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Os quilombolas e a Base de lançamento de foguetes de Alcântara

Os quilombolas e a Base de lançamento de foguetes de Alcântara · Povoados previstos para assentamento das famílias deslocadas: "Transferência e ... TC Terra de Caboclo TP Terra

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Os quilombolas e a Base de

lançamento de foguetes

de Alcântara

2

Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 2

República Federativa do Brasil

Presidente - Luiz Inácio Lula da Silva

Vice-Presidente - José Alencar Gomes da Silva

Ministério do Meio Ambiente - MMA

Ministra - Marina Silva

Secretário Executivo - Claudio Langone

TAL Ambiental - Fabrício Amilívia Barreto (coordenador)

Secretária de Coordenação da Amazônia - Muriel Saragoussi

Programa Piloto para a Proteção das Florestas Tropicais do Basil - Nazaré Soares (coordenadora)

Secretário de Políticas para o Desenvolvimento Sustentável - Gilney Amorim Viana

Diretor de Agroextrativismo - Jorg Zimmermann

Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome - MDS

Ministro - Patrus Ananias de Sousa

Ministério do Desenvolvimento Agrário - MDA

Ministro - Miguel Soldatelli Rossetto

Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial - SEPPIR

Ministra - Matilde Ribeiro

Edições Ibama

Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis

Centro Nacional de Informação, Tecnologias Ambientais e Editoração

SCEN - Trecho 2 - Bloco B

Cep: 70818-900 - Brasília-DF

Telefone: (61) 3316-1065

Fax: (61) 3316-1189

E-mail: [email protected]

Brasília

2006

Impresso no Brasil

Printed in Brazil

Os quilombolas e a Base de

lançamento de foguetes

de Alcântara

laudo antropológico

Volume 2

Alfredo Wagner Berno de Almeida

Brasília, 2006

Grupo Executivo Interministerial para o Desenvolvimento Sustentável de Alcântara

Coordenador: Adelmar de Miranda Torres (Casa Civil da Presidência da República)

Carlos Eduardo Trindade Santos (SEPPIR)

Isabella Fagundes Braga Ferreira (MMA)

Milton Nascimento (MDS)

Mozar Artur Dietrich (MDA)

Paulo César Spyer Resende (MMA)

Thelma Santos de Melo (MMA)

Zorilda Gomes de Araújo (MDS)

______________________________

Coordenação Editorial: Projeto de Apoio ao Monitoramento e Análise (AMA) do Programa Piloto

para a Proteção das Florestas Tropicais do Brasil (vinculado à Secretaria de

Coordenação da Amazônia do Ministério do Meio Ambiente) e TAL Ambiental

Coordenadora do Projeto AMA – Onice Dall’Oglio

Coordenadora Adjunta do TAL Ambiental – Fernanda Costa Corezola

Cooperação Técnica Alemã – Petra Ascher (GTZ)

Responsável por esta edição – Kelerson Semerene Costa

Editoração: Edições Ibama

Projeto Gráfico e Diagramação: Carlos José e Paulo Luna

Capa: Denys Márcio

Normalização Bibliográfica: Helionídia C. Oliveira

Fotos: Alfredo Wagner Berno de Almeida (exceto naquelas em que outro autor estiver indicado)

Digitalização das fotos e preparação do mapa: Design [Casa 8]

Conceitos emitidos e informações prestadas nesta publicação são de inteira responsabilidade do autor

Direitos reservados ao autor

Distribuição dirigida

Tiragem: 2.000 exemplares

Catalogação na Fonte

Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis

A447q Almeida, Alfredo Wagner Berno de.

Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara:

laudo antropológico / Alfredo Wagner Berno de Almeida. – Brasília:

MMA, 2006.

2 v. : il.; 24cm

Bibliografia

ISBN 85-7300-198-4

1. Grupo étnico. 2. Quilombo. 3. Antropologia. 4. Alcântara (cidade).

I. Ministério do Meio Ambiente. II. Secretaria de Coordenação da Amazônia.

III. Secretaria de Políticas para o Desenvolvimento Sustentável. IV. Título.

CDU 39 (812.1)

Dona Maria Estelita Araújo, aos 110 anos

VOLUME 2

Povoados referidos às comunidades que se localizam na área desapropriada parainstalação da base de lançamento de foguetes .......................................................................... 19

Povoados previstos para deslocamento: "Transferência e Assentamento III" ................ 23

Povoados previstos para assentamento das famílias deslocadas: "Transferência eAssentamento III"............................................................................................................................... 23

Povoados onde foram assinaladas ruínas de "casarões" e/ou moendas ........................... 38

Povoados onde foram assinaladas ruínas de "engenhos" e "casas-grandes"ou "casarões" ............................................................................................................................. 40

Alcântara , 1861 - Senhores de engenho de açúcar ................................................................ 41

Quilombos em Alcântara (1701-1788) ................................................................................. 50

Quilombos em Alcântara (1800-1886) ................................................................................. 57

Registro de terras segundo declaração do possuidor - Alcântara(1854-1857) ......................................................................................................................................... 63

Povoados referidos às comunidades que se localizam fora da áreadesapropriada para instalação da base de lançamento de foguetes ..................................... 79

Situação das agrovilas ...................................................................................................................... 82

Agrovilas ......................................................................................................................................... ... 87

Tabelas, gráficos e quadrosdemonstrativos

ABA Associação Brasileira de AntropologiaACONERUQ Associação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas do Maranhão

AEB Agência Espacial BrasileiraADCT Ato das Disposições Constitucionais TransitóriasAN Arquivo Nacional

APEM Arquivo Público do Estado do MaranhãoCCN-MA Centro de Cultura Negra do Maranhão

Cf. ConformeCLA Centro de Lançamento de Alcântara

CNPACNRQ Comissão Nacional Provisória de Articulação das Comunidades NegrasRurais Quilombolas

COBAE Comissão Brasileira de Atividades EspaciaisCOLONE Companhia de Colonização do NordesteCONAQ Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais

QuilombolasCONTAG Confederação Nacional dos Trabalhadores na AgriculturaDEPED Departamento de Pesquisa e Desenvolvimento-MAerDSG-ME Diretoria do Serviço Geográfico - Ministério do ExércitoEMFA Estado Maior das Forças ArmadasFCP Fundação Cultural Palmares

FETAEMA Federação dos Trabalhadores na Agricultura do MaranhãoFUNASA Fundação Nacional de SaúdeGICLA Grupo para Implantação do Centro de Lançamento de AlcântaraG.N. Grifo nossoGPS Global Position System (Sistema de Posicionamento Global)

IBAMA Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos NaturaisRenováveis

IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e EstatísticaIHGB Instituto Histórico e Geográfico BrasileiroIHGEB Instituto Histórico, Geográfico e Etnográfico do BrasilINCRA Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária

INFRAERO Empresa Brasileira de Infra-Estrutura AeroportuáriaIPEI Instituto de Pesquisas Econômico-sociais e Informática

ITERMA Instituto de Terras do Estado do Maranhão

Siglas e Abreviaturas

MAER Ministério da AeronáuticaMCT Ministério de Ciência e TecnologiaMEAF Ministério Extraordinário de Assuntos FundiáriosMECB Missão Espacial Completa BrasileiraMinC Ministério da Cultura

MIRAD Ministério da Reforma e do Desenvolvimento AgrárioMMA Ministério do Meio Ambiente

MOMTRA Movimento das Mulheres Trabalhadoras RuraisMONAPE Movimento Nacional dos PescadoresMOPEMA Movimento dos Pescadores do Maranhão

MPP Mestrado em Políticas PúblicasPVN Projeto Vida de Negro

SMDH Sociedade Maranhense de Defesa dos Direitos HumanosSUCAM Superintendência de Campanha de Saúde Pública /Sup. Erradicação da

MaláriaSUDENE Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste

STTR Sindicato de Trabalhadores e Trabalhadoras RuraisTC Terra de CabocloTP Terra de PretoTPo Terra da PobrezaTS Terra de SantoTSa Terra de SantaTSi Terra de SantíssimoTSia Terra de Santíssima

UFMA Universidade Federal do MaranhãoUFRJ Universidade Federal do Rio de JaneiroUnB Universidade de Brasília

UNESCO Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e CulturaVLS Veículo Lançador de Satélite

VOLUME 1

INTRODUÇÃO.................................................................................................. 19

O OBJETO DA PERÍCIA E OS PROCEDIMENTOS DE OBTENÇÃO

DE INFORMAÇÕES ......................................................................................... 27

Os arquivos como discurso de legitimação ................................................................ 35

Os mediadores e o discurso da mobilização .............................................................. 39

PROCESSO DE TERRITORIALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES REMANESCENTES

DE QUILOMBOS ............................................................................................. 43

Territorialidades específicas, estrutura agrária e situação atual

dos conflitos .............................................................................................. 47

Sumário geral

Muralhas e Paredões: as ruínas das casas-grandes e dos engenhos como

fator de identificação das comunidades remanescentes de quilombos ...... 59

Os quilombos e a luta simbólica pelas ruínas ............................................................. 61

O mapeamento das ruínas ............................................................................................... 63

A fuga dos senhores de engenho e a recusa da tutela .............................................. 70

As ruínas e o tempo livre ............................................................................................ 72

A datação da fuga e das ruínas ................................................................................... 74

A datação das ruínas das fazendas das ordens religiosas ....................................... 76

Companhia de Jesus ............................................................................................... 76

Ordem dos Carmelitas Descalços ....................................................................... 78

Ordem de Nossa Senhora das Mercês ............................................................... 78

Irmandade do Santíssimo Sacramento ............................................................... 79

Territorialidades específicas ......................................................................................... 80

As diferenças culturais e as premissas étnicas ........................................................... 82

O domínio "original": as "terras de índio" como "terras de preto" ............. 87

As "terras de preto" e as "terras de caboclo": a construção do território pelosfatores estigmatizantes .................................................................................................. 91

Área decretada e territorialidades específicas .............................................................. 53

Da capitania de Cumã às sesmarias: a formação das fazendas ............................ 95

A "modificação da fisionomia étnica" ........................................................................... 100

Registros de cartas de datas e sesmarias e o fim do monopólio daCompanhia Geral do Comércio ........................................................................................ 103

A derrocada da economia algodoeira............................................................................ 108

Os quilombos em Alcântara ............................................................................................. 115

Os quilombos e a governação pombalina .................................................................... 117A consolidação dos quilombos no decorrer do século XIX .................................. 123

Os territórios de parentesco ............................................................................................. 141As doações de terras ............................................................................................................. 141As terras da pobreza ............................................................................................................. 143As compras de terras ............................................................................................................. 144Os territórios de parentesco ............................................................................................... 149

O território das comunidades remanescentes de quilombos ............................... 153

A interseção dos planos de organização social .......................................................... 165A interdependência econômica e ecológica dos povoados........................................ 165

As "circunscrições" religiosas ............................................................................................. 170

Os cemitérios e as tensões sociais em face da interdição de uso, pelo

CLA, do antigo cemitério de Peru e Marudá .......................................................... 171

A festas religiosas ............................................................................................................. 173

As instâncias políticas de mediação. ................................................................................. 176

NOTAS ................................................................................................................................................ 181

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................................. 201

ANEXO ............................................................................................................................................... 207

"Terras das comunidades remanescentes de quilombos - territorialidade, uso dos recursosnaturais, sítios históricos e conflitos sociais" (mapa e memorial descritivo)

VOLUME 2

RESPOSTAS AOS QUESITOS

Quesito 1 ...................................................................................................................................... 17

Quesito 2 ...................................................................................................................................... 25

Quesito 3 ...................................................................................................................................... 73

Quesito 4 ...................................................................................................................................... 81

Quesito 5 ...................................................................................................................................... 87

Quesito 6 ...................................................................................................................................... 89

Quesito 7 ...................................................................................................................................... 93

Quesito 8 ...................................................................................................................................... 95

Quesito 9 ...................................................................................................................................... 97

Quesito 10 ................................................................................................................................... 99

Quesito 11 ....................................................................................................................................... 101

NOTAS ................................................................................................................................................ 103

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................................. 109

ANEXOS ............................................................................................................................................... 115

Fontes documentais e arquivísticas: transcrição de documentos que registram, diretaou indiretamente, quilombos em Alcântara (1702-1886)

Certidão referente à terra da pobreza

Registro fotográfico

Calendário agrícola e extrativo

Carvão

Respostas aos quesitos

Os presentes quesitos, embora já tenhamorientado o trabalho de campo pericial e sido objeto derespostas, com a devida fundamentação, distribuídas no

curso da análise dos dados, serão aqui respondidosdiretamente, um a um, em separado, observando a

ordem segundo a qual foram formulados.

Considerando que as informações oficiais do Censo Demográfico de 2000,do IBGE, apresentam dados sobre a população rural e urbana do município de Alcântarareferentes tão-somente à sede municipal e ao distrito de São João de Cortes, sem qualquermenção a bairros rurais, subdistritos e povoados;

considerando que os cadastros de famílias produzidos pelo Ministério daAeronáutica e pela Infraero-CLA, em novembro de 1998, referem-se apenas aos povoadoscom deslocamento compulsório previsto e àqueles outros em cujos domínios as famíliasseriam assentadas;

considerando também que não foi possível, consoante as condições objetivasque nortearam o trabalho pericial (tempo, composição da equipe, extensão da área, quantidadede povoados), realizar um recenseamento com base em categorias antropológicas;

decidimos por adotar, com as devidas relativizações e respectivos cotejospara atenuar a margem de erro, os dados cadastrais da Funasa, que consistem na maisampla base quantitativa disponível referida à área rural de Alcântara e concernem a verificaçõesbásicas feitas em junho e julho de 1995 e atualizadas em agosto de 2001.

Os levantamentos censitários produzidos no âmbito da Funasa objetivamatender a finalidades cadastrais dos denominados "distritos sanitários". O método quantitativoadotado agrupa ou separa os povoados de acordo com a ação dos agentes de saúde, quevisitam periodicamente família por família e vistoriam edificação por edificação, apoiando-se inclusive nos croquis dos funcionários da antiga Sucam, que percorriam todo o interiordo município. A noção de povoado compreende um grupo de moradias. A família, noplano de cada povoado, é tomada como uma família nuclear, que usualmente inclui parentesafins. Pelos procedimentos de agrupamento, um povoado nem sempre é nomeado pelospovoados maiores, o que por vezes dificulta a sua identificação cartográfica. Um exemplodessa forma de agregação refere-se a São João de Cortes, para o qual os dados do IBGEassinalam 2.509 habitantes, enquanto que os da Funasa contabilizam 520 habitantes. A variaçãoatém-se não apenas à data da coleta, mas sobretudo a critérios de distribuição da intervençãodos agentes de saúde, cuja ação focaliza também pequenos aglomerados, destacando-osdaqueles em torno dos quais gravitam. Os denominados "prédios", inclusos norecenseamento da Funasa, compreendem, por sua vez, o levantamento das edificações,ocupadas ou não, qualquer que fosse o material empregado em sua construção e o fim aque se destinassem: residências, escolas, postos de saúde e ambulatórios, bem como aschamadas tribunas – locais de reunião e eventos comunitários – e casas de forno – onde as

Quantas e quais são as comunidades existentesna área pretendida pelo Centro de Lançamentode Alcântara, incluindo a zona de segurança?Qual a população existente em cada uma delas?

1.

18

Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 2

famílias desmancham a mandioca para fabricar farinha – e demais locais de serviços eatividades diversas.

Embora não haja uma correspondência exata entre os povoados, produto daagregação, e as comunidades, que os articulam segundo diferentes planos de organizaçãosocial, pode-se afirmar, guardadas as distinções, que se trata de situações passíveis deaproximação. Os povoados consistem em realidades empiricamente observáveis, enquantoque as comunidades teoricamente transcendem a um grupo de moradia, compreendendorelações sociais com a vizinhança, situação comum de interesses, identidade e formas de açãocomum que podem ser lidas como "relações comunitárias étnicas" (Weber, 1994:267). Nessesentido é que os povoados acham-se referidos a comunidades.

O critério de fidedignidade das informações levantadas foi realizado de maneiracomparativa. Os dados quantitativos foram cotejados com diferentes fontes de referênciapara efeito de verificação. Foram comparados tanto com os resultados dos trabalhoscartográficos realizados no decorrer do trabalho de campo pericial e com as verificações inloco, quanto com os dados censitários relativos aos povoados da "zona de segurança",cadastrados pela Infraero em 1998 para fins de deslocamento, e àqueles povoados emcujos domínios estava previsto o assentamento.

Mediante esses esclarecimentos, pode-se asseverar que: a área pretendida peloCentro de Lançamento de Alcântara corresponde a 62.000 hectares, ou seja, mais da metadeda superfície do município de Alcântara, e nela existem 90 povoados, consoante os registrosda Funasa, com 8.398 habitantes. A seguir, apresentarei a relação deles com sua respectivapopulação.

19

Alfredo Wagner Berno de Almeida

Povoados referidos às comunidades que se localizam na área desapropriada para

instalação da base de lançamento de foguetes

1 Águas Belas 27 19 25/07/95

2 Bacuriajuba (Bacurijuba) 7 19 25/07/95

3 Baracatatiua 37 101 25/07/95

4 Bebedouro 3 8 25/07/95

5 Boa Vista III 10 27 25/07/95

6 Bom Jardim 9 25 12/06/95

7 Bom Viver (Bom de Ver) 26 71 25/07/95

8 Brito I 35 96 25/07/95

9 Cajapari 6 16 25/07/95

10 Cajatiua (Cajitiva/Cajutiua) 9 25 25/07/95

11 Camirim 10 27 25/07/95

12 Canavieira 19 52 25/07/95

13 Canelatiua 65 178 25/07/95

14 Capijuba 1 3 25/07/95

15 Capim Açu 20 55 25/07/95

16 Capoteiro 1 3 25/07/95

17 Caratatiua 9 25 25/07/95

18 Cavem II 3 8 25/07/95

19 Corre Fresco 17 47 25/07/95

20 Engenho I 14 38 25/07/95

21 Esperança 13 36 25/07/95

22 Flórida 2 5 25/07/95

23 Ilha da Camboa (Camboa) 5 14 25/07/95

24 Iririzal 25 68 25/07/95

25 Itapuaua 63 172 25/07/95

26 Itauaú 83 227 25/07/95

27 Janã 22 60 25/07/95

28 Ladeira II 26 71 25/07/95

29 Lago 27 74 25/07/95

30 Macajubal I 21 57 25/07/95

31 Macajubal II 32 88 25/07/95

32 Mãe Eugênia 11 30 25/07/95

33 Mamona I 60 164 25/07/95

34 Mamona II 13 36 25/07/95

35 Mangueiral 35 96 25/07/95

36 Marinheiro 2 5 25/07/95

37 Marmorana 14 38 25/07/95

Nome do Povoado Nº de Prédios/2001 Habitantes/2001 Data do RG

20

Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 2

Nome do Povoado Nº de Prédios/2001 Habitantes/2001 Data do RG

38 Mato Grosso 6 16 25/07/95

39 Murari 15 41 25/07/95

40 Mutiti 11 30 25/07/95

41 Nova Espera 22 60 25/07/95

42 Nova Ponta Seca 21 57 25/07/95

43 Novo Cajueiro 65 178 25/07/95

44 Novo Maruda 111 304 25/07/95

45 Novo Peital (Pepital) 50 137 25/07/95

46 Novo Peru 130 356 25/07/95

47 Novo Só Assim 30 82 25/07/95

48 Oitiua 350 958 25/07/95

49 Pacuri 25 68 25/07/95

50 Palmeiras 7 19 25/07/95

51 Pavão 18 49 25/07/95

52 Peri-Açu 35 96 25/07/95

53 Perizinho 39 107 25/07/95

54 Peroba de Baixo 29 79 25/07/95

55 Peroba de Cima ( * ) 68 186 25/07/95

56 Piquia 1 3 25/07/95

57 Ponta D'areia 124 340 25/07/95

58 Porto da Cinza 3 8 25/07/95

59 Porto do Boi I 56 153 25/07/95

60 Praia de Baixo 9 25 25/07/95

61 Prainha 82 225 25/07/95

62 Primirim 1 3 25/07/95

63 Quiriritiua 70 192 25/07/95

64 Retiro 15 41 25/07/95

65 Rio Grande I 85 233 25/07/95

66 Rio Grande II 7 19 25/07/95

67 Rio Verde 6 16 25/07/95

68 Samucangaua 48 131 25/07/95

69 Santa Helena 1 3 25/07/95

70 Santa Maria 122 334 25/07/95

71 Santa Rita II 7 19 25/07/95

72 Santana dos Caboclos 55 151 25/07/95

73 São Benedito I 22 60 25/07/95

74 São Francisco II 4 11 25/07/95

75 São João de Cortes 190 520 25/07/95

76 São Lourenço (* *) 7 19 25/07/95

77 São Paulo 2 5 25/07/95

21

Alfredo Wagner Berno de Almeida

FONTE: Ministério da Saúde/ Fundação Nacional de Saúde/ Distrito de Pinheiro, Relação de Localidades/ Município

de Alcântara, 13/08/2001.

NOTAS:

( * ) Num recenseamento elaborado em maio de 2002, os moradores de Peroba de Cima registraram, eles próprios,

em seu povoado, 58 casas e 196 pessoas.

(* *) Vários moradores de São Lourenço, no decorrer de 2001, mudaram suas casas para Rio do Pau, que fica às

margens da rodovia MA-106. A família de D. Luzia, composta de quatro membros, permanece, entretanto, no local do

povoado, conforme informação obtida em conversa com o Sr. Simão Reis Araújo, 62 anos, que mora perto da

"marinha" em Samucangaua.

(* * *) Em virtude de mortes ocorridas em 2001 e da mudança domiciliar de três pessoas, atualmente residem no

povoado Vai com Deus apenas seis pessoas.

(****) Procedemos a uma tentativa de recenseamento nas chamadas terras da pobreza, a partir de Canelatiua. Registramos

informações demográficas sobre os seguintes povoados: Canelatiua, Bom Viver, Retiro, Uru-Mirim e Vila do Meio.

Os itens relativos a edificações e número de habitantes não apresentaram grandes variações em relação ao cadastro da

Funasa. Os povoados de Uru-Mirim e Vila do Meio no cadastro da Funasa aparecem agregados com Canelatiua. Aliás,

quanto a Uru-Mirim, foram detectadas somente duas casas fechadas e com sinais de abandono. De acordo com

informações levantadas localmente, tem-se o seguinte:

"Moravam lá duas famílias. Uma senhora com um neto e um casal de velhos. Quando foi em janeiro de 2001 a senhora

que morava com o neto morreu no poço, tomando banho. Era de tardinha. E lá era tão difícil de auxílio que eles

resolveram mudar para mais perto da estrada. Foram para Vila do Meio e o neto para São Luís com o pai." (D.S.M. 13/

04/2002 - ENT.3.1 ).

Nome do Povoado Nº de Prédios/2001 Habitantes/2001 Data do RG

78 São Raimundo III 4 11 25/07/95

79 Tacaua I 10 27 25/07/95

80 Tapicuem (Itapecuem) 6 16 25/07/95

81 Taturoca 1 3 25/07/95

82 Terra Mole 50 137 25/07/95

83 Terra Nova 17 47 25/07/95

84 Trajano 34 93 25/07/95

85 Trapucara 1 3 25/07/95

86 Vai com Deus 4 11(***) 25/07/95

87 Vila Maranhense 1 3 25/07/95

88 Vila Nova I (Vila do Meio) 51 140 25/07/95

89 Vila Nova II 45 123 25/07/95

90 Vista Alegre 14 38 25/07/95

TOTAL 2949 8398

22

Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 2

Visando complementar o quadro apresentado, passarei a algumas informaçõesadicionais.

Uma vez que o Censo Demográfico de 2000 do IBGE registra 21.291habitantes no município de Alcântara, sendo 5.665 na zona urbana e 15.626 na área rural,tem-se que o total de habitantes nos povoados localizados na área pretendida pelo Centrode Lançamento de Alcântara perfaz cerca de 56% da população rural do município.

Considerando as diferenças de tamanho e composição dos 90 povoadosarrolados, constata-se uma razoável dispersão geográfica. Assim, em termos de grupo demoradia, os povoados variam de três habitantes – como no caso de Cajituba, Capoteiro,Piquiá, Primirim, Santa Helena, Taturoca, Vila Maranhense e Trapucara (Trapucaia) – a 958,caso do povoado de Oitiua. Ademais, as oito inclusões com povoados que registram trêshabitantes assinalam apenas um "prédio" cada uma.

Outra constatação é que a grande variação nas denominações dos povoados,segundo as diferentes fontes de referência (IBGE, Funasa, Infraero-CLA, ME-DSG), indicaaglomerados passíveis de subdivisões e com áreas delimitadas segundo múltiplas intersecções,ou seja, está-se diante de povoados cujos domínios se interpenetram mutuamente. Aheterogeneidade de designações assinala, portanto, um fator específico na distribuição espacialdos povoados pela área rural do município de Alcântara que, além de requerer umacompatibilização das diferentes fontes de referência, requer verificações localizadas.

Cotejando, de outra parte, os dados do quadro apresentado com as basescartográficas trabalhadas durante o trabalho pericial, como as cartas do Ministério do Exército- Diretoria do Serviço Geográfico-DEC (1981) – folhas SA.23-Z-A-I, SA.23-Z-A-II, SA-23-Z-A-IV e SA-23-Z-A-V –, as cartas do Iterma (2001) e as da Sema-MA (1997), pode-se acrescentar que:

a) há sete povoados da listagem da Funasa que não aparecem nos mapas,quais sejam: Boa Vista III, Bom Jardim, Camirim, Capim-Açu, Caratatiua,Piquiá e Primirim;

b) por outro lado, nos mapas referidos aparecem 14 designações deaglomerados, que foram provavelmente agregados aos povoados do cadastroda Funasa e não são explicitamente mencionados na listagem, a saber: SãoMiguel, Centro do Alegre, Flechal, Ponta do Aru, Carmina, Vila do Meio,Itapera, Galego, Folhau, Forquilha, Valério, Centro da Vovó, Acetiua e Cauaçu.

O mapa elaborado para fins desta perícia, em escala de 1:100.000, indica asáreas principais de povoamento, a distribuição geográfica dos povoados em face dos recursosnaturais e a incidência das comunidades na área pretendida pelo Centro de Lançamento deAlcântara, coadunando-se com os dados cadastrais da Funasa, que permitem, ademais,assinalar a densidade demográfica na referida área.

Outros dados que também se coadunam com os da Funasa são aquelesproduzidos pelo Ministério da Aeronáutica e pela Infraero, consoante o documento daInfraero-CLA, intitulado "Transferência e Assentamento III – Relatório referente à preparaçãoda população alvo da área de transferência e assentamento III – meta 1", datado denovembro de 1998. O deslocamento compulsório de famílias previa a revisão do cadastrodas famílias existentes na zona de segurança, configurando em termos burocráticos a chamada

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Alfredo Wagner Berno de Almeida

FONTE: MAer - Infraero-CLA; novembro de 1998.

Nota:

(*) As variações no número de habitantes por povoado, cotejando-se os dados da Funasa, de agosto de 2001, com

aqueles da revisão do cadastramento executada pela Infraero-CLA, em novembro de 1998, são da seguinte ordem:

a) há quatro povoados que, na listagem da Funasa, apresentam um número de habitantes maior do que aquele

assinalado pela Infraero-CLA. Trata-se de Esperança, São Francisco, Itapera e Baracatatiua com as diferenças numéricas

respectivas: 01 (hum) , 04 (quatro), 19 (dezenove) e 21 (vinte-e-um) habitantes;

b) há um povoado, Brito, cujo total de habitantes arrolado por ambas as fontes aqui cotejadas é exatamente o mesmo;

c) há quatro povoados que na listagem da Funasa apresentam um número de habitantes menor do que aquele

assinalado no levantamento da Infraero-CLA, quais sejam: Mamuna, com menos 51 habitantes; Águas Belas, com

menos seis; Murari com menos 17 e Cajitiua, com menos 15 habitantes.

de "área de transferência III". De igual modo, previa o cadastro das famílias dos povoadosescolhidos como "área de assentamento". O recadastramento foi feito em ambas as árease os resultados não são inteiramente discrepantes em relação àqueles da Funasa. Hádesignações referentes a cinco povoados que se encontram no cadastramento da Infraero-CLA, mas não constam da listagem da Funasa, tais como: Caicaua, Barbosa, Pacoval,Itapera e Corre Prata. Provavelmente, foram agregados e o próprio Relatório da Infraero-CLA sugere isso ao afirmar, à página 09, "que poderão juntar-se os povoados de Baracatatiua,Barbosa, São Francisco e Pacoval".

Vejamos agora os dados produzidos pela Infraero-CLA e o respectivocotejo:

Povoados previstos para deslocamento

"Transferência e Assentamento III"

Povoados Nº de famílias Nº de habitantes

1 Águas Belas 8 25

2 Baracatatiua 26 80

3 Barbosa 2 2

4 Brito 22 96

5 Caiuaua 2 3

6 Itapera 19 63

7 Mamuna (Mamona) 56 215

8 Mamuninha 12 40

9 Pacoval 2 2

10 São Francisco 2 7

TOTAL 151 533

FONTE: MAer - Infraero-CLA; novembro de 1998.

Povoados previstos para assentamento das famílias deslocadas

"Transferência e Assentamento III"

Povoados* Nº de famílias Nº de habitantes

1 Cajitiua 3 10

2 Esperança 9 35

3 Itapuaua 44 153

4 Murari 14 58

5 Perizinho 33 118

TOTAL 103 374

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Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 2

Os procedimentos usuais de agregação, que seriam discutíveis num censocom categorias antropológicas que privilegiaria as formas nativas de agrupamento, consistemem práticas recorrentes nos cadastramentos com finalidade político-administrativa e é emvirtude disso que se impuseram as relativizações efetuadas.

Sim. Há fatores históricos, identitários e de conflito étnico que fundamentamessa assertiva. Uma análise crítica da formação histórica de Alcântara e dos atuaisantagonismos sociais mediante a implantação da base de lançamento de foguetes possibilitaa compreensão do processo de emergência dessas comunidades remanescentes dequilombos, desfazendo a auto-evidência das interpretações oficiosas de senso comumque só focalizam Alcântara do prisma da decadência de uma aristocracia agrária dostempos coloniais.

Destacamos este procedimento analítico a partir das próprias experiências decoleta de dados durante o trabalho de campo pericial, que foi realizado numa situação deantagonismos latentes em que as narrativas dos entrevistados, quaisquer que fossem, refletiamde modo explícito a agudez desses conflitos. Os moradores da área pretendida pelo CLAvivem a ameaça constante de perderem bens essenciais. Consideram que suas característicasculturais mais antigas e contrastantes mostram-se abaladas pela instalação do CLA, que vemlimitando drasticamente a sua sobrevivência física, sobretudo ao desapropriar extensa área, aodeslocar compulsoriamente povoados centenários, afetando a reprodução das famílias, e aoameaçar deslocar outros. Ressentem-se de uma total indefinição quanto ao futuro. Demonstramisso ao sublinhar que os responsáveis pela implantação do CLA, nesses 22 anos, desde adecretação da área, jamais lhes apresentaram publicamente um cronograma de execução dasatividades previstas referente a deslocamentos de famílias, para que possam ter conhecimentodas operações de que são objeto. Em certa medida, externam uma percepção crítica quantoà maneira de serem tratados como se não existissem enquanto sujeitos ou como se fossem"coisa", associando a ação do CLA, nesse contexto, a uma espécie de volta a um passadoremoto que intitulam "tempo da escravidão", "cativeiro" ou "antes dos brancos irem embora".Interdições à pesca e à coleta e ao livre acesso às praias e a caminhos e trilhas centenários,agora controlados pela base militar, reforçam esse sentimento. Acontecimentos dessa ordem,que serão analisados adiante, levam os entrevistados a ativar a memória de maneira seletiva,além de provocar impactos sobre sua percepção de si mesmos em face dos direitos coletivosinstituídos juridicamente para assegurar a persistência de diferenças culturais e étnicas.

Em virtude disso é que se pode destacar previamente que o conflito social emAlcântara institui uma forma de presencialidade do passado, levando os procedimentos detrabalho de campo relativos ao laudo pericial a discutirem fatos de uma memória oculta ehistoricamente reprimida. Esse tipo de memória é provocada por uma situação limite que,ao colocar em jogo a sobrevivência do grupo, acaba tornando transparentes acontecimentos,

As comunidades residentes na área pretendidapelo Poder Público Federal, para fins deinstalação do Centro de Lançamento deAlcântara, ora em processo de desapropriação,são remanescentes de quilombos? Quais osfundamentos que embasam a conclusão doperito?

2.

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Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 2

representações e elementos identitários que tradicionalmente eram mantidos segundo umainvisibilidade social. O conflito social cria condições de possibilidade para que venha à tona oideal de autonomia e de trabalho livre, por conta própria. Constata-se uma mobilizaçãoconstante de resistência dos entrevistados a formas de imobilização da força de trabalho, adeslocamentos compulsórios e a outras medidas repressoras que reatualizam cotidianamentepráticas de um regime escravista. Nesse contexto é que representam como submissão e que évivida como rebaixamento moral a situação dos que foram deslocados para as agrovilas eque foram desprovidos dos meios de se manterem por conta própria. Em contrapartida,ganham visibilidade antigas práticas clandestinas, ocultas, que permitem mapear Alcântarapelos traços contrastantes, em face de um sistema escravista que, ainda na vigência daadministração colonial não conseguiu manter imobilizada de maneira plena a força de trabalho.Multiplicam-se marcas evidentes dessa resistência, dispersas em práticas clandestinas de plantarem terras proibidas pelo CLA e designações do cotidiano que reativam a memória coletiva.Designam, por exemplo, como mocambo1, consoante a toponímia local, um lago localizadopróximo ao povoado de Peru, ou um outeiro em Castelo, ou um grupo de casas no antigoJarucaia ou, ainda, os denominados palheiros, edificações cobertas e revestidas nas lateraissomente com folhas de pindova, como foi possível observar em Rio do Pau. Podem serressaltadas também as referências constantes a locais de refúgio, em trechos de capoeiras maisdensas, onde há menções a velhas trilhas de escravos, como em Esperanças e Itapuaua. E asmenções a lugares onde pernoitavam escondidos ou onde diziam haver ossadas de gadoroubado, pedaços de tiras de couro esgarçadas ou ainda onde diziam haver restos de ostrasacumulados, que seriam vestígios do comer às escondidas, como em Brito, Itapera e Itapuaua.Embora não tenha havido menções explícitas a terrenos de cultivo nesses lugares, sempreenfatizam que havia muita farinha e que nas farinhadas se comia à vontade. Há ainda umpovoado cujo nome encerra esse sentido simbólico: "Fora cativeiro". Utilizam o termocativeiro para designar o regime de trabalho forçado em qualquer tempo, seja no períodocolonial, seja hoje. Todos esses lugares livres, que expressam uma vida autônoma e por contaprópria, seja no processo de produção, seja na esfera do consumo, fora do alcance da açãocoercitiva de outrem, são também conhecidos localmente como toca, que é um sinônimo deesconderijo2.

São frequentes também casos referidos à fuga ou pegação, que é comonomeiam as formas de recrutamento obrigatório para prestar serviços guerreiros ou militares.Narram casos das andanças na beira-campo de Santo Antonio e Almas do "bandido quefugindo da prisão, buscava vingança e matava feitores", lembrado pelos mais velhos como"negro Tito". Relatam situações passadas em que todos os homens dos povoadospermaneciam escondidos nas matas ou em que adolescentes ficavam escondidos sob assaias das mães para não serem levados. Para onde seriam levados, nunca se sabe ao certo,mas os entrevistados sempre fazem menção a guerras e as especificações circunscrevem-se,no mais das vezes, à mencionada "guerra paraguaia". Esses depoimentos foram coletadosem São Raimundo II, Canelatiua, São João de Cortes e Baixa Grande. Enquanto narrativas,para além da questão da fidedignidade dos fatos, podem ser lidas como míticas ou comorelatos simbólicos da recriação constante da sua condição de "libertos". Elas privilegiam,nesse sentido, atos de resistência a medidas de constrangimento, as quais sempre parecem

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Alfredo Wagner Berno de Almeida

pretender reinstaurar o que classificam de "tempo da escravidão". Tais atos são vividoscomo elementares para revigorar a coesão entre os grupos familiares e manter os planosorganizativos que estruturam socialmente os povoados.

Transcendendo a um mero, léxico tem-se um repertório de ações que negamdisposições impositivas, capazes de cercear seus movimentos ou ainda de subordiná-lospela força bruta. Essas ações, embora à margem do ordenamento jurídico colonial, nãosão vividas necessariamente como transgressões. Ao contrário, são narradas como legítimase tanto mais pelos mediadores do grupo – líderes sindicais, representantes de povoados,mandatários municipais, militantes do Movimento Negro – cujos depoimentos dereinterpretação dessa ordem de fatos são relevantes3. Além disso, aquelas práticas deresistência resultam por convergir para uma categoria construída simultaneamente: tantoa partir de um critério político-organizativo, que contesta a subordinação com a afirmaçãode uma identidade étnica, quanto de uma autonomia no processo produtivo e na esferade consumo. A combinação de ambas corresponde à noção ressemantizada de quilombo4.

O significado de quilombo compreende um processo de trabalho autônomo,que por atos deliberados recusa a submissão forçada a terceiros, e as respectivas práticasde livre comercialização de sua produção agrícola e extrativa. Compreende formas decooperação simples e práticas de reciprocidade positivas entre as unidades familiares quese agrupam sob uma mesma identidade e em face dos mesmos antagonistas. Tem-se aquiuma afirmação, simultaneamente étnica e econômica, de produzir para circuitos demercado e de reverter domínios fundiários reconhecidos pela legislação colonial, emvirtude de os grandes proprietários terem perdido o seu poder de coerção, como nocaso de Alcântara, e buscado acordos verbais prometendo alforria e terras, ante aincapacidade de saldarem suas dívidas com comerciantes e de proverem os recursospara a escravatura se alimentar e produzir. Nesse sentido, vale repetir: não importa tantose o quilombo acha-se localizado distante ou próximo das casas-grandes ou os demaisaspectos formais da definição do período colonial, mais valendo o grau de autonomiaque os membros das comunidades remanescentes de quilombos historicamente adquirirame a territorialidade específica que socialmente construíram em sucessivos atos de resistência,que resultaram na garantia da persistência de suas fronteiras.

A transição do léxico de rotina e de ações de resistência atomizadas eindividuais para uma identidade que expressa uma existência coletiva não é simples e sóse mostra factível, no caso analisado, mediante uma mobilização étnica, entendendo-se ogrupo étnico como tipo organizacional (Barth, 2000:11), isto é, o grupo passa a ser vistocomo uma forma de organização social. Enquanto há grupos que não se mobilizam

em torno de seu pertencimento étnico que sugere auto-evidente, há outros que,

diante da invisibilidade social prevalecente, como no caso de Alcântara, têm que

construí-lo. A vicissitude dessa construção implica em se fazer conhecido em face dosoutros de uma maneira distinta, através de atos que expressem uma existência coletiva.As formas de organização e as estratégias de mobilização continuada contra circunstanciaisantagonistas significam instrumentos que tornam factível essa passagem. Detectá-las edescrevê-las torna-se uma condição essencial na identificação das comunidadesremanescentes de quilombos, bem como re-interpretar os fatos históricos subjacentes àemergência dessa identidade étnica.

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Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 2

Desse modo, consoante estudos anteriormente realizados, pode-se asseverar,para efeito de introdução, que o conhecimento da estrutura social de Alcântara aponta paraparticularidades históricas de sua formação agrária e para especificidades de natureza étnica,que a distinguem de outras regiões da Amazônia e do Nordeste.

O intenso movimento de concessão de terras em Alcântara com grandesestabelecimentos agrícolas, apoiados no trabalho escravo e na monocultura de algodão,beneficiados por vantagens financeiras e mercantis propiciadas pela Companhia Geraldo Grão-Pará e Maranhão, a partir de 1755, e articulado com o confisco das terras deordens religiosas e com a expulsão dos jesuítas, teve duração efêmera. Embora as medidaspombalinas tivessem dinamizado o processo produtivo e colocado os produtos doMaranhão e, notadamente, de Alcântara – que era considerada, em 1760, a vila maispróspera da região –, no mercado internacional, seus resultados não foram duradouros.Diferentemente da costa nordestina em que as grandes plantações de açúcar mantiveram-se, durante o período colonial, como o centro dominante mais estável da economiabrasileira (Velho, 1976:115), em Alcântara ocorreu um abrupto declínio dosestabelecimentos agrícolas dedicados ao cultivo do algodão a partir da extinção daCompanhia Geral em 1778 e do fim de seu monopólio comercial. A alta dos preços noúltimo quartel do século XVIII, propiciada pela expansão da indústria têxtil britânica epela independência das colônias inglesas que vieram a formar os Estados Unidos, mesmotendo gerado divisas e caracterizado um período de "prosperidade no Maranhão"(Furtado, 1975:90), não foi suficiente para assegurar um desenvolvimento constantedaqueles empreendimentos agrícolas. Enquanto no Nordeste os estabelecimentosaçucareiros incorporaram tecnologia e se transformaram em plantations5, não obstante atendência secular a uma decadência gradativa – em virtude, sobretudo, da competição,na segunda metade do século XVII, das plantações das Antilhas –, em Alcântara osestabelecimentos agrícolas não lograram estabilidade nem desenvolveram uma parteindustrial para beneficiamento do algodão e desagregaram-se vertiginosamente. Apósos efeitos da guerra de independência, os Estados Unidos organizaram sua economia deplantations no sul, passando a produzir algodão em maior quantidade, com fibra dequalidade superior, e a controlar o mercado mundial do produto no início do séculoXIX. A queda de preço do algodão, resultante dessa reorganização do mercado, chegouao fundo do poço em 1819 e acentuou o endividamento dos fazendeiros junto às casascomerciais portuguesas e inglesas de São Luís6, apressando o abandono das fazendas emAlcântara.

As limitações ecológicas, de solos frágeis e arenosos, e o uso predatório dosrecursos naturais com queimada das matas para plantio de algodão e cana-de-açúcar,durante mais de quarenta anos consecutivos, numa área não superior a 120 mil hectares –observados, em janeiro de 1820, pelo coronel engenheiro Pereira do Lago, quando desua passagem pela estrada do Pirau-açu (Periaçu), que alcançava o Grão-Pará, passandopelas fazendas entre a cidade de Alcântara e o porto de São João de Cortes (Pereira doLago, 1872:388) –, também teriam contribuído para o célere declínio da economiaalgodoeira. A expansão das fazendas de algodão teria se defrontado com limitesinsuperáveis, ocasionando uma derrocada em Alcântara profundamente devastadora edistinta daquela do Vale do Itapecuru, que, tanto no período da Guerra de Secessão

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norte-americana quanto no final do século XIX, conheceu, inclusive, uma reativação doplantio de algodão consolidado até a década de 1950-60 pelas indústrias têxteis de Codó,Caxias e Coroatá.

Em conformidade com a formulação teórica de Wolf e Mintz, pode-seasseverar que em Alcântara não teriam ocorrido plantations, mas tão-somente fazendas.Ademais, ocorreu uma absoluta desagregação dessas fazendas, que, pelas exigências régiasde confirmação, não eram propriamente propriedades privadas, senão concessões desesmarias. Num tempo historicamente curto, elas simplesmente deixaram de existir. Nãohouve qualquer transição para trabalho assalariado, nem tampouco ocorreu umdesmembramento dos grandes estabelecimentos com a formação de um campesinatoparcelar individualizado em pequenas glebas, que posteriormente fossem reconhecidascomo propriedade privada.

O processo de desagregação dessas fazendas de algodão levou inicialmente aoadvento de uma pequena agricultura subordinada, correspondente a uma situação incipiente eintermediária entre escravo e camponês ou ainda a um "protocampesinato escravo", caso seconsidere a interpretação de Mintz, relativa às plantations de sociedades caribenhas (Haiti, Cuba,Santa Lucia, São Vicente)7, como fenômeno aproximável. A desorganização da produçãoalgodoeira em Alcântara foi, entretanto, de tal ordem e tão completo foi o abandono dasfazendas pelos senhores – vendendo telhas, baldrames de casas-grandes destruídas,desmontando meios de trabalho e demais benfeitorias –, que tão logo resultou só em ruínas,como se poderá constatar adiante. Semelhante desmonte viabilizou o surgimento de umacamada de pequenos produtores agrícolas com autonomia no processo produtivo,desenvolvendo práticas de uso comum de recursos naturais bastante exauridos e relativamentelivres da dominação senhorial. A autoridade senhorial nessas fazendas tornou-se mais simbólica,tal como já sucedera com o senhorio eclesiástico nas terras da Companhia de Jesus, desde1760, e das demais ordens, a partir de 1821, manifestando-se, seja através de prepostos e dastentativas jurídico-formais de validar as cartas de datas e de sesmarias, entre 1777 e 1816, oude reconfirmá-las entre 1854 e 1857, consoante as exigências da Lei de Terras n0. 601, de 18de setembro de 1850; seja através de termos de doação aos escravos ou do simples abandonodas fazendas.

Escravos, cuja aquisição havia sido facilitada pela Companhia Geral deComércio, índios desaldeados e que se mantinham livres nas antigas fazendas das ordensreligiosas, ex-escravos e alforriados e também escravos fugidos compunham essa camadade pequenos produtores agrícolas em formação. O elemento mais contrastante nesseprocesso de completa derrocada é a debilidade econômica dos sesmeiros em manter, demaneira plena, uma produção que não fosse para exportação e sua incapacidade deacionar mecanismos de repressão da força de trabalho capazes de inibir os desdobramentosdaquela autonomia. Quer dizer, não há registros de tentativas de reorganização da produçãoe nem há tampouco informações de que tenham conseguido mobilizar efetivos militaressuficientes para reverter tal quadro. Sublinhe-se que esses acontecimentos coincidem comum período histórico atribulado que se inicia com conflitos políticos em Portugal, quelevaram a família real a deslocar-se para a colônia, culminando com as lutas pelaindependência em 1822 e 1823. Coincidem, de igual modo, com o colapso domercantilismo e do monopólio das grandes companhias de comércio, mediante a

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Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 2

prevalência dos princípios liberais que inspiraram a decisão real de abertura dos portos,em 1808, e de tratados de comércio e amizade com a Inglaterra, em 1810.

A partir do início do século XIX, os registros administrativos sobrequilombos na região de Alcântara, cujas primeiras ocorrências datam desde o início doséculo XVIII, aumentam significativamente. As articulações entre os quilombolas e osescravos das fazendas arruinadas tornam-se mais orgânicas e consolidadas, tornando-sequase impossível distinguí-los com exatidão. Tal como os escravos, os quilombos tambémpassam a ser designados pelas fazendas nas quais se manifestam, tornando indubitávelque sua localização geográfica não se encontrava fora dos limites físicos das fazendas.Em decorrência, as campanhas armadas contra os quilombos são parcialmente reeditadase se voltam também para essas fazendas em desagregação, conforme noticia o coronelPereira do Lago, em 1820, ao mencionar o "quilombo dos pretos de Viveiros" e aquele"da Fazenda das Mercês" (Pereira do Lago, 2001:28). Os registros constatam que osquilombos mantêm uma produção regular e contatos sistemáticos com comerciantes,concorrendo para o abastecimento de farinha e arroz das fazendas de gado da beira-campo, dos núcleos urbanos regionais e da capital São Luís. Transcendendo àquela situaçãode "protocampesinato escravo", constata-se que, tanto dentro quanto fora dos domíniosfísicos das fazendas de algodão e de cana-de-açúcar, esses produtores autônomos foramse consolidando enquanto um campesinato, trabalhando a terra com suas unidadesfamiliares e vendendo livremente sua produção agrícola nos circuitos de mercado relativosaos gêneros básicos, coletando especiarias da floresta, extraindo amêndoas de côco babaçue dedicando-se à pesca marítima e nos rios e igarapés. O instituto das Cartas Régias nãoresistiu, em Alcântara, a essa trajetória ascendente de povoados que, para além de umasimples figura jurídica de apossamento, consolidaram direitos étnicos através da emergênciadas territorialidades específicas, intituladas pelos entrevistados como: terras de preto,terras de caboclo e terras de santo. Essa dinâmica de estabilização e de autonomiaresultou por fortalecer uma identidade própria, articulando atividades agrícolas e extrativas,e por favorecer uma delimitação bastante sólida das territorialidades específicas de acordocom a forma de desintegração de cada uma das fazendas, seja de algodão ou de cana-de-açúcar, seja de sesmeiros ou de ordens religiosas. São essas delimitações que vigemhoje, passados dois séculos. Isso, não obstante acentuados conflitos, em virtude, sobretudo,das medidas repressivas adotadas pelo governo provincial a partir de 1835, quandodetém o governo da província um membro da "aristocracia alcantarense" (Viveiros, 1975:109)referido às fazendas, da beira-campo, no Tubarão, Antônio Pedro da Costa Ferreira, Barãode Pindaré. Através da Lei nº 5, de 23 de abril de 1835, instituiu um corpo de polícia ruralvoltado para a vigilância do campo "onde se açoitavam os escravos que fugiam do domíniode seus senhores, e os malfeitores que depredavam os gados" (Leal, 1873:254, 255). Porintermédio da Lei nº 21, de 17 de junho de 1836, criou ademais o corpo de polícia da província.Os efeitos dessas medidas se fizeram sentir em Alcântara apenas episodicamente, em 1837-38,no caso dos quilombos de Itamatatiua, antiga fazenda da Ordem do Carmo. Com a guerrada Balaiada, entre 1839 e 1841, os efeitos militares foram concentrados nos Vales do Itapecurue do Parnaíba e o aparato repressivo foi inteiramente redefinido na província do Maranhão.

Após a guerra, objetivando reinstaurar a disciplina do trabalho nas fazendas,novas medidas foram instituídas pela legislação provincial. Quando da tentativa oficial, também

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Alfredo Wagner Berno de Almeida

malograda, de implantação de engenhos de açúcar no Maranhão e principalmente em Alcântara– que começou em 1847, no governo de outro membro da "aristocracia alcantarense" (Viveiros,1975:109), o senador Joaquim Franco de Sá, genro do Barão de Pindaré –, foi promulgadauma lei específica para combater os quilombos: a Lei nº 236, de 20 de agosto de 1847. Asiniciativas subsequentes e episódicas, que sempre intentaram instituir o aforamento, só lograramêxito, imobilizando a força de trabalho, por curtos períodos de tempo sem conseguiremafetar profundamente a autonomia conquistada por escravos e ex-escravos nas terras dasantigas sesmarias. A um malogro econômico sucederam outros, tal como a falência dosengenhos de açúcar, resultando numa nova campanha militar contra os quilombos. Foi encetadano início de 1878 pelo vice-presidente da província Carlos Fernando Ribeiro, Barão de Grajaú,também da nobreza alcantarense, proprietário do maior engenho da província, o EngenhoGerijó, e genro do mencionado senador Franco de Sá. Embora estivesse debilitada a autoridadesenhorial, pelos repetidos insucessos econômicos, foi empreendida uma ação militar amplaque levou à destruição do quilombo do Limoeiro, tornando-o uma presa de guerra parainstalação das colônias agrícolas com famílias cearenses, que foram trazidas pelos vaporesimperiais para o Maranhão em virtude da grande seca que afetou o Nordeste em 1877. Àsruínas das fazendas de algodão acrescentavam-se, portanto, aquelas dos engenhos.

Abriu-se um novo capítulo de abandono das fazendas, de vendas deequipamentos e bens móveis, de doações de terras a escravos e de instituição do aforamento.Os senhores de engenho remanescentes haviam se tornado absenteístas, residindo fora desuas terras e mantendo com elas uma relação intermediada por prepostos, escolhidos entre aspróprias famílias de escravos, principalmente entre os escravos domésticos. Essa ausênciaacabou se tornando permanente, como já ocorrera com os fazendeiros de algodão no iníciodo século XIX, as benfeitorias se aluíram e não há registros de retornos efetivos ao controledas antigas fazendas, senão numa única situação8.

Semelhante derrocada econômica, que desde 1850 já fazia de Alcântara umacidade em abandono, propiciou condições para que se tornasse estável uma vasta redesocial, com mais de duas centenas de povoados, que foram sendo erigidos sobre essasruínas das fazendas, numa extensão em torno de 150.000 hectares, abrangendo, duranteo período imperial, pelo menos três freguesias (São João de Cortes, Apóstolo São Matiase Santo Antonio e Almas)9 e criando um complexo sistema de trocas e de solidariedade,marcado por formas de ajuda mútua e reciprocidade positiva entre diferentes gruposfamiliares. Para definir esse sistema, os entrevistados usualmente definem sua forma deutilização dos recursos naturais como em comum. A relação com o ecossistema,preservando cocais, juçarais, manguezais e terras agriculturáveis, disciplinando o uso deinstrumentos de pesca e mantendo reservas de matas para extração de madeira (bacurijuba,paparaúba) para construções de casas, embarcações e benfeitorias, tornou-segradativamente mais equilibrada, além de atentamente acompanhada por determinadasfamílias e/ou pessoas, cuja autoridade para tanto é reconhecida no plano comunitário.

A autonomia de decisão sobre o que produzir, como e onde, lançandomão de que recursos naturais, aproxima tanto os denominados índios e pretos quantoos chamados caboclos, fixando um padrão cultural apoiado num repertório de práticascorrespondente ao que designam de roça. Essa designação polissêmica, mais que umareferência aos tratos culturais ou, num sentido restrito, ao plantio de mandioca e ainda

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Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 2

uma divisão sexual e etária do trabalho, expressa uma certa maneira de viver e de ser;mais que um modelo de relação antrópica com recursos escassos, compreende umestilo de vida que vai desde a definição do lugar dos povoados, passando pela escolhados terrenos agriculturáveis, e dos locais de coleta, de caça e de pesca, até os rituais depassagem que asseguram a coesão social em festas religiosas (tambor de crioula,procissões e demais cerimônias), em bailes ("radiolas de reggae"), em funerais ebatizados. Essa designação expressa, ademais, uma representação particular do tempo,traduzida por intrincados calendários agrícolas e extrativos, e uma noção de espaçomuito peculiar orientando o uso simultâneo, para cada unidade familiar, de diversasáreas de cultivo não necessariamente contíguas. A composição da unidade de trabalhopara realização desses mencionados tratos culturais é absolutamente familiar e articuladapor fora das exigências intrínsecas do processo de produção. Ela é pré-definida noplano das relações de parentesco e de afinidade, refletindo a própria composição dafamília e suas interações mais diretas, consubstanciando a idéia do povoado como"entidade afetiva" (Prado, 1974:64). Pode-se asseverar que a chamada roça trata-se deuma referência essencial que sedimenta as relações intrafamiliares, e entre os

diferentes grupos familiares, além de assegurar um caráter sistêmico à

interligação entre os povoados. Ela consiste, além disso, num traço invariante e nosímbolo exponencial da conquista de autonomia e, em decorrência, da identidade quelhe corresponde. Não há unidade familiar que não se estruture a partir das atividadesessenciais a ela referidas, seja assegurando o autoconsumo ou obtendo, a partir dacolocação da produção no mercado, a receita imprescindível para atender às necessidadesbásicas. Os agentes sociais avaliam capacidades pessoais e se reconhecem uns aos outrosa partir dela. Nesse sentido é que se pode asseverar que a etnicidade entra também eminteração com uma certa maneira de produzir, de se relacionar com os recursos naturais,de agir segundo uma temporalidade própria, de delimitar grupos sociais interagindocom outros e estabelecendo os fundamentos de uma ação coletiva.

Um dos resultados da persistência desses elementos de identidade étnicatem sido a certeza da viabilidade, já quase bi-centenária, dessa pequena agricultura autônoma,baseada num sistema de uso comum, numa área onde a grande exploração, além de falir,acarretou o rápido esgotamento do solo e o uso predatório dos recursos. Essas instituiçõessociais peculiares, que compõem o sistema de uso comum dos recursos10, ligando osgrupos aos circuitos de mercados e rompendo com quaisquer noções de isolamento,mostram-se informais e de certo modo invisíveis em termos jurídicos. A despeito dequalquer tipo de reconhecimento formal, consolidaram efetivamente diferentes domínioscom seus respectivos planos organizativos de relações sociais, cada um deles agrupandoinúmeros povoados, designados localmente, consoante o contexto, como terras de santo,terras da santa, terras de santíssimo, terras de santíssima, terras santistas, terras

de caboclo e terras de preto, compreendendo as antigas terras de instituições pias ereligiosas, as antigas sesmarias e posses centenárias. Por constituírem territorialidadesespecíficas, suas fronteiras não correspondem exatamente à fixidez dos limites físicos dasfazendas, ou seja, não se esgotam necessariamente na correspondência ao perímetro deimóveis rurais. Observa-se uma interpenetração entre elas, com as denominadas terras

de preto se atualizando e sobrepondo-se às terras de santo, do mesmo modo que as

33

Alfredo Wagner Berno de Almeida

chamadas terras de caboclo se dispõem em face das terras de santíssimo. Enquantoterritorialidades específicas, cujos planos organizativos se interseccionam de maneiraarticulada, elas convergem para a estruturação de um território étnico, distinguindo-se danoção estrita de terra, considerada como recurso básico fisicamente delimitado. Assim,pode-se afirmar que as denominações adotadas para nomear essas territorialidadesespecíficas, mais que meros termos ou expressões, consistem em categorias classificatóriasque apontam para as características intrínsecas e plurais da identidade étnica dos agentessociais em questão. Eles se autodenominam e são denominados por aqueles com os quaisinteragem, consoante a situação específica, como pretos e/ou caboclos. Não se observamdiferenças sensíveis entre as categorias reivindicadas por eles próprios e aquelas que lhessão atribuídas por outros. Na medida em que esses agentes sociais se investem de identidadesétnicas para categorizarem-se a si mesmos e às terras que historicamente ocupam,mobilizando-se coletivamente para fins de interação e manutenção dos recursos necessáriospara sua reprodução, eles compõem grupos étnicos no sentido organizacional11, quetransitam entre diferentes modalidades de domínio e de planos organizativos, construindocoletiva e socialmente o seu território.

O que se observa de mais peculiar e aparentemente mais paradoxal nesseprocesso de territorialização ora examinado é que a análise explicativa da afirmação dascaracterísticas das comunidades remanescentes de quilombo passa pelo seu contrário,através da arqueologia das fazendas de algodão e dos engenhos. Tomada a M. Foucault,essa modalidade de descrição arqueológica (Foucault, 1972:167) reinterpreta os métodosusuais de investigação científica, deslocando a análise para o que ficou à margem dahistória político-administrativa, para o que foi considerado residual e para o que contrarioudisposições jurídico-formais. Para tanto, relativiza o peso das fontes documentais earquivísticas oficiais e recusa uma interpretação historicista que se desenvolva linearmentedo passado para o presente, explicando-o. Refuta, nesse sentido, a monotonia dahistoriografia oficiosa regional, que consagrou a opulência das casas-grandes e dos engenhosde Alcântara, perpetuando-a, através da monumentalidade das ruínas, para além dascontingências de sua existência efetiva. Consoante essa descrição arqueológica, as ruínasdessas fazendas podem ser lidas sociologicamente como resultado da contradição entrequilombo – enquanto processo de trabalho e de moradia absolutamente autônomo, livrede qualquer submissão e sustentado fundamentalmente por unidades de trabalho familiar,que cultivam principalmente gêneros alimentícios – e a economia escravista de agriculturatropical, com grandes estabelecimentos apoiados no trabalho escravo, no monopólio daterra e na monocultura. Nos seus desdobramentos, tal abordagem privilegia uma análisecrítica das representações, discursos e práticas produzidas por membros das comunidadesremanescentes de quilombo, bem como possibilita uma reinterpretação de seu campo derelações simbólicas. Está-se diante de uma aparente inversão, que focaliza empiricamente asruínas das fazendas como concorrendo de maneira positiva para a coesão social dessasmencionadas comunidades, cuja trajetória histórica consiste justamente na negação daeconomia escravista, seu oposto simétrico. Diferentemente de outras regiões, a noção demonumento12 aqui é inteiramente revista e não se atém ao que seriam as ruínas de possíveisedificações relativas aos próprios quilombos, porquanto são outras as ruínas que estão emjogo. Isso certamente consiste numa especificidade da situação de Alcântara, na qual a

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Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 2

noção de monumento escapa das auto-evidências, que envolvem o patrimônio material, e,desdizendo-as de maneira radical, estabelece uma conexão algo invertida entre as ruínasdos estabelecimentos agrícolas e a consolidação das comunidades remanescentes dequilombo. A ênfase nessa conexão ultrapassa os procedimentos usuais de perícias que giramem torno de "provas materiais" e "evidências", direcionando as observações para os aspectosrelacionais. Ultrapassa também a forma de colocação dos problemas pela abordagemhistoricista, para a qual pareceria um absurdo considerar "ruínas de casas-grandes" comoelemento do processo de consolidação das comunidades remanescentes de quilombo, jáque uma suposta "alteração da seqüência dos fatos objetivos" conspurcaria o sentido histórico-monumental das ruínas. Ora, na situação examinada, está-se diante de uma contradiçãomais aparente que real. Assim, a relação privilegiada nessa perícia, através da descriçãoarqueológica, recoloca os termos do problema e parte do tempo presente em que taiscomunidades fixam, inclusive, estratégias para preservar o que aparentemente seria o resíduodo patrimônio material edificado originalmente por seus antagonistas históricos.

Em outras palavras, pode-se asseverar que um dos componentes da gênesedo processo social de construção da identidade quilombola em Alcântara estaria nas ruínasdas casas-grandes e dos engenhos. As ruínas das benfeitorias das fazendas, bem como asterras e o próprio nome das famílias dos antigos senhores – ou da "aristocracia rural",como define Lopes (1957:18), ou ainda da "aristocracia alcantarense"13, como classificariaViveiros (1975:109) –, permanecem hoje sob controle absoluto de descendentes de famíliasde escravos. Araújo, Araújo Cerveira, Sá, Ribeiro, Cerveira, Coelho, Viegas, Morais, Ferreira,Diniz, Serejo e Silva, antes de designarem a nobreza14 e os sesmeiros, tal como consagradosna documentação do período colonial, designam hoje as famílias dos povoados dedescendentes de escravos que se consolidaram com a derrocada econômica e a desagregaçãodos diferentes estabelecimentos rurais (algodão, cana-de-açúcar, gado). Nesses agrupamentos,se estruturaram relações de parentesco, de afinidade, de amizade e de vizinhança, em tornoda distribuição e do uso comum dos recursos, resultando em vínculos solidários coextensivosà formação do povoado, enquanto uma comunidade que transcende o grupo local dedescendência de três ou quatro gerações.

De igual modo, as antigas denominações das fazendas, registradas inclusivenas expedições e solicitações de confirmação de datas de sesmarias, nos registrosparoquiais, após a Lei de Terras no 601, de 18 de setembro de 1850, e na documentaçãocartorial, correspondem, no momento atual, tão-somente àqueles povoados. Ascomunidades remanescentes de quilombo aí constituídas compreendem territórios deparentesco15, intrínsecamente articulados, que foram erigidos nessa dinâmica de múltiplasconquistas: das terras, dos nomes de família, das denominações das fazendas e dossímbolos ruiniformes do que outrora estava sob o poder dos senhores de escravos, deplantações e de engenhos. Os pertencimentos familiares conquistados e a construção derelações solidárias em terras de livre acesso funcionaram como fatores de consolidaçãodo ideal de autonomia subjacente à identidade quilombola. As terras das antigas fazendas,suas denominações, os nomes de família dos antigos senhores de escravos e as ruínasconvergem, cada um a seu modo, para o processo de territorialização étnica.

A dicotomização entre a civilização e os selvagens ou entre os denominadosbrancos e os chamados negros16, considerando indissociável a relação entre raça e cultura,

35

Alfredo Wagner Berno de Almeida

tão cara ao pensamento colonialista e justificada através das ideologias do racismo e doprogresso material das metrópoles, foi deslocada nesse processo e perdeu sua forçaexplicativa no tempo. A tendência continuamente expansionista, inerente à idéia decivilização dos colonizadores – através de inovações tecnológicas, expressas pelos engenhos(hidráulicos, a vapor), pelas máquinas de descaroçamento de algodão e pelas máquinasde descascar o arroz; de técnicas de produção em larga escala, manifestas pelasmonoculturas; do conhecimento botânico e da capacidade de transferir sementes17 – foiabrupta e duramente interrompida em Alcântara. A descontinuidade, em fins do séculoXVIII e início do XIX, atribuída à extinção da Companhia Geral do Grão-Pará eMaranhão e à flutuação dos preços do algodão, acarretou a derrocada dos grandesestabelecimentos agrários e criou condições objetivas para a emergência de uma economiacamponesa. A expansão dessa economia de base familiar foi interpretada como"decadência" e "regressão" pelos comentadores regionais, já que invertia a tendênciaexpansionista dominante. O evolucionismo implícito nessa interpretação enfoca asruínas de Alcântara como símbolos do que chamam de "idade de ouro do Maranhão"(Almeida, 1983:61-70). Assim, de acordo com a explicação evolucionista, enquanto aideologia do progresso assinalava os primeiros passos em direção a uma economiade transição para o trabalho assalariado, em Alcântara teria ocorrido uma "regressão".A consolidação das comunidades remanescentes de quilombo seria vista, desse prisma,como produto de uma involução.

As próprias narrativas míticas dos entrevistados, no decorrer dos trabalhosde perícia, invertem, entretanto, os termos daquela dicotomização ao acionarem, de maneirapositiva, como fator de legitimidade de seu modo de viver e produzir, essas mesmasruínas dos engenhos e casas-grandes e os demais destroços das fazendas abandonadas.Trata-se de uma disputa pelos elementos simbólicos, que quebra com o corte simplificadorda coleta de vestígios da cultura material. O poder de se apropriar das vantagens simbólicasassociadas à posse das ruínas legitima o oposto simétrico das grandes plantaçõesmonocultoras baseadas no trabalho escravo, isto é, as comunidades remanescentes dequilombos, cuja forma de utilização da terra baseada em unidades familiares autônomas,livres e praticando um sistema de uso comum dos recursos naturais, passa a articular osdiversos povoados. Antes de serem um vestígio do passado ou uma forma de retorno auma economia natural, tais características passam a representar no presente uma perspectivade futuro com liberdade de decidir não apenas sobre o processo produtivo, mas tambémsobre seu destino. A posse das ruínas, pelos remanescentes quilombolas, torna-as ummarco distintivo da autonomia de seus povoados, porque representa a evidência deque as fazendas não têm mais "condições de possibilidade" (Bourdieu, 1992) deefetivamente existirem18, ao mesmo tempo que comprova a rede de relações dosquilombolas que aí decidiram ficar. A forma esqueletal do que foram as edificaçõeselementares das fazendas, publicamente exposta e constatável por uma arqueologia desuperfície, sem qualquer necessidade de escavação, concorre para atestar isso. Lado alado com a vida cotidiana dos povoados, essas ossaturas das fazendas certificam olongo tempo de existência deles. A datação das ruínas aqui equivale ao reconhecimentoda "idade" das comunidades remanescentes de quilombo e consiste no correspondenteideal de sua certidão de nascimento. Torna-se quase impossível distinguí-los

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Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 2

temporalmente. Nas próprias narrativas dos entrevistados, a referência mais recuadaconcerne ao tempo em que, segundo eles, "os brancos foram embora". A identidadequilombola se afirma nesse processo de negação do seu antagonista histórico e asruínas tornam-se auto-explicativas em face das fazendas que não mais existem nomunicípio de Alcântara.

Os entrevistados sublinham, em repetidos depoimentos, que os "brancos

foram embora" e descrevem essa partida sem qualquer eufemização dos efeitos deuma fuga. Com a deserção, entretanto, os antigos senhores perderam, de modo efetivo,mas não simbolicamente, o monopólio da identidade regional, que foi cristalizadopelos historiadores consagrados e perdura nos seus compêndios. Certamente que essemonopólio dificulta o advento de outras identidades concorrentes, porque as mantémsob um tipo de invisibilidade social, característica de sociedades escravistas, e consistenum obstáculo ao pronto reconhecimento das comunidades remanescentes de quilombo.Os comentadores regionais focalizam tão-somente as ruínas, não se detendo naquelesagentes sociais e seus grupos familiares que há pelo menos um século e meio constituírampovoados no seu entorno e que delas não podem mais ser dissociados. Reconhecendo,implicitamente, que a "aristocracia rural" se foi das fazendas, os comentadores resultampor desumanizar as ruínas, como se pessoa alguma ali tivesse ficado. Redundante dizerque o fundamento dessa interpretação reproduz o princípio de que o escravo,considerado como "coisa", deve, como tal, estar sob o domínio de alguém sem direitoa uma existência, em separado. A invisibilidade, urdida nos fundamentos racistas dessainterpretação, nega a possibilidade de existência, seja do indivíduo, seja do grupo; comose aqueles que se autodefinem como pretos ainda não estivessem no uso de sua liberdadeplena, a despeito de ela já estar assegurada em termos jurídico-formais desde final doséculo XIX. Prepondera, sob todos os aspectos, a ideologia da tutela. O fato de estaliberdade já estar reconhecida pelo Estado e gerar direitos parece não ter sidoincorporado pela historiografia regional, que dobra a cerviz ao peso de uma tradiçãoaristocrática e de cunho escravista. Esse esquema interpretativo se insinua nos meandrosde uma luta simbólica de todo modo constantemente repetida e de difícil superação.Entrementes, cabe considerar – e isso é o que se constata com o trabalho de campopericial – que as ruínas permanecem socialmente reapropriadas, e de maneira efetivapelas comunidades remanescentes de quilombo. Constituem um símbolo da ancianidadedo seu ideal de autonomia, e passam a figurar, juntamente com outros elementosidentitários, alusivos às relações antrópicas, às transações comerciais e simbólicas comoutros grupos sociais e às mobilizações político-organizativas como meios de garantiada persistência das fronteiras étnicas, que consolidaram e fazem vigir as comunidadesremanescentes de quilombo em Alcântara.

Em reforço dessa asserção, empreendi um acurado mapeamento dasevidentes ruínas distribuídas pelo município de Alcântara. Os resultados do malogro daeconomia escravista de agricultura tropical evidenciam-se na paisagem rural de Alcântara,onde se agigantam ruínas velhas em demasia, escalavradas pela ação do tempo e não seencontra uma sede sequer das antigas fazendas de algodão, nem das casas de vivendaassobradadas dos estabelecimentos das ordens religiosas, nem tampouco qualquer casa-grande restaurada que seja, dos engenhos de açúcar. Das antigas sedes de fazendas e das

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Alfredo Wagner Berno de Almeida

soberbas casas de engenho, restam escombros, escavações ruiniformes e pedras lavradascom vegetação revestindo quase tudo onde outrora se assentavam os alicerces. Elas recebema designação local atribuída às casas abandonadas e em destroços, acompanhada pelacategoria que designa os "senhores", qual seja: tapera de branco.

Dos equipamentos das engrenagens dos engenhos restam fragmentos detachas de ferro fundido, de moendas, de caldeiras, de rodas hidráulicas e de tanques paradepósito. Ferros torcidos, cilindros quebrados, elos de correntes, bocas de caldeirasavariadas misturam-se a cacos de cerâmica e de louças dispersos pela superfície, junto amuros de pedra em desmoronamento. Entrelaçados pela vegetação densa e pelos cipósrasteiros, jazem colunas de pedras das soleiras e pedregulhos dos alicerces. Esses vestígiosdas engrenagens dos engenhos e do casario assobradado recebem a denominação genéricade "ferros". Tudo mal ajustado ao avanço da natureza, aluindo-se.

Para ilustrar de maneira precisa a dispersão desses escombros e suadistribuição pelo município de Alcântara, procedi, no decorrer do trabalho de campo,ao seu mapeamento. Quando visitava os povoados, os moradores sempre me instavama caminhar até os escombros ruiniformes, que são denominados genericamente demuralhas e paredões. Incentivavam-me também a percorrer as linhas delineadas pelaschamadas pedras de rumo, mostrando-me as letras gravadas na sua face superior, comose estivessem me apresentando a territórios específicos de delimitação indiscutível. Defato, elas balizam extensões correspondentes às antigas fazendas e estão a pelo menosmais de século e meio controladas efetivamente por um ou mais povoados de descendentesde escravos. Em virtude disso é que a memória de sua localização exata é atributo, hoje,dos membros das comunidades remanescentes de quilombo, não obstante não teremnecessariamente em mãos a documentação cartorial que delineava confrontantes e lindeiros.Eles, e somente eles, são capazes de distinguir as pedras e recitá-las de cor, na seqüênciadevida, tecendo as relações com o mundo circundante. Considerando os instrumentoscríticos de observação etnográfica, pode-se aduzir que esse tipo de conhecimento, antesque geográfico ou que uma memória da "terra do outro", expressa um sentido depertencimento, isto é, de narrar uma delimitação física que hoje é coextensiva à sua maneirade existir socialmente. Quanto a isso, a antropologia reflexiva permite asseverar que oslimites empíricos das comunidades podem ser isolados em sua descrição, representandotraços distintivos da identidade e da regra de unidade do grupo ao definí-lo de fora paradentro, isto é, a partir de suas divisões (Bourdieu, 1989:113) e das relações nas fronteiras.

Em decorrência da aplicação desse preceito teórico, a partir das visitas àsruínas, com as anotações respectivas, e com as informações obtidas em reuniões eassembléias ocorridas nos povoados, durante o trabalho de campo pericial, montei doisquadros demonstrativos. Um deles arrolando os povoados onde as ruínas referem-seprincipalmente às fazendas de algodão e às fazendas que possuíam moendas, seja deferro, seja de madeira. Constata-se uma vasta rede de povoados referidos a tais ruínas,abrangendo tanto o noroeste do município, com Itapuaua, Esperança e adjacências;passando pelo nordeste, como Mato Grosso e suas pressões constantes sobre os povoadosdas chamadas terras da pobreza – quais sejam, Canelatiua, Retiro, Bom Viver e Uru-Mirim; até alcançar Timbotuba (Timbotiua), mais no sentido centro-sul do município, nocoração da área privilegiada em fins da década de 1840-50 para a implantação de engenhos.

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Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 2

Povoados onde foram assinaladas ruínas

de "casarões" e/ou moendas

Cujupe

Engenho

Esperança

Flórida

Iririzal

Janã

Ladeira

Mato Grosso

Murari

Tajurará

Timbotuba

Timbu

Denominações locaisdas ruínas

“paredões de pedra”

“tapera de branco”

“tapera de branco”

“paredão”

“apera de branco”

“sítio velho”

“tapera de branco”

“casa do branco”

“antigo comércio”

“a casa acabou e foi feita

uma casinha em cima da

tapera"

“tapera de branco”

“cemitério velho”

“paredões”

“tapera de branco”

“sítio velho”

“sítio velho”

“casa de engenho” (4)

“paredões”, “muralhas”

poço, “sumidouro”

“peças de ferro”, “cilindros

de ferro das moendas”

tanque, “sumidouro”

mangueiral.

“enormes pedras delineam o

que seria o alicerce” (1)

“pedras de rumo”

Alicerces, mangueiral, “restos

de paredes de pedras

existiam até alguns anos atrás”

(2)

sempre apontada como lugar

onde morava Marcial Marques

Ramalho, genro do grande

proprietário Antonio

Guimarães. Entre Janã e Rio

Grande há pedra de rumo.

Mangueiral (3)

“cacos de pratos, pedaços de

caldeirões de ferro, poço”

-

Alicerce

-

As ruínas desmoronaram

perto do lugar onde os

moradores de “Só Assim”

faziam seus cultivos.

Quem fala sobre asruínas e quando

Relato de moradores de Arenhengaua,

quando da reunião em que foram

discutidos os trabalhos relativos à

perícia.

Relato de moradores em reunião

realizada em Peroba de Cima e em

Ladeira.

Relato de moradores de Itapuaua,

quando mencionaram os chamados

“caminhos de escravos” e as “tocas”.

Relato de moradores de Flórida que

participaram de reunião em Peroba de

Cima no início dos trabalhos no

âmbito da perícia.

Relato de moradores de Ladeira, que

participaram de reunião em que foram

discutidos os trabalhos relativos à

perícia.

Relato de moradores de Peroba de

Cima, Itapuaua, Ladeira e Vai com

Deus.

Relato dos moradores de Ladeira em

reunião realizada em abril de 2002.

Relato de moradores de Mato Grosso e

de Canelatiua em reunião realizada no

decorrer dos trabalhos de perícia, no

pequeno próprio de Canelatiua.

Relato de moradores de Itapuaua e de

Samucangaua em reuniões para discutir

os trabalhos relativos à perícia.

Relato de participantes de

Samucangaua na segunda reunião em

Ladeira, em 08 e 09 de junho de 2002.

Referência assinalada por moradores de

Castelo, quando foram solicitados pelos

trabalhos de perícia a procederem a uma

reconstituição histórica da área.

Relato dos moradores da Agrovila de

"Só Assim" referindo-se aos locais onde

plantavam antes de serem

compulsoriamente deslocados.

Povoados Especificações

39

Alfredo Wagner Berno de Almeida

Notas ao quadro da página 38:

(1) Para um aprofundamento, consulte-se: Linhares, L.F. do R. Terra de Preto, Terra de Santíssima: da desagregação

dos engenhos à formação do campesinato e suas novas frentes de luta. Dissertação (Mestrado) - MPP-UFMA, São Luís,

1999. p 40-42.

(2) Para maiores informações, consulte-se: Catanhede, A. Ladeira, Iririzal e Samucangaua: relatório de identificação.

Cadernos de Prática de Pesquisa. São Luís, MPP-UFMA, 1998. p. 15.

(3) Para outros esclarecimentos, consulte-se: Carvalho, S. M. O povoado Ladeira:uma situação de terra de preto. São

Luís, UFMA-GERU, 1998. p. 14-46.

(4) Expressão também registrada comumente no Jornal da Lavoura, que circulou em São Luís (MA) nos anos de 1875

e 1876, para se referir aos estabelecimentos também chamados “engenhos de açúcar”.

No segundo quadro, concentrei as ruínas dos engenhos e compulsei,para efeito de verificação da fidedignidade das informações coletadas, as edições de1858 a 1861 do Almanack Administrativo, Mercantil e Industrial editado porBelarmino de Mattos, que apresenta uma relação de todos os 13 engenhos que entãoainda existiam em Alcântara e seus respectivos proprietários. Todos esses engenhos– que foram incentivados pela política de soerguimento das plantações de cana-de-açúcar, no decorrer do governo provincial do alcantarense Joaquim Franco de Sá,em 1846-47 – localizam-se preferencialmente na freguesia do Apóstolo São Matias,não se constatando um sequer na freguesia de São João de Cortes. Na freguesia deSanto Antonio e Almas, cuja área correspondente foi desmembrada definitivamentede Alcântara em 1935 e equivale ao atual município de Bequimão, há também cincooutros engenhos, que não foram arrolados nos quadros demonstrativos, posto quese referem à situação das fazendas da beira-campo, que se encontram fora domunicípio de Alcântara e que passaram por transformações sócio-econômicas nãoexatamente as mesmas. A proximidade dos campos naturais e de áreas de maiordensidade de cocais propiciou a eles um certo tipo de desdobramento para asatividades de pecuária extensiva, conjugadas com aforamento e extração da amêndoado babaçu (Almeida e Mourão, 1975:12).

40

Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 2

Povoados onde foram assinaladas ruínas

de "engenhos" e "casas-grandes" ou "casarões"

Povoados

Belém

(Bethlen)

Cajiba

(Cajuhyba)

Camarajó

Castelo

Itapiranga

Jacaré

Jerijó (Jirijó)

Marmorana

(Tapera)

Mutiti

São Maurício

Santa Rita

Traquaí

(Novo Belém)

Denominações locaisdas ruínas

"paredões de pedra"

"paredão velho"

"paredão"

"já teve paredões, mas

foram destruídos."

"paredão"

"grande muralha"

"muralha", "tapera de

branco"e "sítio velho"

"tapera de branco"

"paredão de pedra"

e"tapera de branco"

"paredão"

"paredão"

"muralha"

Especificações e estadoatual

"engenho" e "casa grande"

"casa de engenho"

"ruína de engenho grande

com um pé de piquizeiro"

"alicerces de sobrado", "poço

de pedra"

"desmoronaram as paredes

grossas e retiraram as pedras"

"perto da Norcasa estão as

paredes grossas"

"já tiraram muita coisa,

escavando e procurando

tesouros enterrados, mas tem

uma parte da muralha em

pé", "ferros"

"engenho"

"engenho", "alicerces", peças

de ferro, Mangueiral(2)

"na construção da estrada

tiraram quase tudo",

"ferros"(3)

"derrubaram paredão para

vender as pedras"

Derrubaram para vender as

pedras em Bequimão

Quem fala sobre a ancianidadedos povoados (1)

Relatos memorialísticos dos que

hoje vivem na Agrovila Cajueiro,

referindo-se às marcas ruiniformes

da área onde viviam plantando e

pescando.

Referência dos moradores de Cajiba,

quando descrevem traços distintivos

do povoado.

Relatos memorialísticos dos que

hoje vivem na agrovila de Novo

Peru, referindo-se à área onde

viviam antes do deslocamento

compulsório.

Referência dos moradores de

Castelo ao relatar as evidências de

sua antiga ocupação.

Referência dos moradores de Baixa

Grande, Mutiti e Itapiranga à

predação das ruínas por estranhos

ao povoado.

Referência dos moradores de Jacaré,

também mencionadas por diretores

do STR de Alcântara.

Referência dos moradores de

Baixa Grande, Santo Inácio,

Pavão, Jarucaia e Conceição

enfatizando a violação das ruínas

por pessoas alheias aos povoados

na busca de jóias e potes de ouro

supostamente enterrados.

Referência dos moradores de São

Raimundo I e Marmorana.

Referência dos moradores de Baixa

Grande, Itapiranga, Ladeira e

Mutiti, que também narraram

estórias de "potes de ouro", "baú

de jóias" e outros "tesouros" aí

enterrados.

Referência dos moradores de São

Maurício, São Raimundo,

Arenhengaua.

Referência dos moradores de Santa

Rita.

Informação de moradores de

Oitiua.

41

Alfredo Wagner Berno de Almeida

Notas ao quadro da página 40:

(1) Excertos das entrevistas realizadas durante a consecução da perícia serão acrescentados às observações diretas no

transcorrer da análise, completando com maior rigor as menções ora apresentadas.

(2) O mangueiral, também chamado de "mangal", designa um conjunto de mangueiras centenárias que caracterizavam

a sede do engenho Mutiti. O mesmo termo aparece nas entrevistas com os moradores de Ladeira realizadas por

Aniceto Cantanhede (Cantanhede, 1998:12).

(3) Os "ferros" concernem a fragmentos e vestígios de objetos e instrumentos utilizados na transformação da cana-de-

açúcar: tachas esféricas de ferro fundido, tachas de ferro estanhado, rodas hidráulicas, caldeiras, cilindros etc.

As informações utilizadas para a montagem desses quadros demonstrativosforam também plotadas na base cartográfica20 produzida para fins deste laudo,permitindo uma visão mais completa de sua distribuição geográfica e dos contornosde sua posição em termos topográficos. A localização sempre próxima a rios e igarapésampara as referências constantes de que a cada engenho correspondia um porto econtribui para reforçar o argumento de que as comunidades remanescentes de quilombo,que passaram a desfrutar dessa posição geográfica, viabilizaram-se economicamentenesses dois séculos com intensas transações comerciais, abastecendo com farinha, arroz,carvão, peixes, frutas (murici, babaçu, bacuri...) e óleos vegetais a capital São Luís.Raimundo Gaioso, em fins do século XVIII e início do XIX, já ressalta a produção defarinha em Alcântara em face dos demais produtos: "a sua produção consiste emarroz, algodão e muita farinha" (Gaioso,1970:162). O coronel engenheiro Pereira doLago, visitando Alcântara, em 1819, chama a atenção para o fato de São João deCortes produzir exclusivamente farinha (Pereira do Lago, 1872:388).

Não foram incluidas nesses quadros as ruínas menores, dispersas e fragmentadas,complementares àquelas das sedes das velhas fazendas, mas que jazem isoladas e que se referema uma "boca de poço em pedra", no caso de Marudá; a um "cemitério dos brancos que foiabandonado", no caso de área próxima a Ladeira; a um poço de pedra de borda arredondada,

Alcântara, 1861

Senhores de engenhos de açúcar

Fonte: Almanack Administrativo, Mercantil e Industrial. Ed. B. de Mattos. 1861

Nome do proprietário Denominação do engenho

Dr. Alexandre José de Viveiros São Maurício e Santa Rita

Comendador José Maria Correia de Souza Piahuitá

Tenente José Mariano de Mello Pery-mirim

Comendador Manoel João Ribeiro (Cajuhiba)

Cap. Raymundo Marianno de Araújo Cerveira e sua mãe (Tapera)

Coronel Severo Antonio d'Araújo Cerveira Filho Castello

Dr. Carlos Fernando Ribeiro Gerijó

Capitão Euzébio Antonio Marques Santa Filomena

Dr. João Franco de Sá e Major Thomaz Ferreira Guterrez (arrendatários de Bethlem)

J. Baptista Gomes de Oliveira (Cajual) (Cajual)

Tenente-Cel. Manoel Gonçalves de Sá (Mutiti)

D. Rosa Estella Ribeiro Jacaré

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Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 2

no caso de Frade; e aos currais de bois, que são laterais aos caminhos de boiada que, indopara a beira-campo em Santo Antonio e Almas, passavam perto de Pavão, Baixa Grande eItaperaí. Pereira do Lago, em 1819, menciona as estradas reais, que cortavam Alcântara, eViveiros recupera posteriormente os caminhos da boiada e aqueles dos correios, indicandoque havia uma malha de ramais que eram extensões das fazendas, ligando-as às áreas depastagens e aos principais portos.

No mapa elaborado para fins desta perícia, para facilitar a leitura e oentendimento da posição geográfica, procedi à classificação das ruinarias com três referênciaselementares: ruínas de casas-grandes sem registros de engenhos ou moendas, ruínas deengenhos de açúcar e ruínas de moendas conjugadas com casas-grandes. Realizei uma distinçãoentre grandes plantações de algodão e de açúcar e, quanto a estas, entre os engenhos e asmoendas. A leitura do mapa, conjugada com os quadros acima apresentados, propicia apercepção das áreas onde se concentram os engenhos e, de forma coextensiva, os povoadosque se consolidaram a partir de sua desagregação.

Tal desagregação foi caracterizada pela fuga dos senhores e pelo sentimentode recusa da tutela por parte dos ex-escravos.

"Até porque além das famílias serem mesmo negras, a grande maioria

tem descendência até dos escravos, como foi uma avó que morreu com

cento e treze anos. E as terras ficaram aí, os brancos foram embora."

(G.C. 19/04/2002 - ENT.16 - referência a São Maurício). (g.n.)

"Justamente nós temos ali os engenhos, já existem ali só os paredões

grandes. Eu trabalho e passo por lá este paredão chama de Timbu. Está

na beira do rio, está lá. Tem dois paredões medonhos lá. Todos dois.

Este paredão foi até encancelado pelo pessoal, que tinha gente que

queria esbandalhar, tirar pedra." (I.O. 16/4/2002 - ENT.12). (g.n.)

Na representação dos moradores dos povoados, não se percebe qualquernostalgia de proteção dos antigos senhores de escravos que abandonaram a região e quesão referidos por eles como os brancos. O sentimento de autonomia, que construíramno decorrer dos últimos dois séculos e meio, dissocia radicalmente "cativeiro" e "proteção",ao contrário do que sempre imaginaram os legisladores do período imperial partidáriosde uma abolição gradual da escravatura (Viotti da Costa, 1998) como forma iludida deproteger os libertos21. Pelas entrevistas, é possível perceber que recusam a "tutela benéfica"dos antigos senhores e que alguns, inclusive, traçam historicamente a trajetória familiarsem referência exponencial à escravidão. Não se vêem como órfãos de senhores que seforam, mas como sujeitos da ação que os tornou livres, sem qualquer manifestação devontade de que necessariamente estivessem presentes os senhores.

O aquilombamento das ruínas significa, nesse sentido, uma ruptura radicalcom a ideologia da tutela, ressaltando a condição de libertos, entregues a si mesmos,vivendo e trabalhando por conta própria. Autônomos em termos das festas religiosasou sem a presença de clérigos, cujas ordens foram expulsas desde 1759-60. Autônomosnas decisões de como, onde e o que cultivar sem a pretendida "capacidadeadministrativa" de senhores e feitores. Autônomos na esfera da circulação,

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transportando diretamente em barcos à vela, que denominam bianas, sua produçãopara o mercado consumidor da capital, sem a intermediação de companhias decomércio que já não mais existiam desde 1778. Aliás, o trabalho por conta próprianão consistia numa prática desconhecida daqueles escravos que mantinham terrenosde cultivo para o sustento de suas famílias. Mediante tal maneira de agir e de severem a si mesmos sob uma aura de autonomia, colocam-se, portanto, para além dequalquer tutela, seja do Estado, seja de senhores de engenhos.

Mesmo nas situações concernentes à doação de terras a escravos e ex-escravos,como foi possível observar noutra parte desta perícia, em que as narrativas míticas recuperamaparentemente o mito do "bom senhor", o ideal de autonomia e não-submissão é sempreenfatizado. Relativizam as doações que a historiografia regional acriticamente considera umato de benevolência do senhor bondoso e indulgente. Com base nesse princípio, eles vãoreescrevendo, com suas narrativas memorialísticas, a ruinaria e o abandono das fazendas dealgodão e dos engenhos. Deixam entrever uma ação senhorial descontínua, contingente,além de devastadora e predatória, quase impossível de transmitir qualquer sensação deamparo, de reprodução simples ou de atividade produtiva permanente. São muitodifundidas também, e vão reaparecer na análise das doações de terras a ex-escravos, asmenções ao endividamento dos senhores como uma das causas do abandono das fazendas22.

Ao reiterarem que os antigos senhores "não puderam levar" os paredões e asmuralhas, os entrevistados deixam transparecer episódios que a historiografia regional, noseu fascínio não-disfarçado pelas "ruínas que atestam a extinta opulência" (Raposo, 1944:258),acabou por desprezar. Em verdade, de certo modo, as ruínas teriam sido produzidas poratos deliberados resultantes dos endividamentos contraídos pelos senhores e da baixa dopreço do algodão e depois do açúcar no mercado mundial. Elas evidenciam o malogro deuma economia escravista baseada em grandes estabelecimentos agrícolas, dedicados àmonocultura, nessa região dos trópicos. Os depoimentos alusivos a como os "brancos

foram embora" fazem referências ao destelhamento das casas-grandes e à sua demolição,com as vigas do barroteamento dos soalhos e dos baldrames e demais peças de madeirade lei sendo levadas pelos senhores, quando de sua retirada de Alcântara. O mesmo destinoteriam tido oratórios, imagens de santos, como no caso de São João Batista23, livros quecompunham pequenas bibliotecas dos membros das ordens religiosas e o mobiliário colonialdo casario assobradado das fazendas. As narrativas indicam, também, que partes dasengrenagens dos engenhos, como as caldeiras e demais utensílios complementares (rodashidráulicas, tachas de ferro estanhado e rodas de ferro inglesas) foram desmontadas evendidas para o Ceará e outros estados do Nordeste.

Os entrevistados, entretanto, alertam notadamente para o que não pôde sermaterialmente levado nessa dramática retirada, cuja descrição tem conotações aproximáveisdo saque e da pilhagem. Nos depoimentos coletados, tudo se assemelha a despojos de umaação espoliadora que objetivava não deixar nada para trás, senão pedra sobre pedra24.Mencionam os bens imóveis em desmoronamento, tais como: as paredes de pedra –excedendo a um metro de largura, que se erguem sobranceiras nos outeiros e nas pequenaselevações não alcançáveis pelos terrenos alagadiços, designadas localmente como muralhas eparedões –, os poços de pedra lavrada, os tanques e os alicerces.

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Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 2

Assinalam ainda elementos paisagísticos das sedes, que tornam os lugaresonde se erguiam mais facilmente distinguíveis. A pretensão de nobreza desses lugares étraduzida por plantas ornamentais da família das palmas, de estipe ereto, colunar, quechegam a atingir 40 metros, e que simbolizavam o poder senhorial na Colônia e duranteo Império. Um exemplo seria a denominada "palmeira imperial" encontrada junto àsruínas do Engenho Gerijó:

"...ainda existe uma palmeira imperial que era a planta lá do senhor.

Acho que ela tem uns vinte ou mais de vinte metros de altura. Ainda

existe lá no Gerijó." (V. 18/04/2002 - ENT.14)

Outro desses elementos característicos da paisagem que envolve as sedes dasfazendas são os mangueirais, conhecidos localmente também como mangais, que podemser encontrados junto a quase todos os chamados sítios velhos e taperas de branco domunicípio de Alcântara (Cantanhede, 1998:12-13).

Referem-se ainda os entrevistados às chamadas pedras de rumo ou marcosde pedra de cantaria, com inscrições e/ou letras na sua face superior, delimitando osconfrontantes das datas de sesmarias a serem confirmadas ou já concedidas pelo poderreal a nobres, fidalgos, cavaleiros de ordens e "homens de posse"25. As terrascorrespondentes a cada imóvel rural eram delimitadas com esses marcos ou pedras de

rumo, que definiam ângulos, limites tríplices e pertencimentos. Elas foram igualmentereapropriadas e hoje balizam as delimitações dos povoados, podendo incluir um ou váriosdeles consoante a particularidade da desagregação da referida fazenda e da formação doslaços comunitários. Importa frisar que as pedras de rumo originalmente delimitavam terrase que, nessa dinâmica de reapropriação pelas comunidades remanescentes de quilombo,passam também a servir de referências para a construção social do território. Nesse sentidoé que foi afirmado anteriormente que o processo de territorialização abrange múltiplasterritorialidades específicas que foram se constituindo segundo temporalidade próprias ediferentes, mas convergindo, através de intensas conexões, para um território étnico.

Os detalhes dessas descrições e a habilidade em discernir os diversos tiposde formas ruiniformes evidenciam a força da transmissão dessa versão nativa que, numdebate ideal, se contrapõe à história oficial, recolocando o sentido efetivo das ruínas. Aocoonestarem esse tipo de saber histórico, as comunidades de cada povoado deslegitimam,de maneira implícita, os antigos senhores como detentores do monopólio da identidaderegional e asseveram que têm mantido ininterruptamente sob seu controle absoluto, durantequase dois séculos, vastas extensões de terras que somente por algumas décadas tiveramsua exploração organizada pelos denominados brancos. Nessa ordem é que a versãodos descendentes dos ex-escravos, circunstanciando de maneira pormenorizada a "fuga"dos senhores, paradoxalmente nos autoriza a falar em aquilombamento das ruínas dascasas-grandes e dos engenhos.

As ruínas também evocam uma outra característica da identidade quilombolaemergente: a noção de tempo livre.

"Este era o paredão. Casa-grande, sim senhor. Casa-grande do feitor,

o preto apanhava aí, não tinha direito quase nem de comer. Quando

a sineta batia, cada um com sua colher ia caçar o que comer, se perder

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essa hora, só de noite, batia a sineta...Belmiro, Francisco, Antonio,

Pedro cada um com sua cuínha, pegava aí, não tinha tempo de

fazer nada, só mesmo da carroça buscar madeira, mandioca aqui

neste centro..." (U.A.S.-19/04/2002-ENT.18)

Mostrando-me as ruínas, o entrevistado sublinha a impossibilidade do tempolivre no regime escravista, numa percepção de que a severidade da disciplina rotineira e aintensidade das tarefas o impediam de fazer alguma coisa para si mesmo e para os seus.Essa representação do tempo é resultado de uma longa experiência de aprendizagem emadministrar, através de longas jornadas de trabalho, a produção de bens essenciais e adistribuição social do que for necessário à sobrevivência.

A categoria tempo livre (Elias et Dunning, 1994:129) é essencial para se compreendero processo de trabalho nas comunidades remanescentes de quilombo, bem como suas representaçõessobre vida social. Além de ser interpretada de maneira positiva, a categoria tempo livre, realçandouma posição de liberdade e independência, representa um traço distintivo em face da subordinaçãoescravista de épocas pretéritas. O equilíbrio entre o trabalho por conta própria e as atividades delazer, numa ruptura com a noção de "coisa" imposta ao escravo, resulta por reforçar a sua condiçãode sujeito e suas formas de existência coletiva. Como sugere Elias, uma das determinações dotempo seria a que faz dele um "símbolo social, cujo desenvolvimento acompanha o da vidacoletiva" (Elias,1998:31). À desintegração progressiva da autoridade dos senhores de escravos e deseus prepostos, corresponde a emergência de uma representação do trabalho, pelos membros dasfamílias de ex-escravos, desvinculada de qualquer forma de subordinação. Os indivíduos governam-se a si mesmos, resistindo aos que insistem em subordiná-los. Sua liberdade repousa em suapossibilidade de controlar de maneiras diversas o acesso aos meios de produção, os seus meios detrabalho e o tempo equilibrado entre o trabalho para si e as formas de entretenimento. A identidadequilombola é construída sobre esse equilíbrio, redefinindo a geografia da dominação. Assim, ocampo de futebol localizado em meio às ruínas evidencia um uso social determinado. Reagrupa aspessoas de uma forma distinta daquela das atividades produtivas. Todavia, reforça os laços desolidariedade e de coesão social da comunidade por igual. Percebe-se uma apropriação coletiva doespaço adjacente às ruínas, antigo lugar de trabalho compulsório, para o exercício dessa atividadede entretenimento dos moradores dos povoados. Aqui também se constata a aludida inversãocomo uma característica do processo de territorialização étnica.

Mas não se deve confundir essa noção de tempo com sequências temporaisintegradas num fluxo contínuo. Há outros fatores que entram em consideração. Não sãosomente a idade de uma ruína, a idade de um povoado ou a duração de certos processossociais, como esse da territorialização das comunidades remanescentes de quilombos,mas também a conquista do tempo livre e a disponibilidade para consolidar os elementosidentitários que autorizam a identificação étnica e justificam os direitos derivados.

Os critérios político-organizativos e de mobilização, coextensivos à identidadeétnica e às reivindicações de titulação definitiva das terras das comunidades remanescentesde quilombo, reconhecida pelo Art. 68 do ADCT da Constituição de outubro de 1988,atualizam-se também nesses domínios de trabalho e lazer, consubstanciando a plenitude dacondição de sujeito conquistada pelos quilombolas.

Em suma, pode-se afirmar que uma datação das ruínas dispersas pelomunicípio de Alcântara poderia ser estimada entre quase um século e meio, considerando o

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Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 2

malogro dos engenhos, e dois séculos e meio, tomando como referência a expulsão dosjesuítas. As datas antecedem à abolição formal da escravatura em até 129 anos, e assinalamuma característica econômica intrínseca a regiões periféricas, que mesmo com grandesplantações não lograram transformarem-se em complexos agrário-industriais, como nocaso da costa nordestina, em que se constituíram as usinas de açúcar. Em Alcântara, aocontrário, com a desagregação das fazendas, prevalece um sistema econômico de pequenosprodutores que incorporam a terra ao processo produtivo mediante o trabalho familiar ecuja trajetória, em termos históricos, remonta ao princípio de autonomia e às premissasétnicas dos quilombos. Esses marcos temporais, ora fixados, datam concomitantemente adesagregação das fazendas e a ancianidade das comunidades remanescentes de quilombo,que se acham imbricadas nesta arqueologia das grandes plantações.

O marco divisório de Alcântara, de 1755, que deixara as terras a noroestepara os índios e as demais para as grandes plantações, perdeu assim a sua razão de ser,perpassada de norte a sul pelas pequenas unidades de trabalho familiar que, estruturandosua vida social em povoados, foram impondo gradativamente um processo produtivoautônomo com relações diretas com os diferentes circuitos de mercado através de dezenase dezenas de pequenos portos por onde era escoada a produção de farinha, pescado,carvão, arroz e produtos extrativos para a capital da província. As categorias instituídaspelos colonizadores, quais sejam: índios, pretos e caboclos, portadoras de atribuiçõesestigmatizantes, foram sendo redefinidas por aqueles que, tornando-as afirmativas, passarama se autodefinir por elas, definindo de igual modo as terras que efetivamente controlavam.Os povoados que aí foram erigidos se organizaram em torno do uso comum dos recursosnaturais e dos mencionados portos, os quais facultaram condições de possibilidade para alivre comercialização dos produtos agrícolas e extrativos desde a segunda metade do séculoXIX e, com determinadas variações, até o momento atual.

Para bem fundamentar todo esse processo, recorri a fontes documentais earquivísticas sobre a dimensão da ação dos quilombos em Alcântara, no decorrer dosséculos XVIII e XIX, os responsáveis maiores pela autonomia aventada.

As ações dos quilombolas em Alcântara se intensificam a partir da primeiradécada do século XIX. Em razão inversa à desagregação das grandes plantações de algodãoe de cana-de-açúcar, os quilombos expandiram seu processo produtivo e ampliaram suasrelações em diferentes circuitos do mercado de produtos alimentares, marcando presençanos pequenos portos e nas vias de acesso às vilas de toda a região, sobretudo Alcântara,Guimarães, Turiaçu e Viana. Há copiosa documentação administrativa colonial a respeito,bem como interpretações de historiadores do século XIX que compulsaram fontes documentaishoje inexistentes. O historiador César Marques, em 1878, sublinha quanto a essa região que:

"desde 1811 principiaram a formar-se de novo alguns quilombos. (...)

Organizados ahi esses quilombos, estenderam seus domínios às comarcas

de Alcântara e Viana, pondo assim em risco a propriedade e segurança

individual dos seus habitantes tornando inacessíveis terrenos, aliás

fertilíssimos e apropriados a várias espécies de cultura." (Marques, 1878:14).

A fragilidade circunstancial dos instrumentos de coerção, em virtude daderrocada econômica dos fazendeiros e de sua gradual retirada de Alcântara, favoreceu

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tal expansão. A desorganização das grandes plantações, sem que houvesse um produtocomercial para substituí-las, acarretou uma relativa liberação da força de trabalho. Osmecanismos de controle nas mãos de prepostos evidenciavam que a autoridade absolutados fazendeiros principiava a atenuar-se. Os designados pelos senhores para exercerematos como seus feitores, administradores e semelhantes, que, em Alcântara, recebem adesignação de encarregados da terra, eram recrutados entre os próprios escravos maispróximos das casas-grandes, que realizavam serviços domésticos e de criadagem maisafetos à vida privada da família dos senhores26.

Transcendendo a incursões guerreiras, comumente ressaltadas pelos historiadoresregionais como características dos quilombolas, tem-se que os quilombos em Alcântara foram,em verdade, consolidando um sistema produtivo relativamente autônomo e estabelecendovínculos estreitos não só com os pequenos produtores livres e índios das áreas das antigasreduções, mas também com os escravos e com a camada incipiente de foreiros das fazendasconfiscadas das ordens religiosas, e com os escravos que, com a retração do plantio dealgodão, se voltaram para o cultivo de arroz e mandioca, para a pesca e para as atividadesextrativas, sob a direção dos prepostos dos fazendeiros.

De outra parte, com a revogação do Directório27 em 1798, os índios nasantigas terras das ordens religiosas tornaram-se livres da autoridade de diretores e soldados,instituída no regime pombalino, que os faziam pagar, além do dízimo, o chamado “sexto”e também passaram a produzir para si e a comercializarem seus produtos diretamente. Nasfazendas de algodão, a queda vertiginosa dos preços no mercado, desorganizando as grandesplantações, levou a que os escravos fossem reorientados para os cultivos de gêneros deprimeira necessidade, que nos períodos de alta do algodão eram adquiridos pelos fazendeirosnas áreas periféricas às fazendas, mais próximas de São João de Cortes, controladas pelosíndios, para abastecer a escravaria. Essa reorientação tanto resolvia o problema demanutenção da força de trabalho – considerando que aos senhores competia dar a seusescravos o necessário à vida para se alimentarem e vestirem – quanto assegurava aos senhoresreceitas substanciais através da comercialização, nas praças de mercado de São Luís, dosgêneros alimentícios que lhes eram enviados pelos prepostos. Embora nenhuma lei garantisseaos escravos o pecúlio e vigisse o princípio de que o escravo nada podia adquirir para si,sendo todo o produto de seu trabalho obrigatoriamente destinado ao senhor, constata-seque, nesta situação examinada, foi facultado aos escravos tempo de trabalharem para si epara seu próprio sustento. Esse embrião de autonomia produtiva foi se consolidando nasdécadas seguintes, erigindo as chamadas terras de preto e convergindo para uma situaçãode aquilombamento, ou seja, uma autonomia absoluta em face dos senhores. Tal situaçãode aquilombamento abarca também os próprios índios que, com o afastamento dosdiretores, em 1798, construíram sua própria autoridade, independentemente de tutelas,sobre as chamadas terras de santo28 e terras de caboclos e estabeleceram relações sociaiscomunitárias e associativas com escravos fugidos das fazendas, refugiados em seus domínios,e com os povoados que foram sendo formados com a derrocada das fazendas de algodão.Semelhante ação social baseia-se numa necessária aproximação de interesses e de autodefesade áreas de algum modo delimitáveis, num momento em que os fazendeiros, seus antagonistashistóricos, achavam-se circunstancialmente por demais debilitados economicamente para reprimirduramente essa forma de autonomia.

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O sentimento de índios e escravos de pertencerem afetiva e economicamente aterritorialidades que controlavam efetivamente, viviam como suas e às quais emprestavam suaspróprias autoatribuições, num momento em que não lhes era permitido por lei ter quaisquerpropriedades e pecúlios, evidencia uma afirmação étnica. Ao afirmarem implicitamente direitospessoais e de grupos não reconhecidos legalmente como habilitados à posse e/ou propriedade,marcam uma diferença diante do ordenamento jurídico colonial e descrevem uma trajetóriaque colide com ele ao se erigirem como sujeitos. Recorde-se que os próprios fazendeiros,enquanto sesmeiros, usufruiam de uma concessão régia e não eram proprietários das terrasestrito senso e, após a extinção do instituto das sesmarias, em 1823, ficaram como "posseiros"até, pelo menos, a Lei de 185029.

Está-se diante, portanto, de diferentes vertentes de construção de territorialidades,as chamadas terras de santo, terras de caboclos e terras de preto, em que comunidadesaparentemente separadas em termos étnicos convergem, por intermédio de uma relaçãoassociativa abrangente, para um mesmo processo de territorialização étnica. Tal quadro históricopermite compreender por que, em Alcântara, a memória das comunidades remanescentes dequilombo não se atém a feitos militares ou a episódios de heroísmo ou ainda a figuras míticas,mais se concentrando na afirmação de uma forma de existir e produzir, com base num sistemade uso comum dos recursos naturais e numa reciprocidade positiva entre as famílias de diferentespovoados. Em termos de uma datação, pode-se afirmar que semelhante sistema, nas terras dasfazendas das antigas ordens religiosas, já tem mais de dois séculos e, nas demais situações sociaisespecíficas de Alcântara, tem quase dois séculos.

Caso se queira estabelecer uma relação entre os quilombos e a governaçãopombalina, tem-se que a autonomia produtiva foi sendo conquistada concomitantemente coma consolidação dos chamados quilombos ou mocambos. Sobre isso, cabe assinalar que osregistros relativos à incidência de quilombos em Alcântara, levantados a partir da consulta adocumentos burocráticos das administrações dos períodos colonial e imperial, deixam entreverque, mesmo antes da governação pombalina, as ações dos quilombolas já eram registradas,embora com menor recorrência do que no decorrer século XIX. O termo "mocambo" éacionado nessa documentação em sinonímia com quilombo, como se poderá destacar nosexcertos transcritos nos quadros adiante apresentados.

No período colonial, ou mais exatamente entre 1701 e 1751, as fontesdocumentais e arquivísticas compulsadas compreendem basicamente a correspondênciaentre a Casa Real, na metrópole, e a alta hierarquia do corpo administrativo da colônia, istoé, do Estado do Grão-Pará e Maranhão, separado do Brasil desde 1621.

Na interpretação de Viveiros:

"Pelo que investigamos, no Maranhão, o mais antigo mucambo data do

ano de 1702. Localizou-se nos sertões do Turiaçu, tendo sido destruído

pelo Governador Fernão Carrilho, que lá aprisionou centro e vinte escravos,

cobrando por seus senhores por peça a quantia de oito mil réis, no que foi

censurado pela Coroa. No decorrer dos anos, foram surgindo mucambos

em vários lugares maranhenses: Viana, Pinheiro, Alcântara, Guimarães,

Maracassumé, donde não raro saíam os africanos para a pilhagem das

fazendas." (Viveiros, 1954:88)

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A Companhia de Comércio do Maranhão (1682-84) introduzira umaquantidade de escravos africanos muitíssimo inferior ao previsto, qual seja: 500 escravospor ano, durante vinte anos. Não durou mais que dois anos e assim mesmo com resultadosincompletos (Salles, 1970:30). Assim, não é difícil entender por que a composição dosquilombos, consoante os registros da administração colonial, assinala uma destacadaparticipação de índios. Os próprios termos designativos denotam tal idéia, ao designaremo quilombo como: "aldeia de escravos fugidos". Do mesmo modo, a caracterização daação é assim registrada: "gentios do corço" (sic). A noção de corso denota ataques esporádicose irregulares, porém rápidos e sucessivos, feitos de forma isolada ou em grandes grupos,sem objetivo de ocupação permanente, apenas fustigando ou visando o roubo deinstrumentos de trabalho em ferro e o roubo de gado para tração e alimento. São essasincursões guerreiras que afetam Alcântara ainda no período em que os colonos se opunhamaos empreendimentos econômicos das ordens religiosas. O termo gentios parece prevalecernos quilombos e os chamados pretos e caboclos só vão ser mencionados quando, porrazões estratégicas de povoamento, os administradores coloniais passam a favorecer ocasamento com índios, proibindo que os filhos recebessem a denominação de caboclos e,depois, passam a privilegiar os próprios índios, libertando-os da escravidão, em 1755, emantendo formalmente nessa condição principalmente os chamados pretos.

A seguir, apresentarei um quadro resumido com as informações coletadasnos registros burocrático-administrativos no decorrer do século XVIII:

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Notas ao quadro da pág. 50:

(1) O jurista Perdigão Malheiro, em 1864, menciona o quilombo do Turiaçu como tendo durado cerca de 40 anos

(Malheiro, 1976:36). A. César Marques, em 1872, registra como esse quilombo se expandiu para Alcântara e Viana. (Marques,

1878:5-69). J. Viveiros cita esse documento de 1702, que foi reproduzido pelos Anais da Biblioteca Nacional em 1948,

volume 66, páginas 212-213, como referente ao quilombo mais antigo do Maranhão (Viveiros, 1954:88), mencionando

como, em Alcântara, Viana, Pinheiro e Guimarães, as fazendas eram alcançadas pelos quilombolas saídos de Maracassumé,

Turiaçu.

(2) Cf. M. Carneiro de Mendonça. A Amazônia na era Pombalina correspondência inédita do Governador e Capitão

- General do Estado do Grão-Pará e Maranhão Francisco Xavier de Mendonça Furtado (1751-1759). Rio de

Janeiro, IHGB, 1º Tomo, 1963, p.303-304.

A própria área correspondente a Alcântara surge, inicialmente, como dentro doraio de ação dos quilombolas que tem seu principal núcleo no Turiaçu. O documento que aconsagra, e que é reconhecido pelos principais historiadores maranhenses como um marco nahistória dos quilombos no Maranhão, é uma carta do rei de Portugal ao governador geral doEstado do Maranhão, Fernão Carrilho, datada de 20 de março de 1702, em resposta àcorrespondência de 06 de maio de 1701, dando notícias de que: "no certam do Rio Turiacúque estavão humas Aldeias de escravos que se tinhão levantado a muitos anos e fugido a seussenhores."(sic).

Esse documento foi lido e citado por César Marques, em 1872, e tambémpor Viveiros, em 1954, tornando-se uma referência obrigatória da historiografia regional.Assinala que os corsos ocorreram simultaneamente em Turiacú, Viana e outras áreas,tal como ocorreria 165 anos depois, quando os quilombolas de São Benedito do Céuse deslocaram no sentido de Viana, destruindo fazendas. A menção a Alcântara éinteiramente complementar.

O outro documento detectado é também uma carta, só que do capitão geraldo Estado do Grão-Pará Francisco Xavier de Mendonça Furtado ao rei de Portugal, datadade 16 de novembro de 1752. Nela, o referido capitão geral, que era irmão do Marquês dePombal, tenta estabelecer uma aplicação diferenciada de pena para "índios" e "pretos"capturados num mesmo quilombo, afirmando que os primeiros não deviam ser marcadoscomo os outros. Como justificativa da pretendida distinção, trata os "pretos" comoatomizados, enquanto os "índios" são representados como povo, agregando um limite,qual seja, que é "impossível castigar um povo inteiro". Quatro anos antes da "Lei dasLiberdades dos Indios", já fala em libertação dos índios. A repressão seletiva no períodopombalino se volta principalmente contra os chamados pretos e os caboclos.

O uso do termo cativeiro na documentação, referido à condição de escravo,ainda hoje é de uso corrente na região, denominando situações vividas como de opressãoe subordinação30.

A documentação pombalina é mais voltada para medidas produtivas, alusivasà formação das fazendas, ao tráfico de escravos e à comercialização de gêneros agrícolas eextrativos. Não foi encontrado nessa documentação um registro sequer de levantes ouincursões dos quilombolas nas fazendas, embora as matas do Turiaçu sempre estejam nasentrelinhas da captura de escravos e de supostos perigos e os portos de Cururupu e Turiaçusejam sempre citados nas rotas de contrabando e do comércio ilegal de escravos. O movimentode escravos por esses portos não passava pelas estatísticas alfandegárias e de controle oficial

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Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 2

(Salles, 1971:41). A concentração de interesses do Estado dinástico, através da CompanhiaGeral de Comércio, no transporte e na comercialização de escravos, resolvia um problemaatinente aos empreendimentos agrícolas desde fins do século XVII, isto é, aumentava aoferta de escravos e facultava créditos que fortaleciam a capacidade produtiva e osinstrumentos repressores ao alcance dos fazendeiros. A expansão das fazendas e ocrescimento da vigilância e dos atos coercitivos podem ter inibido as incursões quilombolas.

Uma terceira forma de registro de quilombos que foi detectada nadocumentação data do período de 1785 a 1793. Trata-se de referências explícitas a"mocambos", "enseada de preto fugidos", "lagos dos mocambos" e "ações de CapitãoMato" que aparecem explicitamente nas cartas de datas e sesmarias, que asseguram asconcessões do poder real passadas aos sesmeiros: Ignácio de Araújo Cerveira, em1785; capitão Manoel Ferreira dos santos, em 1787; José Alberto da Silva Leitão, em1788, e João de Carvalho Santos, em 1793. No caso da concessão passada ao capitãoJosé de Araújo Cerveira, em 1787, a referência é implícita. Nessa documentação colonial,a ocorrência de quilombos antecede, de maneira flagrante, ao próprio registro desesmarias. Embora apareçam nos registros oficiais como meros topônimos de acidentesnaturais (lago, enseada, rio), a menção à ação repressora de capitão do mato e militaresdesnaturaliza-os, porquanto evidencia conflito, dotando de vida o que se supõe extintoou não mais existente. Os registros dizem respeito ao chamado "Lago do Mocambo"e à "enseada dos negros fugidos", que corresponderiam a quilombos cujas áreas foramentregues por concessão régia a sesmeiros que dispunham de escravos e recursos ediziam que as terras eram "devolutas" e que, nelas, ocupação não havia.

Cotejamos essas fontes documentais com aquelas da história oral, atravésde duas entrevistas realizadas nas periferias de Alcântara e obtivemos informações quelocalizam as áreas tanto ao sul do município quanto próximas ao povoado de Peru – quese situa na chamada "área de segurança da base" e foi deslocado compulsoriamente peloCentro de Lançamento de Alcântara, em 1987, para a agrovila que hoje responde pelamesma designação de Peru. O depoimento de Dona G., nascida em Marudá e atualmenteresidindo em Alcântara, adianta que:

"G. - Tem a Lagoa do Mocambo que é da terra do Peru. A Lagoa do

Mocambo era do Sítio do Peru. O Peru era junto com a nossa terra. A

nossa terra faz divisão com o Peru. Era um lugar chamado Boca da Lagoa.

Boca da Lagoa era a junção da nossa terra com o Peru.

P. - E a Sra. Tem alguma informação sobre esse Lago do Mocambo?

G. - Tem o mocambo... que morava o povo do Peru mesmo. Um senhor

que morreu. O nome dele era João Francisco. Eu não sei o sobrenome,

né? Mas João Potado era o apelido. Era o dono desta terra. (...)

É, mas quando nós chegamos naquele Jabaquara era uma terra que tinha

tapera para todo lado, era preto mesmo. Já tinha morado gente. Tinha

tapera de casa pra todo lado. É... Tinha tapera para todo lado. Tinha até

um lugar que tinha uma tapera...No tempo que meu pai contava, que no

tempo da guerra, no tempo da guerra, que o pessoal se escondiam mode

a pegação, que os soldados que eles pegava o pessoal pra levar pra guerra."

(G. 22.04.2002 - ENT. 35)

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Alfredo Wagner Berno de Almeida

Constatamos, também, uma superposição entre os chamados mocambos eos locais de refúgio nos períodos de recrutamento obrigatório que compreendem as guerrasda Independência, as lutas chamadas "separatistas", do início do segundo reinado, a Guerrado Paraguai e a citada I Guerra Mundial. Mesmo que essa referência histórica à I Guerrapossa carecer de exatidão, tem-se uma analogia entre quilombo e "esconderijo", emcircunstâncias vividas como de não-acatamento de disposições legais. Senão, vejamos aentrevista de M., representante de povoado:

"Existem algumas taperas no Peru, essas taperas era o lugar onde eles se

escondiam na época da guerra, na primeira guerra mundial. Tinha como

lugar chamado Mucambo. Vocês chegaram lá no Mucambo, no Peru, você

encontra as taperas onde eles habitavam na época da guerra que eles se

escondiam. O Mucambo, São Benedito, Tapera do Padre, Monte Alegre e

Peru de Cima. Esse lugar você pode chegar lá que você ainda encontra

alguma coisa dos pessoal mais antigo, esses escravos que vinham antes.

Então, era tapera, uma como em Alcântara tem aqui hoje tem várias

muralhas, só que lá não tem muralha: eles só corriam para lá nas épocas de

guerra.... Lá era o esconderijo deles." (M. P. 19/04/2002 - ENT. 11.3)

A noção de quilombo como valhacouto abrange, no texto das entrevistasrealizadas, um repertório de termos que designam resistência a atos coercitivos pela fuga erefúgio e contém simultaneamente referências ao apresamento de índios para o trabalhoescravo nas fazendas, ao alistamento compulsório para prestação de serviços militares e àfuga de escravos das fazendas. Nesse sentido, torna-se indissociável de termos como pegação

e toca, que foram detectados em praticamente todas as entrevistas realizadas e em todas assituações sociais registradas, tais como as chamadas terras de santo, as terras de preto, asterras de caboclo e demais territorialidades específicas.

As próprias histórias dos antepassados são narradas consoante esses marcos,como frisa o Sr. J. N., 69 anos, que vive em São João de Cortes:

"Bem aqui nós tamos aqui dentro de uma toca. Isso aqui era uma

aldeia, os meus avós, os meus bisavós foram pegados a cachorro

pra poder domesticar. Era índia a minha bisavó e no tempo da

guerra do Paraguai houve aquele povo que tava pegando aquele povo

por dentro do mato para exército, pra entrar pra guerra aí pra fora.

Morreu tanta gente nesse navio sem ter necessidade e quando os

filhos dela, com os netos dela, um dos netos se meteram de baixo

da saia dela, que a saia dela era lá no pé. Se meteram embaixo da saia

da velha que era pra não ir pra guerra. E sem ser eu, outras pessoas

daqui podem também dizer a mesma coisa que eu estou lhe citando,

porque aqui nós tudo somo uma parenteza toda. O povo se olha é

tudo jeito de índio. E a parte indígena e a cidade dessa comunidade

foi adoada pelos índios." (J.N. 20/04/2002 - ENT.22) (g.n.)

No mesmo sentido, tem-se o depoimento do Sr. E. A, 60 anos, que exerceatividade de pesca em Brito:

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Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 2

"Aqui a toca pra ali desse mato, desse mato grosso pra lá, que eu tô te

falando, a gente encontra parte aí de mato, tem um lugar chamado

Tabaquinha (Tabatinga), cansei de achar assim casca de sernambi e osso

dentro daquele mato. Eles fugiam ali. Meu pai ele ainda contava que

fugiu, passou seis dias dormindo no mato com medo...Acontece na vida

do ser humano, rapaz, eles tinham medo, quando diziam a pegação aí

todo mundo corria para se esconder no mato. Tinha criança que entrava

no mato e saía de lá era pai de família, assim tem muito povoado aí só de

preto, que fugia aí de Alcântara, ganhava a mata aí atrás. Então acontecia

isto no município de Alcântara." (E.A. 20/04/2002 - ENT. 21.3)

"Eles vinham apanhá o sernambi de noite para levar para comer com

a família no mato, que quando eles fugiram dos brancos, que branco

era perverso, outro não era tão perverso assim como se dizia e por

isso que eles fugiam e iam fazer moradias, hoje tem muito povoado,

no município de Alcântara, porque eles fugiram e os outros iam fazer

suas casas no mato, quando acabou a escravatura, que foram libertos

os escravos, aí esse povoado aí, cada um... ficaram independentes, ali

de Canelatiua, antes do governo chegar com a base...". (E.A. 20/04/

2002 - ENT.21.3) (g.n.)

Não importa em que tempo, se no passado ou no presente, as representaçõesde medo e fuga se mesclam na prática dos entrevistados, reatualizando permanentementeuma forma de resistência aos antagonistas, sejam eles os denominados brancos ou o Estado.Essas características são em tudo definidoras de quilombo. "A fuga é inerente à escravidão"(Perdigão Malheiro: 1976:34), como já dizia Perdigão Malheiro em 1864, e se é recorrente,assim se mantendo na memória dos entrevistados, é porque tanto é maior o rigor e aperversidade dos atos coercitivos que sobre eles se abatem. O medo, por sua vez, mesmoconjugado com fuga, denota pressentimento de perigo e uma visão aterradora do alcancedos instrumentos de repressão da força de trabalho, que marcaram a sociedade escravista ecolonial.

No decorrer do século XIX, os quilombos se consolidam nas terras deAlcântara. Pode-se constatar uma expansão dos quilombos em Alcântara, entre 1811 e1837, sem que contra eles tenha sido empregada um força repressora significativa. Aslutas políticas que marcaram a Independência e a adoção de dispositivos constitucionais,que inclusive extinguiram as sesmarias, se estenderam até fins da década 1820-30. EmAlcântara, os fazendeiros, com a derrocada da economia algodoeira e com sua retiradadas fazendas, exerceram predominantemente o monopólio sobre determinados cargos efunções de representação política. Valendo-se da posição preponderante de Alcântara sobrea região da Baixada Ocidental, centralizaram interesses e estabeleceram articulaçõesprivilegiadas com o poder provincial, através das Juntas Governativas31, e com a Corte.Em 11 e 16 de agosto de 1823, consignaram atos de juramento de fidelidade e apoio àIndependência e ao imperador Pedro I, em cerimônia realizada na Câmara da vila deAlcântara. Representantes de Guimarães, São Bento, Santo Antonio e Almas e Pinheiro sefizeram presentes. As famílias Franco de Sá, Viveiros, Ribeiro, Araújo, Costa Ferreira, AraújoCerveira e Gomes de Castro ocupam cargos proeminentes (presidente da Câmara,

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Alfredo Wagner Berno de Almeida

vereadores, comandante de destacamentos militares, tenente-coronel, capitão, alferes eprocurador), juntamente com outras famílias que haviam sido aquinhoadas com concessõesde sesmarias no século XVIII. Os próprios sesmeiros, mencionados anteriormente,aparecem como signatários dos documentos, bem como os futuros barões sagrados peloimperador, a saber: Severo Antonio de Araújo Cerveira, Romualdo Antonio Franco de Sá,Francisco Mariano de Viveiros, Antonio Pedro Ribeiro, José Ascenso da Costa Ferreira,Antonio Pedro da Costa Ferreira, Jerônimo José de Viveiros etc., além de religiosos carmelitase padres seculares32. O principal teatro de operações das forças militares encontrava-se naesfera política. Em Alcântara, as fazendas em abandono, administradas por prepostos,evidenciavam uma certa deserção dos fazendeiros. Até 1837, não foram encontradosdocumentos indicando a mobilização de tropas de linha para combater os quilombos emexpansão, nem a crescente autonomia produtiva dos escravos sob a direção dos prepostos.Isso provavelmente explica por que, em Alcântara, e particularmente nas duas freguesias deSão Matias e São João de Cortes, não foram registradas "fugas em massa" de escravos talcomo ocorrido em outros pontos da região, como Guimarães33 e Viana. Os escravos, emAlcântara, permaneceram com suas famílias nas fazendas de algodão cultivando e garantindosua autonomia a partir do processo produtivo.

Entre 1835 e 1886, detectei registros oficiais de quilombos em todos os tiposde estabelecimentos agrícolas de Alcântara, quaisquer que fossem: antigas fazendas de ordensreligiosas (Itamatatiua e povoados próximos, Mercês), fazendas de algodão (Esperança),engenhos de cana-de-açúcar (Gerijó, Mutiti, Itapiranga, São Maurício e povoados próximos)e fazendas de gado (Tubarão). Detectei registros de história oral de quilombos nessas mesmasunidades de produção e ainda em Flórida, Forquilha, Ladeira, Peroba de Cima, Itapuaua,Samucangaua, Iririzal, Peru, Brito e Itapera. Detectei também registros de quilombos emtodas as territorialidades específicas: nas antigas terras de índio doadas para o santo (SãoJoão de Cortes), nas chamadas terras da santa (Itamatatiua e povoados próximos), nasdenominadas terras de santíssimo (centralizadas em torno de Santana dos Caboclos eSamucangaua), nas designadas terras de caboclo (Peroba de Cima e povoados próximos) enas chamadas terras de preto. Estas últimas são mais numerosas e abrangem quase todos ospovoados da antiga freguesia de São Matias e quase toda a de São João de Cortes, considerandoa interpenetração entre os planos organizativos de tais territorialidades (Geertz, 1967:257).Detectei a referência a quilombos em todas as situações caracterizadas por doação defazendeiros, como nas denominadas terras da pobreza (Canelatiua e povoados próximos)que foram doadas explicitamente e por disposição registrada em cartório, incluindo-se tambémas doações informais, como seria o caso de Vai com Deus; situações caracterizadas porherança, como seria o caso de Santo Inácio e São Raimundo; situações caracterizadas poraquisição, como seria o caso de Baixa Grande, entre outras.

Detectei, finalmente, a menção explícita a quilombos em documentos alusivosa todas as quatro freguesias correspondentes a Alcântara no século XIX, quais sejam: SãoMatias, São João de Cortes, Santo Antonio e Almas e São Bento.

As principais fontes documentais e arquivísticas levantadas entre 1837 e1886 concernem a carta de fazendeiro e ofícios de juiz de paz dirigidos a autoridadesprovinciais, documentos de chefes e subdelegados de polícia, além de procuração passadaem cartório e denúncias de fuga de escravos e de incursões guerreiras de quilombolas.

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Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 2

Completam tais referências interpretações documentadas de historiadores regionais,como César Marques, em 1872, e dispositivos da legislação provincial que focalizam arepressão aos quilombos.

O primeiro desses dispositivos data de 1835 e trata-se da Lei nº 5, de 23de abril, em que o presidente da província, Antonio Pedro da Costa Ferreira, natural deAlcântara e já mencionado anteriormente, busca reorganizar o aparato policial daprovíncia. Para tanto, institui um Corpo de Polícia Rural, sob as ordens diretas do juizde paz em cada município, com destacamentos consoante à necessidade dos distritostal como informado pelas câmaras municipais. A criação dessa força militar, recrutadanos próprios municípios conforme o Art. 13, volta-se basicamente contra os quilombose estabelece premiações, além do soldo, para soldados e respectivos comandantes queaprisionarem escravos fugidos em cada distrito. Consoante o Art. 4º:

"Quando no ataque de um quilombo concorrerem dous ou mais soldados,

se repartirá por todos eles com igualdade as somas das gratificações, que

se houverem de pagar pelos escravos aprehendidos." (sic)

A reestruturação do aparato militar e as denúncias que começam a serencaminhadas aos juizes de paz a partir daí evidenciam um certo grau de consolidaçãodos quilombos na província do Maranhão e notadamente em Alcântara. Aqui, aocontrário das demais regiões do Maranhão, as tropas de linha imperiais, preocupadasem enfrentar as tropas dos chamados Balaios, não tiveram qualquer participação maior.A partir do Vale do Itapecuru, quase toda a província estava imersa na guerra daBalaiada, entre 1839 e 1841. Foram capturados por Caxias cerca de 3.000 quilombolasdos 11.000 balaios feitos prisioneiros. Os quilombos de Alcântara ficaram relativamenteà margem desses entreveros, porquanto não constituíam ameaça direta ao poder político.De igual modo, as escaramuças em Alcântara são esparsas, não se registram grandescombates nas proporções dos que, em 1855, marcaram a campanha militar no Turiaçu,ou tal os de 1866, que levaram ao aprisionamento de uma centena de quilombolas deSão Benedito do Céu, quando saíam das matas do Turiaçu em direção a Viana. Adespeito disso, tem-se uma regularidade de ocorrências que deixam entrever umaresistência constante e uma expansão sobre as áreas em que a cultura do algodão foidesaparecendo. A dispersão dos quilombos por toda Alcântara bem traduz essemovimento ascendente que vai tornando cada vez mais indistinta a produção delesdaquela que os escravos mantêm para si nas fazendas ainda controladas parcial eprecariamente pelos feitores e encarregados. As ruínas das antigas fazendas, apagandoas diferenças entre domínios formais e ocupações efetivas, constituem um cenáriocomum para essas modalidades de acamponesamento que convergem para um mesmoprocesso de territorialização. O quadro a seguir arrola os registros levantados no decorrerdos trabalhos de perícia, que evidenciam como os quilombos foram focalizados peladocumentação administrativa no período imperial:

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Alfredo Wagner Berno de Almeida

Em 1837, mediante a denúncia do fazendeiro de Alcântara Raymundo daConceição Lemos ao vice-presidente da província, Joaquim Franco de Sá, também fazendeiroem Alcântara, não é difícil constatar, pela recusa explícita dos soldados em procurarem osescravos fugidos, a fragilidade do aparato repressivo. Os soldados alegavam que não iriamparticipar da captura dos escravos fugidos devido ao fato de "terem trabalhado um anointeiro sem terem sido (serem) pagos". Pela quantidade e dispersão dos quilombos, pode-se verificar que as gratificações previstas em lei não pareciam suficientes para animar atropa, obrigando os fazendeiros a empreender a busca com milícia privada formada porseus próprios "escravos de confiança". O sentido de quilombo, nesse documento, é tomadocomo sinônimo de unidades de moradia dos escravos fugidos, reproduzindo a noçãodifundida pela legislação colonial34 e pelos relatos militares. O denunciante se refere a fatosocorridos no distrito de Carvalho, onde já não se plantava mais algodão em 1819, conformeatesta o coronel Pereira do Lago, descrevendo tal distrito:

"Todas estas terras pouco já servem para algodão, mas só para

mandioca. Onde chamam Carvalho é um istmo de ½ légua entre o fim

de dois rios, ao norte pelo do Carvalho, ao sul pelo Tucupai, de sorte que

as cargas que vem do Pericumã descem por este rio, entram no do Carvalho,

descarregam atravessando ½ légua e tornam a embarcar no Tucupai para

chegarem a Alcântara." (Pereira do Lago, 2001:34) (g.n.)

Na Fazenda de Tammata-tira (Itamatatiua), que pertencia à Ordem dosCarmelitas antes do período pombalino e que ainda estava arrolada entre os bens do Conventodo Carmo, local das principais ocorrências, tem-se que os quilombolas ameaçam tomar ocontrole do encarregado das terras. Na outra fazenda de Felipe Joaquim Viegas, no Tubarão,tem-se que a incidência dos quilombos, bem próxima à sua moradia, precede o registro dasterras que teria ocorrido em 28 de maio de 1855, conforme o livro dos registros paroquiaisnº 01, folha 10. Os outros povoados citados são Rio Grande e Mucajuba, onde o denuncianteregistrou roubo de gado e ameaças de morte a vaqueiro.

Nesse mesmo março de 1837, o juiz de paz reitera a denúncia dos quilombosno 5º distrito em novo documento ao vice-presidente da província e reafirma o envio dosarmamentos necessários para a sua dispersão.

No período da Balaiada, não se registram movimentos de tropas em Alcântaracombatendo os quilombos. No ano de 1844, após o término da guerra e dentro da políticado governo provincial de reintroduzir o "hábito e a disciplina de trabalho nas fazendas", osguardas campestres instituídos pela Lei Provincial nº 44 já se achavam estabelecidos nasubdelegacia de Alcântara para punir a vadiagem nos campos. Então, já havia um projeto dereinstalar em Alcântara engenhos de açúcar e comercializar a produção. A insuficiência dosguardas campestres diante da amplitude da ação quilombola leva o governo provincial a aprovarnovos instrumentos repressivos. Em 1846-47, ocupando a presidência da província o alcantarenseJoaquim Franco de Sá – filho do sesmeiro Romualdo Franco de Sá e genro de Antonio Pedroda Costa Ferreira, que também governara a província em 1834-35 e que instituíra a polícia rural– define como política de governo a implantação de engenhos de açúcar na província. Antes,porém, através da Lei nº 236, de 20 de agosto de 1847, intenta reorganizar os dispositivos de

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Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 2

repressão aos escravos fugidos. Para debelar os quilombos, através da autoridade do juiz de paz,disciplina a ação dos capitães do mato instituindo uma força repressiva com pelo menos doiscapitães por distrito, sendo que cada um deles não poderia dispor de mais de cinco soldados.Nota-se um misto de força regular e milícia privada animado por uma classificação dosquilombolas aprisionados em três diferentes situações, às quais correspondem gratificações distintas:

"Art. 5 - Os Capitães do Mato perceberão vinte mil reis por cada escravo

que for achado em quilombo; dez mil reis pelo que andar a corso, e dois

mil reis pelo que for achado nas cidades, Vilas ou povoações e até uma

légua de distância das mesmas."

Tais gratificações são bem mais elevadas do que aquelas instituídas pela Lei nº 5,de 23 de abril de 1835. Excedem-nas em 100% nos dois primeiros casos aventados, casosejam tratados em separado os soldos. Além disso, o Art. 9º previa que os capitães do matodeveriam receber as gratificações anunciadas e prometidas pelos senhores, enquanto o Art. 10dispunha que os quilombos tornavam-se presa de guerra, ou seja, todos os objetos encontradosnos quilombos seriam distribuídos entre os capitães do mato e seus soldados. Em outraspalavras, havia uma escassez de força de trabalho para os empreendimentos açucareiros e otráfico de escravos, começando a enfrentar obstáculos legais, já não assegurava mais umaoferta regular, o que aumentava consideravelmente o preço dos escravos, tornando a capturade escravos fugidos um negócio alta rentabilidade. Consoante os entrevistados de Itapuaua,seus avós narravam casos em que fazendeiros chegavam a roubar escravos uns dos outros:

"Disse que tinha o preto vigia, que eles tinham medo do preto, esse

que vigiava... se fizesse alguma pegação, ele saía de noite ia dizer

pro branco. Puxava, dizem que ele puxava uma corda assim aí vinha o

branco.(...)

– O caçador caçava quem?

– Eles roubavam um do outro. Os brancos eles roubavam preto um do

outro.Eram três irmãos, da família Araújo, na Esperança, no Mutiti e

abaixo." (A.C.A.ou A.T. 21/04/2002 - ENT.23.1) (g.n)

Em virtude da aludida escassez, os fazendeiros, que pretendiam estabelecerengenhos com maquinarias inglesas e norte-americanas, passavam a ter interesses maisimediatos no resultado da ação das milícias. Os quilombos são vistos, nesse momento,como depósitos de mão-de-obra. A referida lei preconiza, inclusive, a montagem de umcadastro de escravos fugidos atualizada a cada ano.

Nesse contexto, a legislação provincial maranhense procede a uma revisãono conceito de quilombo, estreitando-o severamente e adequando-o às novasnecessidades produtivas. Afasta-se da quantidade mínima de escravos fugidos, requeridanos dispositivos coloniais, que correspondia a cinco, reduzindo-a drasticamente paradois. Os mecanismos repressivos aumentam e o quilombo passa a ser definido pelo"escravo aquilombado", restringindo o sentido de reunião tão recorrente nadocumentação administrativa colonial.

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Alfredo Wagner Berno de Almeida

"Art. 12 - Reputar-se-á escravo aquilombado, logo que esteja ao interior

das matas, vizinho ou distante de qualquer estabelecimento, em reunião

de dois ou mais com casa ou rancho."

Ao aprovar essa lei, a Assembléia Legislativa Provincial se coloca nos debatesque precedem a Lei de Terras de 1850 e que se desenrolam desde 1839 com participaçãodestacada dos parlamentares alcantarenses. Entre os fazendeiros, havia grupos com interessesdiferenciados: os sesmeiros que tinham suas posses confirmadas, os que não possuíamconfirmação e os que se mantinham na condição de simples apossamento (Shiraishi, 1998:28).Como as listagens correspondentes aos registros de terras em Alcântara, expedidos entre1777 e 1816, arrolam menos de 25 nomes, pode-se imaginar que a última situaçãocompreendia um número mais elevado de fazendeiros, que não se atinham às extensõesusualmente concedidas e às exigências legais do período imperial, e é nesse sentido quepoderia ser lida a manifestação do senador Franco de Sá nos debates parlamentares entre1841 e 1843, sobre o tamanho das propriedades, autodefinindo-se como representante da"classe dos posseiros" (Carvalho, 1981:39).

Com a Lei de Terras de 1850 e com a organização por freguesia dos registrosdas terras, foram instituídos os "registros paroquiais" ou "registros do vigário"(Shiraishi,1998:26), que consistiam em autodeclarações. Nesse contexto, aumentasignificativamente o total de registros. Em três freguesias de Alcântara – São Matias, SãoJoão de Cortes e Santo Antonio e Almas – foram registrados, entre 1854 e 1857, 345imóveis rurais, isto é, 135 registros na primeira, 25 na segunda e 185 na outra.

Apresentarei, a seguir, um gráfico correlacionando tais registros:

Registro de terras segundo declaração do possuidor

Alcântara: 1854 - 1857

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Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 2

As informações sobre o tamanho das áreas foram freqüentemente omitidas:apenas 49 na primeira, 14 na segunda e 68 na terceira freguesia. A maioria dos que forneceramtal informação situa-se abaixo de 200 hectares, e no caso de Santo Antonio e Almas, a metadeestaria abaixo dos 100 hectares e apenas seis acima de 1.000 hectares. Em São João de Cortes,apenas quatro acima de 1.000 hectares, e em São Matias, sete somente. Em suma, os quepretendiam maiores extensões não declararam o tamanho de suas áreas, cingindo-se tãosomente a referências vagas. Antonio Onofre Ribeiro, irmão mais velho do Barão de Grajaúe que, inclusive, o havia criado (Viveiros, 1975:113), limita-se a declarar o seguinte no Livro 02, folha 12, em 02 de maio de 1856: "várias posses". Da mesma maneira procede o ComendadorJosé Maria Correia de Souza, em cujas terras da Fazenda S. José o historiador Viveiros assinalapresença de escravos fugidos e mocambo (Viveiros, 1955). Nas denominações de pelo menosduas fazendas, o termo "preto" aparece como sufixo; "Ponta do Preto", registrada em 5 demaio de 1856, por Jerônimo José Mirubins, e "Cabeça de Preto", registrada em maio de1856 por Carlos Felipe Coelho. No registro de Aruhu (Uruhu), na freguesia de S. João deCortes, em 25 de maio de 1856, aparecem como proprietários: "Ignácio Antonio Dias ediversos pobres". Essa área constitui hoje uma das territorialidades específicas assinaladasrespondendo pela designação de Terra da Pobreza. As fazendas Engenho Castelo e Tapera,de onde fugiam os escravos para o mocambo localizado na Esperança, próximo a Itapuaua,foram registradas, em 30 de abril de 1855, por Severo Antonio de Araújo Cerveira Filho.Obtive essa informação entrevistando A.C.A., de 78 anos, que indicou o local do "Mucambo"também tratado por toca (A.C.A. 21/04/2002 - ENT.23.1). Dessas fazendas fugiram tambémescravos que foram para o quilombo de São Sebastião, em Pinheiro, conforme entrevistarealizada por Viveiros com um dos quilombolas remanescentes, transcrita pelo periódicoCidade de Pinheiro de 12 de junho de 1955. Este quilombola chamado Silvério, que foraescravo de uma das netas do Comendador José Maria C. de Souza, narrou para Viveiroscomo se dava o processo de trabalho no quilombo. O historiador registrou que se dava em"moldes cooperativistas".

O Convento de Nossa Senhora do Carmo registrou as chamadas Terras de

Santa Tereza, onde se localizavam inúmeros quilombos em torno de Itamatatiua, tal comoregistrado em 1837 pela polícia rural, como Fazenda Tamatatiua (livro 01, fl. 56, datado de1857). A Irmandade do Santíssimo Sacramento registrou, em 30 de junho de 1856, noLivro 02, folha 19, uma terra sem denominação e sem a extensão em hectares, quecorresponderia às áreas designadas terras de preto, onde se localizam os antigos quilombosque abrangiam Ladeira, Samucangaua, Iririzal. Ora, à época deste registro, Bellarmino Mattos,a partir de verificações in loco, relata o seguinte sobre Itamatatiua: "Os religiosos têm alimuitos escravos, alguns oficiais de pedreiro, carapinas, oleiros, bastante porção de terras delavrar com matas, de muitas madeiras de lei, e nas mesmas terras têm grande número deforeiros, e algumas pessoas recebem grátis o asylo." (Mattos, 1861:34). A relação da Ordemdo Carmo com os escravos considerados insubmissos já foi examinada no capítulo sobreas ruínas intitulado "Muralhas e Paredões".* Em outras palavras, tais terras eram um recursoaberto com uma pluralidade de posses. As informações dos entrevistados sobre as chamadas

* Ver o Volume 1. (n.e)

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Alfredo Wagner Berno de Almeida

terras de santíssima indicam que para ali se dirigiram os escravos fugidos dos engenhosGerijó e Mutiti. As terras dos mercedários não aparecem nos registros paroquiais, mas aFazenda das Mercês desde 1819 aparece como de incidência de quilombos, como bem odemonstra a documentação transcrita no quadro demonstrativo já exibido. B. de Mattosafirma que as terras de Sant'Ana, vizinhas a Itamatatiua, dos religiosos mercedários tambémtinham foreiros (Mattos, 1861:34). Ou seja, para além da escravidão, já estava vigindonessas terras a figura do aforamento e da posse, com documentação vária assinalando isso.

A família Ribeiro – ou seja, Maria Francisca, Rita Quitéria, Carlos Pedro eoutros – registrou, no decorrer de 1857, sem mencionar o número de hectares, a áreadenominada Jarucaia, que corresponderia ao quilombo do mesmo nome assinalado pelastropas de linha desde os anos 1834-38. Outras áreas correspondentes às terras de preto,que compreendem os povoados de São Mauricio, Santa Rita, Arenhengaua, São RaimundoII e Santa Bárbara, foram igualmente registradas. Constata-se ainda que algumas das chamadasterras de caboclo, como Cujupe e Bacuriajuba, foram registradas por clérigos, a saber, oPadre José Aureliano da Costa Leite e o Padre José Ribeiro Martins. A perspectiva deorganização de um mercado de terras parece ter levado os que fizeram os registros aprocederem de modo formal sem que efetivamente tivessem qualquer benfeitoria nasrespectivas áreas ou sem que de fato as controlassem. A precariedade das informaçõesautodeclaradas talvez possa reforçar isso, contribuindo para evidenciar que os quilombosprecederam os registros de propriedade, já que as sesmarias eram consideradas posses pelodireito agrário do período imperial. Ocorre, entretanto, que a propriedade da terra era pré-condição para se ter direitos políticos, como sublinha Faoro, destacando a eleição de 1886em que os eleitores habilitados representavam apenas 0,89% da população brasileira. Acena política e a magistratura eram dominadas pelos interesses agrários.

Não se pode dizer, contudo, que não havia atividade econômica nos 13engenhos da freguesia de São Matias e nos cinco de Santo Antonio e Almas, que usufruíramde incentivos do governo Franco de Sá, em 1846-47, e mantiveram a produção até os anos1860-70. O Barão de São Bento aparece registrando o Mutiti, em 04 de outubro de 1855,enquanto que Manuel Gomes de Sá havia registrado outra parte dele em 14 de fevereiro domesmo ano. Essa tentativa de soerguimento dos engenhos teve vida efêmera, não obstanteterem sido importados equipamentos e erguidas edificações grandiosas, como ainda deixamentrever as ruínas do Gerijó. Tanto o Gerijó quanto o Mutiti, não obstante terem se tornadoobjeto de transações de compra e venda, tiveram quilombos e se constituem hoje em terras

de preto. A contradição entre os registros formais e o reconhecimento de fato dessasterritorialidades específicas mencionadas permite constatar que não havia resistência atravésde posses individuais, nem de povoados de per si, senão de vários povoados que seinterpenetravam, através de relações sociais comunitárias, constituindo as chamadas terras

de santo, terras de santíssimo, terras de preto, terras de caboclo. Diferem, sob esteaspecto, da chamada terra da pobreza, que foi instituída em cartório num ato de doaçãodo proprietário, cuja certidão constitui um dos anexos desta perícia. Diferem tambémdaquelas situações que, embora designadas como terra de preto, foram objeto de doaçãoou de sucessão, formal ou informal, do grande proprietário, tais como: Santo Inácio,Vaicom Deus, São Raimundo I e parte de Itapuaua. Diferem ainda daquelas situações designadascomo terra de preto que foram objeto de aquisição por alforriados, como Mutiti, Baixa

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Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 2

Grande e parte de Itapuaua. Estes últimos se valeram do mercado de terras para legitimarantigos quilombos, ou seja, compraram o título formal de terras em que já cultivavamcentenariamente. Em virtude disso é que se torna temerário asseverar que, quando da chamada"Abolição da escravatura", em 1888, já se encontra um quadro relativamente definido noque tange à estrutura agrária. A relação dos registros paroquiais transmite, assim, a ilusão deordenação fundiária e de titulação definitiva, resultando numa aparente destruição dosquilombos. Não é por acaso, portanto, que os mapas hoje elaborados pelo Centro deLançamento de Alcântara tratam todos os povoados e territorialidades específicas como"fazendas", como se de fato o fossem ou assim o tivessem sido. A realidade darepresentação cartográfica endossa a precariedade dos registros autodeclarados, deficientesde informações elementares, tentando transformar em realidade as ficções sobre fazendasque já não mais existiam efetivamente em 1850.

Em suma, pode-se pontuar que, objetivando a estruturação formal de ummercado de terras, com prevalência de aquisições de terras públicas em detrimento dequaisquer doações ou concessões que porventura favoreçam as pequenas posses, tem-seum estímulo à formalização das terras de fazendeiros, mesmo que não as estivessemocupando efetivamente. O ato de formalização mostra-se co-extensivo a uma açãorepressiva contra pequenos ocupantes entre 1848 e 1853 em todo o Maranhão,antecedendo ao início dos "registros paroquiais", que data de 1854. A estratégia deformalização jurídica articula-se com aquela da implantação dos engenhos de açúcar.Após as ações repressivas autorizadas por Franco de Sá, enquanto presidente da província,tem-se ações contra quilombos da freguesia de São Bento, que então pertencia a Alcântara.Os juizes de paz de Vila Nova de Pinheiro e de São Bento, em 16 de julho de 1850,solicitam reforços ao presidente da província, Honório P. de Azevedo Coutinho, nosseguintes termos:

"Que se nos faz muito preciso, se nos der auxilio a fim de destruímos

certos quilombos que temos em nossos distritos, tanto assim que chegam

a impedirem as estradas para o trânsito dos viajantes, estes malvados são

aquilombados para as margens do rio do Turi, e frequentão todo este

continente..." (g.n.)

Em 1853, sucedem as campanhas de destruição de quilombos autorizadaspor Eduardo Olímpio Machado, também presidente da província. Elas priorizam a regiãode Turiaçu (Marques, 1878:11) e suas ramificações por Viana, Guimarães e Santa Helena,alcançando áreas de beira-campo, em Pinheiro, com as quais interagiam economicamenteos quilombolas de Alcântara.

Segundo os relatos de César Marques, após essa perseguição, que foicomandada pelo capitão Guilherme Leopoldo de Freitas, e após, também, pode-se agregar,terem cessado os registros de terras, os quilombos voltaram às suas formas de ocupaçãoefetiva e estável, assim descritas pelo próprio C. Marques:

"...viviam eles estabelecidos em povoações mais ou menos regulares

entretendo relações com regatões ou com a gente dos povoados, ou

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Alfredo Wagner Berno de Almeida

então vivendo isolados em ranchos situados nas clareiras dos bosques,

evitando cautelosamente todo o contato com a gente de fora, e cuidando

exclusivamente da agricultura." (Marques, 1878:6)

A descrição sugere relações sociais comunitárias consolidadas e uma práticade tratos agrícolas como atividade principal dos quilombos, combinada com acomercialização da produção.

O presidente da província, Lafayette Rodrigues Pereira, autorizou diligênciaem Alcântara contra o quilombo de Jurucaia (Jarucaia), a partir de denúncia do assassinatode Antonio Fernandes Paes "atribuído aos quilombolas", consoante o texto do documentodo chefe de polícia, de 11 de maio de 1866, que assim dispõe:

"Em resposta ao seu ofício de 9 do corrente em que V.Sa. da parte do

assassinato de Antonio Fernandes Paes, atribuído aos quilombolas

de Jurucaia, tenho a dizer-lhe que nesta data expeço ordem ao

Encarregados dos Armazéns de artigos bélicos para que remeta ao

Delegado de Polícia do termo de Alcântara sessenta armas e dois

mil cartuxos para a diligência que tem de fazer o mesmo Delegado

com o fim de bater os referidos quilombolas e descobrir o assassino..."

(g.n.)

Em 1867, ocorreram as campanhas militares mais intensas contra os quilombos,ordenadas pelo presidente da província Franklin de Menezes Dória. Além do combate aoquilombo São Benedito do Céu, várias ações foram empreendidas em todo o Maranhão,chegando ao Pericumã:

"Não descuidou-se a Presidência de dar outras ordens, de prevenir certos

acontecimentos, de traçar, para assim dizer, o plano do cerco, do ataque e

da destruição dos quilombos.

Tudo isto vemos e analysamos, por termos à nossa disposição, para

maior facilidade de nossos estudos históricos, o arquivo da secretaria de

governo desde a presidência do conselheiro Antonio Manuel de Campos

Mello, pelas razões já mencionadas não as publicamos.

Receiando que os calhambolas perseguidos fossem em suas correrias

atacar, ou pelo menos asylar-se em S. Bento, S. Vicente Ferrer, Paraná, Santa

Helena, Villa Nova de Pinheiro e Pericumã, para alli dirigiu suas vistas, e foi

isto de proveito porque além de por os habitantes d'estas localidades em

movimento afim de receberem a agressão, deu ordem para aumentar os

destacamentos, e ser-lhes fornecido armamento com a competente munição

e correame." (Marques, 1878:16) (sic)

Menezes Dória, percebendo que a ação de suas tropas não era bem recebidanos povoados e vilas porquanto elas praticavam também o alistamento compulsório paraserviços de guerra, mais conhecido localmente como pegação, foi impelido a suspenderesse recrutamento em Viana, Guimarães, Santa Helena, Turiaçu, Cururupu, São Bento e S.Vicente Ferrer (Marques, 1878:17). Constata-se, nesse sentido, que nas regiões próximas a Alcântara

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Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 2

as ações de combate aos quilombos foram realizadas concomitantemente com aquelas derecrutamento obrigatório, confirmando a relação estabelecida nas narrativas dos entrevistadosque tratam segundo uma inseparabilidade a noção de quilombo daquelas de pegação e toca.As tropas de linha, quando empreendiam ação contra os quilombos, eram abastecidas comsuprimentos e víveres muitas vezes saqueados de comerciantes e segmentos mais remediadosdos povoados. Casos de entregas forçadas de produtos agrícolas e confisco de colheitascontribuem para a descrição da rapina promovida pelas tropas de linha. Isso, por um lado,indispunha os habitantes desses povoados com as tropas, que eram mais temidas do que osquilombolas, e, por outro, os aproximava solidariamente dos quilombos não apenas nos circuitosde troca de produtos. Marques menciona como "presos e processados os indivíduos coniventescom os calhambolas" (Marques, 1878:19), que mantinham relações comerciais com eles, queinclusive os avisavam da chegada das tropas. Esse fato reforça a interpretação de que havia umrepertório vasto de relações sociais comunitárias interligando os povoados erigidos sobre asruínas das fazendas e os quilombos. As fugas funcionavam também como uma forma deinterlocução entre escravos de diferentes freguesias e termos. Localizei, nesse sentido, procuraçõespassadas por fazendeiros como Jerônimo José de Viveiros, em 03 de dezembro de 1868, a seubastante procurador para recuperar junto à justiça de Viana um escravo fugido e seus descendentes.Da mesma maneira, haviam relações entre os escravos dos engenhos, como Castelo e Gerijó, eos quilombos de Pinheiro (São Sebastião) e de Alcântara mesmo, como o de Jarucaia. Asfronteiras de separação entre eles mostravam-se tênues mediante o absoluto abandono dasfazendas após o malogro dos engenhos de açúcar reinstalados a partir de 1847.

Em contrapartida, os objetivos econômicos da ação bélica de MenezesDória aparecem em seus próprios pronunciamentos transcritos por César Marques:

"que era de interesse da ordem pública, para a lavoura, para a civilização

em summa, obrigar os calhambolas a voltarem à obediência e aos

hábitos da vida regular, perseguindo-os nos seus próprios asylos,

perdidos no interior das florestas." (apud Marques, 1878:17) (g.n.)

Por contraste com essa visão imobilizadora da força de trabalho que caracterizaa sociedade colonial, tem-se o reconhecimento implícito pelo próprio historiador C. Marques– que é membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e um dos biógrafos deFranklin de M. Dória, Barão de Loreto e ministro da Guerra em 1882 – do sistema produtivoprevalecente nos quilombos:

"Era poderoso e difícil de ser batido (O quilombo de São Benedito do

Céu) pela sua posição nas matas do Tury-Assu, pelas comodidades de

suas habitações, pelos vigias, cautelas e espécie de fortificações, e pelas

suas roças em tudo variadas e em tudo abundantes.

Para este estado de tranqüilidade e de trabalho muito concorreu o não

serem perseguidos desde 1858." (Marques, 1878:17) (g.n)

Os quilombos considerados como lugar de roças, e assim reconhecidospelos narradores oficiais das façanhas bélicas dos que buscavam destruí-los, explicitamum conflito entre diferentes sistemas produtivos. De um lado, a produção de gêneros

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Alfredo Wagner Berno de Almeida

alimentícios baseada no trabalho familiar e em formas de cooperação simples, com asfamílias praticando uma reciprocidade positiva, mantendo uma relação de usocontinuado e de preservação dos recursos naturais, e referidas às praças de mercadolocais; e, de outro lado, os grandes estabelecimentos agrícolas monocultores com usomassivo de trabalho escravo, voltados para o mercado metropolitano. Ora, emAlcântara, esse já era o quadro de contradições desde finais do século XVIII e início doséculo XIX que pendeu para o processo produtivo autônomo dos quilombos com aderrocada absoluta das grandes plantações de algodão, que jamais foram recompostas,nem sequer numa tentativa de políticas governamentais dirigidas setorialmente, comoteria sido o caso dos engenhos de açúcar em Alcântara, a partir de 1847-48.

Os quilombos são apresentados, todavia, também como lugar sórdido onde,pela "indisciplina", que pode ser lida como recusa ao trabalho escravo, se aglutinavam osque transgrediam as leis:

"Para estes antros, para estes abrigos, todos os dias acolhiam-se, segundo

participações oficiais que temos à vista ‘os pretos, seduzidos e desvairados

por falsas idéias de emancipação, insidiosamente incutidas em seus animos

por miseráveis traficantes, que entretendo com eles sórdido commercio,

costumam fornecer-lhes armamento e munições’ e além disto a elles se

agregam desertores e outros criminosos d'esta província e da do Pará, a

cujo território pertenceu o Tury-Assu até 1852..." (Marques, 1878:18)

As atividades de comércio eram intensas e esses quilombos persistiram emantiveram suas delimitações territoriais e sua identidade em virtude desse tipo de relaçãomantida permanentemente nas fronteiras de seus domínios, que quebrava qualquer idéia deisolamento e insularidade.

Assim, não obstante as campanhas militares do Barão de Loreto, em 1871, emMensagem à Assembléia Legislativa, o presidente da província, José Augusto Olímpio Gomes,informava sobre a fuga de escravos das fazendas do Turiaçu, Santa Helena e S. Bento para sereunirem aos quilombos ali existentes. Em 1876, o major Honorato Candido Ferreira Caldas,do 5o batalhão de Infantaria, realiza ação contra quilombos em Viana e São Bento. Para lá sedirigindo, realiza "uma ligeira digressão" em quilombo próximo à cidade de Alcântara, ouseja, o quilombo é pretexto para uma manobra diversionista. O relatório do referido majorfoi transcrito pelo Diário do Maranhão de, domingo, 11 de janeiro de 1877:

"... na qualidade de major fiscal, com destino à cidade de Alcântara, onde

o mesmo exmo. Sr. Senador (Frederico de Almeida e Albuquerque), de

acordo com o dr. Chefe de polícia, entendeu conveniente que eu fizesse

uma ligeira digressão com o fim, se não bater um pequeno mocambo

que lhe constava existir a pouca distância daquela cidade, de distrair

por um lado as vistas indiscretas que porventura pudessem malograr

o bom êxito de minha empresa". (g.n.)

Não se percebe qualquer menção explícita a Alcântara como objetivo dequalquer campanha militar específica. Mesmo a ação de 1878, ordenada por Carlos Fernando

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Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 2

Ribeiro, alcantarense, presidente da província e proprietário do Engenho Gerijó, é dirigidacontra o quilombo do Limoeiro, no Turiaçu (Almeida, 1983:184). Em conformidade cominformações coletadas por Shiraishi, um quilombo teria se formado em áreas do Gerijó:

"Segundo a escrivã substituta, Maria Benita, a área denominada Ladeira

pode ser aquela que está na área denominada Gerijó Velho e Gerijó Novo.

Ela defende a tese de que os negros fugiram da área denominada

Bacuriajuba, legado do Padre José Ribeiro Martins, e formaram um

quilombo de nome ladeira na área de Gerijó velho e Gerijó Novo."

(Shiraishi, 1998b:17)

As atenções oficiais parecem sempre temer um perigo que emana das matas doTuriaçu, perdendo de vista a consolidação de um sistema produtivo contrário ao escravismonaqueles domínios que formalmente imaginavam como ainda das antigas fazendas. Osmandatários povinciais, que eram reconhecidos formalmente como grandes proprietários deterras em Alcântara, acreditavam nos seus próprios mitos, ou seja, na ilusão de que controlavamefetivamente suas fazendas abandonadas. Em Alcântara, entretanto, a consolidação dosquilombos ganhara um novo impulso com a desagregação dos empreendimentos açucareirosnos anos 1860-80, que levaram inclusive à extinção do maior deles, o Engenho Gerijó. Consoanteas narrativas, a este tempo, em 1861, a população da freguesia de São Matias, onde se localizavaa sede municipal, era constituída de mais de 56% de escravos e de um percentual acentuadode alforriados (Mattos, 1861), e a própria cidade de Alcântara já se encontrava em estado deabandono, consoante o mesmo Bellarmino de Mattos em seu Almanak Administrativo,

Mercantil e Industrial de 1861: "Hoje está meio abandonada, com as casas desertas e asruas nuas de viandantes." (Mattos, 1861:24)

Os demais documentos levantados até 1886 referem-se a procuraçõespara resgate individual de escravos ou às dificuldades de deslocar tropas para combaterquilombos, com as autoridades da burocracia imperial transferindo responsabilidadesde captura para os próprios fazendeiros de Santo Antonio e Almas e São Bento. Oaparato repressivo oficial encontrava-se nos seus estertores e o controle efetivo daprodução agrícola em Alcântara, já bem antes da abolição formal da escravatura, estavanas mãos das comunidades de quilombo erigidas sobre as ruínas das fazendas.

Os antagonismos em pauta ganharam novos contornos no século XX,notadamente a partir de 1980, com a instalação do CLA, aumentando o grau decontrastividade étnica. Pelo critério de mobilização contra os efeitos das medidas decorrentesda mencionada instalação, os elementos de identidade étnica passaram a falar mais forte,sobretudo a partir do Art. 68 do ADCT e das informações que os agentes sociais passama ter desse instrumento jurídico de reconhecimento de direitos coletivos. A consciênciaquilombola emergiu no decorrer desse conflito, quando a categoria trabalhadores ruraisdava mostras de esgotamento e a velocidade das pressões sobre sua cultura e maneira deviver aumentaram intensamente com os deslocamentos compulsórios. A vida social,sobretudo nos povoados da zona de segurança ou área mais diretamente afetada, passou aorganizar-se explicitamente no sentido de exigir observância não apenas do cumprimentodos dispositivos da legislação agrária, que foram subvertidos no desrespeito à fração mínimade parcelamento, mas principalmente dos direitos étnicos.

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Alfredo Wagner Berno de Almeida

Até 1988-89, a mobilização não privilegiava a identidade étnica, tampouco seautodefiniam como quilombolas e nem podiam fazê-lo sob o risco de, na sua relação comos poderes constituídos, definirem-se à margem dos dispositivos legais. Autodefiniam-secomo trabalhadores rurais e assim eram tratados nas suas manifestações diante dos aparatosde Estado e mantinham-se firmes na condição legítima de herdeiros de doações, aquisiçõese direitos de sucessão de seus antepassados ou, simplesmente, na condição também legítimade posseiros e ocupantes. Sua posição legal atinha-se ao componente fundiário. Ainda queassim se definissem, vale asseverar que jamais deixaram de existir as identidadescorrespondentes às territorialidades específicas, que os singularizavam em face de poderespolíticos e dos demais grupos sociais com os quais secularmente vêm interagindo, seja nosmercados rurais, seja na prestação de serviços. Delas é que também emerge a condição decomunidades remanescentes de quilombos segundo a qual ora se apresentam.

Em suma, pode-se concluir que o conjunto dessas informações assinala queAlcântara usufrui de uma situação singular, posto que vastas extensões territoriais ficarampraticamente dois séculos sem uma presença efetiva de "senhores" e grandes proprietáriose sem maiores pressões sobre a terra, que não fossem tentativas pontuais de aforamento.Com os atos desapropriatórios para instalação do CLA e medidas decorrentes, as tensõesafloraram da mesma maneira que se assistiu ao advento de uma identidade étnica mantidasob invisibilidade social com suas respectivas territorialidades, usufruídas segundo formasde uso comum, cognominadas terras de preto, terras de caboclo, terras de santo eterras da pobreza, até então reconhecidas apenas no plano local, mas não necessariamenteregistradas. Ao considerar que a noção de etnicidade abrange também uma interaçãocom uma certa maneira de produzir e de se relacionar com a natureza, identificamosessas territorialidades verificando que agrupam uma vasta rede de povoados e convergempara um território étnico determinado, cujos contornos foram objeto de trabalho dedelimitação, consistindo num dos resultados finais da perícia.

Sim. Há relação de interdependência das comunidades entre si e com oecossistema. Elas não têm existência isolada e percebem-se múltiplos níveis de organizaçãoentrelaçando os povoados. Abrangem tanto fatores econômicos quanto religiosos epolíticos. As relações são quase-institucionais e remetem para uma situação de rede depovoados, implicando numa divisão de trabalho, de serviços e de produtos interpovoados.Tem-se consolidado um sistema de trocas equilibradas entre povoados mais próximosao mar e a igarapés maiores, que se dedicam principalmente à pesca e complementamcom agricultura, e povoados considerados "mais centrais", distantes da beira e do porto,que se voltam principalmente para a agricultura. Em termos de hábitos alimentares, opeixe e a farinha, produtos dessa troca, constituem uma dieta básica comum aos moradoresdos povoados, qualquer que seja sua localização geográfica. A reciprocidade positiva,como troca equilibrada de bens, compreende também os serviços, evidenciando relaçõessistêmicas entre as comunidades.

A partir dessas premissas, quando sublinhamos que os povoados dascomunidades remanescentes de quilombo em Alcântara apresentam grande variação, mastêm seus fundamentos num conjunto de componentes essenciais que disciplinam o sistemade relações sociais, estamos tentando responder a indagações no sentido de qual tipo de"unidade territorial" estaria em jogo. Para tanto, recorremos aos estudos de C. Geertz, numcomplexo de pequenas vilas na Indonésia (Bali), que indicam que a mais apropriadaformulação sistemática para essa modalidade de estrutura, que apresenta múltiplos povoadosem rede, seria conceituá-la em termos de interseção de planos de organização socialteoricamente separáveis (Geertz,1967: 259-263). Com base nesse instrumento de investigação,foi possível verificar que cada família tem seu povoado de pertencimento, tem suacomunidade de referência, enterra seus mortos no cemitério de determinado povoado,acata regras de cooperação simples e de uso comum dos recursos, entende como bemprivado apenas o produto de seu trabalho, representa os recursos naturais como nãopassíveis de apropriação individual em caráter permanente e não se vê num povoadoisolado, vivendo e praticando através de elementos identitários e de intercâmbio vário oalargamento do território pelas fronteiras interpovoados que não se fecham jamais nosentido absoluto. Em termos político-organizacionais, agrupam-se em delegacias sindicaiscentralizadas em determinados povoados e participam de festas religiosas de santospadroeiros igualmente centralizadas. É através da situação social designada pelos moradoresdos povoados como comunidade que os povoados observados se estruturam, pois,

Há relação de interdependência das

comunidades entre si e com o ecossistema?

Como pode ser diagnosticada esta forma de

relação?

3.

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Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 2

segundo esses diferentes planos de organização social. Entrelaçados por uma unidadesociológica, tais planos foram levados em conta para se compreender também a lógicade distribuição de bens e serviços, assim como de uso dos recursos naturais entre osdiferentes povoados. As relações prevalecentes são quase-institucionais e remetem parauma rede de povoados, implicando numa divisão de trabalho e serviços e num intercâmbiocontinuado entre os povoados. Por intermédio delas é que se consolida um sistema detrocas de produtos agrícolas por pescado e de instrumentos de pesca por instrumentosutilizados para espremer a massa da mandioca, os chamados tipitis. Na própriaorganização social intrínseca aos povoados, verifica-se uma certa inseparabilidade entre acondição de pescador e aquela de lavrar e roçar. De toda maneira, a unidade familiar étambém a unidade de trabalho, seja na pesca, seja na agricultura, ou seja no extrativismo,fazendo uso de tecnologias elementares e de instrumentos artesanais, bem como de práticasde cooperação simples definidas por critérios de parentesco, afinidade e vizinhança.

A reciprocidade positiva, como troca equilibrada de bens, serviços e solidariedadepolítica interpovoados, consiste num sistema singular, que conjugado com a afirmação deuma identidade traduzida por uma multiplicidade de designações correlatas, que os entrevistadosacionam para nomear as terras de preto, terras de santo, terras da santa, terras de

santíssima, terras de santíssimo, terras santistas, terras de caboclo, terras da pobreza eoutras denominações variantes, configura um território étnico. Mais que considerar essasexpressões denominativamente, importa aprofundar o sentido específico que adquirem navida social e na construção da própria identidade dos agentes sociais que lhes são referidos. Aschamadas terras de santo se sobrepõem, se interpenetram e se fundem com as terras de

caboclos e com as terras de preto, mas as chamadas terras de caboclo não se justapõemnecessariamente às terras de preto e vice-versa1. Como verificamos anteriormente, as diferençase as similitudes, que aproximam e distanciam os significados e a vigência dessas expressões,funcionam como um princípio operativo, que disciplina as relações sociais comunitárias quefundamentam esse território étnico. A idéia de remanescente de quilombos passa, aqui, poresses diferentes planos de organização social que, entrelaçados, delineiam uma territorialidadeprópria, cuja persistência no tempo pressupõe mobilização de cada conjunto de famíliasvizinhas, de cada grupo de parentes e de cada comunidade solidariamente estruturada,mediante ameaças de destruição de sua forma de viver e de agir livremente.

Mesmo que em cada um dos povoados sejam acatados os limites tradicionais,verificamos uma interpenetração de domínios, em contextos de escassez extremada, em queum supre suas necessidades com os recursos de outros e vice-versa. Há um consentimentomútuo para tanto. Os limites físicos não significam recursos naturais fechados, como ocorreno caso da noção de propriedade privada de imóveis rurais, e remetem para umainterpenetração bastante complexa sobre a qual se estrutura a noção de territorialidade. Osmarcos delimitadores das terras de cada povoado podem ser livremente transpassados pelosmembros de outros povoados, embora o uso efetivo e continuado de recursos naturais,dentro desses limites, esteja condicionado ao assentimento daqueles que ali têm morada ecultivo habituais, e se autodefinem e são vistos como pertencendo à comunidade que administrasua reprodução física e social a partir daqueles recursos. A condição de pertencimento a estepovoado ou àquele outro confere autoridade incontestável na administração e uso dos recursosnaturais respectivos. O trabalho científico de verificar a articulação entre essas regras de

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pertencimento associadas ao direito de uso, através de uma consulta aos diretamente interessados,foi o mais amplo possível, buscando se chegar a um contorno abrangente e inclusivo, capazde abarcar o conjunto de povoados e não apenas delimitar alguns entre eles, à molde de umproblemático arquipélago com pseudo-ilhas.

Esse procedimento não é, portanto, de simples execução como possa parecerà primeira vista. Antes, aponta para um mosaico complexíssimo de planos cruzados esobrepostos, além de interações de toda ordem, seja no plano religioso, no plano sindicalou naquele da interdependência ecológica entre os povoados. O princípio das múltiplasconexões entre mais de uma centena de povoados, numa quase península, que se mantevepor quase dois séculos à margem do foco de ação das políticas de Estado, é que viabiliza ascondições materiais de existência desses povoados e em virtude do qual eles constituemuma comunidade dinâmica ou um todo organizado. Tais conexões constituem o fundamentoda autonomia de que usufruem e da não-subordinação a terceiros em termos das decisõessobre onde construir sua habitação, onde plantar ou pescar ou quando e a quem vender aprodução. O intercâmbio constante entre os povoados inscreve-se, pois, entre as necessidadesessenciais dessa comunidade dinâmica, que abarca uma diversidade de modos de vida emgrupo, transcendendo àquela idéia de comunidade definida por critérios de isolamentodemográfico e geográfico. Mesmo que as territorialidades referidas e os respectivos povoadosvariem quanto ao tamanho, à composição, à atividade econômica principal e aos laços comdiferentes circuitos de mercado, destaque-se que seus moradores participam de um mesmopadrão de relação em face dos recursos naturais e de acontecimentos da vida religiosa epolítica. Variam, por exemplo, os santos padroeiros e as festas religiosas de povoado parapovoado. Porém, cada festejo congrega participantes de povoados distintos, que contribuempara a consecução das seqüências rituais e dos fundos cerimoniais necessários. Para umacompreensão mais acurada, atente-se para o caso de Itapuaua: seus moradores, em termosde referência política, falam em "região da Peroba"; enquanto recinto cemiterial, enterramseus mortos em Santana dos Caboclos, cujo campo santo centraliza também outrospovoados, tais como Perizinho, Peroba de Cima, Forquilha, Flórida, Esperança e Perobade Baixo; em termos de construção de embarcações para pesca, os moradores mencionamSão João de Cortes; para a aquisição de tipiti, instrumento artesanal de palha utilizado paraespremer a massa da mandioca, mencionam São Raimundo. Itapuaua, por sua vez, possuidelegacia sindical, congregando interesses associativos, reivindicatórios e dos aposentados,além de servir como porto para quase uma dezena de povoados, ou seja, ponto deacesso à circulação de bens ou de acesso a praças de mercado. Seus moradores, que têmna família Araújo preponderância, em termos de parentesco, vinculam-se àqueles depovoados próximos, compondo o que classificam como "uma ruma de parentes só"(J.A. 21/04/2002 - ENT. 23). Apresentam-se como descendentes de índios e de escravos,numa denominada terra de preto composta através de atos de aquisição e ocupação,assinalada como vizinha das chamadas terras de santíssimo. Segundo as narrativas, umaparte do povoado foi adquirida pelas famílias dos antigos escravos, que prestavam serviçosdomésticos na casa-grande dos sesmeiros; a outra parte foi fruto de doação informal daherdeira dos chamados brancos, que lá nunca residiu. Em suas terras e nas circunvizinhas,há vários lugares assinalados como tocas e referências a mocambos, que expressam umaforma de ocupação quilombola efetiva, cuja alegada doação, feita oralmente, só teria servido

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Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 2

para referendar. Ademais, mantêm laços econômicos e afetivos regulares com aquelas famíliasque, com a migração, se deslocaram para bairros da Camboa e da Liberdade, na capitalSão Luís, também designada pelos entrevistados como "a cidade".

As sucessivas intervenções na estrutura fundiária num breve período detempo, desde 1980, faz com que os fatores étnicos, elididos historicamente nasintervenções governamentais, comecem a ser ressaltados na imediaticidade das tensõese dos conflitos em face da ação do Estado. A memória de uma situação comum,ligada a territorialidades bem delimitadas e a certas tradições e modos de vidasimbolizados pela alusão freqüente às chamadas roças, surge reatualizada nos atosafirmativos de elementos identitários que persistem por longo tempo na consciênciacoletiva. A etnicidade se expressa também pelo conjunto de estratégias voltadas para amanutenção do território, incluindo-se a defesa do estoque de recursos naturaisimprescindíveis para a reprodução física e social das comunidades remanescentes dequilombos. Expressa-se, ainda, pela recusa explícita dos deslocamentos compulsórios,que prenunciam uma desestruturação das comunidades remanescentes de quilombos edesse sistema de uso comum secularmente engendrado, porquanto referidos a recursosescassos que, uma vez afetados, inviabilizam a mencionada reprodução.

Do que já foi sublinhado, cabe reiterar que a característica fundamental dospequenos produtores agrícolas, que habitam e cultivam na área declarada de utilidadepública para a implantação do Centro de Lançamento de Alcântara e no seu entorno, éque incorporam a terra ao processo produtivo mediante o trabalho familiar. Aespecificidade dessa condição reside no fato de que, além da propriedade ou possefamiliar, registram-se formas de apropriação comum da terra e dos recursos hídricos eflorestais. A terra é representada como um recurso aberto, acessível em princípio a todasas unidades familiares, mas como um bem limitado, cujo uso é controlado no planoorganizativo dos povoados. O trabalho, por sua vez, é visto como necessariamente livre,sem estar sujeito a qualquer instrumento de coerção. O acesso aos recursos é disciplinadopor princípios de cunho preservacionista que, reconhecendo a fragilidade do ecossistemae a relativa escassez dos recursos, orientam o trabalho familiar nas etapas dos ciclosagrícolas e extrativos. Constata-se em todos os povoados visitados a prevalência de regrasde rotatividade na utilização das terras agriculturáveis. Os terrenos de cultivo são utilizadoscom no mínimo três anos de intervalo e sua reutilização, num novo ciclo agrícola, podenão ser pela mesma unidade familiar. Essas terras agriculturáveis, bem como os igarapés,os manguezais, os babaçuais, os juçarais, as pastagens naturais e as frutas silvestres, queladeiam o cordão arenoso das praias, são vistos por eles como bens não sujeitos àapropriação individual em caráter permanente e a sua ocupação e coleta obedecem a umconjunto de regras, consoante um patrimônio cultural determinado que prevê formaspeculiares de utilização. Assim, desbastam os cocais, evitando destruí-los, ao procederemà queima dos restos vegetais nos terrenos preparados para plantio, do mesmo modo queevitam colocar esses plantios junto às margens dos igarapés e dos demais cursos d'água.Utilizam parcimoniosamente as reservas de mato dos povoados, inibindo o desperdícioe permitindo a retirada de madeira para construção de embarcações e de casas e aretirada de palha para cobrí-las, bem como de mastros para festas religiosas e de variadaservas e plantas arbustivas com propriedades medicinais e para uso cerimonial ou em

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rituais de cura. Através da cooperação simples entre as unidades familiares, limpamregularmente as trilhas e caminhos que ligam os povoados uns aos outros, limpam oschamados sítios ou centros de povoados, assim como os poços e aguadas próximos.Conforme já foi assinalado, essas formas de uso combinam a apropriação privada como usufruto comum dos recursos naturais. As benfeitorias produtos do trabalho familiar,como as edificações para moradia, os pomares e os diferentes cultivos, agrupados sob adesignação de roça, são apropriados e pertencem às unidades familiares que osproduziram. As transações mercantis envolvem apenas os produtos do trabalho agrícola,do extrativismo, da caça, da pesca, da criação de gado para abate e das peças de artesanatofeitas com palha (cofos, abanos, piaçabas, meaçabas, cestos, tipitis), madeira (paraesteio das casas), barro (utensílios de cerâmica) e fios de algodão (redes), além do carvãoproduzido com os restos vegetais dos terrenos de plantio. Os estoques de terras,correspondentes aos povoados, são mantidos indivisos e de uso comum, baseados noconsenso sobre os limites e direitos do conjunto de famílias e de cada uma delasindividualmente.

Tais características têm seus fundamentos mais nas inter-relações que vão serenovando do que propriamente na formação histórica das territorialidades específicas,que compreendem as chamadas terras de preto, as terras de caboclo, as terras de santo

e demais variações anteriormente citadas. Não obstante as diferentes trajetórias, segundo asquais se constituíram, destaca-se o uso comum como uma invariante que vai passando portransformações consoante as relações que os agentes sociais referidos a tais territorialidadesvão estabelecendo entre si e com o Estado. Semelhantes trajetórias, cujos primórdios sãomúltiplos e temporalmente distintos, podem ser descritas a partir da desagregação dosempreendimentos das ordens religiosas, entre 1758 e 1821; das fazendas de algodão, entre1778 e 1819; dos engenhos de açúcar, entre 1870-1882, e dos conflitos sociais dela derivados.Todas elas foram convergindo, pelo conflito constante com os chamados brancos e pelasinterligações estreitas que foram se estabelecendo entre os povoados tributários de cadauma delas, para um mesmo território étnico. Tal convergência se deu de modo desigual evário. Todavia, diluiu, em certa medida, a força contrastante dos traços distintivos de unsem relação aos outros. Enquanto as chamadas terras de santo possuem uma periodicidadebem circunscrita, as denominadas terras de preto se dispersam por vários períodos,formando-se antes e durante a desagregação sucessiva dos empreendimentos das ordensreligiosas, das fazendas de algodão e dos engenhos de açúcar.

Essas territorialidades convergentes não se agregam por adição nem constituemum território pela soma das extensões geográficas que porventura lhes correspondam. Elas seinterpenetram em diferentes planos da vida social – religioso, econômico, político-organizativo– e os recursos naturais que lhes são referentes podem pertencer simultaneamente a mais de umadelas. As territorialidades recebem a denominação e são conhecidas pela auto-atribuição dosagentes sociais que lhes são diretamente referidos, no que concerne, por exemplo, às categoriaspretos e caboclos. As representações que os agentes sociais se dão a si mesmos expressamconcomitantemente seu pertencimento a um grupo e a uma territorialidade específica. A expressãoterra de preto refere-se, ao mesmo tempo, a uma forma de produzir, a um espaço social epolítico e a uma identidade étnica. As situações sociais, objeto desta perícia, oferecem umadiversidade suficientemente grande de territorialidades específicas em que a identidade étnica

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se encontra adequadamente circunscrita. Nesse sentido, elas transcendem ao recurso básico,a terra, e não se configuram necessariamente enquanto "territorialidades vizinhas", uma vezque se distinguem e se entrelaçam simultaneamente, não se constituindo cada uma delasnum todo auto-suficiente. Os planos sociais interpenetrantes consistem numa condiçãoessencial de sua persistência. Em virtude disso, essas territorialidades não podem ser reduzidasà maneira usual e individualizante de pensarmos um imóvel rural e seus confrontantes, ouseja, não se restringem a um problema agrário. Por outro lado, o território étnico para oqual confluem pode ser estritamente delimitado e há uma representação espacial através daqual os agentes sociais marcam suas fronteiras físicas. A construção social do territórioétnico pressupõe inter-relações entre os povoados concernentes a essas territorialidadesespecíficas, descrevendo uma dinâmica de relações sociais que recusa, desde o ponto deorigem, o isolamento ou a insularidade como forma de manter a persistência das fronteiras.

Esses embates, conflitos e ameaças de eterno retorno marcam as tensões doprocesso de territorialização em curso. A autonomia de decisão sobre o que produzir, como,onde e quando, lançando mão de que recursos naturais, aproxima pretos e caboclos, fixaum estilo de vida que tem na denominada roça sua viga mestra e chega a absorver os prepostosdos proprietários absenteístas. Produzir e reproduzir esse sistema, mantendo uma vida

social há pelo menos dez gerações nas terras das ordens religiosas, ou sete nas antigas

fazendas de algodão, ou cinco gerações nos antigos engenhos de açúcar, sem

subordinação a terceiros, significa a consolidação, em datas diferentes, daquelas

diversas territorialidades mencionadas e, por extensão, do território das comunidades

remanescentes de quilombo. Como resultante de mobilizações sucessivas, cada uma desuas partes foi se constituindo e abrigando a outra, como no caso das terras de índios

tornadas terras de santo, segundo doações míticas, que, por sua vez, acolhiam escravosfugidos, servindo-lhes de degrau na construção de um patamar de autonomia e de trabalholivre designado como terras de preto.

O processo de territorialização revela uma dinâmica intrincada, sobencadeamento, que estabelece uma totalidade socialmente instituída, congregando umadiversidade de situações devidamente articuladas e uma multiplicidade de formas derepresentação. Em virtude disso é que se pode falar em diferenciações culturais e numacomposição heterogênea do território de remanescentes de quilombo sem negar o carátersistêmico da interligação entre os povoados.

Durante o trabalho de campo pericial, inventariamos, segundo critérioselaborados a partir da representação dos próprios informantes, os povoados que compõema área identificada, pertencente e sob controle efetivo das comunidades remanescentes dequilombo. Nesse sistema de relações, ela ultrapassa os limites da área pretendida pelo CLAe ganha o sentido sul do município. Cabe reiterar que os trabalhos de campo não incluíramItamatatiua, ao sul do município de Alcântara, onde o Iterma realiza, desde 1997, atividadespara reconhecimento da área enquanto comunidades remanescentes de quilombos, nem ailha do Cajual, onde se localiza Santana dos Pretos. Caso fossem incluídos, o número depovoados em pauta aumentaria de pelo menos um terço. Na delimitação do territórioétnico resultante desse sistema de relações, detivemo-nos na área desapropriada por interessesocial para reforma agrária, pelo MDA-Incra, em Ibituba e em São Raimundo II, onde o

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Iterma também realizou ações fundiárias. A inclusão de São Raimundo se atém à própriainteração econômica e política que mantém com os demais povoados arrolados e àrepresentação espacial manifesta pelos entrevistados.

Nesse sentido é que, respondendo à segunda indagação deste quesito,podemos afirmar que a forma de relação entre as comunidades pode ser diagnosticadaem termos de convergência para um território étnico. Correspondente a tanto,levantamos 139 povoados, sendo 90 localizados na área desapropriada para instalaçãodo CLA, conforme já foi sublinhado na resposta ao primeiro quesito, e 49 deles situadosfora dos limites desta área mencionada. A seguir, passarei à apresentação deles:

Povoados referidos às comunidades remanescentes de quilombos que se

localizam fora da área desapropriada para instalação da Base

Nome do Povoado Nº de Prédios/2001 Habitantes/2001 Data do RG

1 Apicum Grande 8 22 25/07/95

2 Arenhengaua 100 274 25/07/95

3 Bacanga 8 22 25/07/95

4 Baixa Grande I 8 22 25/07/95

5 Baixa Grande II 17 47 25/07/95

6 Barreiros X 38 25/07/95

7 Belém 32 88 25/07/95

8 Boa Vista I 16 44 25/07/95

9 Boa Vista II 2 5 25/07/95

10 Boca do Rio 7 19 25/07/95

11 Caicaua I 3 8 25/07/95

12 Caicaua II 11 30 25/07/95

13 Cajiba 25 68 25/07/95

14 Cajueiro II 29 79 25/07/95

15 Castelo 68 186 25/07/95

16 Conceição 57 156 25/07/95

17 Coqueiro 11 30 25/07/95

18 Cujupe I 77 211 25/07/95

19 Cujupe II 74 213 25/07/95

20 Curuça I 12 33 25/07/95

21 Guanda I 9 25 25/07/95

22 Guanda II 9 25 25/07/95

23 Iguaiba 26 71 25/07/95

24 Itaperaí 24 66 25/07/95

25 Itapiranga 16 44 25/07/95

26 Jacaré I 5 14 25/07/95

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Nome do Povoado Nº de Prédios/2001 Habitantes/2001 Data do RG

Para além desses 49, verificamos ainda, a partir dos materiais cartográficose de referências dos entrevistados, 13 designações de outros povoados, igualmente forada área desapropriada e que não aparecem no cadastro da Funasa. Adicionando-os,teremos 152 povoados distribuídos numa vasta área que é mantida pela rede de relaçõessociais, agora reafirmada pelo advento da consciência quilombola. Em outras palavras,de acordo com o procedimento antropológico adotado, os limites que são levados emconsideração não são a mera soma de listas de povoados produzidas por instituiçõesoficiais, mas somente aqueles que os agentes sociais em pauta, eles mesmos, consideramsignificantes. Em termos geográficos, esse seria o correspondente territorial dascomunidades remanescentes de quilombo. Esses povoados totalizam 12.941 habitantes,ou seja, 83% da população rural do município, e compreendem uma área aproximada de85.537,3601 hectares, cujo memorial descritivo integra este laudo pericial.

FONTE: Ministério da Saúde / Fundação Nacional da Saúde / Distrito: Pinheiro

Relação de Localidades / Município: Alcântara 13/08/2001.

27 Jarucaia 11 30 25/07/95

28 Jordoa 11 30 21/01/99

29 Manival 122 334 25/07/95

30 Pacatiua (Paquativa) 32 88 25/07/95

31 Porto de Baixo 23 63 25/07/95

32 Porto de Caboclo 5 14 25/07/95

33 Raposa 4 11 25/07/95

34 Rasgado 12 33 25/07/95

35 Salina 4 11 25/07/95

36 Santa Bárbara 26 71 25/07/95

37 Santa Rita I 18 49 25/07/95

38 Santo Inácio 55 151 25/07/95

39 São Benedito II 6 16 25/07/95

40 São Benedito III 5 14 25/07/95

41 São Francisco I 3 8 25/07/95

42 São Maurício 26 71 25/07/95

43 São Raimundo II 56 153 25/07/95

44 Tapuio 3 8 25/07/95

45 Tatuoca 9 25 25/07/95

46 Timbotuba 35 96 25/07/95

47 Tiquaras II 11 30 25/07/95

48 Traquai 8 22 25/07/95

49 Vila Itaperaí 137 375 25/07/95

TOTAL 1276 3543

Quanto aos impactos sobre as famílias atingidas pelo deslocamentocompulsório, pelo assentamento em agrovilas e pelas medidas decorrentes, pode-se afirmar,primeiramente, que as instituições militares responsáveis diretas pela implantação do centrode lançamento de foguetes chamaram a si a responsabilidade exclusiva pelas medidas dereassentamento das famílias afetadas, recusando a ação dos órgãos fundiários competentes.Ao desprezarem as vicissitudes do processo centenário de territorialização, consideraramestar lidando com um campesinato parcelar e suas glebas individualizadas. Induzidas aoerro, as medidas oficiais subseqüentes foram adotadas nesse sentido. Em 18 de abril de1986, o Decreto nº 72.571, da Presidência da República, reduziu o módulo rural de Alcântarade 35 para 15 hectares apenas na área relativa à base, permanecendo o restante do municípiocom a fração mínima de parcelamento já instituída. Em 1987, foram compulsoriamentedeslocadas, de 23 povoados1 centenários, 312 famílias, e agrupadas em sete agrovilas,agravando a crise com indenizações não pagas após dez anos, direitos de posse desrespeitadose criação de agrovilas com lotes para cultivo de dimensão inferior aos critérios técnicosdefinidores dos módulos rurais para a região. Quase onze anos depois do primeiro decreto,em 08 de agosto de 1991, um novo decreto da Presidência da República ampliou a área dabase, passando-a para 62.000 hectares.

A área decretada, reforçada pelos deslocamentos compulsórios e pela divisãode lotes das agrovilas, instaura uma certa dissociação, que se manifesta através da colisãoentre as medidas que tornam a terra individualizada e transferível versus o sistema de usocomum dos recursos com seus princípios de indivisibilidade das terras e da manutenção delimites fixos e intransferíveis. A separação imposta pelos deslocamentos menospreza apersistência histórica das fronteiras que mantêm as territorialidades, refletindo sobre a posiçãode cada um dos diferentes agentes sociais na organização social das denominadas terras de

preto, das terras de santo e suas variações, das terras de caboclo e das terras da pobreza.A área decretada, ao separar o que sustenta a unidade dos diferentes elementos identitários eao contrapor-se à lógica do processo produtivo, quebra a organização social das comunidadese suas hierarquias enquanto territórios de parentesco, terminando por instituir outros critériosde autoridade local e por colidir com os princípios formadores do território das comunidadesremanescentes de quilombo.Viver nas agrovilas, no contexto de assegurar os meios demanutenção do grupo familiar com casa e terras para plantio, torna-se sinônimo de"humilhação", porquanto têm que pedir autorização ao CLA para construir novas casas equem define o local da construção é a autoridade administrativa.

Um dos resultados mais visíveis é que nas agrovilas implantadas pelo CLA jánão parece ser possível, em virtude dessas normas burocráticas e da limitação dos recursos

Quais os impactos diretos e indiretos

decorrentes da implantação do CLA em relação

à organização social e cultural das

comunidades em tela?

4.

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Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 2

disponíveis às famílias deslocadas, a manutenção de regra de residência duolocal ou norma,segundo a qual noivo e noiva devem permanecer em seus locais originais, mantendo aíresidências. Os lotes oficialmente destinados às famílias, com apenas 15 ou 16 hectares, malpermitem a reprodução simples. Tem-se o enfraquecimento dos grupos familiares quepermanecem nas agrovilas, que passam a gravitar principalmente em torno dos aposentados.Os filhos e filhas, em idade adulta, contraem matrimônios em outros povoados onde passama residir. Um dos exemplos seria a relação entre as famílias de pescadores de Brito e aquelasdas agrovilas como Só Assim e Peru, onde passaram a vender o pescado2. As relações nosistema de parentesco aqui só podem ser devidamente entendidas se relacionadas às condiçõesde acesso aos recursos naturais e às estratégias de sobrevivência adotadas pelos grupos emface da situação de escassez resultante do Plano de Reassentamento do CLA.

Para propiciar uma idéia mais completa acerca da desorganização das redesde relações sociais características dos antigos povoados e dos problemas hoje enfrentadospelos moradores das agrovilas, sintetizei num quadro demonstrativo os principais problemase dificuldades indicados pelos moradores.

Situação das agrovilas

Quadro resumo

Denominação

1 Peru

2 Pepital

- Pesca marítima prejudicada pela longa distância do mar;

- Exigência de crachás para permitir acesso à praia;

- No período de lançamento de foguetes: o CLA avisa na última hora, interdita

totalmente a pesca e mantém a interdição por um tempo muito longo (45 a 60 dias),

não há reparo ou qualquer indenização pelos dias parados;

- Terreno das glebas (lotes) acha-se esgotado, baixa produção de mandioca obriga-os

a comprar farinha para o consumo cotidiano;

- Cocais são insuficientes para a quantidade de famílias assentadas;

- Pesca no igarapé prejudicada (mariscos apanhados antes do tempo, afetando

reprodução) pela grande pressão dos assentados e demais famílias sobre o rio de São

João (Periaçu);

- Controle excessivo da Aeronáutica, dificultando a construção de casa para os filhos;

- Mais de 33 famílias vivendo na agrovila e sem casas para morar;

- Ameaças constantes de remover as casas que teriam sido construídas na agrovila sem

autorização da Aeronáutica;

- A caça tornou-se inviável devido ao desmatamento;

- Não têm documentação das casas e temem pelo futuro.

- O estado precário das casas de alvenaria;

- Glebas esgotadas e com baixa produção;

- Falta de documentos de propriedade da casa e do lote ("gleba");

- Dificuldade de transporte no inverno;

- A pesca está praticamente inviabilizada;

- Não há babaçuais perto da agrovila;

- No posto médico não há remédios;

- Obrigatoriedade de comunicar à Aeronáutica antes de consertar as casas;

- Nada pode ser feito nas agrovilas sem prévia autorização da Base;

- Ameaças da Base de derrubar casas feitas sem autorização.

Resumo dos problemas aponta dos pelos moradores

83

Alfredo Wagner Berno de Almeida

- Áreas de plantio ("glebas") muito reduzidas;

- Baixa fertilidade do solo, baixa produção, fome;

- Falta de documentação da casa e da gleba;

- Falta de vazante para plantios curtos;

- Pesca praticamente impedida.

- Localização longe do mar;

- Pesca tornou-se atividade esporádica e acessória;

- A qualidade do solo das glebas não é boa;

- Baixa produção de mandioca;

- Não tem documentação da casa e da gleba;

- A construção de casa para os filhos deve ter autorização do CLA e, se autorizada; o lugar

será aquele determinado pelo CLA;

- Precariedade das casas;

- Acesso à praia só com crachá renovado a cada três meses;

- Dificuldades no abastecimento de água;

- Caminhos de acesso à agrovila são precários.

- Não têm conseguido manter os filhos na comunidade devido à proibição de fazer novas

casas;

- Falta de documentação das casas e da gleba;

- Derrubada de casas construídas sem autorização do CLA;

- Mudanças freqüentes no comando da Base dificultam o cumprimento dos acordos

feitos (cada comandante executa a assistência às agrovilas de maneira diferente);

- O estado precário das casas de alvenaria;

- Dificuldades no abastecimento de água;

- Não há escola na agrovila, as crianças têm que ir para Pepital.

- Indenização insuficiente e não paga no deslocamento;

- Localização longe do mar;

- Impedimento de livre acesso à praia;

- Pesca inviabilizada;

- Falta de documentação comprobatória de propriedade da casa e da gleba;

- Baixa fertilidade da terra;

- Impedimento de acesso ao antigo cemitério;

- Intervenção excessiva da Aeronáutica (construção de novas casas, autorização para conserto

das casas);

- Migração intensa para São Luís (capital).

- Localização longe do mar;

- Grande distância até locais de pesca;

- Tempo de proibição de acesso à praia muito longo;

- Migração dos filhos para a cidade;

- Falta de cemitério;

- Esgotamento das terras nas glebas;

- Baixa produção;

- Esgotamento dos igarapés mais próximos.

3 Cajueiro

4 Ponta Seca

5 Só Assim

6 Marudá

7 Espera

Denominação Resumo dos problemas apontados pelos moradores

Fontes: SMDH, NAJUP, MC-FCP, junho de 2001 e Trabalho de Campo Pericial, junho de 2002.

84

Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 2

Essas medidas provocaram, ademais, a desestruturação de diferentes planosde organização social adstritos ao conjunto de povoados. A rede de inter-relações detroca de produtos e serviços entre os povoados foi seriamente comprometida com oaumento da pressão demográfica sobre as áreas agriculturáveis e sobre os recursoshidrícos e florestais. Agrava isso o fato de que, na representação das famílias entrevistadas,prevalece uma insegurança quanto ao futuro na área desapropriada. A profunda sensaçãode insegurança e incerteza sobre o futuro das comunidades e sobre si próprios atingetodos os assentados, os ameaçados de deslocamento e os demais moradores da áreadesapropriada para instalação do CLA. Não é demais reafirmar que um grupo socialsem perspectivas de futuro pode ser levado tragicamente ao caos.

Considerando-se o conjunto da área de 62.000 hectares, pretendida pelo CLA,pode-se afirmar que, além da desestruturação social, os impactos se fizeram sentir na economiade todo o município de Alcântara com o declínio abrupto da produção de farinha, com orápido esgotamento dos solos nos lotes delimitados para as famílias deslocadas para as agrovilas,com a escassez de recursos nas áreas próximas àquelas em que ocorreram os assentamentos ecom a intensa migração para a sede municipal e para a capital São Luís. Cotejando-se osdados estatísticos dos Censos Agropecuários de 1985 e de 1996, constata-se que, nesses onzeanos, a lavoura temporária no município de Alcântara sofreu uma redução de 45% da áreadestinada ao cultivo de seus dois principais produtos, o arroz e a mandioca. Consoante oestudo* elaborado para este laudo pericial pelo economista Wilson de Barros Bello Filho:

"Este fato revela-se particularmente relevante quando se constata,

tomando por referência o valor da produção registrado no Censo

Agropecuário de 1996, que estes dois produtos são responsáveis

por cerca de 80% da lavoura temporária do Município, o que

corresponde a mais de 40% de toda a lavoura alcantarense (lavoura

temporária mais lavoura permanente)" (Barros Bello, 2002:01).

No caso da mandioca, o Censo de 1996 registra uma produção de apenas4.907 toneladas, contra 8.139 toneladas em 1985, o que corresponde a uma queda de 40%na produção. Ainda com Barros Bello:

"A redução e estagnação da produção de mandioca em Alcântara revelam-se

particularmente preocupantes quando, além da significância do produto na lavoura

do Município, se considera também que, segundo a Contagem da População de

1996, 74% dos seus habitantes (14.050 pessoas) vivem na zona rural" (Barros

Bello, 2000:01).

Em 1997, sem que fosse realizada qualquer avaliação dos resultados de seu"Plano de Reassentamento" e a despeito de a base não ter sequer licenciamento ambiental,foram anunciados pela Empresa Brasileira de Infraestrutura Aeroportuária, Infraero3,

* Os estudos de Wilson de Barros Bello Filho e de Patrícia Portela Nunes, citados neste quesito, não foram incluídos

na presente edição (n.e)

85

Alfredo Wagner Berno de Almeida

novos deslocamentos de famílias4. Nesse mesmo ano, foi aprovado pela CâmaraMunicipal e sancionado pelo prefeito o "Plano de Preservação da Cidade de Alcântara",através da Lei nº 224, de 10 de outubro de 1997, definindo usos e ocupações do perímetrourbano. A delimitação de zonas de "preservação rigorosa" defronta-se com a expansãoda ocupação provocada pelo crescimento da migração dos povoados para a sede domunicípio, gerando tensões entre os ocupantes e o Iphan, como demonstra a antropólogaPatrícia Portela Nunes em estudo de impacto sobre a cidade de Alcântara, produzidoespecialmente para integrar este laudo pericial e disposto em anexo. Está-se diante de uminchaço da cidade de Alcântara, que já apresenta áreas favelizadas.

Em síntese, pode-se afirmar que as transformações sócio-econômicasprovocadas pela implantação do CLA ameaçam gravemente a reprodução física e socialdas comunidades remanescentes de quilombo.

Agrovila Cajueiro

Quanto aos reassentamentos já realizados pelo CLA, constata-se que em 1986e 1987 foram deslocadas compulsoriamente 312 famílias de 31 povoados (SMDH, 2001)para a formação de sete agrovilas. A seguir, apresentarei a relação delas:

Quanto aos reassentamentos previstos ou a realizar na presente etapa,intitulada de "Transferência e Assentamento III", registra-se, consoante documento daInfraero-CLA, de 1998, que serão atingidos dez povoados (Águas Belas, Baracatatiua,Barbosa, Brito, Caiuana, Itapera, Mamuna, Mamuninha, Pacoval, São Francisco) dachamada "área de segurança" e 151 famílias.

Agrovilas

Quais os reassentamentos já realizados e arealizar pelo Poder Público (CLA)?5.

Denominação

das agrovilas

1 Peru (Novo Peru)

2 Pepital

3 Cajueiro

4 Ponta Seca

5 Só Assim

6 Marudá

7 Espera

Nº de famílias

123

46

59

17

-

-

13

Povoados deslocados e

agrupados para sua formação

Peru, Titica, Santa Cruz, Camarajó, Sozinho e Cauim.

Pepital

Cajueiro

Ponta Seca, Laje, Curuçá

Caicá, Paraíso, Norcasa e Boa Vista

Marudá, Santo Antonio, Ponta Alta, Curuçá,

Jeripaúba, Ladeira, Caninana , Jabaquara, Fé em Deus,

Pirapema, São Raimundo, Águas Belas, Cone Prata,

Itamarajó, Jardim e Santa Rosa.

Espera

88

Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 2

Povoados previstos para deslocamento

"Transferência e Assentamento III"

Povoados

1 Águas Belas

2 Baracatatiua

3 Barbosa

4 Brito

5 Caiuaua

6 Itapera

7 Mamuna (Mamona)

8 Mamuninha

9 Pacoval

10 São Francisco

TOTAL

Nº de famílias

8

26

2

22

2

19

56

12

2

2

151

Nº de habitantes

25

80

2

96

3

63

215

40

2

7

533

FONTE: MAer - Iinfraero-CLA; novembro de 1998.

Segundo previsto no mencionado documento, esses povoados estariampara ser reassentados próximos a áreas de cultivo e de coleta de cinco povoados(Cajitiua, Esperança, Itapuaua, Murari, Perizinho) e 103 famílias. Essas famílias jámanifestaram sua recusa em face desta medida, porquanto consideram que osrecursos naturais disponíveis são escassos e não suportarão o incremento da novapressão demográfica.

Povoados previstos para assentamento das famílias deslocadas

"Transferência e Assentamento III"

Povoados* Nº de famílias Nº de habitantes

1 Cajitiua 3 10 2 Esperança 9 35 3 Itapuaua 44 153 4 Murari 14 58 5 Perizinho 33 118 TOTAL 103 374FONTE: MAer - Iinfraero-CLA; novembro de 1998.

Os deslocamentos desfiguram a rede de relações sociais entre os povoados,desequilibrando igualmente a relação com o ecossistema, cujo grau de fragilidade nãocomporta uma duplicação imediata da densidade demográfica e um outro conjuntode aglomerados, artificialmente implantado, fazendo uso rotineiro dos recursos jáescassos do rio Periaçu e adjacências.

Conforme foi acentuado, os reassentamentos comprimiram os povoados,ao localizarem as agrovilas em domínios usufruídos por outros povoados. Os locaisde plantio de Rio Grande, como já foi citado, deram lugar à agrovila de Marudá. Apressão sobre os recursos hidrícos e florestais aumentou subitamente e os moradoresviram destruídas suas estratégias centenárias de conservação e uso dos recursos naturais,sem que qualquer alternativa lhes tenha sido apresentada.

Essas técnicas de remoção e de deslocamento compulsório quebrampaulatinamente os pilares que sustentam sistemicamente a rede de povoados. Disseminama insegurança, porquanto tornam mais escassos recursos que já eram, em certa medida,insuficientes. Essa insegurança das famílias que vivem na área desapropriada reflete numcerto declínio da autoridade dos mais antigos, quais sejam os encarregados de terra vinculadosa antigos aforamentos, os encarregados de zelar pelos bens das santas e santos e os chamadosherdeiros que disciplinavam o uso de madeiras de lei, de reservas de mata e dos recursoshidrícos. A difusão da idéia de que "as terras agora são da base" tanto leva à resistência, emalguns povoados, quanto induz a uma atitude predatória por parte de comerciantes demadeira, em outros povoados. Estes se apressam em divulgar que os bens naturais serãodestruídos pela Base de qualquer jeito, cedendo lugar a obras de infra-estrutura, e que,portanto, deve-se aproveitar o quanto antes para retirar as madeiras de lei, antecedendo achegada de tratores para construção de pistas e rampas de lançamento. "Aproveitar rápidoe a todo custo" tem sido um lema para os comerciantes de madeira convencerem osmoradores. Devido a isso, alguns antigos encarregados sentem-se desautorizados etestemunham uma devastação sem precedentes, como vem acontecendo em Pavão e SãoRaimundo. Nesse sentido, pode-se verificar que as ações do CLA ou as medidas adotadaspela "Base", que é o termo corrente utilizado pelos entrevistados, levam a uma ideologiado desespero, que afeta o respeito tradicional pela manutenção de algumas reservas demato e de ervas medicinais, além de afetar a observância do princípio de não roçar na beirade rios e igarapés e a própria limpeza de trilhas e caminhos que interligam povoados e estesàs áreas de plantio e pesca. Os que migraram para a cidade e têm retornado sazonalmentenegam-se também a respeitar tais disposições centenárias e contribuem, assim, para acentuara fragilidade do ecossistema, plantando em qualquer lugar, coletando frutos não totalmenteamadurecidos, cortando cachos de palmeiras antes do tempo. Há, portanto, inúmeras tensõessociais que perpassam as comunidades, refletindo a agudeza dos impactos sobre suaestruturação.

Quais os impactos sobre a organizaçãosistêmica e sobre o tipo das relações antrópicasdecorrentes dos reassentamentos dascomunidades?

6.

90

Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 2

Não constitui, pois, um paradoxo o tom nostálgico de certos depoimentosque sublinham a preservação de madeiras de lei e de uso dos igarapés, quando osencarregados da terra iam medir com cordas os terrenos e conceder as licenças de plantio.Esse tom foi constatado quando os entrevistados mencionaram a perda de autoridade dosresponsáveis pela preservação dos recursos estratégicos aos povoados, após adesapropriação de 1980 e os deslocamentos compulsórios realizados pelo CLA em 1987.Os primeiros impactos dessas medidas atingiram tantos os chamados encarregados da

terra e encarregados da santa quanto os chamados herdeiros, bem como povoadosfora da área do decreto de 1980, deixando que as terras fossem dispostas como recursosaparentemente abertos ou, em outras palavras, como diriam moradores de Pavão e SãoRaimundo II, como "terra de ninguém". No momento do trabalho de campo pericial, osmoradores dos povoados estavam se organizando para impedir que continuassem a retiradailegal de madeira e as demais ações predatórias. O advento da consciência quilombolafacultou, nesse sentido, uma certa recuperação de seus princípios identitários, devolvendo-lhes uma esperança de reverter um quadro que lhes era apresentado como irreversível.

"Eles tiram é o pacazeiro, é todo pau. Essa aí é a madeira mais procurada,

o pacará. Ela é mais resistente. Tiram também a neguba, essas madeiras

para poder fazer as casas. Em Pinheiro e Bequimão tão comprando as

madeiras."(B.P.A. 19/04/2002 - ENT. 17)

Essa percepção do problema já enuncia uma possibilidade de superá-lo. Asações de preservação dos recursos naturais ganham nova força, nesse processo demobilização étnica, e estão se disseminando para os diferentes grupos de atingidos pelasmedidas de implantação do CLA. As relações antrópicas assumem nova dimensão paradiferentes grupos de agentes sociais, que passam a ver na resistência uma perspectiva deafirmação étnica e de respeito à fragilidade do ecossistema, quais sejam:

a) os que se deslocaram para a cidade de Alcântara e aí mantêm seus terrenosdiminutos de plantio no perímetro urbano, provocando umainterpenetração entre os casarões em ruínas e os roçados e fruteiras;

b) os que permanecem nas agrovilas e, mediante o esgotamento das suasglebas, como em Só Assim e Marudá, passam a plantar em áreasinterditadas pelo CLA como forma de manter o rodízio das terrascultivadas, deixando em pousio seus lotes;

c) os que se encontram nas áreas de segurança da Base e são apontadoscomo os próximos a serem deslocados, como Brito e Itapera, voltarama reparar suas casas, a ampliar seus roçados e a conservar os demaisrecursos naturais na esperança de que não serão compulsoriamenteremovidos;

d) os que estão fora da área de segurança e já receberam ou recebemcotidianamente a pressão dos que foram assentados em agrovilas, como

91

Alfredo Wagner Berno de Almeida

Rio Grande, que "perdeu seu centro" para a construção da Agrovila deMarudá, encontram-se empenhados em fazer vigir os princípios depreservação de mariscos nas cabeceiras do rio de São João;

e) os que estão fora da área de segurança e estavam na contingência de terque acolher as famílias reassentadas em seus domínios, cientes de que nãoé mais factível insistir nos deslocamentos compulsórios, estão redobrandoesforços para manter preservados os recursos naturais de referencia básicapara seus povoados;

f) os que migraram para São Luís, São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília, quesão mais de 100 pessoas se considerarmos apenas São João de Cortes.

A mobilização étnica em torno dos direitos assegurados às comunidadesremanescentes de quilombos conduz a uma reapropriação de um patrimônio comum desaberes em face da natureza que orienta a vida comunitária, a produção e a distribuiçãosocial dos recursos necessários à reprodução. O desenvolvimento desse saber social torna-se um fator fundamental para a reprodução cultural dessas comunidades.

Moradores do povoado de Peroba de Baixo

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cia

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As medidas concernentes à implantação do CLA sempre privilegiaram açõesfundiárias, como se tudo pudesse ser resolvido nos domínios do direito agrário. Entretanto,há vários indícios de percepção oficiosa de variáveis étnicas intrínsecas à questão. Nadocumentação dos órgãos fundiários, em outubro de 1985, os resultados do trabalho decampo da equipe do Mirad-Incra falavam em "terras de pretos" e "terras de negros" naárea pretendida pelo CLA, e nas discussões em Brasília com representantes do Ministérioda Aeronáutica, em novembro do mesmo ano, os técnicos do Mirad indagavam se nãoseriam aquelas "ocupações especiais" que deveriam ser objeto de ações específicas. Haviauma evidência que não passara desapercebida dos técnicos, seja do Mirad ou do CLA(Gicla), e que reportava à prevalência de "negros" ou de um "campesinato negro" na áreadesapropriada. Provavelmente isso interferiu nos procedimentos operacionais de implantaçãoe talvez na própria seleção de quem deveria lidar mais diretamente com essas famíliasatingidas. Os próprios entrevistados narraram que o "capelão era negro", assim como aassistente social e os técnicos do governo estadual encarregados de levantar a memória doartesanato e das chamadas "manifestações culturais", como festas de santo, toadas, o tamborde crioula de Cajueiro etc. As equipes percorreram todos os povoados da chamada "zonade segurança", ou seja, cerca de 30.000 hectares, que tem ao norte o povoado de Retiro e,ao sul, a localização de Ponta Seca. Foram privilegiados aqueles que foram deslocadoscompulsoriamente para a formação das agrovilas, localizados exatamente numa das maioresáreas de concentração de quilombos no século XVIII, abrangendo Belém e Peru de Cajueiro.Contribuíram, nas operações efetivas de deslocamento, soldados que haviam sido recrutadosnos próprios povoados, treinados em São Paulo, e que constituíam, no dizer dosentrevistados, uma "tropa nativa" ou, ainda, jocosamente, uma "cavalaria alada", porquantopercorriam os povoados montados a cavalo. Os funcionários militares, aliás, tratavam ospovoados como "comunidades".

No plano jurídico-formal, se tratava a questão como agrária, enquanto queoperacionalmente registra-se um grau de percepção de que o problema se revestia de umadimensão étnica. Aparentemente, não há novidade numa ação de deslocamento que acionaos "iguais" como ponta de lança da operação que tem por finalidade última removerpopulação. A administração colonial inglesa valeu-se desse recurso na Índia e os francesesprocederam de igual modo com as práticas de regroupement massif (Bourdieu et Sayad, Le

déracinement,1964) na Argélia. Quer dizer, existe uma lógica colonialista que operaterritorialmente com elementos de uma política étnica não explicitada e que lança mão de

Quais os reflexos das desapropriações e dasmedidas de remanejamento das comunidadessobre os direitos étnicos?

7.

94

Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 2

eufemismos designando suas ações como de "reassentamento involuntário" (involuntary

resettlement). Desse prisma colonialista, a noção de etnia se atém às origens ou à "herançaafricana" e/ou "indígena" e como tal é um problema do passado. Não foi diferente emAlcântara: o problema percebido foi tratado segundo uma forma de invisibilidade social,menosprezando qualquer alusão a fatores étnicos, qualquer especificidade cultural do presente.

Esse quadro sofreu transformações com o advento das comunidadesremanescentes de quilombos, que conferiu visibilidade ao que vinha sendo socialmenteelidido. As discussões travadas no âmbito do STTR de Alcântara em torno do Art.68 doADCT, de outubro de 1988, e as mobilizações subseqüentes, legitimaram os "pleitosinvisíveis" e dissociaram os direitos étnicos do direito agrário, alertando que os domíniosque ocupavam secularmente não poderiam ser tratados simplesmente como terra, comose fora um simples imóvel rural, mas sim como território com todas as implicações étnicase identitárias correspondentes. Os antagonismos, que se revestiam de uma aparência deconflito agrário, passaram a explicitar publicamente uma identidade étnica, como sucedeuno âmbito do "Seminário Alcântara: A Base Espacial e os impasses sociais", de maio de1999, do qual participaram representantes de mais de uma centena e meia de povoados.Nos termos da antropologia reflexiva, trata-se de uma publicização ou circunstância emque um problema deixa de ser privado, pontual, singular ou uma exceção para se tornarpúblico e objeto de tomadas de posição oficiais (Bourdieu, 1989:37). As ações ditas fundiáriase agrárias (desapropriação, deslocamento) têm que ser obrigatoriamente repensadas nesseprocesso social que faz do problema uma questão de cumprimento de direitos étnicos.

Não. O fato de os recursos terem sido mantidos abertos por mais de séculotem assegurado a essas comunidades uma relação de equilíbrio com um ecossistemafrágil e uma ligação permanente com diferentes circuitos de mercado através do sistemade portos que liga os povoados à capital e a outras cidades e povoados, conforme já foiexaminado anteriormente. As regras de uso comum dos recursos, que combinam formasde apropriação privada com formas de apropriação pública e não podem ser reduzidasa formas coletivas, consistem numa estratégia de sobrevivência que tem resultado emêxito há pelo menos dois séculos. Destruí-las, excluindo o reconhecimento de suas práticascentenárias, pode significar uma tragédia. Deslocar compulsoriamente, para o interior docontinente, comunidades que se dedicam à pesca marítima e à coleta de frutos que ladeiamo cordão arenoso das praias, significa destruir seu modus vivendi, inviabilizando suareprodução social. De igual modo podem ser entendidas as medidas que resultam porsepará-las compulsoriamente dos recursos florestais que propiciam a extração da amêndoade babaçu, da juçara e da coleta de frutos (murici, bacuri, buriti). O sofrimento dessasexclusões caracteriza, hoje, a vida cotidiana dos moradores das agrovilas.

O modus vivendi das comunidades podeprescindir do livre acesso aos recursos naturais,nomeadamente o litoral?

8.

Porto

Examinando-se historicamente as relações entre as autoridades responsáveispela implantação do CLA e as famílias atingidas, constata-se uma ruptura de termos deconvívio formalmente firmados. Em 1983, as comunidades se mobilizaram e apresentaramàs autoridades do Ministério da Aeronáutica um abaixo-assinado contendo as principaisreivindicações das famílias, tais como terras boas e suficientes, lugares de pesca e indenizaçãojusta, entre outras. Em decorrência, foi assinado um Acordo devidamente registrado emcartório, no qual os militares se comprometeram a respeitar e atender às reivindicaçõesapresentadas. Com os planos de reassentamento apoiados numa concepção de campesinatoparcelar e tecnicamente criticados em outubro de 1985 pela equipe do Incra-Mirad, querealizou verificação in loco na área pretendida pelo CLA, o pacto começou a ser rompido.Ocorreram mobilizações de resistência ao plano de reassentamento e às decisõesgovernamentais que reduziram drasticamente a fração mínima de parcelamento, somentena área pretendida pelo CLA, para 15 hectares. Os procedimentos operacionais dedeslocamento compulsório e de formação das agrovilas, excluindo os moradores da faixalitorânea e do acesso a recursos florestais, tornaram evidente o não cumprimento do Acordo.As famílias compulsoriamente afastadas do cordão arenoso das praias e do acesso a recursosflorestais sentiram-se excluídas do acesso a bens essenciais à sua existência e inibidas ouinterditadas no exercício de suas atividades centenárias. Reduziram as atividades agrícolasno lote com terras insuficientes para os grupos familiares; diminuíram, pela grande distância,as atividades de pesca e também reduziram, por ter se tornado quase impraticável, a extraçãoda amêndoa do babaçu, a coleta da juçara e dos frutos como murici, bacuri e buritis. Assituações de tensão resultantes das medidas que instalaram as agrovilas excluíram as famíliasde qualquer perspectiva de futuro e disseminaram, pois, uma desconfiança generalizada naação do CLA.

Rever os procedimentos de inspiração colonialista, que menosprezaram asdiferenças étnicas e culturais, reconhecer a relevância do território étnico para as famíliasatingidas, reparar os danos provocados pelos impactos e estabelecer formas de interlocuçãoe diálogo permanentes situam-se entre os passos imprescindíveis para restaurar aconfiabilidade mútua.

Os conceitos antropológicos relativos à "nova etnicidade", construídos atravésdos Proceedings of the American Ethnological Society, de 1973, e reconfirmados em1982, atualmente estabelecem uma distinção entre a identidade acatada pelos agentes sociaise aquela que outros lhes querem impor autoritariamente. Recorrendo a esses conceitos é

É possível estabelecer-se uma coexistênciaentre a dinâmica preexistente das comunidadese o projeto do Centro de Lançamento deAlcântara? Em caso afirmativo, quais asmedidas mitigadoras e compensatórias quepoderiam ser adotadas de forma a minimizaros impactos?

9.

98

Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 2

que podemos estabelecer a diferença entre a identidade étnica reivindicada pelos moradoresda área pretendida pelo CLA e a que lhes é atribuída pelas autoridades do CLA. Oconhecimento antropológico recusa, hoje, as formas de classificação externas que pretendemditar quais os elementos identitários que as pessoas devem ter ou supostamente teriam. Aantropologia do conflito contrapõe-se, assim, a quaisquer medidas segregacionistas,involuntárias ou não, dos que praticam direta ou indiretamente a chamada ethnic cleansing emnome de fatores objetivos.

As mobilizações étnicas em Alcântara estão delimitando um grupo que persisteem marcar suas diferenças. Para uma compreensão antropológica desse fenômeno, podemser acionados os instrumentos analíticos elaborados por F. Barth, que asseveram o seguinte:na medida em que os agentes sociais recorrem a identidades étnicas para categorizarem-sea si mesmos e a outros com fins de interação, formariam grupos étnicos no sentido daorganização.

Pode-se afirmar, portanto, que qualquer coexistência implica no reconhecimentoda existência do outro consoante seu modo de fazer e viver. As formas de solidariedadecomunitária que asseguram a mobilização contra novos deslocamentos tem que ser levadasem conta. Os condicionantes não podem ser elididos ou ocultos numa aplicação simplistada lógica da "razão do Estado".

A partir desse preceito, a discussão dos impactos ganha uma outra moldura,requerendo o reconhecimento dos direitos étnicos e de seu correspondente territorial eabrindo a discussão para as medidas operacionais relativas a esse novo patamar de respeitomútuo. Certamente que, nesse contexto de operacionalização ou das medidas mitigadoras,terão que ser examinadas acuradamente: a revisão das iniciativas que indicam novosdeslocamentos compulsórios, a revisão dos critérios que definiram a extensão de uma áreadessa amplitude para uma base de lançamento de foguetes e o cumprimento das exigênciaspara o licenciamento ambiental do projeto do CLA, entre outras.

Não. Segundo argumentos já apresentados, não existe um estoque de recursosque autorize deslocamentos e os próprios moradores das áreas cogitadas recusam essapossibilidade. Além disso, o malogro da experiência de agrovilas não autoriza experiênciassimilares. Afinal, a inviabilidade ecológica de lotes diminutos dispostos em areias quartzosas,coloca limitações à sobrevivência física que são por demais conhecidas de todos aquelesque vivem no município. Configura-se uma resistência a qualquer iniciativa de deslocamento.Acrescento, para efeito de complementação, que os que moram nas agrovilas são vistospelos demais como numa posição hierarquicamente "inferior", porquanto não podemcompetir em termos de produção com aqueles que se mantiveram nos povoados. Asagrovilas ficaram em desvantagem mesmo concentrando todos os serviços e vantagenspropiciadas por inúmeros projetos oficiais (eletrificação, crédito e custeio, casas de alvenaria,caixas d'água, arruamento e planejamento urbano) porque não têm porto, nem têmproximidade dos recursos hídricos mais abundantes, vivem sob o signo da escassez e,sobretudo, não conseguem reproduzir a unidade de trabalho familiar, posto que há umadesagregação dos núcleos familiares. As glebas são diminutas e insuficientes para umaprodução permanente e registra-se uma migração crescente não apenas de jovens, mas degrupos familiares.

É possível o deslocamento de outras famíliaspara outras áreas cogitadas pelo PoderPúblico?

10.

Moradia, rua Santo Antonio

Sim. Encontramo-nos diante de processos sociais que pela persistênciaétnica e pela territorialização podem tornar aproximáveis as situações aventadas. EmAlcântara, diferentemente de outras regiões da Amazônia e do Nordeste, tais relaçõesnão ocorreram paralelamente, antes convergindo para um mesmo território étnico.Nas territorialidades específicas verificadas em Alcântara e que são designadas pelosentrevistados e conhecidas localmente como terras de índio, terras de santo, terras

de preto e suas variações, conforme já foi sublinhado anteriormente, tem-se distintosmovimentos de construção social da natureza. A natureza pode ser entendida comoproduto de um repertório de práticas centenárias de uso comum, encetadas em Alcântarapor unidades de trabalho familiar organizadas em povoados a partir da desagregaçãodas fazendas de algodão, dos engenhos e dos estabelecimentos das ordens religiosas.

O pano de fundo desta interpretação reflete uma maneira de entender estetipo de sucessão de bens por várias gerações como uma transmissão de direitos e comoadstrito a um princípio de conservação ambiental. As práticas agrícolas e extrativas, mantendouma relação relativamente equilibrada com recursos escassos e com um ecossistema frágil,durante dois séculos consecutivos, reforçaram a necessidade de manter em reserva áreascom cobertura florestal permanente e de efetuar um rodízio das terras cultivadas, comintervalos de descanso, sempre superiores a três anos ou capoeiras de curta duração. Ainterdependência ecológica combinada com o uso comum, viabilizando a reprodução degrupo, possibilita concomitantemente uma estratégia de articulação de interesses queampara ao mesmo tempo a identidade étnica e a garantia do território, traduzida por umarede de solidariedade entre famílias e comunidades e por uma autonomia em relação àsagências oficiais e de poder, que é justo o contrário da tutela. Os diferentes circuitos demercado alcançados pelos quilombolas em Alcântara contribuem para demonstrar queconstruíram sua identidade nas inter-relações e nos limites físicos de seu território. Tal estratégiapode ser entendida como um fator de etnicidade que facilita a organização do grupo,principalmente na esfera política e de defesa de reivindicações em face da ação do Estado.

Povos indígenas e comunidades remanescentes de quilombo podem seraproximados pelas relações antrópicas similares e por esse critério político-organizativoenquanto unidades de mobilização. A etnicidade, aqui, reflete uma nova realidade, comobem o demonstram as comunidades remanescentes de quilombo em Alcântara, numprocesso de afirmação identitária, em situação de conflito, que não difere essencialmente deoutras situações analisadas por etnólogos. Para fundamentar este primado, pode-se recorrer

É possível estabelecer alguma identidade entrea natureza da relação das comunidades atingidaspelo CLA, entre si e com o ecossistema, com aforma da relação dos indígenas com as terraspor eles tradicionalmente habitadas? Como epor quê?

11.

102

Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 2

à análise de João Pacheco de Oliveira sobre os índios no Nordeste em Uma etnologia

dos "índios misturados"? Situação colonial, territorialização e fluxos culturais

(Oliveira, 1998: 47-78).Nessa ordem é que os procedimentos de identificação étnica das comunidades

remanescentes de quilombo atingidas pelo CLA ancoram-se nos mesmos pressupostosteóricos que aqueles referidos aos povos indígenas, permitindo as aproximações suscitadasna indagação.

1 O termo mocambo, nos dispositivos jurídicos da legislação colonial, era apresentado como sinônimo

de quilombo. Ambos designavam concomitantemente habitações e locais de refúgio de escravos

fugidos. Para uma interpretação crítica do deslocamento desta noção jurídico-formal e de sua

ressemantização, consulte-se o texto "Quilombos: sematologia face a novas

identidades"(Almeida,1996:11-19).

2 Carvalho Martins destaca esta situação no seu relatório preliminar de identificação de Itapuaua: "A

chamada toca, cujo significado pode ser assimilado à idéia de quilombo..." (Carvalho Martins,

1998:10). De igual modo, ela detectou também nos povoados a expressão tempo da escravidão.

3 As disciplinas militantes valorizam estes atos, tornando-os marcos históricos de lutas e mobilizações.

O que os historiadores regionais classificam como pilhagem e saque de fazendas é vivido, neste

contexto, como ato afirmativo, exaltado em processos de afirmação étnica.

4 Este conceito resulta do pressuposto de que não faz sentido aplicar hoje a mesma definição de quilombo

do Conselho Ultramarino, de 1740, às situações sociais ora classificadas como comunidades remanescentes

de quilombos. Não se pode congelar a definição jurídica da legislação colonial, de finalidade nitidamente

repressiva, e transportá-la mecanicamente no tempo, para que preencha finalidade de reconhecimento

oficial dos direitos dos quilombolas. A legislação colonial coloca os quilombos numa camisa de força

geográfica, como se fossem sempre isolados, localizados em áreas remotas, longínquas, distantes dos

mercados e produzindo tão somente para subsistência. Considera ademais os quilombolas como

"coisa" ou como "peças" passíveis de serem recolocadas no mercado de escravos pelos atos de captura.

Os instrumentos jurídicos coloniais são de sentido eminentemente repressivo, desqualificando os

quilombolas e estigmatizando-os de maneira absoluta. Em outras palavras: antes, o quilombo era para

ser destruído e nesta direção eram forjados os instrumentos jurídicos; hoje, o quilombo é valorizado e

o propósito legal é que seja oficialmente reconhecido. Ao contrário das noções do período colonial, nas

situações sociais hoje classificadas como remanescentes de quilombos, tem-se uma afirmação econômica

de produzir para diferentes circuitos de mercado, podendo o quilombo estar localizado próximo a

núcleos urbanos, aliado à emergência de uma identidade coletiva com base na autodefinição dos agentes

sociais em pauta, numa capacidade político-organizativa, em critérios ecológicos ou de conservação de

recursos básicos por meio de modalidades de uso comum dos recursos naturais ou por outras formas

similares de manejo sobre as quais se manifestem favoráveis as comunidades. Há uma inversão dos elementos

estigmatizantes, que passam a ser vividos como condição positiva. Para maiores detalhes sobre este conceito

de quilombo, que relativiza a definição do código jurídico colonial chamando a atenção para a necessidade de

sua releitura hoje, consulte-se Almeida,1996 ibid..

5 O conceito de plantation aqui utilizado se opõe àquele de fazenda, enquanto diferentes tipos de

organização social na agricultura. Tem como referência a distinção teórica de E. Wolf e S. Mintz, para

quem a fazenda seria uma "propiedad agrícola operada por un terrateniente que dirige y una fuerza de

trabajo que le está supeditada, organizada para aprovisionar un mercado de pequeña escala por

medio de un capital pequeño, y donde los factores de la producción se emplean no sólo para

acumulación de capital sino también para sustentar las aspiraciones del status del propietario. Y

plantación será una propiedad agricola operada por propietários dirigentes (por lo general organizados

2.

Notas

104

Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 2

en sociedad mercantil) y una fuerza de trabajo que les está supeditada, organizada para aprovisionar

un mercado de gran escala por medio de un capital abundante y donde los factores de produción se

emplean principalmente para fomentar la acumulación de capital sin ninguna relación con las

necessidades de status de los dueños. "(Wolf e Mintz, 1975:493).

6 Para Viveiros (1954:163), eles eram banqueiros, que concediam empréstimos, e controlavam

exportações, importações e até o beneficiamento de produtos agrícolas, além de terras e escravos.

7 Esta interpretação enfatiza o exercício de atividades autônomas de cultivo e comercialização de possíveis

excedentes por parte dos escravos, em tempo livre e em terras das fazendas que lhes eram concedidas

para tanto. Consulte-se Mintz, Sidney W.- "From plantations to peasantries in the Caribbean" in

Caribbean Contours (ed. Mintz and S. Price). The John Hopkins Univ. Press 1985, p.127-153.

Consulte-se também sobre a chamada "brecha camponesa" no sistema escravista e no Brasil os

estudos de Ciro F. S. Cardoso in Escravo ou camponês? O protocampesinato negro nas Américas.

São Paulo. Ed.Brasiliense, 1987, p.31-125.

8 Esta situação referida concerne às aquisições de terras feitas, entre finais do século XIX e a primeira

metade dos anos 1940-50, por Antonino da Silva Guimarães e seus descendentes, que serão examinadas

posteriormente.

9 A área correspondente a estas três freguesias do município de Alcântara, no decorrer do século

XIX, correspondia a aproximadamente 195 mil hectares. Obtive este total somando a área

correspondente ao atual município de Bequimão, antiga freguesia de Santo Antonio e Almas,

831,5 Km2, com aquela do atual município de Alcântara, que engloba as outras duas freguesias, ou

seja, 1.114 Km2. Excluindo as povoações e fazendas da beira-campo, que continuam apoiadas

principalmente na pecuária extensiva nos campos naturais, e considerando marcadamente a área

das freguesias de São Matias e de São João de Cortes, obtive o total alusivo à extensão das fazendas

de algodão.

10 Esse sistema não deve ser confundido com terras comunais, próprias do feudalismo, em que os

homens não são dissociados do recurso básico, sendo mantidos sob a autoridade senhorial, nem

com terras coletivas, que pressupõem uma intervenção externa de aparatos de poder, organizando a

distribuição dos recursos e dos produtos do trabalho. Em verdade, esse sistema de uso comum

distingue-se daquelas referências históricas concernentes a "sobrevivências feudais" e não significa

uma involução, que o sentido da expressão "decadência de Alcântara" pode denotar. Trata-se de uma

resultante das crises econômicas, próprias do mercantilismo que orientou as políticas do governo de

Pombal, produzida a partir de tensões peculiares ao desenvolvimento capitalista. Constitui, por

outro lado, uma modalidade de apropriação da terra que se desdobrou marginalmente ao sistema

econômico dominante. Emergiu enquanto artifício da autodefesa de indígenas, escravos, alforriados

e agregados, para assegurarem suas condições materiais de existência, em conjunturas de crise econômica

e de desorganização de grandes estabelecimentos agrícolas. Resultou em uma forma aproximada de

corporação territorial que se consolidou rapidamente numa região ainda central no final do século

XVIII, quando Alcântara era visto como "Ouro Preto ao Norte "(Tristão de Athayde,1978), que foi

se tornando periférica a partir de meados do século XIX.

11 Conforme a conceituação de Barth a respeito de grupos étnicos (Barth, 2000:31).

12 As técnicas de identificação consideradas próprias à situação dos quilombos em Alcântara escapam das

autoevidências e dos procedimentos usuais de historiadores e arqueólogos em elencar provas através de

elementos da cultura material. As escavações e a descoberta de inscrições guerreiras, de vestígios de muros

de fortificações militares, de fragmentos de artefatos bélicos (lanças, pontas de ferro), de pedras que

balizam a praça central dos quilombos e o seu formato, corresponde a outras situações históricas, como as

105

Alfredo Wagner Berno de Almeida

que caracterizam, por exemplo, os trabalhos arqueológicos no caso de Nanny Town, na Jamaica.

Agorsah observa que na caracterização dos quilombos na Jamaica pode ser traçado um amálgama

ou uma mistura de povos do período pré-hispânico, africanos e povos de outras origens. Da sua

reconstituição histórica das investigações arqueológicas, cabe citar o seguinte : "Archaeological

research in Jamaica that deals with Maroon heritage is limited to very few reconnaissance, survey

(Teulon,1967), and minor excavation expeditions (Bonner,1974). It was only recently that major

excavations have been conducted by the Univesity of the West Indies Mona Archaeological Research

Project (Agorsah, 1992b,1993 a,b). In 1967, a reconnaissance expedition led by Alan Teulon of the

Survey Department made the first attempt to locate and identify the ancient site of Nanny Town

and to conduct an environmental study of the area. A ruined stone wall, a stone with engraved

inscriptions as well surface artifacts such as fragments of bottles and crockery, and some botanical

specimens were observed and some collected."(Agorsah,1994:164-165). (g.n.)

13 Entre as "figuras alcantarenses", resenhadas biograficamente por J. Viveiros, tem-se, a saber: quatro

Barões (Mearim, São Bento, Pindaré e Grajaú), dois cavaleiros professos na Ordem de Cristo, sendo

um deles membro da nobreza com Carta de Brasão dada pela rainha Dona Maria I, um arcediago e

comendador, cinco senadores do Império, um oficial da Ordem da Rosa, agraciado pelo próprio

imperador Pedro II, dois médicos, sendo que um deles "educou-se em Paris, em virtude de uma

cláusula do testamento de seu pai" e foi condecorado por Luiz Felipe, Rei de França, em 1838

(Viveiros, 1975:111).

14 Estes nomes de família abarcam 21 dentre as 24 "figuras ilustres" biografadas por Viveiros. Segundo

o especialista em genealogia, suas raízes remontam à "fidalguia lusitana" (Viveiros,1975:95). O próprio

nome Viveiros, que só encontramos referido a uma única família no povoado de Itapera, viemos a

detectá-lo denominando os próprios quilombos no relatório publicado em Lisboa, em 1822, pelo

coronel do Real Corpo de Engenheiros Antonio Bernardino Pereira do Lago: "...os quilombos de

negros fugidos eram tantos e tão grandes que, em um, no distrito de Alcântara, conhecido por

quilombo dos pretos de Viveiros..."(Pereira do Lago, 2001:28).

15 Esta expressão foi inspirada em Comerford (2001:66) e se refere aqui a um padrão de ocupação que

concentra residências e locais de trabalho dos que se consideram parentes, reconhecidos e valorizados

como tais sem que necessariamente existam laços de consangüinidade, incluindo amigos e vizinhos,

cujas relações são disciplinadas por regras de uso comum dos recursos naturais, instituídas por

eles próprios ou por seus antecessores e acatadas consensualmente.

16 A denominação negro tratava-se de uma categoria abrangente que, nos dois primeiros séculos e

meio de colonização, incluía os índios. Foi impositivamente reconceituada em 1759, pelo art.10 do

Diretório Pombalino, que estabeleceu uma dissociação formal entre os chamados "negros" e "índios".

Neste mesmo documento ela é utilizada em sinonímia com preto. Entretanto, os estigmas a ela

referidos não são exatamente os mesmos concernentes à categoria preto, que inclusive foi adotada

afirmativamente pelos ex-escravos e quilombolas como de autodefinição.

17 O exemplo mais conhecido concerne à introdução pela Cia. Geral do Grão-Pará e Maranhão de

sementes de arroz da Carolina, então colônia britânica, para "substituir o arroz vermelho

nativo"(Viveiros,1975:58).

18 Em verdade, não há mais grandes imóveis rurais em Alcântara. Consoante as estatísticas cadastrais

do Incra, correspondentes a 1999, não haveria latifúndios por dimensão ou por exploração no

município.

19 Janã, trata-se da antiga sede da fazenda de Marcial Ramalho Marques, que por duas vezes foi prefeito

de Alcântara e vem a ser genro de Antonino da Silva Guimarães (Antonio Alexandre da Silva

106

Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 2

Guimarães), uma das "figuras alcantarenses" listadas por Viveiros (1975:142), que detinha os títulos

dos imóveis rurais de maior extensão da antiga freguesia de São Matias, no período logo após a

Abolição de 1888. Antonino Guimarães, casado com Leontina Ribeiro, sobrinha de Carlos Fernando

Ribeiro, Barão de Grajaú ( H.M. -21/04/2001- ENT.25), adquiriu o imóvel rural "Gerijó" de José

Ribeiro Sá Valle, mais conhecido como Bebê Sá Valle, e também comprou inúmeros sobrados,

inclusive os da família Viveiros do largo central da cidade de Alcântara. A cadeia dominial destes

imóveis foi reconstituída por Joaquim Shiraishi no âmbito dos trabalhos de pré-identificação das

comunidades remanescentes de quilombo em Alcântara (Shiraishi,1998).

20 Vide mapa elaborado para fins desta perícia intitulado: "Alcântara-Terras das Comunidades

Remanescentes de Quilombo: Territorialidade, uso dos recursos naturais, sítios históricos e conflitos

sociais". Junho, 2002.

21 Os fundamentos desta interpretação jurídica, de acordo com Salmoral, tem sua inspiração no "Código

Carolino, donde se estabeleció la consideración ingenua o maléfica de que os esclavos no sólo eran

necessariamente útiles, sino que además vivian mejor em América, como tales esclavos, que como

hombres libres en Africa. El hecho de que huyeran o se rebelaran no obedecia, por tanto, a no poder

soportar su condición esclava, sino a la perversión de algunos de sus amos, que les obligaban a

trabajar excesivamente, no les subministraban lo necesario para su sustento, y les maltrataban con

castigos crueles. Tal perversión justificaba muchas veces sus fugas y cimarronaje, y atentaba

contra los principios de la Religión, de la Humanidad y el bien del Estado."(Salmoral,1996:161) (g.n.)

22 Sobre este endividamento podem ser consultados quase todos os comentadores regionais, de Garcia

de Abranches, em 1822 (cf. edição de 1922:116), até Viveiros, em 1954. Fazem uma defesa dos

senhores dos estabelecimentos agrícolas em face dos comerciantes de escravos e em face da Companhia

Geral do Grão-Pará e Maranhão. Os autores Mota, Silva e Mantovani reuniram e classificaram 80

testamentos do século XVIII. Uma das considerações da leitura que realizam é a seguinte: "À

Companhia de Comércio devia aparentemente todo mundo." (Mota et alli, 2001:27), ou seja, quase

todos os inventários mencionam endividamentos junto à empresa colonial.

23 Como narra R.P., com respeito à imagem original de S. J. Batista, que teria sido levada da capela de São

João de Cortes, depois que os jesuítas foram expulsos e seu patrimônio confiscado.(R.P. 20/04/

2002-ENT.22.1).

24 Numa narrativa similar a estes depoimentos coletados na perícia, observa-se que alguns comentadores

regionais fazem o que seria uma crônica da pilhagem. Chegam a registrar os seguintes termos e

expressões: "evasão dos latifundiários", "êxodo dos proprietários" e "saque" feito pelos herdeiros

(Lima,1998:90) ou então a produzir imagens literárias que pintam este quadro dramático, como

Josué Montello em seu romance A Noite sobre Alcântara (Montello,1978:249-251). A seguir, tem-

se uma passagem de Lima a respeito:

"... tudo concorrendo para a evasão dos latifundiários, dedicados a outros assuntos, e a omissão

do poder político para conjurar a crise.

Com o abatimento das fazendas e engenhos e o êxodo dos proprietários, ficaram as casas da cidade

entregues a antigos escravos, promovidos a zeladores de confiança. Mas, sem recursos, pois os donos

acharam mais interessante investir em outros bens em São Luís ou Rio de Janeiro (...) além do que todo

o acervo dos velhos sobrados foi saqueado - é bem o termo - pela parentela dos herdeiros...Toda a cidade

foi saqueada, das pedras dos vetustos muros às alfaias das igrejas, imagens e grades de ferro, louças e

cristais. Prédios desmoronaram, ruas inteiras deixaram de existir, os sobrados se esvaziaram de tudo e de

todos."(Lima,1998:90,91) (g,n.).

25 Uma das mais vívidas descrições da seqüência destas pedras de rumo, abarcando 28 delas, à molde de um

memorial descritivo, foi coletada por Luiz Fernando R. Linhares no trabalho de campo para sua dissertação

107

Alfredo Wagner Berno de Almeida

de mestrado e para identificação das comunidades de Flórida e Forquilha como remanescentes de quilombo.

Com mais de 70 anos, Sr. Binga, o entrevistado que narra as delimitações, mesmo residindo atualmente

em São Luís, representa o "documento vivo" da comunidade. Passo a transcrever, com a devida licença de

quem a coletou, tal descrição:

"A primeira pedra de rumo fica no Rio Duarte, que divide as terras de santíssima justamente com as

terras que era dos brancos; a segunda fica na Flórida, atrás da casa de forno de Tomásia; terceira fica na

Peroba, no quintal de Moisés; quarta fica na Ladeira (perto do Janã, depois do Vai-com-Deus, lá

Isídio ou Domingos Carne de Porco, ou Domingo Xandoca sabe onde fica; quinta pedra fica no

Tajurará; sexta fica no Samucangaua, localizada no caminho chamado Corta Pescoço, perto do Quebra

ovo; de lá vai para o Porto do Rumo (perto do Deserto), onde fica a sétima pedra de rumo; de lá vem

pro lugar chamado Rio do Pamané, onde fica a oitava pedra de rumo; de lá vem fazer misco com a

terra da Cachoeira (lá era de Firmino Ribeiro, agora ele tinha os filhos Arlipe Ribeiro, Mundico

Ribeiro, Mundico Periz, Miguel Ribeiro, Hermínia Ribeiro, Isídio Ribeiro, Ilário Ribeiro, Daniel

Ribeiro, José Mintiba Ribeiro, esse era tio do Beja, José Ribeiro e Leonide Ribeiro; da Cachoeira vem

para a Ladeira (9a. pedra); de lá vai pra Conceição (10a.); de lá pra Baixa Grande (11a.); de lá vem pra

cá Jerijó (12a.); de lá vai pra Santo Inácio (13a.); de lá vai prá Castelo (14a.); de lá vem pro Pavão (15a.);

de lá para o Centro de Vovó (16a.); Porto dos Bois (17a.); Quiritiua (18a.); Trespucaia (19a.); Oitiua

(20a.); Cajueiro perto de Oitiua (21a.); de lá vêm embora para o Bom Jardim (22a.); Janã (23a.); Terra

Mole (24a.); Vai-com-Deus (25a.); Engenho (26a.); Peroba de Baixo (27a.); Primirim, perto da

Prainha (28a.)." (Linhares, 1999:66,67)

26 A expressão encarregados da terra foi registrada no decorrer do trabalho de campo pericial, não

tanto para referir a feitores de escravos, mas para designar os que tinham a responsabilidade de

cobrança do aforamento, de medir os terrenos de cultivo, definindo os percentuais a serem recolhidos,

de estocar a produção arrecadada e de administrar as terras em virtude da ausência, seja dos fazendeiros,

seja de membros das ordens religiosas. Em inúmeras situações, os que lideram a resistência aos

senhores são oriundos exatamente das famílias destes encarregados. O fato de exercerem uma ação

mediadora os dispunha no centro dos antagonismos que marcavam as relações escravistas nas

antigas fazendas de algodão e nos engenhos.

27 Para maiores informações sobre esta revogação, leia-se "Apontamentos para a civilização dos

índios bravos do Império do Brasil", elaborado por José Bonifácio de Andrada e Silva entre os

anos de 1823 e 1829 (Andrada e Silva, 1993:89-149).

28 Consoante entrevistas já citadas, os índios haviam doado suas terras para os santos padroeiros.

29 As discussões jurídicas sobre a condição de sesmeiros como posseiros marcaram as sessões do

Senado do Império entre 1841 e 1843. O indício que levantamos de que os fazendeiros de Alcântara

se autorepresentavam enquanto posseiros atém-se à participação do senador Franco de Sá: "Num

debate acerca do tamanho máximo para a legitimação das posses, Franco de Sá, grande proprietário

e senhor de engenho em Alcântara no Maranhão afirmara que a Lei iria prejudicar a sua "classe de

posseiros" (Carvalho,1981:39). Talvez esta assertiva confirme a hipótese de que as terras do Maranhão

seriam tomadas por posse de terras, que implicariam na ausência ou omissão de registros nos livros

do período" (Shiraishi,1998:29).

30 No decorrer do trabalho de campo, foi registrado um povoado denominado de "Fora Cativeiro" e

devidamente localizado na base cartográfica que acompanha esta perícia. Foram também registradas

alusões à Base de Lançamento que a identificam com "cativeiro".

31 No Arquivo Nacional, há abundantes registros das disputas políticas que cercaram as Juntas

Governativas na província do Maranhão.

108

Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 2

32 Cf. Arquivo Nacional - CFC. As Câmaras Municipais e a Independência. Rio de Janeiro, 1973, Vl. I,

p. 21-27.

33 No caso de Guimarães, a ocorrência mais conhecida refere-se às fazendas do Barão de Bagé, tal como

registrado em O Progresso, n° 82, de 28 de abril de 1847, à pág. 3. Senão, vejamos:

"Tendo-se evadido das fazendas do Barão de Bagé do distrito de Guimarães duzentos escravos, o

Governo provincial expediu as convenientes ordens para que sejam capturados."( g.n.)

34 Nesta ordem, considerava-se juridicamente como quilombo ou mocambo "toda habitação de negros

fugidos que passem de cinco, em parte despovoada, ainda que não tenham ranchos levantados nem

se achem pilões neles" (Conselho Ultramarino, 1740 apud. Moura,1994:16). Perdigão Malheiro

menciona, ademais, os seguintes dispositivos legais que instrumentalizam e asseguram a aplicação

deste dispositivo: Alvará de 3 de março de 1741 e Provisão de 6 de março do mesmo ano: "Era

reputado quilombo desde que se achavam reunidos cinco escravos."(Perdigão Malheiro, 1976:50).

1 Atente-se também para a distinção verificada por A. Cantanhede nos povoados de Ladeira, Iririzal e

Samucangaua entre "família de preto" e "família de caboco" (Cantanhede,1998:06-09).

1 A documentação do Maer fala em 21 povoados, mas não inclui dois outros que foram mencionados

em entrevistas no decorrer do trabalho de campo pericial. A SMH, em trabalho coordenado por

L.F.Rosário Linhares(2001), arrola 31 povoados. Para maiores detalhes sobre os deslocamentos

compulsórios e as agrovilas, consulte-se Carvalho Martins (1994) e Fernandes (1998).

2 Refiro-me mais diretamente a matrimônio entre jovens das agrovilas e dos povoados mais próximos ao

mar, onde os recursos naturais permanecem abertos e são vistos pelos moradores das agrovilas como

lugar de fartura e abundância. O matrimônio dos filhos combinado com a nova regra de residência, ou

seja, "residir sempre fora das agrovilas", produz fatores adicionais de coesão entre os povoados, apoiados

no parentesco e na afinidade.

3 A Infraero passa a atuar na implantação da base juntamente com o Ministério da Aeronáutica através

do Departamento de Pesquisas e Desenvolvimento - Deped, com base em Termo de Convênio com

vigência de 15 anos, firmado em 01 de novembro de 1996 (cf. Diário Oficial n.219. Brasília, 11 de

novembro de 1996 Seção 3. pág.23888). Em 2001 a Infraero já se encontrava afastada de qualquer

intervenção.

4 Cf. "Relatório referente à preparação da população alvo da área de transferência e assentamento III -

Meta 1" Infraero/CLA. 05 de novembro de 1998. Este documento dá sequência às medidas de

deslocamentos compulsórios, distinguindo as chamadas "áreas de transferência" que perfazem 152

famílias, daquelas de "assentamento" que afetam 103 famílias num total de 255 famílias atingidas

correspondendo a 908 pessoas.

3.

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Anexos

ANEXO 1

Fontes documentais e arquivísticas: transcrição de documentos que registram,

direta ou indiretamente, quilombos em Alcântara (1702-1886)

ANEXO 2

Certidão referente à terra da pobreza

ANEXO 3

Registro fotográfico

ANEXO 4

Calendário agrícola e extrativo

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Alfredo Wagner Berno de Almeida

Fernão Carrilho, Eu El Rei vos invio muito saudar. Havendo visto a contaque me destes em Carta de seis de Maio do anno passado em como pretendeis reedificare fazer passar o Engenho de assucar no citio de Moni, que os Gentios do Corço tinhãodestruido, e que tendo noticia que no Certam do Rio Turiassu que estavão humasAldeas de Escravos que se tinhão levantado a muitos annos e fugido a seus Senhores,mandareis outo Soldados com hum Alferes reformado com os Indios da Aldêa doMaracú, de que resultará o aprezionarem-se cento e vinte escravos, cujas tomadiasforão de grande utilidade para se fardarem e soccorrerem os soldados que naufragarãovindo de Pernambuco, porque se não achava naquella occaziam outro dinheiro daterra. Me apareceu extranhar-vos / como por esta o faço / mandares aprizionar estesEscravos que se achavão no Rio Turiasse, pois a noticia que fezestes desta expediçãoao Certão contra as ordens que neste particular vos havia deixado o Governador eCapitão General e outro sim que obrastes muito contra a vossa obrigação, em alterardeso preço que se tinha taxado de oito mil reis por cada escravos fugido, e que nesteparticular as partes prejudicadas devem haver a maioria porquem direito fôr, comotambem o damno que se lhe occasionou, em se lhe não entregarem logo. Escripta emLisboa a vinte de Março de mil setecentos e dois. [sic]

/ / Rey / /

Livro Grosso do Maranhão. Anais da Biblioteca Nacional, Vol. 66 - 1ª parte.Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1948. p.212-213

Para o Governador Geral do Estado

do Maranhão.

Sobre a prizão dos Escravos fugidos.

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Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 2

Registro de Cartas de Data e Sesmaria passada a

João de Carvalho Santos

Dom Fernando Antonio de Noronha, do Conselho de Sua MagestadeFidellissima Tenente Coronel de Seos Exércitos, Governador e Capitão General dasCapitanias do Maranhão e Piauhy Ectª. Faço Saber a todos os que esta Minha Carta deDatta e Sesmaria Virem que João de Carva / fl. 101v/ de Carvalho Santos morador eCazado na Villa de Alcântara, Me reprezentou que elle não tem terras Suas próprias em quepossa lavrar com Seus Escravos, e porque tem noticia que para a parte dos Perizes daditaVilla, no Centro dos Mattos, nas partes, e Vizinhanças, onde foi o Mocambo dos =Negros fugidos onde ultimamente deu o Capitão do Matto Lourenço Gonçalves, juntocom o Alferes Manoel Rodrigues de Oliveira, há terras devolutas; Me pedia lhe Concedecepor Datta e Sesmaria em Nome de S. Magestade na ditaa paragem, ou nas Suas Vizinhanças,onde as houver devolutas, tres legoas de terra de Comprido, e huma de largo, pegando dastestadas do hereo [sic] que mostrar Data mais antiga a do Suplicante, que ao tempo dademarcação contestará, com a condição que faltando no Comprimento Se lhe inteirar afalta na largura, e faltando lhe na largura, Se lhe inteirar no Comprimento; de Sorte que nãofique o Suplicante prejudicado no seu pedido, observando as terras de Estillo: A queattendendo, e ao que Sobre esta matéria Responderão o Ouvidor Juis das Sesmarias, Offciiaesda Câmara do Destricto, e resposta do Procurador da Real Fazenda, a quem Se deu Vista,e se lhes não Ofereceo duvida alguma, e Ser em utilidade da mesma Real Fazenda, oCultivarem se as terras neste Estado: Hey por bem Conceder lhe em Nome de Sua Magestadepor Datta, e Sesmaria, Somente duas legoas de terra de Comprido, e huma de largo, naforma, e parte que pede, com as Confrontaçoens que declara, e Condiçoens expressdas nasReaes Ordens; como tambem de Se não introduzir pelo Comprimento ou largura nasterras do hereo ou hereos [sic] que tiverem Datta mais antiga, nem entrar em qualquer lugarno pedido delles; e com as de não fazer traspaço por meio algum em nenhum tempo. Apessoas alguma, Religião ou Commonidade Sem que primeiro de parte Ao Ouvidor Juizdas Sesmarias para Se me fazer prezente, e ver se se deve ou não Consentir no tal traspaçosob pena de ficar nulla esta Datta, e se poder Conceder novamente a outrem, e nesta formaSe lhe passa Carta, para que o dito João de Carvalho Santos, haja, logre, e possuaas Sobreditasterras como couza Sua propria, para elle e Seos herdeiros, Ascendentes, e Descendentes,sem penção nem tributo algum mais que o Dizimo a Deos, dos frutos que nellas tiver elavrar /fl.102/ e lavrar, rezervando os Paos Reaes que nellas houver para Embarcaçoens;com declaração que mandará Registrar esta Datta na Contadoria da Junta da Real Fazenda,em Consequência do Alvará de 3 de Março de de 1770, com o Auto de posse das ditasterras, Requerendo depois a Confirmação a Susa Magestade, e Cultivará as ditas terras demaneira que dem frutos, e dará Caminhos públicos e particulares aonde forem necessariospara Pontes, Fontes, Portos, e Pedreiras; e havendo no Sitio pedido Rio Navegável quenecessite de Canoa ou Barca para Se atravesar, ficará luvre de uma das margens que tocaras terras do Suplicante, meya legoa de terra para o uso público que demarcara ai tempo daposse por Rumo de Corda, e braças Craveiras, como he Estillo e S. Magestade Manda. Eoutro Sim não poderão Suceder nas ditas terras Religioens, nem pessoas Ecleziasticas pornenhum titulo que seja, e acontecendo possuilas será com o encargo de pagarem dellas Dizimos,

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Alfredo Wagner Berno de Almeida

como se fossem possuidas por Seculares, faltando a qualquer destas Clauzulas se haverão asditas terras por devolutas, e Se darão a quem as denunciar, como a Mesma Senhora Ordena.Pelo que Mando ao Juis das Sesmarias, Ministros, e pessoas a que tocar, que na forma Referida,e Condiçoens expressadas, Cumprão e guardem, a qual lhe mandei passar por Mim assignada,e Sellada com o Sinete de minhas Armas, que se registrará aonde tocar, e se passou por duasvias. Dada na Cidade de S. Luis do Maranhão aos vinte e cinco dias do Mez de Abril do Annodo Nascimento de Nosso Senhor Jesus Christo de mil Sete Centos e noventa e tres = JozeMaria Pereira de Castro a fiz = Eu Jozé Maria Pereira Secretario do Estado por S. Mag.e a fizescrever = D. Fernando Antonio de Noronha = Lugar do Sello = Carta de Datta e Sesmariaporq. V. Exª há por bem Conceder em Nome de S. Mag.e a João de Carvalho Santos duaslegoas de terra de Comprido, e huma de largo, nos Perizes da Vª de Santo Antonio deAlcântara, tudo como nesta Se declara = Pª V. Exª Ver =

Registro de Sesmarias

Livro - 35, fl. 101-1021787/1794 - João de Carvalho Santos

* * *

Registro de huma Carta de Datta e Sesmaria

passada a Jozé Alberto da Silva Leitão.

Fernando Pereira Leyte de Foyos. Comendador da ordem de Nosso SenhorJezus Christo, Do Conselho de S. Magestade F.ma Coronel de Cavalaria dos Seus Exercitoscom o Governo do Castello de S. Felipe da Barra de Setubal, Governador e CapitamGeneral do Estado do Maranhão e etc. Faço saber aos que esta minha Carta de Datta eSesmaria virem que José Alberto da Silva Leitão Morador na Villa de Santo Antonio deAlcântara, me representou que elle se achava com bastante Escravatura, sem ter terraspróprias em que os aplicasse a lavoura, e porque nas testadas de huma sorte [ sic ] de terrasdo Capitão Manoel Ferreira dos Santos as havia devolutas: me pedia fosse servido concederlhe em Nome de S. Magestade huma legoa de terra de comprido beira Campo do Pericumá,principiando das testadas do dito Capitam Manoel Ferreira dos Santos correndo para osLagos do Mocambo com seis legoas de fundo, inteirando no comprimento o que saltasseno fundo, ouveste o que faltasse naquelle, com todas as pontas abas, Enseadas, e logradourosque se achassem. A que attendendo, e ao que sobre esta materia responderão o OuvidorJuiz das Sesmarias, officiais da Camara do destricto que forão ouvidos e resposta doProcurador da Real Fazenda a quem se deu vista e se lhe não oferesseu dúvida alguma, e serem utilidade da mesma Real Fazenda o cultivarem se as terras neste Estado: Hey por bemconceder lhe em Nome de S. Magestade por Datta, e Sesmaria a dita legoa de terra beiraCampo, com duas de fundo, na forma e parte que pede, com as confrontaçoens que

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Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 2

Ilmo. e Exmo. Snr.

Estando eu em Alcântara recebi participação do feitor desta fazenda em queme dizia haver prendido dois negros fugidos, que conduzião hum boi de carro, cujo dono

declara, e condições expressadas nas Reaes ordés, e com as de não fazer traspaço por meyoalgú em nenhú tempo, a pessoa alguma, religião, ou comonide, sem que primeiro dé parteao Ouvidor Juiz das Sesmarias, para se me fazer presente, e ver se se deve ou não consentirno tal traspaço, sob pena de ficar nulla esta Datta, e se poder conceder novamente a outrem,e nesta forma se lhe passa Carta, para que o dito José Alberto da Silva Leitão haja, logre epossua as sobreditas terras, como couza sua propria para elle, e seus herdeiros assendentes,e dessendentes, sem penção nem tributo algú mais que o dizimo a Deos dos frutos quenellas tiver, e lavrar, a qual concessão lhe faço não prejudicando a terceiro, nem a S. Magestadese nas ditas terras quiser mandar fundar alguma villa, reservando os paus Reaes, que nellashouver para embarcaçoeus com declaração que mandarã confirmar esta Datta para S.Magestade dentro de tres annos primeiro seguintes [sic], e cultivarã as ditas terras de maneiraque dem frutos, e darã caminhos publicos, e particulares onde forem necessários, parapontes, fontes, pórtos e pedreiras, e havendo nas sobreditas terras estrada publica, que atravésse Rio Caudelloso que necessite de Barca para a sua passagem não só ficarã de ambasas margens do mesmo rio a terra que baste para o uso publico, mas tão bem de humadellas meia legoa de terra em quadra para a comodidade publica, e de quem arrendar a ditapassagem, e se demarcarã ao tempo da posse por rumo de corda e braças craveiras, comohe estillo, e S. Magestade manda: e outro sim, não poderão suceder nellas religious, que seja,e acontecendo possuillas suã com o incargo de pagarem dellas dizimos a Deos como sefossem possuidas por seculares; e faltando a qualquer destas clauzulas se haverão as ditasterras por devolutas, e se darão a quem as denunciar, como S. Magestade ordena pello quemando ao Ouvidor Juiz das Sesmarias, e mais Ministros a que tocar, que na forma referida,e com as condições expressadas, deixem ter e possuir as sobreditas terras ao dito JozéAlberto da Silva Leitão como couza sua propria para elle, e seus herdeiros assendentes edessendentes, cumprão e guardem esta minha Carta de Datta, e Sesmaria, tão inteiramentecomo nella se contem, a qual lhe mandei passar por mim asignada, e selada com o sinete deminhas armas, que se registrarã onde pertencem, e se passou por duas vias: dada na cidadede São Luiz do Maranhão aos vinte e seis dias do mez de fevereiro: Anno do Nascimentode Nosso Senhor Jezus Christo de mil setecentos outenta e outo: e eu Joaquim José MarquesOfficial da Secretaria deste Governador que interinamente sirvo de Secretario a fiz escrever"Fernando Pereira Leyte de Foyos" lugar do sello "Carta de Datta, e Sesmaria por que V.Ex. há por bem conceder em Nome de S. Magestade a Jozé Alberto da Silva Leitão humalegoa de terra à beira campo do Pericomá com duas legoas dependo e com asconfrontaçõens, e condições nella declaradas" para a Vª. Exª ver. Fl. 6

Registro de Sesmarias

Livro 02-1787/1794 - Jozé Alberto da Silva Leitão

* * *

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Alfredo Wagner Berno de Almeida

appareceo, e delle foi entregue, e dois cavallos, que ainda existem na fazenda sem saber sea quem pertencem, apezar de estarem ferrados; chego porem a fazenda e acho de menosos dois negros por terem fugido do tronco, que arrombarão; participei tudo isto ao Juiz dePaz deste Districto do Carvalho pedindo-lhe providências, e fazendo-lhe saber dos attentadosque elles tem obrado, e [?] alguns escravos, de minha confiança, para coadjuvarem a bateros matos, e a resposta que tive foi que tendo feito avisar o Comandante da Policia, e seossoldados, estes responderão que não hião ao mato em procura de negros fugidos porterem trabalhado hum anno inteiro sem serem pagos, cuja resposta moveo-me a mandaroito escravos da fazenda correr os matos vizinhos onde existião desconfiança, e nellesachou-se o seguinte: por detras de hum monte fronteiro a fazenda seis quilombos, poremqueimados; defronte de Fellipe Joaquim Viegas, distante de sua morada duzentas braças oumais quatro quilombos ainda em pé, e sete buracos com coiro de gado enterrado, e opanno para cima da terra; no Rio Grande, distante desta fazenda obra de meia legua,quatro quilombos cubertos de novo, e cinco coffos com mandioca d'água: Estes Exmo.Snr., bastante desaforados; já forão a casa de huma mulher por nome Maria Quitéria, noTubarão, arrombarão-lhe a casa, tirando-lhe uma escrava, e [?] em huma filha da dita mulherpara opor-se a sua ouzadia; forão a fazenda de gado deste convento em Mucajuba, eameaçam com morte ao vaqueiro por ter reprehendido seos desaforos em furtarem gadopara [?] forão a casa/os dois que fugirão do tronco/ de huma negra forra chamada AntoniaBaiana, e la prometterão vir a esta fazenda, e não deixaram seos cavallos; ao posto destafazenda foi hum escravo de D. Francisca Romana da Costa Leite, do número dos fugidos,e la estava em observação, talvez para tirar o cavallo q' o feitor mandava esperar-me, enada fez por terem hido dois escravos, hum grande, e hum pequeno; athe o mínimo quintalda casa de morada dos padres nesta fazenda foi acommetido, depois da fugida dos doisque estavão no tronco, talvez por causa de hum cavallo que existe em huma estrebaria, masnada houve para ser defendida por cães de fila, de forma que quando de acodio nada seachou de menos, e nem tão pouco se soube o que moveo hum allarido de cães. Eu desejavahir a respeitável presença de a V. Exª expor isto mesmo mas [?] na triste necessidade deestar nesta fazenda dando alguma providencia a que seja [?] de algum insulto. São estesExmo. Senhor., os accontecimentos que me fazem hir perturbar o descanço de V. Exª,esperando que a vista delles, e das sallutares determinações de V. Exª vivamos livres desemelhante flagelo que tanto nos tem perseguido. Deos guarde a Exª muitos annos. Fazendade Tammata - *Tira 3 de março de 1837.

Ilmo. e Exmo. Senhor Doutor Joaquim Franco de SáVice-Presidente da Província do Maranhão

Sr. Raymundo da Conceição Lemos

* Itamatatiua

P.P./Ma. Ca; Lt nº 08, maço 01 - ano de 1837

Arquivo Público do Estado do Maranhão - APEM - ALA "B"

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Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 2

Ofício do Juiz de Paz de Alcântara ao Vice presidente da Província do Maranhão.

Ilmo. Exmo. Senhor.

Tenho lido a participação do prior dos Carmelitas d'esta cidade, que V. Exªme remeteo, e que reverte dentro d'este, tendente aos quilombos que pertubão atranquilidade publica no 5º Districto d'este termo: tenho de informar a V. Exª que aquellesquilombos são os mesmos para cuja dispersão já forão remettidos trezentos cartuchosembalados, vinte granadeiras, conforme a requesição do respectivo juiz de Paz.

Deos Guarde a V. Exª Alcântara, 31 de março de 1837

Ilmo. Exmo. Senhor Doutor Joaquim Franco de SáVice Prezidente da Província do Maranhão

Antonio Raimundo Franco de SáJuiz de Paz

* * *

Palácio do Governo do Maranhão11 de maio de 1866

Ilmo. Senhor.

Em resposta ao seu officio de 9 do comente, em que V. Sª. da parte doassassinato de Antonio Fernandes Paes, atribuido aos quilombolas de Jurucaia, tenho adizer-lhe que nesta data expeço ordem ao Encarregado dos Armazéns de artigos bélicospara que remeta ao Delegado de Polícia do Termo de Alcântara sessenta armas e dois milcartuxos embalados para a diligência que tem de fazer o mesmo Delegado com o fim debater os referidos quilombolas e descobrir o assassino ficando V. Sa. certo de que autorizoa despesa com comedorias e diárias, na conformidade de seu dito ofício.

Deus Guarde V. Sa.Lafayette Rodrigues Pereira

Senhor. Dr. Chefe de Polícia

P.P./Ma. Ca; Lt nº 08, maço 01 - ano de 1837

Arquivo Público do Estado do Maranhão - APEM - ALA "B"

* * *

123

Alfredo Wagner Berno de Almeida

Senhor – Para se poder pôr no Estado do Brasil marcas nos negros que seachassem aquilombados, foi V. Maj. servido, expedir a lei de 3 de março de 1741.Representando a V. Maj. os oficiais da Câmara desta cidade que aquela lei se devia tambémobservar neste Estado, impondo-se as penas da dita lei estabelecidas aos escravos que seachassem em mocambos nestes distritos, foi V. Maj. servido por resolução de 30 de maiode 1750, tomada em uma consulta do Conselho Ultramarino, ordenar que se executassetambém aqui a dita Lei, marcando-se os escravos que se achassem nos mocambos; porém,que fôsse inteiramente a proibir e defender que os índios que fôssem apanhados naquelesmocambos, não pudessem de sorte nenhuma ser marcados como os pretos, comotudo consta de uma Provisão do Conselho Ultramarino, datada de 12 de maio de 1751.

Esta pena que V. Maj. não foi servido se impusesse aos índios que se achavamnaqueles Mocambos, e que ficaram indenizados dela pela mesma lei, a venho aqui acharpraticada como um excesso escandaloso e ímpio.

É costume, na maior parte dêsses moradores, que fugindo alguns dêstes índios,a quem êles chamam escravos, ou fazerem-lhes outro qualquer deito que a êles lhes pareça,mandarem-nos amarrar e com um ferro em brasa, ou com uma lanceta, abrirem-lhes comtiranía o nome do suposto senhor no peito, e como muitas vêzes as letras são grandes, épreciso escreverem-se duas regras, cujo tormento sofrem os miseráveis índios sem remédiohumano.

Logo que vi o primeiro com êste tirano, infame e escandaloso letreiro nopeito, me fêz o horror e a impressão que devera; e querendo mandar proceder contra osuposto senhor que lho mandou pôr, achei que era morto. Entrei depois a ver tantos, einformaram-me que isto era uma coisa mui ordinária, a qual, sendo tão notória a nãoestranharam nunca, nem defenderam os governadores ou ministros, sendo-lhes aliás presentee notório.

Para que os povos se não persuadissem a que eu também dava consentimentopara se continuar êste escandaloso delito, entrei não só a estranhá-lo, mas a mandar vir àminha presença todos aquêles índios que tem sido possível achar com os tais letreiros, esendo muitos dêles livres, se achavam em poder de seus supostos senhores, sem mais títulode escravidão que a violência com que nela eram detidos, aos quais logo lhes mandeideclarar a liberdade.

Aos outros que tinham escravidão titulada ou à parte, ou conforme o mododa terra, legítima, mandei que se suspendesse na escravidão titulada, até pôr êste fato na realpresença de V. Maj.; por capacitar estas gentes que ainda que na verdade fôssem seusescravos aquêles índios, nunca podiam ter aquela iníqua liberdade, principalmente tendo leiexpressa que lho defenda.

Não mandei ter com êles outro procedimento, porque se entrasse a devassarou a tomar outro qualquer conhecimento nesta matéria, seriam os culpados mui poucomenos que os moradores, e como o dano é tão geral me pareceu, por ora, estranhá-lo eevitá-lo quanto na mesma possibilidade que se não continue, fazendo compreender a estagente o absurdo que cometem.

Êste costume teve princípio no indiscreto zêlo de um dêstes Cabos de Tropasque se mandavam ao sertão a resgatar ou cativar índios. Não querendo que se lhe trocassemos que pertenciam à Fazenda Real, os mandou marcar a todos, e como êstes povos viram

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Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 2

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Divisão e Estado militar da Província

Toda a Província se divide em doze distritos militares: Alcântara, Aldeias Altas(ou Caxias), Brejo, Guimarães, ilha de São Luís do Maranhão, Itapicurumirim, Iguará, Miarim,Pastos Bons, Tutóia e Viana. Cada um tem comandante geral militar responsávelimediatamente ao governador, e aquele o são os comandantes parciais dos distritos. Esteindispensável estabelecimento é geral por todo o Brasil, porém a sua criação na Provínciado Maranhão não consta; entretanto, há muitas ordens que se referem à sua existência,como o aviso de 21 de março de 1810, que manda remeter a relação dos comandantes, euma Provisão de 2 de agosto do mesmo ano, que determina "que nos distritos em quehouvessem coronéis de milícias, fossem estes os comandantes". Havendo dúvidas sobrequal era a sua autoridade, e daqui podendo resultar obstáculos ao serviço e grandes abusos,lhes foi dado, em 24 de janeiro de 1820, pelo general da Província, um regimento em quese lhes marcava a linha de suas atribuições, que consistem em policiar o distrito, evitarroubos de gado, perseguir os negros fugidos e fazer respeitar as autoridades civis. Comotudo que são fatos e estado das cousas aqui pertence, não devemos omitir que, por falta deum bem combinado sistema de comandantes, até 1819 eram imensos os vadios e desertoresque, sem receio de quem os perseguisse, vagavam pelo interior da Província; os quilombos

êste exemplo e são ignorantes em sumo gráu, entraram a imitá-lo, excedendo o quanto vaide uma marca a um nome inteiro.

Como êste pernicioso costume se tinha difundido na maior parte dêstesmoradores, e seja impossível castigar um povo inteiro, mas também não sendo justo que seconsinta que continuem a tiranizar os índios, me parecia que sendo V. Maj. servido, mandasseaqui publicar uma lei em que defendesse que ninguém pudesse pôr semelhantes letreiros,nem ainda marcas, e que, quanto ao passado, depois de lhes estranhar a tirania com que sehouveram, se servisse V. Maj. de lhes perdoar o crime e relevá-los da pena em que pelosditos crimes tinham incorrido; pondo em inteira liberdade os índios que se achassem comoos ditos letreiros, e ordenando a tôda a pessoa que possuir algum dos ditos índios o venhamanifestar à Secretaria dêste Govêrno, em certo tempo que me pareceria o de quatromêses, e findo êle, se se achar algum em cativeiro ou que não fôsse manifestado, incorressea pessoa em cujo poder se achasse, nas penas que a V. Maj. parecerem justas em semelhantecaso. V. Maj. mandará o que fôr servido. Pará, 16 de novembro de 1752.

A Amazônia na Era Pombalina. Correspondência Inédita do Governador e Capitão-

General do Estado do Grão Pará e Maranhão Francisco Xavier de Mendonça Furtado

(1751 - 1759). Org. Marcos Carneiro de Mendonça. Rio de Janeiro: Instituto Histórico eGeográfico Brasileiro, 1963, 1º Tomo, p. 304-306.

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Alfredo Wagner Berno de Almeida

"( . . . )Desapparecendo esta aldêa, desde 1811 principiaram a formar-se denovo alguns quilombos, à imitação dos que existiram em éras mais remotas, e queobrigaram o governo da metrópole a expedir o alvará de 3 de Março de 1741, ondecom bastante horror ainda lemos estas disposições: "Como os negros fugidos, que vivemem quilombos, e se chamam vulgarmente calhambolas, são azados a commetter muitoscrimes, logo que forem apprehendidos nos quilombos, se lhes imprima a marca – F –com um ferro em brasa, que para isso haverá na camara. E, se na occasião de executar-se esta pena fôr o escravo já achado com a marca sobredita, se lhe cortará uma orelha,procedendo-se em tudo por simples mandado do juiz de fóra, ou do ordinario da terraou do ouvidor da comarca, sem processo algum, e só pela notoriedade do facto, logoque o escravo fôr trazido do quilombo, e ainda antes de entrar para a cadêa."

Continuemos.

Organisados ahi esses quilombos, estenderam seus dominios às

comarcas de Alcântara e Vianna, pondo assim em risco a propriedade e segurançaindividual dos seus habitantes tornando inaccessiveis terrenos, aliás fertilissimos e apropriadosá várias especies de cultura.

Depois da perseguição e grande destruição que n'elles fez em 1853 o capitãoGuilherme Leopoldo de Freitas por ordem do Dr. Eduardo Olympio Machado, quandopresidente d'esta província, viviam elles estabelecidos em povoações mais ou menos

regulares entretendo relações com os regatões ou com a gente dos povoados, ou

então vivendo isolados em ranchos situados nas clareiras dos bosques, evitando

cautelosamente todo o contacto com a gente de fóra, e cuidando exclusivamente

dos trabalhos da agricultura.D'esta especie de paz e de ordem, quando menos se esperava sahiram os

quilombos em 8 de Julho d'esse anno, como participou o juiz de direito interino da comarcade Vianna.

de negros fugidos eram tantos e tão grandes que, em um, no distrito de Alcântara, conhecidopor quilombo dos pretos de Viveiros, existiam 14 fugidos, tendo relações com outrosmuitos e até já entrincheirados, que foi necessário ir tropa extingui-los; outro era na Fazendadas Mercês, composto de 17, além de muitos deles, espalhados pelas matas, e que serviamde ponto de reunião aos que fugissem; males que são do maior estorvo à agricultura, naqual somente escravos se empregam. Multiplicavam-se impunemente os roubos de gado,mas hoje tudo cedeu à vigilância, e a esta polícia militar". [sic]

PEREIRA do LAGO, A.B. Estatística histórico-geográfica da Província do Maranhão.

São Paulo: Ed. Siciliano, 2001, p. 27-28 [1 ed. 1822].

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Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 2

Sentimos não apresentar este e outros documentos, porque não nos foipermittido o copial-os, por serem factos recentes e ainda dependentes de decisões.

Abandonando os escravos fugidos em numero de oitenta a cem o quilombo

S. Benedicto do Céo, escondido nos matos do Tury-assú, invadiram as fazendas SantaBarbara, S. Ignacio e Timbó, e a villa nova de Anadia, causando com isto muito susto epavor, e praticando a rapina e outros attentados, menos, porém, o assassinato.

Chegaram estas noticias à capital já com vulto muito augmentado, como bemse póde imaginar.

Comtudo era necessario destruir a nuvem negra que ameaçava toldar os lindoshorizontes do céo maranhense.

Era preciso destruir esta cruel e assustadora ameaça à tranquillidade publica,da qual podiam seguir-se funestissimos resultados.

Nos dias 13 de Julho, depois de dez horas do recebimento d'estas noticias, oExm. Sr. Dr. Franklin Doria fez seguir em viagem extraordinaria um vapor da CompanhiaMaranhense de Navegação Fluvial. Levou vinte soldados do corpo da policia para reforçaro destacamento de quarenta praças ahi existente.

Deu autorisação para que alli fossem destacadas mais cem praças da guardanacional.

Elevado assim a cento e sessenta o numero de soldados, estava creado umbom contingente para fazer frente a esta horda de cannibaes.

Não descuidou-se a presidencia de dar outras ordens, de prevenir certosacontecimentos, de traçar, para assim dizer, o plano do cerco, do ataque e da destruiçãodos quilombos". [sic]

MARQUES, Cesar Augusto. Memória Histórica da Administração Provincial do Maranhãopelo Bacharel Franklin Américo de Menezes Doria (1867). In: Revista Trimensal do

Instituto Histórico, Geográfico e Ethnográfico do Brasil. Tomo XLI. Parte Segunda.Rio de Janeiro: Typ. de Pinheiro & C., 1878, p. 5-69.

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Alfredo Wagner Berno de Almeida

Terra da pobreza

Certidão

Usando das atribuições que me são conferidas por Lei, certifico a requerimentoverbal de pessoa interessada que revendo o Arquivo de Cartório, do 1º Ofício ao meucargo foi encontrado um documento com o teor seguinte: Exmº. Sr. Dr. Juiz Municipal doTermo de Alcântara. José Manuel Azevêdo, morador no logar Retiro, districto de São Joãode Cortes, termo desta cidade vem perante este juizo protestar contra a demarcação extra-judicial, que suas terras denominadas de – “Matto Grosso” – pretende mandar proceder ocidadão Virgilio Esterlino de Azevêdo morador do mesmo districto o logar Canelatiua,pelos ponderosos motivos que passa a expor. Há tempos immemoriaes que o finadoThiophilo José Barros, em uma das cláusulas de seu testamento legou à gente pobre de SãoJoão de Cortes um légua de terra quadrada, que desde então ficou denominada – “Terrada Pobreza” –, para nella se estabelecerem os pobres e suas famílias cultivarem-na, goza-lae tirarem d’ella os fructos para seu sustento e manutenção. Este trecho de terra é o em quese acham hoje situados os povoados – Retiro, Canelatiua, Araray, Uru, Uru Mirim, Rio deIgnacio e Santo Antonio, com 65 casas, habitadas por uma população pobre, a qual comsuas famílias se ocupa no serviço de pequena lavoura; sendo que alli se acham domiciliados,vindo de seus antepassados, há mais de cem (100) annos. Místicas à terra da “Pobreza”jazem as denominadas de “Matto Grôsso” outrora de um Fernão Troça, já há muitofallecido e hoje divididas em 5 quinhões, dos quais é Esterlino Azevêdo possuidor de umpor compra feita a Dr. Urraca Prado. Ora, como fica acima dito a “Terra da Pobreza” éeffectivamente habitada por gente pobre, secularmente, desde os seus maiores, sem que atéhá pouco tivessem sido perturbados em sua posse. Desde, porém que Virgilio Esterlino deAzevêdo se estabeleceu nas terras do “Matto Grosso”, que começou de fazer àquelles pacíficosvizinhos exigências dezarrazoadas e impertinentes as quaes lhe não assiste a menor partícula dedireito; e ultimamente tem tido estulta verleidade de prohibir que o protestante roce na terraque occupa desde que nasceu sendo que já conta 52 annos de idade. E como não haja logradoa sua pretensão, tem contractado um agrimensor para demarcar extra-judicialmente as terrasde “Matto Grosso”, como si todas estas lhe pertencessem. Como, porém o protestante tema certeza de que, com este insidioso procedimento, o protestante não visa se não esbulha-lo ea muitos moradores da “Terra da Pobreza”, de sua posse mansa, pacífica e nunca contestada;e, outrossim, por que não concorda e sabe que nenhum morador acima referido concordacom essa demarcação extrajudicial, vem perante V. Exª. contra ella protestar, e pelos prezuisosque d’ahi possam advir. E, assim protestando, como protestado fica, requer a V. Exª. queautoada, seja tomado por termo o presente protesto, para os effeitos legaes; intimado elle aoprotestado. Nestes termos, pedindo que seja distribuido ao Escrivão Freire de Lemos G.R.M.Alcântara a 15 de Janeiro de 1915. José Manoel de Azevêdo.

Despacho: “Ao Escrivão Freire Lemos. A. Tome-se por termo, dando-se ciencia a Virgilio Esterlino de

Azevêdo, Alcântara, 16 de Janeiro de 1915. Lustosa de Freitas”. Está conforme o original que me reporto

e dou fé. Eu Maria Benedita Moraes Dias, Escrivã Substituta que datilografei e subscrevo.

Alcântara, 16 de Outubro de 1979.

Cynthia Martins no caminho de acesso a Brito

Exposição de fotos

Reunião em Ladeira

Moradores do povoado de Peroba de Cima

Sr. Leonardo dos Anjos ao lado de moradores de Brito

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Em diferentes situações, os quilombolas debatem o mapa da Terra dos Quilombos

Pedras de Rumo: acima, a que dista 100m das cabeceiras do igarapé Ticara; abaixo, a que separa SãoRaimundo de Timbotiua e Lajiba

Dona Cintia Sebastiana Serejo, do povoamento de Itapera, indo a Britorecarregar bateria

Sr. Samuel Araújo Morais, Presidente do STR

Sr. Domingos Ramos Ribeiro, do povoamento Canelatiua

Sr. Raimundo de Jesus Pereira

Sr. Manuel Alves de Oliveira (Manuelão), do povoado Santa Maria

Carvão empilhado em cestos de palha aguardandotransporte para porto

Tecendo palha, em Santo Inácio

Girau com temperos e ervas medicinais. Povoado de Peroba de Baixo

Sr. Manuel limpando peixe pescado de madrugada

Farinhada em São Raimundo

Casa de forno no povoado de Jarucaia. Ao fundo, o Sr. Manuel Amaral

Sr. Inaldo com feixe de maniva para plantio

Reunião com Sr. Pedro

Sá Coelho e Alfredo Wagner

Sr. Pedro Sá com entrevistadores Aniceto Cantanhede e Patrícia Portela (acima)e Alfredo Wagner (abaixo)

Trabalho de delimitação das “Terras de Quilombo” de Alncântara

Equipe de trabalho

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Reunião em casa do Sr. Manoel Diniz

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