraditria, essa sugesto no anula a defesa do autor quanto

    coerncia da organizao original. Trata-se, apenas, de conduzir o iniciante do aspecto

    mais concreto da disciplina para o mais abstrato. Em outras palavras, se antes de

    mostrar o papel efetivo da conscincia na ao, como, por exemplo, no caso da vontade,

    preciso convencer o leitor tcnico da superao da objeo materialista ou

    epifenomenalista, a descrio efetiva, antes do aprofundamento terico, parece mais

    adequada didaticamente.

    Parece-nos, no entanto, que esse novo itinerrio oferece bem mais do que uma

    estratgia pedaggica mais acertada. O que ele faz nessa exposio, a partir das

    consideraes sobre a dependncia orgnica e a explicitao do aspecto ativo da

    conscincia, estabelecer uma certa compreenso da ao que revela sua apropriao

    particular da fisiologia da poca e, tambm, a influncia darwinista em seu pensamento.

    Em outras palavras, o roteiro mostra o vis evolucionista pelo qual James constri sua

    psicologia e segundo o qual interpreta os mais diferentes fenmenos.

    O plano desta tese7 Nos prefcios do BC e da edio italiana do PrP, em 1900.8 Retomada no prefcio do BC e cogitada para ser a disposio definitiva em uma reedio do texto. Ver comentrio histrico sobre o BC, pp. 466-477.

    14

  • Nosso projeto , portanto, compreender o PrP a partir dessa perspectiva

    funcional indicada no roteiro alternativo de leitura, destacando o papel da ao para a

    articulao geral dos princpios da psicologia jamesiana. Para isso, alm do prprio

    livro, recorreremos a outros textos quando houver a indicao direta, por parte do autor,

    de um artigo que aborde o tema em questo ou quando identificarmos a relao

    histrica, mesmo que no explicitada.

    Essa pesquisa ser dividida em quatro momentos. No primeiro captulo

    acompanhamos passo a passo o roteiro alternativo de leitura sugerido aos iniciantes. A

    partir dele, apresentamos o impacto das descobertas da fisiologia do sculo XIX,

    particularmente, a explicitao do princpio do arco reflexo, e a articulao desses

    achados com a interpretao de alguns processos psquicos. Indicamos os contornos de

    uma teoria geral da ao e destacamos o carter essencialmente ativo da conscincia,

    que serve como base para as crticas de James teoria do autmato. Esse roteiro marca

    tambm a subordinao dos processos psquicos superiores ao compromisso com a

    sobrevivncia e revela seu aparecimento e funo.

    O segundo captulo da tese apresenta o fluxo de pensamento como objeto da

    psicologia e ponto de partida para o exame dos fenmenos mentais, destacando,

    principalmente, a articulao geral dessa teoria com o aspecto cognitivo. Chegamos

    descrio do pensamento seguindo o debate de James sobre as inadequaes da

    psicologia introspectiva, principalmente dos autores associacionistas e exploramos as

    implicaes dessa formulao para a apresentao da conscincia do self, procurando

    destacar a preocupao geral no estabelecimento de uma aproximao emprica por

    parte do psiclogo.

    Em seguida, discutimos as consequncias das consideraes sobre o fluxo do

    pensamento e a perspectiva evolucionista para a interpretao dos processos cognitivos,

    mais especificamente o impacto da concepo da experincia como um todo indivisvel

    na caracterizao de toda a cognio e tambm a relao entre o aspecto ativo e

    interessado da conscincia na apropriao especfica de seus objetos. A questo que

    percorre todo o captulo o limite entre aquilo que ele denomina de psicologia da

    cognio e o que, anos mais tarde, conheceramos como o aspecto epistemolgico de

    sua obra.

    No captulo quatro, retomaremos essas questes no sentido de estabelecer o

    projeto de cincia psicolgica proposto no PrP, assim como suas orientaes filosficas

    15

  • gerais, particularmente, a maneira pela qual o autor articula a disciplina enquanto

    cincia natural e sua defesa do livre arbtrio; ou seja, trata-se de explorar o sentido

    epistemolgico, metodolgico e moral desse compromisso com uma filosofia da ao.

    Trata-se de defender nesse momento nossa tese propriamente dita: o projeto jamesiano

    no PrP como um psicologia da ao.

    Nossa inteno geral manter o registro explcito do texto e acompanh-lo em

    todos os seus embaraos. Isso significa que evitaremos, ao mximo, forar uma

    interpretao do PrP luz da filosofia jamesiana posterior. Parece-nos que a

    manuteno da tenso da posio positivista, a despeito dos problemas que causa para a

    consistncia geral da metafsica e da epistemologia elaboradas pelo autor, oferece uma

    perspectiva extremamente ilustrativa para a discusso dos fundamentos epistemolgicos

    da psicologia.

    Em sntese, este um trabalho sobre a psicologia de William James, mais

    especificamente, sobre o perodo de sua produo que vai do incio de sua carreira

    intelectual, em meados de 1860, at a publicao do PrP e de eventuais textos

    diretamente relacionados a ele, principalmente, na primeira metade da dcada de 1890.

    Ainda que nosso esforo principal seja ancorar aquilo que aparece na obra nas reflexes

    anteriores do autor, essa investigao inevitavelmente aponta caminhos pelos quais ela

    dialoga com a produo futura. Em termos gerais, veremos que o trabalho se insere em

    contexto de reflexo sobre histria e Filosofia da Psicologia, alm de esbarrar, com

    relativa frequncia, nos campos da metafsica e da teoria do conhecimento.

    16

  • Captulo I: A conscincia na ao e a impulsividade da conscincia: os contornos de uma filosofia da ao.

    All is action. All is for the sake of action9

    Para William James, a Psicologia a cincia da vida mental (PrP, p. 15),

    interessada em identificar e descrever os fenmenos mentais, como, por exemplo,

    pensamentos, memrias, sentimentos e percepes; e, tambm, esclarecer as condies

    responsveis por sua ocorrncia. Ele especifica o significado do adjetivo mental nos

    padres de ao nos quais os organismos so capazes de variar os meios para atingir

    determinado fim, o que denomina de ao mental; isto , ao intencional revelada pela

    possibilidade de um ser perseguir objetivos futuros e escolher os meios para atingi-

    los (PrP, p. 21, vol. I, grifos do autor).

    A disciplina tem, portanto, uma dupla funo, descritiva e explicativa, em

    relao aos fenmenos mentais (BC; James 1983a). No primeiro aspecto, a obra

    enriquecida pela exmia capacidade introspectiva e metafrica do autor, no outro, ao

    estabelecer as condies cerebrais como os determinantes imediatos dos estados

    mentais, marca seu compromisso, no contexto da Nova Psicologia, com a incorporao

    do crescente desenvolvimento da anatomia e da fisiologia neurais no sculo XIX ao

    estudo da mente.

    A aproximao com as cincias mdicas caracteriza a ruptura da psicologia

    cientfica em geral, e do projeto jamesiano em particular, com a antiga tradio,

    essencialmente especulativa, de uma psicologia de gabinete (armchair psychology). No

    caso dele, a separao diz respeito particularmente s doutrinas espiritualista e

    associacionista10 e d-se, em suas prprias palavras, mais por uma questo

    metodolgica do que de resultados. Trata-se, antes de tudo, de evitar uma formulao

    que misture cincia e metafsica, arruinando, assim, o desenvolvimento adequado de

    qualquer dos dois campos.

    Por psicologia espiritualista ou psicologia das faculdades11, James compreende

    a tradio que opta por classificar os mais variados fenmenos mentais em categorias

    9 James, Reflex action and theism.10 A indicao dos autores de cada tradio no precisa e sua descrio um tanto quanto caricatural.11 No captulo I o espiritualismo apresentado como a teoria da escolstica e do senso comum.

    17

  • particulares, considerando-as como faculdades ou modos de uma entidade superior ou

    substncia originria, como, por exemplo, a Alma ou a Mente. Neste sentido, resolver

    um problema matemtico, cantarolar mentalmente uma melodia, ou criar uma sequncia

    imagtica teriam em comum o fato de serem manifestaes distintas de uma mesma

    faculdade, o pensamento, e seriam possveis graas a essa peculiaridade da alma ou da

    mente humana.

    No associacionismo12, a unidade encontrada para explicar a diversidade da vida

    mental est na identificao de elementos fundamentais comuns a todos os estados e seu

    projeto consiste em explic-los [os estados complexos] construtivamente pelas vrias

    formas de arranjo desses elementos, como algum explica casas por pedras e tijolos

    (PrP, vol. I, pp. 15-16); ou seja, qualquer estado mental, por mais complexo que possa

    parecer, , em ltima instncia, um aglomerado de elementos simples organizados de

    forma particular. Trata-se de uma psicologia sem alma na qual, invertendo de forma

    absoluta a tese espiritualista, o ego no mais visto como algo pr-existente, mas

    produto da mais complexa representao.

    Cada uma dessas doutrinas examinada em diversos momentos do PrP, sob os

    mais diferentes ngulos, e sero devidamente retomadas ao longo de nossa pesquisa,

    mas importante destacarmos que boa parte das objees dizem respeito aos

    pressupostos tericos assumidos por cada uma, uma entidade transcendente no caso da

    psicologia espiritualista e a fragmentao da experincia, o atomismo, no caso do

    associacionismo, alm de ambas, de acordo com James, negligenciarem as condies de

    ocorrncia dos fenmenos mentais. A omisso mais significativa dessas tradies pr-

    cientficas diz respeito ausncia da condio imediata do fenmeno mental; isto , o

    estado cerebral que o acompanha.

    Cada leso cerebral, intoxicao ou episdio de embriaguez abre espao,

    segundo James, para a identificao do quanto o substrato orgnico fundamental para

    a compreenso do estado mental. Para ele, a principal falha das tradies mencionadas

    no serem cerebralistas; ou seja, no atentarem para o fato de que o estado cerebral a

    condio imediata do estado mental. Uma relao que no se esgota nas condies

    antecedentes, mas tambm remete s consequncias dos estados mentais, uma dinmica

    que pode ser expressa pela lei geral de que nenhuma modificao mental jamais

    12 Ainda na abertura do livro, ele identifica um ncleo alemo, representado por Herbart, e um ncleo ingls, com destaque para autores como Hume, James e John Mill e Alexander Bain. No entanto, em outros momentos do texto h referncia a diversos outros autores.

    18

  • ocorre sem ser acompanhada ou seguida por uma mudana corporal (PrP, vol. I, p.

    18, grifos do autor).

    Ao identificar o fundamento do estado mental no estado cerebral, James aponta

    o fato de que certa quantidade de fisiologia cerebral deve ser pressuposta ou includa

    na Psicologia (PrP, vol. I, p. 18). Isto permite-nos compreender parte da estruturao

    do livro. Seguem-se apresentao do campo da Psicologia dois captulos sobre as

    funes e atividades gerais do crebro, nos quais o autor apresenta um panorama dos

    principais resultados da pesquisa sobre o sistema nervoso de interesse para os

    psiclogos.

    Uma herana em particular James ressalta como a principal contribuio para a

    construo de uma Psicologia cientfica: a noo de arco reflexo13. Ela a chave para a

    compreenso dos fenmenos psicolgicos de acordo com o modelo das cincias

    naturais, constituindo o fundamento para uma explicao psicolgica que no remeta

    diretamente metafsica (Perry 1935)14.

    A nica concepo ao mesmo tempo renovadora e fundamental com a qual a Biologia

    presenteou a Psicologia, o nico ponto essencial no qual a nova psicologia est

    frente da velha, parece-me, a noo muito geral e ao mesmo tempo familiar, de que

    toda nossa atividade pertence basicamente ao padro da ao reflexa, e que toda nossa

    conscincia acompanha uma cadeia de eventos dos quais a primeira foi uma corrente

    que afetou algum nervo sensrio e da qual a ltima ser uma descarga em algum

    msculo, vaso sanguneo ou glndula (James 1888/1983b, p. 217, grifos do autor).

    Essa observao chama nossa ateno, imediatamente, para o esclarecimento dos

    processos psicolgicos como uma extenso do modelo explicativo oferecido pela ao

    reflexa, colocando, dessa forma, a prpria ao no foco desse projeto.

    Compreendemos a peculiaridade do intercmbio dos animais com o meio

    quando os comparamos com outros seres vivos. Segundo James, quando golpeamos a

    base de uma rvore observamos uma consequncia bastante distinta daquela em que a

    13 Por mera questo estilstica, seguindo o prprio autor, utilizaremos com o mesmo sentido as expresses padro reflexo, modelo reflexo e ao reflexa; significando que os atos que ns realizamos so sempre o resultado de descargas externas a partir dos centros nervosos e que tais descargas so o resultado de impresses do mundo externo, conduzidas por algum de nossos nervos sensoriais (James 1992c, p. 541).14 Ver particularmente o captulo LVI. preciso destacar aqui o quanto essa considerao do positivismo como ausncia de compromisso metafsico ser rediscutida por James aps a publicao do PrP (Taylor 1996).

    19

  • mesma agresso realizada contra um homem. No primeiro caso, observamos, apenas,

    uma reao localizada e isolada, enquanto no homem, assim como qualquer outro

    animal, a reao envolver todo seu corpo. Essa capacidade dos animais fruto de uma

    peculiaridade deles em relao a todos os outros seres: o sistema nervoso. De acordo

    com James, ele o responsvel pelas reaes organizadas dos animais em resposta a

    estimulaes particulares do meio. O sistema nervoso caracterizado, prioritariamente,

    como o responsvel pela integrao de toda informao recebida pelo organismo e

    tambm pela coordenao de sua forma de reao.

    Quando observamos as reaes humanas somos surpreendidos, inmeras vezes,

    por sua diversidade, prontido e adequao. H casos em que as reaes, cuja gnese

    no conseguimos atribuir aprendizagem, so automticas presena de certos

    estmulos. Em outros contextos, notamos que, apesar da prontido, a ao pode ter sua

    origem remetida a algum ponto da experincia passada e, por ltimo, vemos como os

    animais e, principalmente, o homem so capazes de reagir antecipando eventos, cuja

    presena no pode ser remetida ao presente imediato. James refere-se a esses padres

    como, respectivamente, os reflexos, os semi-reflexos e os atos voluntrios, e a partir

    deles que pretende explicar toda a conduta humana. Para ele, as performances reflexas

    e voluntrias dos animais se mesclam (shade into each other) gradualmente, sendo

    conectadas por atos que podem com frequncia ocorrer automaticamente, mas podem

    tambm ser modificados pela inteligncia consciente (PrP, vol. I, p. 26).

    Em cada uma dessas modalidades, algum que observe nossas aes tende a

    dizer, se tomar por critrio sua adequao ao contexto, que so inteligentes. Tanto as

    respostas automticas como a ao voluntria parecem, em princpio, reaes

    apropriadas s exigncias impostas pelo meio e, com isso, encontramos dois padres

    distintos de explicao. Por um lado, o modelo da ao reflexa, a partir da analogia com

    o funcionamento da mquina, e, por outro, uma concepo do ato voluntrio como algo

    precedido pela conscincia do propsito a ser atingido e por uma deliberao distinta. A

    nfase em algum dos extremos caracteriza, de acordo com James, as principais

    tentativas de apresentar um modelo explicativo geral.

    Alguns autores, supondo que os atos voluntrios elevados requerem o guia de um

    sentimento, concluem que sobre os reflexos inferiores algum sentimento dessa natureza

    deve tambm tomar a iniciativa, ainda que possa ser um sentimento do qual ns sejamos

    inconscientes. Outros, crendo que os reflexos e atos semi-automticos possam, apesar

    20

  • de sua adequao, tomar lugar com uma inconscincia aparentemente completa, rumam

    para o extremo oposto e sustentam que a adequao, mesmo nas aes voluntrias, no

    deve nada ao fato de que a conscincia atenta para elas. Eles so, de acordo com esses

    autores, resultado do mecanismo fisiolgico puro e simples (PrP, vol. I, pp. 26-27,

    grifos do autor).

    Essa passagem, aparentemente despretensiosa, ilustra cerca de dois sculos de

    investigao sobre a ao reflexa e revela a dificuldade em articular este grande achado

    fisiolgico em um nico princpio explicativo. preciso lembrar que o esclarecimento

    do mecanismo reflexo abriu as portas para uma explicao natural da ao e,

    cientificamente, nenhuma teorizao sobre ela poderia desprez-lo (Boring 1950;

    Herrnstein e Boring 1965). O embarao consiste em articular os aspectos marcantes da

    ao voluntria, o sentimento que a precede e a conscincia que a acompanha, com esse

    princpio. A insistncia em preserv-los conduz inferncia de tais processos, mesmo

    impossveis de detectar, na ao reflexa; a outra alternativa, que radicaliza o argumento

    na direo contrria, questiona o prprio status da conscincia15.

    As consequncias de um voluntarismo, no sentido da adoo do padro da ao

    voluntria como o paradigma, seriam as dificuldades da identificao dos sentimentos

    que precedem a ao16 no caso dos automatismos e a elucidao do mecanismo

    fisiolgico desse processo, alm, claro, da questo metafsica referente relao entre

    duas substncias distintas. No outro extremo, o resultado seria ou um materialismo

    mecanicista, que reduziria o mental ao fsico, ou um paralelismo que transformaria a

    conscincia em um epifenmeno um debate crucial e recorrente no contexto

    epistemolgico da Psicologia.

    Esse o ponto chave para compreendermos o projeto jamesiano. Como vimos,

    ele reconhece o aspecto revolucionrio da noo de reflexo enquanto possibilidade

    explicativa para a conduta humana e partilha do esforo de seus contemporneos para a

    elaborao de um projeto cientfico para a Psicologia. Neste sentido, ecoa a polmica

    anterior, apropria-se dela e torna-a fio condutor para a exposio de seus Princpios. O

    duplo esforo, descritivo e explicativo, da disciplina consiste na articulao geral dos

    fenmenos identificados pela introspeco com as informaes gerais sobre os

    15 Esta justamente a dificuldade produzida pela apropriao do conceito arco reflexo a partir do registro dualista que destacada por Dewey (1896) e que, cremos, James procurar evitar.16 Como veremos no caso dos sentimentos de inervao.

    21

  • processos cerebrais, que em ltima instncia significam a apropriao do mecanismo

    descrito no reflexo.

    Essa constatao conduz-nos a uma pergunta importante sobre a relao entre

    Fisiologia e Psicologia na obra de James, particularmente, entre a compreenso dos

    fenmenos mentais, via de regra em termos introspectivos, e sua explicao fisiolgica.

    Na organizao do PrP, a relao vai dos pressupostos fisiolgicos para os fenmenos.

    No entanto, como veremos, isso contrasta com a forma pela qual o autor se aproxima de

    diversos temas antes da publicao do livro e pode produzir uma falsa impresso sobre a

    dependncia lgica entre os argumentos apresentados no texto. Podemos dizer que o

    discurso segue, normalmente, das evidncias introspectivas e especulaes gerais para a

    inferncia de algum mecanismo fisiolgico, mas dificilmente no sentido inverso. Em

    outras palavras, que a explicao propriamente dita muito mais hipottica do que

    emprica.

    Com base nessas indicaes, podemos agora compreender com melhor nitidez, o

    itinerrio alternativo de leitura proposto pelo autor no prefcio. Trata-se de apresentar

    os fundamentos da fisiologia necessrios ao psiclogo e esclarecer o mecanismo geral

    da ao, antes de enfrentar o problema do materialismo objetivo do captulo sobre a

    teoria do autmato.

    Nosso objetivo neste captulo mostrar de que forma James apropria-se do

    princpio do arco reflexo no sentido de construir uma posio que supere as dificuldades

    indicadas. Para isso, apresentaremos suas consideraes gerais sobre o sistema nervoso

    e acompanharemos sua exposio sobre as diversas modalidades da ao: o instinto, a

    emoo, o hbito e a vontade. Ao final desse percurso, retomaremos as implicaes

    filosficas de sua posio em seu exame da teoria do autmato.

    Algumas consideraes sobre o sistema nervoso

    Como indicado, a parte inicial do PrP, contrariando a organizao geral dos

    manuais, apresenta os principais resultados da recente e intensa pesquisa sobre o

    sistema nervoso, particularmente sobre o crebro, realizada na segunda metade do

    sculo XIX. A sntese desses resultados, articulados em uma formulao geral,

    22

  • atribuda ao mdico austraco Theodor Meynert (1833-1892) e apresentada por James

    como o Esquema de Meynert17.

    O objetivo do texto mostrar algumas evidncias empricas sobre a localizao

    de funes gerais dos organismos em estruturas especficas do sistema nervoso. Os

    dados so derivados, principalmente, de experimentos realizados atravs de leses de

    pores especficas desse sistema em determinados animais, particularmente rs um

    procedimento um tanto quanto perverso para nossos padres contemporneos, mas a

    nica forma de estudar funcionalmente algumas estruturas sem o advento das

    neuroimagens. Os detalhes dessa investigao interessariam muito mais a uma histria

    das pesquisas relativas ao sistema nervoso, razo pela qual nos deteremos apenas em

    seus aspectos principais.

    De acordo com James, podemos extrair, a partir dessas evidncias, algumas

    concluses importantes. Quando o sistema reduzido sua poro elementar, a medula

    espinhal, o repertrio do animal fica restrito a reaes defensivas a estimulaes

    especficas. medida que pores superiores so preservadas, o repertrio de reaes

    se intensifica, mas a prontido e especificidade delas em relao apresentao dos

    estmulos permanece at o ponto em que os hemisfrios cerebrais continuam excludos.

    Em uma palavra, ele [o animal] uma mquina extremamente complexa, cujas aes,

    at o ponto em que ocorrem, tendem autopreservao; mas, ainda assim, uma

    mquina que parece no conter nenhum elemento incalculvel. Ao aplicarmos o

    estmulo sensorial correto a ele ns estamos quase to certos de obter uma resposta

    fixada como um pianista de obter determinada nota quando pressiona uma tecla

    especfica (PrP, vol. I, p. 30, grifos do autor)

    O animal intacto apresenta movimentao espontnea, que consideraramos

    desencadeada por uma ideia. Neste caso, o fisiologista no pode manipular cada uma de

    suas aes; ou seja, a partir da apresentao de determinado estmulo, a reao que

    seguir, quando existe a possibilidade desse trnsito nas pores superiores do sistema

    nervoso, torna-se bastante indeterminada e a previsibilidade no lembra nem de longe

    aquela dos centros inferiores.

    17 James refere-se principalmente aos textos Zur Mechanik des Gehirnbaues (Viena, 1874) e Psychiatrie. Klinik der Erkrankungen des Vorderhirns (Viena, 1884) e sua traduo inglesa Psychiatry: A clinical treatise on diseases of the fore-brain (Nova Iorque, 1885). Ver PrP, vol I, pp. 27-39 e vol III, p. 1305.

    23

  • James explora as implicaes propriamente fisiolgicas que essas indicaes

    oferecem, interessa-nos, particularmente, a concluso acerca da diferenciao entre os

    hemisfrios e os centros inferiores. Os centros inferiores agem a partir apenas de

    estmulos sensoriais presentes; e os hemisfrios sobre percepes e consideraes

    (PrP, vol. I, p. 32, grifos do autor). Se considerarmos que as percepes so conjuntos

    de sensaes e que as consideraes so expectativas de possveis sensaes que

    venhamos a experimentar de acordo com o curso da ao, podemos afirmar que a

    diferena entre o animal sem hemisfrio e o intacto pode ser concisamente expressa ao

    dizer que um obedece apenas aos objetos presentes e o outro aos ausentes (idem).

    De acordo com isso, os hemisfrios cerebrais seriam tomados, ento, como a

    sede (seat) da memria, uma espcie de reservatrio de recordaes e associaes

    resultantes de determinadas experincias. Se caracterizarmos o sistema nervoso a partir

    da noo bsica do arco reflexo e o tomarmos como um circuito eltrico, veremos que

    representao inicial do circuito simples do trnsito da estimulao (rgos sensoriais

    centros inferiores msculos) sobrepomos um percurso adicional formando uma

    espcie de looping no caminho da corrente18. Esse caminho alternativo representa

    justamente as circunstncias de hesitao da ao, que envolvem mais de uma

    alternativa e, por isso, necessitam de deliberao. Como, por exemplo, quando paramos

    por alguns instantes diante de um cruzamento, refletindo sobre qual caminho seguir.

    Neste sentido, atribumos exclusivamente aos hemisfrios a capacidade de

    discriminao, comparao e, consequentemente, a possibilidade de agir de forma

    prudente, uma caracterstica essencial para adaptaes a ambientes complexos. No de

    estranhar, ento, que quanto mais avanamos na cadeia zoolgica, menos atos so

    legados aos centros inferiores. As vantagens disso so evidentes. Se algumas de nossas

    aes tomassem lugar automaticamente na presena do estmulo desencadeador, atos

    essenciais como, por exemplo, comer se tornariam extremamente perigosos uma vez

    que comeramos em toda oportunidade e tudo o que se nos apresentasse. Extrapolando o

    tema para o terreno moral, James aponta essa capacidade de controle dos impulsos

    como a marca da civilidade. O ndice de nossa inteligncia poderia ser a capacidade de

    agir de acordo com consideraes cada vez mais distantes e cada vez menos impulsivas.

    O errante s pensa na prxima hora, o bomio no dia seguinte, o pai na prxima

    gerao; o filsofo e o humanista em todo futuro de nossa espcie. Nossa inteligncia

    18 Ver ilustrao, PrP, vol I, p. 33, figura 2.

    24

  • parece ser medida pela distncia que conseguimos estabelecer entre a ao e

    circunstncia a qual ela se refere.

    A partir dessas consideraes, James destaca a necessidade da ao ser

    produzida originalmente de alguma forma automtica ou instintiva para que possa,

    eventualmente, ser colocada a servio da vontade, respeitando o mecanismo fisiolgico

    do reflexo. Em sntese:

    Na linha adjacente (loop-line) ao longo da qual as memrias e as ideias do distante

    supostamente esto, a ao, at o ponto em que um processo fsico, deve ser

    interpretada conforme o tipo de ao nos centros inferiores. Se for considerada neles um

    reflexo, deve ser considerada da mesma forma nos hemisfrios. A corrente em ambos os

    lugares corre para os msculos apenas depois de ter ocorrido uma primeira vez; mas

    enquanto o caminho pelo qual ela corre determinado nos centros inferiores por poucas

    e fixas conexes entre os arranjos-celulares, nos hemisfrios elas so muitas e tambm

    instveis. Isto, veremos, apenas uma diferena de grau e no de tipo, e no muda o

    tipo reflexo. A concepo de toda ao em conformidade com esse modelo a

    concepo fundamental da neurofisiologia moderna. (PrP, vol. I, p. 35, grifos do

    autor)

    Dentro desse esquema, o estmulo que se apresenta uma segunda vez provoca,

    ao mesmo tempo, atos reflexos nos centros inferiores e ideias nos hemisfrios, que os

    interpretam, permitem ou inibem. A questo que se torna importante agora : Como

    podem se tornar organizados nos hemisfrios os processos que correspondem a

    reminiscncias na mente? (PrP, vol. I, p. 36, grifos do autor). James apresenta um

    caminho possvel para o processo trata-se, aqui, de conjecturar sobre o funcionamento

    do sistema nervoso a partir de quatro hipteses bsicas. Devemos supor que (1) o

    mesmo processo cerebral que d a percepo de um objeto dar sua ideia quando

    acionado de dentro; que (2) se alguns eventos ocorrerem em sucesso, de acordo com a

    lei da associao a cadeia tende a ser recuperada quando um dos pontos for estimulado;

    que (3) a excitao sensorial de centros inferiores tende a se propagar e desencadear

    ideias e, finalmente, que (4) toda ideia, tende, no limite, a produzir movimento ou inibir

    algum que possa ser produzido. Se todo caminho cerebral constitui-se, em ltima

    25

  • instncia a partir de um elo motor se dos esquemas ligados a essa excitao motora

    que eles provm ento, natural esse vnculo com a ao19.

    A partir disso, James destaca que nenhuma relao especfica entre dada

    impresso sensorial e determinada reao motora originria dos hemisfrios cerebrais.

    Tudo o que eles fazem estabelecer novas conexes para os padres oriundos dos

    centros inferiores. Nesse esquema, hemisfrios so uma superfcie supernumerria para

    a projeo e associao de sensaes e movimentos nativamente emparelhados

    (coupled) nos centros inferiores (PrP, p. 38). exclusivamente neles que ocorre

    qualquer processo de comparao e escolha. importante lembrar, tambm, que se todo

    repertrio do comportamento deve ser interpretado a partir da ao que produzida

    originalmente nos centros inferiores, devemos encontrar nestes centros, todos os

    padres gerais de ao.

    Lembremos, mais uma vez, que as consideraes so hipotticas; isto , trata-se

    de um modelo inferencial para compreender o sistema nervoso que, no entanto, carrega,

    implicitamente, um debate mais profundo. James concorda, como vimos, com a

    necessidade de tomar o modelo reflexo como parmetro explicativo e destaca, como

    uma das implicaes do princpio, o fato de que qualquer ideia ou sentimento

    experimentado dever ser resultado da prpria ao j que a ordem inicial deveria ser

    a descarga dos rgos sensoriais para os msculos.

    A despeito da aceitao das orientaes gerais dessa explicao, James discorda

    de alguns aspectos que podemos agrupar em duas direes. Em primeiro lugar,

    identifica, no nvel dos centros inferiores, a possibilidade de readequao das aes a

    variaes ambientais de acordo com o critrio estabelecido por ele, a ao mental. No

    outro extremo, ele discorda da caracterizao dos hemisfrios como locais

    completamente virgens originariamente. Trata-se, portanto, de recusar o mecanicismo,

    mesmo nos centros inferiores, e a equiparao da conscincia com o processo ideacional

    dos hemisfrios. Em outras palavras, sugere que o esquema provavelmente torna os

    centros inferiores demasiadamente parecidos com mquinas (machine-like) e os

    hemisfrios no to maquinais (machine-like) (PrP, vol. I, p. 39). Veremos que, ao

    acompanharmos essa discusso, identificamos no s sua hiptese fisiolgica, mas o

    19 A partir dessas afirmaes, James prope duas ilustraes do processo fisiolgico envolvido em uma experincia motora, como, por exemplo, o gesto de um beb para tocar a chama de uma vela e sua respectiva atitude de retirar o brao aps a queimadura. Se o sistema fosse puramente mecnico, o impulso de alcanar a vela seria sistematicamente repetido, pois no haveria memria da dor sofrida para impedir o gesto seguinte. A representao de acordo com o esquema de Meynert mais sofisticada e oferece uma explicao coerente para a evitao do gesto seguinte. Ver detalhes no PrP, vol. I, pp. 36-38.

    26

  • delineamento de sua concepo ativa da conscincia e uma continuidade na

    compreenso das diversas modalidades de ao.

    Analisaremos a questo relativa caracterizao dos hemisfrios nas sees

    seguintes. Por ora, basta-nos dizer que o esforo de James consistir em apontar

    tendncias inatas reao que fogem das simples realizaes dos centros inferiores20

    como, por exemplo, a emoo e o instinto, que so considerados reaes a objetos

    especiais de percepo; eles dependem dos hemisfrios; e eles so em primeira

    instncia reflexo, isto , eles seguem pela primeira vez quando o objeto excitador

    encontrado, no so acompanhados por reflexo (forethought) ou deliberao, e so

    irresistveis (PrP, vol. I, p. 83, grifos do autor).

    James critica a concepo mecanicista dos centros inferiores a partir de

    evidncias experimentais sobre uma ao mental no nvel desses centros. Sua

    argumentao segue a linha do experimento de Pflger e Lewes realizado com animais

    cujas regies superiores foram completamente lesionadas (um delineamento similar

    queles aos quais j nos referimos), mas, neste caso, os dados mostram a variao de

    respostas, envolvendo, inclusive outros esquemas musculares que no aqueles ligados

    ao reflexo original21. Isso nos permite supor algum espao para discriminao e escolha,

    uma reorganizao impossvel de ser pensada em um sistema puramente mecnico22.

    Dessa forma, ele conclui dizendo:

    Mesmo nos animais inferiores, portanto, h razes para suavizar aquela oposio entre

    os hemisfrios e os centros inferiores que o esquema demanda. Os hemisfrios podem,

    verdade, apenas complementar os centros inferiores, mas estes ltimos so parecidos

    com eles em natureza e tm pelo menos alguma poro de espontaneidade e escolha

    (PrP, p. 82).

    A partir dessas indicaes, James afirma que todos os ncleos do sistema

    nervoso so, ou foram em algum momento, rgos de conscincia, no sentido de que

    so capazes de selecionar, mesmo que simples aspectos relativos s sensaes.

    medida que a estrutura torna-se mais refinada aumenta a complexidade do processo,

    20 James argumenta sobre a impossibilidade, no caso do homem e dos macacos, de algumas aes serem realizadas nos centros inferiores. Ver PrP, vol I, p. 82.21 O experimento consiste em derramar um pouco de cido na perna de uma r. Seu movimento reflexo utilizar a pata para limpar o cido. Quando este membro amputado, o animal usa a outra perna para retirar o cido da regio afetada. Ver PrP, vol. I, pp. 22-23.22 Para uma sntese de outras pesquisa na mesma linha, ver PrP, vol. I, pp. 80-82.

    27

  • mas o que existe apenas uma variao de grau. Como veremos, da simples sensao

    deciso mais complexa, todo processo contm essa caracterstica.

    Para compreendermos a prontido e infalibilidade das reaes nos centros

    inferiores ou o trao do sistema que se assemelha mquina, basta que pensemos

    evolutivamente.

    Todos os centros nervosos tm, portanto, em primeira instncia uma funo essencial:

    aquela da ao inteligente. Eles sentem, preferem uma coisa a outra, e tm fins.

    Como todos os outros rgos, no entanto, eles evoluem do ancestral ao descendente, e

    sua evoluo toma duas direes, os centros inferiores regridem (passing downwards

    into) para um automatismo sem hesitao e os superiores progridem (upwards) para

    uma intelectualidade mais ampla. Pode acontecer, ento, que aquelas funes que

    podem com segurana tornar-se fatais e uniformes tornem-se minimamente

    acompanhadas pela mente e que seu rgo, a medula espinhal, torne-se cada vez mais

    uma mquina sem alma (soulless machine); enquanto, ao contrrio, aquelas funes que

    permitem ao animal adaptar-se a variaes ambientais delicadas passem para os

    hemisfrios, cuja estrutura anatmica e conscincia atenta (attendant consciousness)

    tornam-se mais e mais elaboradas medida que a evoluo zoolgica avana (PrP,

    vol. I, pp. 85-86, grifos do autor).

    Observamos que a crtica ao mecanicismo, que ser retomada na teoria do

    autmato, j desenhada de forma radical: a uniformidade das aes produzidas nos

    centros inferiores, embora possa assemelhar-se mquina, no faz da analogia uma

    opo interessante; o risco de us-la nesse contexto, torna-se grave erro medida que o

    padro torna-se mais complexo. Identificamos, tambm, algumas indicaes

    importantes a respeito da conscincia. Ela consiste fundamentalmente em um processo

    de seleo ou qualquer de seus sinnimos menos tcnicos, preferncia, interesse etc.

    e seus aspectos mais complexos, como, por exemplo, os processos cognitivos so

    secundrios em relao ao e esto a seu servio; em uma palavra, existem em

    funo dela23.

    Nas prximas sees, retomaremos o segundo ponto levantado contra o esquema

    do sistema nervoso analisado quanto possibilidade de identificao de padres

    originais de ao nas pores superiores; trata-se de apresentar as consideraes de

    James sobre os instintos e as emoes. Vale a pena destacar, no entanto, que a questo

    23 Esse vis j aparece explicitamente no Reflex action and theism de 1881 e mantido no PrP.

    28

  • relativa ao sistema nervoso menos importante, o que nos interessa o fato da

    investigao do instinto e da emoo expandir a abrangncia do arco reflexo,

    sustentando esse vnculo original da conscincia com a ao e sua dependncia dos

    processos corporais.

    O instinto24

    Consideramos instintivas aquelas reaes nas quais existe uma prontido inata

    do organismo em relao a uma determinada condio ambiental, reaes

    frequentemente ligadas a circunstncias de sobrevivncia. Ao observarmos o gato que

    corre ao avistar o co ou que agride outro animal pela preferncia de uma fmea ou

    disputa de territrio, dizemos que ele reage instintivamente. No raro, a interpretao

    dessas reaes feita em termos do propsito a que se prestam. Dizemos, por exemplo,

    que o animal foge porque ama a vida ou luta com seu inimigo porque teme a morte.

    A interpretao proposta por James altera sensivelmente essa caracterizao,

    atacando diretamente essa suposio do fim como orientador da ao. Segundo ele, o

    instinto pode ser definido como a faculdade de agir de tal maneira a produzir certos

    fins, sem que tenham sido antevistas, e sem educao prvia na performance (PrP,

    vol. II, p. 1004, grifos do autor). Nessa perspectiva, devemos consider-lo um padro

    inato de ao que no apresenta, pelo menos em sua primeira ocorrncia, nenhuma

    forma de antecipao de seus resultados que possa servir-lhe de guia. Trata-se de um

    tipo de ao extremamente comum no reino animal, ligado a funes adaptativas, que

    James considera o correlato funcional da estrutura dos prprios rgos.

    O autor prope, como indicado anteriormente, que incluamos o instinto no

    mecanismo geral da ao reflexa; dessa forma, diramos que as aes instintivas

    simplesmente so desencadeadas por determinados estmulos sensoriais em contato

    com o corpo do animal, ou a certa distncia no seu ambiente (PrP, vol. II, p. 1005). As

    relaes entre objetos particulares e aes especficas que os organismos exibem em

    determinado momento seriam resultado da maneira pela qual seu sistema nervoso foi

    organizado ao longo do processo evolutivo.

    24 O contedo do captulo publicado no PrP uma organizao, praticamente sem alteraes, de dois artigos de 1887: What is an instinct? e Some human instincts.

    29

  • Tomado dessa forma, podemos dizer que um instinto nada mais que um

    impulso para a realizao de determinada ao25. Frequentemente, ao analisarmos os

    padres instintivos encontramos no apenas um movimento, mas uma srie de

    movimentos especficos articulados com alguma funo. Quando, por exemplo, dizemos

    que nosso cachorro tem o instinto de enterrar os ossos ou, infelizmente, quaisquer

    outros objetos que encontre pela casa estamos nos referindo s aes de aproximar-se

    do objeto, segur-lo com a boca, conduzi-lo a um determinado local e assim por diante.

    Uma sofisticao e variedade de padres que nos espanta em alguns momentos.

    Notemos que o processo proposto implica uma estruturao e organizao geral

    da cadeia e no uma simples justaposio de cada ao. Em alguns casos, essa

    concatenao to forte que o animal torna-se absolutamente insensvel s condies

    ambientais; ou seja, uma vez iniciada a sequncia ela executada integralmente. James

    cita o exemplo curioso de um pequeno esquilo que havia sido adotado por um amigo

    prximo. O animal, de tempos em tempos, tinha por hbito segurar uma noz entre os

    dentes e for-la em direo a uma almofada como se a estivesse enterrando. Depois

    de concludo o movimento, ele partia para outra atividade, indiferente ao fato da noz

    ficar completamente exposta em cima da almofada. Em seu ambiente natural, o animal

    teria conseguido enterr-la; no novo contexto, a ao torna-se intil, embora continue

    sendo executada com o mesmo mpeto.

    Tudo se passa como se o sentimento ou feedback ocasionado por cada etapa

    cumprida fosse responsvel pelo desencadeamento do passo seguinte. Neste sentido,

    no seria correto afirmar que um animal luta ferozmente por causa de seu amor vida

    ou temor morte, da mesma forma que no dizemos que o homem alimenta-se de coisas

    saborosas porque as considera teis para sua sobrevivncia. Ele age dessa maneira,

    simplesmente, porque no pode evitar. Algo o impele a um conjunto de aes que ele

    apenas executa. Ele come porque a comida saborosa e faz com que ele queira mais

    (...) Como se a conexo entre a sensao saborosa e a ao que ela desperta fosse uma

    sntese a priori (PrP, vol. II, p. 1007, grifos do autor).

    A distino entre instinto e impulso permite-nos dar um passo alm na

    compreenso do comportamento dos animais, mas, principalmente, do repertrio

    humano. A definio de instinto proposta abriga apenas as aes cujos resultados no

    25 A principal referncia sobre a caracterizao de instinto como impulso Georg Heinrich Schneider (1846-1904) Der thierische Wille (Leipzig: Ambr. Abel, 1880) (PrP, vol. III, p. 1326). De acordo com este autor, possvel distinguir entre trs tipos de impulso: sensoriais, perceptivos e ideacionais dependendo da natureza da estimulao. Ver PrP, vol. II, p. 1006.

    30

  • podem ser vislumbrados de antemo; de outra forma, seramos obrigados a supor que a

    ideia de um evento existiria antes de sua realizao ou, ainda, que a ideia de um

    movimento existiria antes de sua execuo. Por outro lado, se tomarmos a noo de

    impulso, ela afirma simplesmente uma tendncia, mais ou menos forte, ao. Neste

    caso, no existe contradio na possibilidade de a ao ser precedida por algum desejo

    ou a antecipao de seu resultado.

    Toda vez que determinada reao instintiva executada por um organismo

    dotado de memria ela produz alguma associao entre os movimentos e o resultado

    obtido. Essa relao estabelecida pode influenciar de vrias maneiras, dependendo do

    animal, as futuras aes. Em primeiro lugar, podemos supor que a ativao eventual da

    reao provocar uma expectativa de suas consequncias, que por sua vez pode

    contribuir, de acordo com o grau de prontido dessa reao em particular, para sua

    inibio ou reforo. Alm disso, pelo menos no caso homem, a prpria ideia do

    resultado servir para desencadear o impulso; ou seja, a ao poder ser executada

    visando explicitamente tais resultados.

    O homem possui uma grande variedade de impulsos tanto quanto qualquer

    animal inferior; e qualquer um desses impulsos, tomado em si mesmo, to cego

    quanto os instintos mais inferiores podem ser. Mas, graas memria humana, ao poder

    de reflexo e ao poder de inferncia, cada um deles passa a ser sentido por ele, depois

    que ele os executou e experimentou seus resultados, em conexo com uma antecipao

    de tais resultados. Nessas condies, um impulso executado pode ser dito executado,

    pelo menos em parte, em funo (for the sake of) de seus resultados. bvio que todo

    ato instintivo, em animais com memria, deve deixar de ser cego depois de ter sido

    repetido uma vez e deve ser acompanhado da anteviso de seus fins, desde que esse

    fim tenha entrado no conhecimento do animal (PrP, vol. II, p. 704, grifos do autor).

    Se aliarmos essa expectativa das consequncias s diversas possibilidades de

    associao entre estmulos e reaes que a experincia pode oferecer com as

    capacidades de reflexo e inferncia, veremos quanta plasticidade os padres originais

    possibilitam. Quando um dado estmulo A, por exemplo, que sugeria originalmente uma

    reao P, passa a ser um sinal tambm para a reao B, o organismo pode exibir uma ou

    outra reao dependendo de outros fatores presentes no momento. Essa peculiaridade

    contribui para a identificao de condies mais ou menos propcias para a

    31

  • concretizao de dado impulso, principalmente quando vrios padres podem estar

    relacionados mesma circunstncia.

    Do ponto de vista fisiolgico, a partir do momento em que admitimos o instinto

    como um mero impulso excito-motor, devido pr-existncia de certos arcos-

    reflexos nos centros nervosos das criaturas (PrP, vol. II, pp. 1010-1011) conseguimos

    explicar essa disputa. Uma vez enquadrado no padro do arco reflexo, todo impulso

    deve seguir a mesma dinmica de qualquer processo neural: disputar a prioridade de

    efetivao com outros processos concorrentes leia-se, disputar em termos da fora da

    corrente neural excitatria26. A ao que se concretiza aquela para qual h uma maior

    soma de excitao. Essa interpretao contempla as irregularidades ocasionais e a

    variabilidade, algo que se tornaria mais difcil se os padres fossem estritamente

    mecnicos. medida que o impulso pode associar-se a vrios estmulos e um mesmo

    estmulo a vrios impulsos, a determinao de qual se seguir em dado momento est

    condicionada capacidade de excitao.

    James apresenta algumas generalizaes capazes de detalhar, no terreno

    propriamente psicolgico, a variabilidade na exibio dos instintos. medida que o

    animal progride na escala evolutiva torna-se mais provvel que as situaes despertem

    impulsos ambguos igualmente provveis em sua primeira ocorrncia e cabe s

    peculiaridades de determinada experincia fazer prevalecer algum deles. Um garoto, por

    exemplo, tem um impulso igualmente provvel de acariciar um cachorro quando o

    encontra como de ficar com medo dele. O primeiro contato com o animal ser decisivo

    para o relacionamento posterior. Ele denominou esse mecanismo como lei da inibio

    do instinto pelo hbito: Quando objetos de certa classe eliciam em um animal certo

    tipo de reao, geralmente acontece de o animal tornar-se parcial ao primeiro

    espcime da classe a que ele reagiu, e no ir depois disso reagir a nenhum outro

    (PrP, vol II, p. 1014, grifos do autor). O hbito funciona, ento, como princpio de

    seleo, restringindo a variabilidade27.

    Outra maneira de explicar a irregularidade dos instintos atentar para o

    aparecimento de determinados padres em momentos especficos na vida do organismo.

    Se tais momentos forem aproveitados, o impulso se transforma em hbito, se no, ele 26 De acordo com James, a ao que ser realizada ser aquela que atingir a intensidade necessria para a ativao de seu caminho nervoso. Esse processo detalhado no captulo Associao.27 H uma passagem em que ele destaca trs aspectos significativos para que possamos compreender a estruturao de um padro comportamental, relacionando filognese, ontognese e ambiente social: impulsionado pela natureza, fortalecido pelo hbito e enraizado pela tradio (PrP, vol. II, p. 1045).

    32

  • simplesmente desaparece. Trata-se da lei da transitoriedade, cujo enunciado afirma

    que Muitos instintos esto prontos (ripen) em certa idade e depois desaparecem (fade

    away) (p. 709). James refere-se ideia de um momento ideal happy moment, na

    expresso do autor para o desenvolvimento de certas habilidades que desaparecem se

    tais momentos foram desperdiados28. Isso explicaria, tambm, outra funo dos

    impulsos: dar lugar a hbitos. Em resumo, a maioria dos instintos so implantados

    para dar lugar a hbitos. Uma vez atingido este propsito, os prprios instintos, como

    tais, no tm nenhuma razo de ser na economia interna do organismo e,

    conseqentemente, desaparecem (PrP, vol II. p. 712, grifos do autor).

    Essa caracterizao dos instintos enquanto impulsos mais ou menos fortes

    permite a James rever, tambm, a compreenso da hesitao da ao humana, indicando

    que ela no significa a ausncia de instintos, mas sua abundncia e, neste sentido,

    superar uma dicotomia entre impulsividade e ao racional ou voluntria. O animal que

    possui essa variedade de padres parece levar uma vida de hesitao e escolha, uma

    vida intelectual; no entanto, no porque ele seja desprovido de instintos, mas porque

    ele tem tantos que eles bloqueiam os estmulos um do outro (PrP, vol. II, p. 706, grifos

    do autor).

    A ao que demora a acontecer fruto muito mais da variabilidade de impulsos

    passveis de serem seguidos, da capacidade em identificar aspectos sutis da situao e

    de inferir os possveis desdobramentos da ao, do que da ausncia de impulsividade. O

    pensamento interpe-se ao tambm enquanto possibilidade de virtualizao,

    tornando-se uma caracterstica essencial para a adaptao em ambientes complexos e

    instveis, embora com o prejuzo da prontido da reao. O papel da conscincia nesse

    ponto, como ser especificado em nossa discusso sobre a vontade, consiste em atentar

    para um impulso fraco ou algum que seja contrrio reao que se deseja inibir; a

    conscincia, por si, no capaz de criar ou inibir impulsos, ela uma forma particular e

    sofisticada de seleo. Essa caracterizao coloca todo o comportamento do homem,

    como tambm dos animais, de forma contnua no processo evolutivo, apontando entre

    as diferentes manifestaes apenas uma diferena de grau.

    A Natureza organizou os animais inferiores de maneira rudimentar fazendo-os agir

    sempre de tal forma que estivessem frequentemente certos. Existem menos minhocas

    colocadas em anzis do que fora deles, portanto, no geral, diz a Natureza aos seus filhos

    28 James retoma esse aspecto, principalmente do ponto de vista moral e pedaggico, no Talks to teachers.

    33

  • peixinhos, morda cada minhoca e corra os riscos. Mas medida que seus filhos tornam-

    se mais elevados e suas vidas mais preciosas, ela reduz os riscos. O que parecia ser o

    mesmo objeto pode ser agora tanto um alimento genuno como uma isca; como nas

    espcies gregrias cada indivduo pode ser tanto amigo quanto rival de outro, de acordo

    com as circunstncias (...) a Natureza implanta impulsos contrrios de ao em muitas

    classes de coisas e deixa para as alteraes particulares nas condies de cada caso

    individual que impulso deve ser realizado (PrP, vol. II, p. 1013, grifos do autor).

    A investigao de James inclui, ainda, um inventrio do que considera uma

    amostra dos instintos humanos. Parte de padres motores fundamentais ligados

    alimentao, como, por exemplo, sugar, morder, levar objetos boca; e explora

    aspectos instintivos de aes como, por exemplo, higiene pessoal, recato, agressividade

    e curiosidade. O interesse geral nesse inventrio, alm de contribuies a um projeto de

    psicologia do desenvolvimento, situa-se em suas constantes refutaes da posio

    essencialmente voltada histria individual defendida pelos associacionistas, negando

    em diversas ocasies qualquer componente instintivo nas aes; e na sugesto de

    algumas hipteses evolutivas para explicar a origem e manuteno de alguns de nossos

    padres29.

    As consideraes sobre o instinto, alm da questo sobre a existncia de padres

    hereditrios de ao nos centros superiores do sistema nervoso, sugerem padres

    articulados de ao produzidos ao longo da histria evolutiva, que herdamos na forma

    de impulsos mais ou menos fortes. Na perspectiva de James essa defesa do aspecto

    impulsivo mostra-se compatvel com a compreenso da ao hesitante ou aquela que

    engloba um processo deliberativo superando uma eventual incompatibilidade entre os

    impulsos e os processos superiores. O fato de ser originalmente cego mostra sua

    adequao ao princpio do arco reflexo, mas sua dinmica mostra uma organizao que

    se distancia de uma interpretao estritamente mecnica e que serve, junto com as

    reaes emocionais, como base sobre a qual o repertrio ser desenvolvido.

    A emoo

    29 Ver PrP, vol. II, pp. 1022-1057.

    34

  • Podemos identificar uma proximidade entre e as emoes e os instintos, no

    apenas, como veremos, enquanto padres de reao a circunstncias especficas, mas

    tambm pelo fato de as respostas emocionais, via de regra, aparecerem

    concomitantemente com os instintos, como se um se misturasse com o outro na

    presena de determinado objeto. A fronteira entre eles, embora difcil de ser delimitada,

    reside no aspecto mais prtico e exterior do instinto, enquanto que a reao emocional

    termina, em geral, no prprio corpo.

    A classe dos impulsos emocionais mais ampla que a dos comumente chamados

    instintivos. Seus estmulos so mais numerosos, suas expresses mais internas e

    delicadas e frequentemente menos prticas. O plano fisiolgico e a essncia das duas

    classes de impulso, no entanto, so os mesmos (PrP, vol. II, pp. 1058-1059, grifos

    nossos).

    O trecho final da passagem refora a inteno inicial que estamos

    acompanhando de apresentar uma compreenso geral da ao com base no modelo do

    arco reflexo. Quando tomamos as consideraes sobre a emoo no captulo do PrP, a

    primeira impresso a de um exerccio, por parte do autor, no sentido de ajustar os

    processos particulares ao padro geral do reflexo. O leitor deve recordar-se de nossa

    observao sobre a articulao entre psicologia e fisiologia e apostar que, no caso da

    emoo, o argumento parte da ltima em direo primeira. Essa observao

    particularmente importante porque a teoria da emoo um dos pontos nos quais a

    crtica materialista a James costuma apoiar-se (Perry 1935; Myers 1981; Evans 1981;

    Myers 1986). Um panorama gentico do tema ajuda-nos a entender melhor essa

    formulao e, consequentemente, a nos posicionarmos em relao s crticas.

    O primeiro tratamento sistemtico do tema30 aparece, em 1884, no artigo What is

    an emotion. Neste texto, o autor destaca o quanto o estudo das emoes mostra a

    fecundidade do esquema cerebral proposto por alguns autores contemporneos, mas, a

    despeito dessa caracterstica, as concluses apresentadas sobre a emoo no partiram

    desse esquema. Os resultados encontrados sobre a emoo31 cresceram de observaes

    introspectivas fragmentadas, e somente quando elas foram combinadas em uma teoria

    ocorreu-me o pensamento da simplificao que elas poderiam trazer para a fisiologia 30 James j destacava seu aspecto impulsivo no The feeling of effort de 1880, ver pp. 105-106.31 Em 1885, James tem contato com o trabalho do fisiologista dinamarqus Carl G. Lange, The emotions: a psychophysiological study, cujas principais concluses aproximavam-se muito das suas; esse fato tornou essa teoria conhecida como James-Lange (Perry 1935)

    35

  • cerebral, fazendo-a parecer ainda mais importante (James 1884/1983c, p. 169, grifos

    nossos). Notamos que a formulao construda a partir das observaes introspectivas

    e ento articulada com o modelo da ao reflexa e no o inverso, reforando seu valor

    descritivo.

    Referimo-nos comumente s emoes em termos dos sentimentos

    experimentados em determinadas situaes e, principalmente quando observamos isso

    em outras pessoas, em relao s expresses produzidas. A descrio desses dois

    aspectos h muito ocupa a reflexo humana em suas diversas modalidades. Na

    literatura, especialmente na poesia, encontramos na explorao metafrica da linguagem

    um exerccio constante da explicitao e compreenso dessas caractersticas. Em um

    contexto propriamente acadmico, um marco significativo a publicao do livro A

    expresso da emoo nos homens e nos animais por Darwin, um texto ao qual James

    recorre com frequncia.

    O senso comum, talvez sem a perspiccia do poeta ou a sistematicidade do

    cientista, no deixa de ocupar-se tambm da emoo. No discurso cotidiano, emitimos

    juzos sobre nossas prprias emoes e sobre as dos outros, alm de especularmos a

    respeito de suas causas. Observamos a criana chorando e atribumos as lgrimas sua

    tristeza. Espanta-nos a ferocidade com que o animal agride seu adversrio e remetemos

    esse mpeto sua raiva; exaspera-nos a