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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS CURSO DE SERVIÇO SOCIAL OS SENTIDOS DO ABOLICIONISMO PENAL NA REALIDADE BRASILEIRA: racismo estrutural e perspectivas do sistema penal. NATAL/RN 2021

OS SENTIDOS DO ABOLICIONISMO PENAL NA REALIDADE …

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Page 1: OS SENTIDOS DO ABOLICIONISMO PENAL NA REALIDADE …

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS

CURSO DE SERVIÇO SOCIAL

OS SENTIDOS DO ABOLICIONISMO PENAL NA REALIDADE

BRASILEIRA: racismo estrutural e perspectivas do sistema penal.

NATAL/RN

2021

Page 2: OS SENTIDOS DO ABOLICIONISMO PENAL NA REALIDADE …

MARIANE JOYCE FERREIRA SARAIVA

OS SENTIDOS DO ABOLICIONISMO PENAL NA REALIDADE BRASILEIRA: racismo

estrutural e perspectivas do sistema penal.

Monografia apresentada ao curso de

graduação em Serviço Social, da Universidade

Federal do Rio Grande do Norte, como

requisito parcial à obtenção do título de

Bacharel em Serviço Social.

Orientadora: Profa. Dra. Tassia Rejane

Monte dos Santos

NATAL/RN

2021

Page 3: OS SENTIDOS DO ABOLICIONISMO PENAL NA REALIDADE …

Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN

Sistema de Bibliotecas - SISBI

Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro Ciências Sociais

Aplicadas – CCSA

Elaborado por Eliane Leal Duarte - CRB-15/355

SARAIVA, Mariane Joyce Ferreira.

Os sentidos do abolicionismo penal na realidade brasileira: racismo

estrutural e perspectivas do sistema penal / Mariane Joyce Ferreira Saraiva. -

2021.

64f.: il.

Monografia (Graduação em Serviço Social) - Universidade Federal do Rio

Grande do Norte, Centro de Ciências Sociais Aplicadas, Departamento de

Serviço Social. Natal, RN, 2021.

Orientadora: Profa. Dra. Tassia Rejane Monte dos Santos.

1. Abolicionismo penal - Monografia. 2. Sistema penal - Monografia. 3.

Encarceramento - Monografia. 4. Criminologia Crítica - Monografia. 5.

Racismo - Monografia. I. Santos, Tassia Rejane Monte dos. II. Universidade

Federal do Rio Grande do Norte. III. Título.

RN/UF/Biblioteca CCSA CDU 343.81

Page 4: OS SENTIDOS DO ABOLICIONISMO PENAL NA REALIDADE …

MARIANE JOYCE FERREIRA SARAIVA

OS SENTIDOS DO ABOLICIONISMO PENAL NA REALIDADE BRASILEIRA: racismo

estrutural e perspectivas do sistema penal.

Monografia apresentada ao curso de graduação

em Serviço Social, da Universidade Federal do

Rio Grande do Norte, como requisito parcial à

obtenção do título de Bacharel em Serviço

Social.

Aprovada em: 09/09/2021

BANCA EXAMINADORA

______________________________________

Profa. Dra. Tassia Rejane Monte dos Santos

Orientadora

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

______________________________________

Profa. Dra. Rayane Noronha Oliveira

Membro Interno

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

______________________________________

Profa. Dra. Janaiky Pereira De Almeida

Membro Interno

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

Page 5: OS SENTIDOS DO ABOLICIONISMO PENAL NA REALIDADE …

RESUMO

O presente trabalho tem como objetivo geral discutir o abolicionismo penal como uma

estratégia política fundamental na luta contra a barbárie estrutural do capitalismo maduro,

especialmente na tradição genocida presente nas realidades periféricas, como o Brasil. O

sistema penal brasileiro possui nuances contraditórias na sua concepção sócio-jurídica, que

reproduz na sua legitimação social aspectos da desigualdade e da violência estrutural e

institucional. Dessa forma, este trabalho faz uma crítica ao sistema penal brasileiro, ao tratar

sobre os seus mecanismos de seletividade, punição e genocídio frente às classes trabalhadoras

e subalternas, bem como identifica os princípios baseados na ideologia racista nas instituições

hegemônicas. Além da crítica ao sistema penal, possui como intuito realizar uma breve

discussão sobre a criminologia, traçando um viés crítico, com a introdução do marxismo e a

necessidade de tratar o racismo como uma discussão primária ao debate de criminologia crítica

brasileira. Tratando ainda da criminologia crítica, é enfatizado a luta abolicionista apresentando

algumas formas de estratégias de alguns pensadores e autores do abolicionismo penal.

Palavras-chave: Abolicionismo penal, sistema penal, encarceramento, criminologia

crítica, racismo.

Page 6: OS SENTIDOS DO ABOLICIONISMO PENAL NA REALIDADE …

ABSTRACT

This work has as main objective to discuss the penal abolitionism as a key political

strategy in the fight against structural barbarism of mature capitalism, especially in the

genocidal tradition present in peripheral realities, such as Brazil. The Brazilian penal system,

has conflicting nuances in their socio-legal conception, which reproduces on their social

legitimacy aspects of inequality and structural and institutional violence. Thus, the document

criticizes the Brazilian penal system, dealing with their mechanisms of selectivity, punishment

and genocide against the working and subaltern classes, as well identifying the principles based

on racist ideology in the hegemonic institutions. In addition to the criticism of the penal system,

it’s intended to carry out a brief discussion on criminology, outlining a critical bias, with the

introduction of Marxism and the need to treat racism as a primary discussion in the Brazilian

critical criminology debate. Still dealing with the critical criminology, is emphasized the

abolitionist fight, presenting some forms of strategies of some authors of penal abolitionism.

Keywords: Penal abolitionism, penal system, incarceration, critical criminology,

racism.

Page 7: OS SENTIDOS DO ABOLICIONISMO PENAL NA REALIDADE …

SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO .................................................................................................. 8

2. ASPECTOS HISTÓRICOS DO SISTEMA PENAL NA REALIDADE

BRASILEIRA ......................................................................................................................... 11

2.1 RACISMO ESTRUTURAL E O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL................................ 11

2.2 O SISTEMA PENAL BRASILEIRO E A REPRODUÇÃO DA VIOLÊNCIA ESTRUTURAL .. 14

2.3 A VIOLÊNCIA COMO POTÊNCIA IDEOLÓGICA E ECONÔMICA ............................... 25

3. A CRIMINOLOGIA COMO INSTRUMENTO DE DOMINAÇÃO .......... 35

3.1 A CRIMINOLOGIA COMO FORMA DE CONTROLE SOCIAL ............................................ 35

3.2 A CRIMINOLOGIA NA DOMINAÇÃO PERIFÉRICA.......................................................... 38

3.3 BREVE DISCUSSÃO SOBRE A CRIMINOLOGIA BRASILEIRA ........................................... 41

4. O ABOLICIONISMO PENAL NA TRADIÇÃO DAS LUTAS SOCIAIS

ANTICAPITALISTAS ........................................................................................................... 45

4.1 ABOLICIONISMO PENAL: ASPECTOS HISTÓRICOS E TEÓRICOS .................................... 45

4.2 PERSPECTIVAS POLÍTICAS DAS ESTRATÉGIAS ABOLICIONISTAS .................................. 49

4.3 O ABOLICIONISMO PENAL NA REALIDADE BRASILEIRA ............................................... 55

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................... 60

6. REFERÊNCIAS ................................................................................................... 62

Page 8: OS SENTIDOS DO ABOLICIONISMO PENAL NA REALIDADE …

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1. INTRODUÇÃO

O presente documento consiste em um trabalho de conclusão de curso como requisito

parcial exigido para obtenção do Título de Bacharel em Serviço Social na Universidade Federal

do Rio Grande do Norte. Trata-se de um trabalho que possui como temática central tratar o

abolicionismo penal como uma forma de intervenção ao sistema penal brasileiro e suas

estruturas de opressão. O abolicionismo penal ganha potência na década de 1970, juntamente

com os movimentos antiprisionais. É um movimento que precisa ser mais amplamente discutido

e democratizado, para que se tenha o entendimento de que o sistema penal não é o caminho que

irá nos trazer segurança e que sua atuação advém de interesses que nada se relacionam com a

segurança social. Dessa forma, apresenta-se o movimento abolicionista penal como forma mais

incisiva de intervenção ao sistema penal brasileiro, que historicamente até sua presente prática

possui objetivos de criminalizar e matar determinados corpos, além de ser um sistema movido

pela engrenagem racista.

Para a construção do documento foi realizada uma pesquisa bibliográfica usando a

metodologia de revisão bibliográfica da fundamentação teórica do abolicionismo penal. Foi

desempenhada através de pesquisas bibliográficas de livros, teses, publicações de revistas e

artigos que fazem uma análise crítica do movimento abolicionista penal e suas práticas diante

do sistema penal. Além de ter usado dados quantitativos para fundamentar as análises

qualitativas realizadas em pontos julgados necessários. A seleção dos autores foi baseada

principalmente com foco em autores e autoras brasileiras e que trouxessem a realidade brasileira

de forma crítica. Além, de protagonismo brasileiro, foi necessário a escolha de alguns nomes

clássicos do abolicionismo penal internacional, para fortalecer a linha de pensamentos exposta

no presente trabalho.

A escolha da temática vem de uma aproximação ao longo da graduação, influenciada

principalmente por espaços de estudos e debates em que me inseri ao longo do processo

formativo. Após vir de um processo de pesquisa sobre criminalização da pobreza no

capitalismo, o meu primeiro contato direto com o abolicionismo penal foi através de um estudo

sobre as obras da Angela Davis. Após esses estudos, decido me aprofundar um pouco mais na

temática abolicionista, principalmente com o intuito de conhecer autoras e autores brasileiros

que tratassem do abolicionismo penal na realidade brasileira. Esse documento possui os meus

primeiros contatos com a temática, e é um trabalho com questões básicas para entender o

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9

abolicionismo penal em âmbito brasileiro e para que deseja ter o primeiro contato com a

temática.

O documento se organiza em três capítulos, divididos em subtópicos. Possui como

objetivo apresentar o movimento abolicionista penal e o quão é uma luta urgente e necessária

para os grupos que são diretamente vítimas das reais atribuições do sistema penal brasileiro.

Como também uma temática sedenta de mais discussões na academia e nos espaços de

educação popular.

O primeiro capítulo aborda uma breve discussão do racismo estrutural brasileiro e seu

modo de operar de forma velada através do mito da democracia racial. Trabalha o contexto

sócio-histórico do sistema penal brasileiro em sua fase de Colônia, Império, República e

contemporaneidade em contexto de ascensão do neoliberalismo, para sedimentar e explanar as

origens e manutenção racista e de contenção social de povos que historicamente não tiveram

efetivamente integração social e seguem sendo alvos de criminalização e punição. É feito um

debate sobre as formas de genocídio da contemporaneidade, explicitando que não é apenas o

ato de matar diretamente que se enquadra como genocídio, como também várias outras formas

de violações de direitos que determina a degradação e a morte lenta dos indivíduos. Nesse

debate de variadas formas de genocídio é dado ênfase ao contexto em que o trabalho foi

produzido de crise sanitária em decorrência da COVID-19, onde indivíduos de territórios

periféricos, com dificuldade de acesso aos direitos vitais, a exemplo de saúde e estruturas de

isolamento social e condições de higienização, como também indivíduos que estão inseridos

em trabalhos precarizados e principalmente os corpos que se encontram encarcerados em

estruturas precarizadas e submetidos a condições subumanas. Além de refletir no processo de

negligência em que o governo neoliberal, negacionista bolsonarista1 está lidando com a

pandemia, negligenciando, mais intensamente os indivíduos que estão inseridos no cárcere do

sistema penal em condições subumanas, criminalizados e que não possuem a mínima atenção

da sociedade, e está diante de um governo federal que defende o punitivismo, o armamentismo

1 O bolsonarismo, tem como prática a omissão de fatos históricos, afirmativas históricas que não possui

nenhuma comprovação documental, fazendo distorções factuais, criando e sedimento ideologicamente

uma versão dos fatos em favorecimento de um ideal ditatorial e opressor abertamente defendido pela

figura do Bolsonaro e seus apoiadores. Em contexto pandêmico, o mesmo tem negado fatos científicos,

alimentando um movimento antivacinas.

Page 10: OS SENTIDOS DO ABOLICIONISMO PENAL NA REALIDADE …

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da população, e a massificação de uma falsa moralidade do “cidadãos de bem” e da

criminalização da pobreza.

O segundo capítulo possui como objetivo discutir a criminologia como um instrumento

técnico, cuja fundamentação teórica positivista tende à função ideológica de criminalizar

determinados indivíduos de acordo com os interesses das classes dominantes. O capítulo traz

uma breve discussão da inserção de correntes filosóficas que modelam os caminhos da

criminologia positiva e suas diferentes abordagens acerca da criminalização, além de

apresentar, como contraponto, a discussão da criminologia crítica, através do pensamento

marxista. Em contexto histórico do sistema penal brasileiro é discutido que a criminologia

crítica brasileira se referencia não somente à luta de classes como objeto principal, mas também

a questão de raça como fator primário para tratar a criminalização no Brasil.

Já no terceiro capítulo é feita uma abordagem acerca do movimento abolicionista

penal, onde busquei desnudar os estereótipos do senso comum sobre o abolicionismo penal ser

apenas uma forma imediata de acabar com todas as prisões e com o controle social, onde nossa

realidade voltaria ao "olho por olho, dente por dente". O capítulo apresenta como o movimento

abolicionista é e deve perpassar por todos os segmentos de lutas anticapitalistas e de garantia

de direitos e igualdades; além de trazer estratégias de intervenções concretas que estão

diretamente ligadas ao movimento abolicionista diante da realidade do racismo estrutural e

sistema penal brasileiro.

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2. ASPECTOS HISTÓRICOS DO SISTEMA PENAL NA REALIDADE

BRASILEIRA

2.1 RACISMO ESTRUTURAL E O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL

Em meados da década de 20, surge e firma-se no Brasil um dos mecanismos

ideológicos mais bem-sucedidos no processo de resguardo ao racismo estrutural-institucional.

Trata-se do ideário da democracia racial, que fora difundida para o povo brasileiro de uma

forma profundamente competente.

É pregada a imagem de uma nação que goza da harmonia entre povos, onde

preconceitos não existem e impera a pluralidade cultural. Tal retrato, entretanto, nada mais é

que uma concepção de elites brancas, criada para atender benefícios e interesses próprios, afim

de ocultar a face do racismo e do genocídio negro que baseou a construção do país.

O mito da democracia racial, além de ocasionar o apagamento da história cruel

e desumana do povo negro escravizado, também deslegitima as populações negras,

consubstanciando a realidade desse povo apenas a uma condição de classe, suprimindo a

histórica circunstância da negação aos povos afro-brasileiros à integração social.

Nesse sentido, Nascimento (2019, p. 6) relata alguns efeitos dessa “democracia

racial”:

Com efeito essa destruição coletiva tem conseguido se ocultar da observação

mundial pelo disfarce de uma ideologia de utopia racial denominada

"Democracia racial", cuja técnica e estratégia têm conseguido, em parte,

confundir o povo afro-brasileiro, dopando-o, entorpecendo-o interiormente;

tal ideologia resulta para o negro num estado de frustração pois que Ihe barra

qualquer possibilidade de auto-afirmação com integridade, identidade e

orgulho.

A prática de reduzir os problemas do país às questões de classes é um equívoco, e tal

ato resta evidenciado no fato de que, dentre as populações em situação de vulnerabilidade

social, inseridas em subempregos e/ou vivendo em favelas e condições precárias nas zonas

rurais, afro-brasileiros permanecem sendo parte majoritária.

No entanto, como é possível uma discussão avançada da realidade material que

o racismo incide, e como trazer esta discussão para uma população inteiramente educada a

acreditar que vive em um país de harmonia entre todas as raças? Velar este racismo e negar o

caráter racial que integra cada expressão da questão racial tem sido uma prática eficaz para

deslegitimar qualquer luta e denúncia em âmbito racial, além de individualizar o racismo, como

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se este fosse algo pertencente à alguns poucos indivíduos em particular, não representando a

nação e o Estado.

Contudo, é justamente nesta esfera de “inexistência” do racismo que o sistema

penal brasileiro encontra os meios necessários para o domínio e criminalização de seletos

grupos, vítimas do capitalismo periférico comandado por uma elite hegemonicamente branca.

É um processo que expõe o trajeto histórico e de continuidade à um sistema escravocrata de

dominação.

Sobre o apagamento da história de exploração dos negros africanos no processo

econômico do Brasil, e singularização do racismo em nossa sociedade:

Assim, como donos do passado, num monopólio autoral em que não cabe a

versão dos dominados, foi possível ao segmento branco forjar os processos de

naturalização que fariam da interiorização da supremacia branca e da

subordinação negra o grande legado do nosso racismo. Diante de tal narrativa

restou aos negros somente o presente. Um presente sem causas, só de

conseqüências. E como já não fosse permitido empregar o vocabulário da raça,

agora subsumido na classe, o projeto da democracia racial acabou por

obstaculizar qualquer tentativa de recuperação da trajetória histórica de todo

um segmento. (FLAUZINA, 2006, p. 38)

Portanto, é necessário pensar em todo o processo de escravização e tráfico dos povos

negros africanos que foram arrancados de suas terras de forma brutal, vítimas de extermínio,

tortura, estupros. Não obstante, ao chegar nas colônias foram obrigados a viver em condições

subumanas, e à trabalho compulsório, tratados como animais. Neste sentido, ao analisarmos o

Brasil Colonial, é nítido que o processo de escravidão aos negros foi um dos mais violentos e

demorados, e que até mesmo o processo de abolição carregava em si outros objetivos, como a

retirada de responsabilidade dos senhores de escravos sobre a população negra. O fato é que o

país não os proporcionou uma liberdade plena, haja vista a falta de integração social para este

povo negro, que apenas passaram a ser criminalizados e dominados no âmbito público.

É disseminada a ideia de uma “democracia racial”, porém, esta coexiste com um

aparato de instituições, cujos instrumentos são pautados no racismo. Na realidade dos afro-

brasileiros, há as mais diversas formas de genocídio.

Diante desse processo de constituição do Brasil, é justa a equiparação com as barbáries

do regime nazista na Alemanha; porém, não possui o mesmo choque e comoção na consciência

do mundo. A proposta de equiparar dois grandes momentos de horror na história da humanidade

não é com o intuito de diminuir um sobre o outro, apenas de afirmar que um desses momentos

deveria ter a mesma comoção que o outro, é como se o “mal” que caiu sobre os povos africanos

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e suas realidades em decorrência desse processo brutal fosse secundarizado. A realidade dos

povos afro-brasileiros no Brasil segue submetidos a um país profundamente racista e com

práticas de extermínio dessa população. Nascimento (2019, p. 48) comenta sobre a

“emancipação que também significou mais violência e mais genocídio:

Se a escravidão significou crime hediondo contra cerca de 300 milhões de

africanos, a maneira como os africanos foram "emancipados" em nosso país

não ficou atrás como prática de genocídio cruel. Na verdade, aboliram

qualquer responsabilidade dos senhores para com a massa escrava; uma

perfeita transação realizada por brancos, pelos brancos e para benefício dos

brancos.

Dessa forma, esta dita “democracia racial” proporciona que a supremacia branca

do Brasil se materialize através de uma violência oculta, insidiosa e difusa, mas de alto teor

destrutivo. Dessa forma, apesar de distinguir-se de alguns outros países, cujas legislações em

determinados momentos históricos deram legitimidade à tais fenômenos – à exemplo de

Estados Unidos, com as conhecidas leis de Jim Crow, e o Apartheid na África do Sul – os

resultados dessa supremacia branca é o que expõe a periculosidade (NASCIMENTO, 2019).

Pensar o racismo apenas como uma algo ideológico não seria uma contemplação

suficiente para a complexidade de como o racismo de insere na realidade brasileira, que estar

para além de uma concepção individualista da consciência. Porém, ao pensar o racismo como

algo estrutural da sociedade e das instituições que a compõe, veremos que a ideologia do

racismo atua no inconsciente, pois mesmo que você seja um indivíduo dotado de consciência,

a sociabilidade em que estamos inseridos, seja historicamente, politicamente, culturalmente nos

insere em uma organização racista, porém somos inconscientes trabalhados com a naturalização

do racismo velado nessa organização.

Somos o tempo todo alimentados com uma estrutura racista em todos os âmbitos, no

sistema educacional sem representatividade negras, estudando autores brancos, contando a

história dos brancos por professores brancos, como também nos programas televisivos, em

âmbito cultural e as instituições da sociedade, com ênfase no sistema de justiça, onde os lugares

atribuídos as pessoas negras são de lugares de pouca valorização social, econômica, moral e

estigmatizada. Então sim, o racismo é sim ideológico, temos essa visão clara ao pensar em

negros em uma posição de opressor, a exemplo de policiais negros, oprimindo outros indivíduos

negros. Porém, é uma ideologia que alimenta o inconsciente e principalmente materializada

através de “práticas sociais concretas” (ALMEIDA, 2019). A partir do momento em que as

instituições usam a ideologia racista e sedimenta o imaginário da sociedade essa linha de

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pensamento “natural”, logo todos estão submetidos a esse tipo de organização social ideológica

e estrutural sejam brancos e negros.

2.2 O SISTEMA PENAL BRASILEIRO E A REPRODUÇÃO DA VIOLÊNCIA

ESTRUTURAL

O projeto de punição e opressão do Brasil começa historicamente no período colonial.

As punições nascem e perduram por vários períodos em âmbito privado, ou seja, entre os

senhores e seus escravos.

As Ordenações Filipinas2 podem ser consideradas as primeiras implementações de

junção de programações criminalizantes em esfera pública no contexto colonial, e, mesmo com

esse aparato público, as punições continuaram sendo de domínio privado dos senhores

escravocratas e os corpos negros. No entanto, o novo mecanismo público demonstrou-se uma

eficaz junção com o privado.

Para Flauzina (2006), dois pontos a serem ressaltados desse período de conciliação

entre aparatos punitivos público e privado é que o novo aparelho público foi muito útil para

conter os corpos em dominação, evitando e atuando principalmente nas fugas ou intervindo em

qualquer tipo de organização de resistência do povo negro, como a perseguição e destruição

dos quilombos. Outro ponto importante à se ressaltar, foi a implantação do medo e o poder de

desarticular qualquer organização ou esperança de mudança de realidade, fazendo com que a

população escravizada naturalizasse a condição de submissão à vida de servidão e punição. É

um aparato que se alimenta e dissemina o discurso racista, logo, influenciava indivíduos à

agirem contra seu próprio grupo.

Esta imposição do medo tinha como principal objetivo manter a ordem e a manutenção

do poder dos senhores de engenho, o controle e a submissão dos corpos negros escravizados,

da terra e de continuidade ao sistema de exploração escravocrata (FLAUZINA, 2006).

2 “As Ordenações eram compilações de normas editadas pela Coroa Portuguesa, reunidas sem maior

coerência nem lógica. Seus nomes derivavam dos monarcas que as editavam. As últimas foram as

Ordenações Filipinas ou Código Filipino, de 1603, de Don Filipe I, que substituíram as Manuelinas e

Afonsinas.” VIEIRA, HUGO. 2. As Ordenações Filipinas: o DNA do Brasil. Revista dos Tribunais, [S.

l.], v. RT vol.958 (Agosto 2015), p. 1-7, 16 fev. 2017, p. 2

Page 15: OS SENTIDOS DO ABOLICIONISMO PENAL NA REALIDADE …

15

O período imperialista do Brasil não difere quase nada do período colonial referente a

contenção da população negra. Muito pelo contrário, se comparado aos passos do período

colonialista, o imperialismo traz uma resposta bem mais opressora e aprimorada no que

concerne a exclusão da população negra de qualquer dignidade humana e social. Neste

contexto, houve um temor crescente e generalizado por parte da elite com relação a

possibilidade de ocorrer grandes revoltas e revoluções, que extinguiriam a dominação

hegemônica branca e o sistema de mão de obra escrava.

Esta preocupação abundava em decorrência dos centros urbanos naquele período

serem ocupados e movimentados majoritariamente por negros. Segundo Flauzina (2006, p. 56):

O Rio de Janeiro era, dessa maneira, uma cidade africana. A mesma dinâmica

poderia ser observada em praticamente todos os outros aglomerados urbanos

do país. No dizer de Lélia Gonzalez, “a rasteira está dada, o Brasil está e é

africanizado”. Uma massa negra desgovernada, vivendo à margem da tutela,

com possibilidade de se articular sem maiores resistências, poderia representar

não só o fim de um sistema de exploração de mão-de-obra, mas o fim da

própria hegemonia branca. Assim, era preciso apertar os freios, estreitar ainda

mais o controle sobre os escravizados, não deixando escapar os libertos à

engenharia do controle. É na administração desse momento explosivo da

história que o Império concentra todas as suas energias.

A maior demanda e depósito de forças do sistema imperialista era controlar ao máximo

possível os corpos negros, sejam eles escravizados ou “livres”. Desta forma, a maneira de

controle e estratégia mais eficaz encontrada foi criar um aparato de leis que controlasse qualquer

movimento da população negra, à exemplo da Lei nº 1.420 de 1883, que punia e encarcerava

em situações em que um negro estivesse trafegando pelas ruas a uma certa hora sem nenhum

tipo de autorização do seu senhor (FLAUZINA, 2006).

No entanto, a lei mais emblemática de controle de corpos e privação de qualquer

inserção social é a lei da Vadiagem.3 O ato de criminalizar a situação de vadiar é um dos feitos

que mais transparece o controle e a perseguição do corpo negro, a falta de interesse de uma

inserção social dessa população e a presença estampada do racismo. Os corpos negros que

estavam escravizados sofriam suas punições e controle através do âmbito privado e os corpos

negros “livres” apenas entre as aspas, pois nunca tiveram de fato uma liberdade concreta,

estavam agora submetidos as punições e controle na tutela do Estado.

3 Criminalizada pelo art. 295 do Código Criminal do Império e por várias posturas e leis municipais

Page 16: OS SENTIDOS DO ABOLICIONISMO PENAL NA REALIDADE …

16

É nesse mesmo período, portanto, que começa a engatinhar o autoritarismo e

vigilantismo policial, que hoje conhecemos e convivemos (FLAUZINA, 2006). Por sua vez,

Nascimento (2006, p. 14) comenta sobre o temor da elite em ver uma revolta afro-brasileira

ocorrer e a necessidade de suprimir ao máximo qualquer emancipação desses povos:

Uma possível tomada do poder pelos negros foi sempre um pesadelo

perturbando o sono tranquilo das classes dominantes e governantes do país,

durante todo o decorrer de nossa história. Por isso tornou-se um aspecto básico

na concepção de uma técnica e de uma estratégia para o esmagamento e

desaparecimento completo do negro do mapa demográfico.

Ademais, é de suma importância salientar que no mesmo período houve a grande

necessidade de embranquecimento da nação, sob a aparente justificativa de busca de mão-de-

obra qualificada. Nessa conjuntura, o Brasil dispôs de um grande contingente de trabalhadores

europeus imigrando para os territórios de maiores produções agrícolas no país, e que acabaram

por ocupar trabalhos que antes eram feitos por mão-de-obra escrava. Concomitante a isto, agora

há uma população negra, de ex-escravos, rejeitada a ocupar um trabalho assalariado.

Logo, diante da negativa da população negra à inserção na classe trabalhadora, a

afirmativa de que seria necessário mão-de-obra qualificada demonstra não possuir o mínimo de

coerência, haja vista que esta mesma população negra foi a principal responsável na edificação

da colônia e futuro país. Havia-se, na realidade, o pensamento de que o embranquecimento

predominaria no processo de miscigenação dos povos. Nascimento (2019, p. 10) relata uma

lembrança pessoal muito nítida da chegada da mão de obra europeia, tão bem recebidos e

providos de vários incentivos, mesmo que em outro período da história de nosso país:

Tempos atrás, durante o transcurso de minha infância e adolescência, comecei

a testemunhar o fenômeno que vem ocorrendo desde os fins do século XIX:

ou seja, a invasão do pais por levas e levas de trabalhadores brancos vindos

da Europa, com apoio de seus governos de origem, além da ajuda financeira e

outras facilidades dispensadas pelos governos do Brasil. Ao mesmo tempo

que isto acontecia, a enorme força de trabalho negra era rejeitada, ontem como

hoje, por aqueles que corporificam o “sistema econômico”.

A busca pelo embranquecimento de afro-brasileiros é algo presente na vida dessa

população, mesmo nos dias atuais, sob o argumento de que o embranquecimento deles, geraria

uma ascensão em relação as condições socioeconômicas, maiores oportunidades na inserção de

bons empregos, boa educação e maior aprovação social; isto, pois supostamente a capacidade

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17

de ser bem-sucedido socioeconomicamente estaria diretamente atrelada ao grau de semelhança

do individuo com relação aos aspectos do fenótipo branco europeu.

Tal argumentação é utilizada por inúmeros nomes consideráveis, incluindo alguns que

são conhecidos por seus posicionamentos “progressistas” e com ideologias de esquerda – à

exemplo do escritor Caio Prado Jr., que tenta justificar o “atraso” dos estados do Norte e

Nordeste (como Alagoas, Bahia, Maranhão, Pernambuco e Sergipe) em relação a qualificação

de mão-de-obra e tecnologias, pelo motivo destes possuírem um maior número de afro-

brasileiros e uma preservação maior da cultura africana (NASCIMENTO, 2019).

Não obstante, existem ainda terceiros que fazem uso do ideário da “democracia racial”

para restringir o problema social apenas às questões de classes e, ao mesmo tempo, atribui um

discurso racista usando a superioridade de classe como motivo de desenvolvimento econômico

e social de certas regiões do país:

Opostamente, a área sulista, principalmente os Estados de São Paulo, Rio de

Janeiro, e em menor escala Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul,

formam a área mais “avançada”. Por quê? Porque área mais urbanizada,

industrializada, comercializada, mecanizada, impessoalizada e plasticizada

mimeticamente sob modelos europeus e dos Estados Unidos; tais modelos não

se restringem ao plano da economia, crescentemente englobam estilos de vida

e visão do mundo. Mais importante ainda: o sul foi inundado no decorrer deste

século por um influxo maciço de imigrantes branco-europeus, em grande parte

assistidos financeiramente pelo Estado, com o objetivo explícito de

embranquecer a população brasileira; estes são os que Prado Jr.

manifestamente considera ‘sensivelmente superiores’ em stock e cultura à

‘preexistente massa da população trabalhadora” isto é, os africanos

escravizados e seus descendentes. O despudorado fundamento "científico’ de

cunho branco-supremacista contido nessa definição é uma amostra

representativa da mentalidade ‘progressista’ da esquerda brasileira, em sua

adesão à utópica "democracia racial" e unidade mundial dos trabalhadores

(NASCIMENTO, 2019, p. 159-160).

Por outro lado, além da necessidade escancaradamente racista de embranquecer a

população brasileira, andava a passos muito distantes o projeto de abolição da escravatura,

sendo o Brasil o último país a aderi-la por meio de um processo liderado pela elite branca

“progressista”, intrinsecamente íntima aos senhores de escravo (FLAUZINA, 2006).

Dessa forma, apesar de não podermos desconsiderar tal fato como uma conquista, é

necessário avançar nessa discussão e não apenas estacionar na romantização da abolição. Por

mais que houvesse uma resistência e uma organização pressionando a abolição constituída pelo

povo negro, o ato de abolir a escravatura possuía intenções intimamente ligadas à produção

capitalista e as novas demandas da classe burguesa dominante.

Page 18: OS SENTIDOS DO ABOLICIONISMO PENAL NA REALIDADE …

18

Nascimento (2019, p. 49) comenta sobre a motivação principal em que se deu essa

abolição de forma retrograda:

Qual teria sido, então, a natureza daquela retrógrada ‘emancipação’, decretada

pela classe dirigente, sem qualquer iclentificação com as aspirações dos

africanos escravizados? Com efeito, tudo que diz respeito à nossa abolição

oficial, quer dizer, puramente formal, está umbilicalmente vinculado à

revolução industrial inglesa; a emergência da produção baseada no trabalho

“livre” necessitava de mercados para sua manufatura industrial.

A existência desses imigrantes europeus não significou que eles tiveram grande

participação na edificação econômica do país. Muito pelo contrário, o mérito desse trabalho foi

sistematicamente a produção em benefício individual da elite branca do país (NASCIMENTO,

2019).

Ademais, não bastando tais intervenções exaltadamente racistas do sistema

imperialista, a guerra do Paraguai serviu claramente como uma forma de extermínio do povo

negro, que foi colocado na linha de frente das batalhas:

Por fim, dentro da pauta de extermínio que subsidia o processo de arianização

do Brasil, a guerra do Paraguai que se inicia em 1864 e se arrasta até 1870,

deve ser levada em conta. De 1860 a 1872 a população negra tem uma redução

em um milhão de pessoas em termos absolutos. As mortes causadas por uma

guerra enxergada como “a solução final para o problema do negro”, utilizado

nas frentes de batalha, também causou muitas mortes pela sobrecarga dos

escravizados no aumento na quantidade de trabalho, pelas doenças

contagiosas, dentre outros (FLAUZINA, 2006).

No sistema republicano não há tantas novidades no que se refere ao controle social de

povos negros. Há novidades no que se refere ao um aparato mais estratégico, como a utilização

efetiva da democracia racial; o que era publicamente racista, agora é um racismo longe dos

holofotes. Flauzina (2006, p. 67) cita dois períodos da república de postura no controle social:

Para entendermos essa nova sistemática em toda sua complexidade e

enxergarmos esse momento de virada nas estratégias punitivas, temos de

observar esse sistema penal em dois momentos de sua maturação. Uma, no

período pós-abolição mais imediato, e outra, a partir da sofisticação que se

percebe com os acontecimentos da década de 30 e a promulgação do Código

de 1940.

Nesse período, havia um cenário de trabalhadores imigrantes concentrados nos campos

que também eram explorados no trabalho rural, e nos centros urbanos uma concentração de

negros libertos. O controle social agora precisava lidar com essas novas demandas. Primeiro os

senhores de produção agrícola tentando conter as indignações e reivindicações da massa

trabalhadora europeia, evitando que houvessem grandes articulações trabalhistas. Já a

Page 19: OS SENTIDOS DO ABOLICIONISMO PENAL NA REALIDADE …

19

população negra, sofria uma perseguição e contenção meramente racista, com o intuito de

higienizar os grandes centros urbanos.

Em todas as instituições que tinham como foco o controle social, à exemplo de

manicômios, asilos, penitenciárias, abrigos de menores e a própria instituição polícia, foi

absorvido as teorias da criminologia positivista expressamente sedimentada no racismo

(FLAUZINA, 2006). Ou seja, a chegada da República não mudou a conservação de interesses

da elite do país e a conduta de extermínio, perseguição e contenção de corpos negros baseados

no racismo.

Atendendo aos interesses estratégicos da elite hegemonicamente branca em suprimir

a integração social da população negra, foi arraigado o discurso da democracia racial. Sob a

premissa de que o racismo não existe e por meio de um já mencionado processo de apagamento

histórico de todo o extermínio e opressão, além da individualização da prática do racismo, o

país se torna oficialmente um lugar de harmonia entre raças, como se o passado nunca tivesse

existido.

Forma-se, portanto, o cenário ideal que permite a redução dos problemas enfrentados

pela população negra à uma posição restrita a questões de classe social, haja vista que em tese,

a discussão sobre raça não é mais cabível em um país onde prevalece a democracia racial. Por

trás desse paraíso, o sistema penal – juntamente de todos os seus aparatos – segue agindo e

servindo aos intuitos para o qual foi criado: contenção, criminalização e extermínio dos corpos

negros. E seguimos nesse mesmo formato desde então.

A despeito da Constituição Federal de 1988, que pressupõe a ideia de um Brasil

redemocratizado, temos um país com medidas mais incisivas de punição e encarceramento.

Dessa forma, ao mesmo tempo em que havia a ampliação do direito coletivo, havia-se também

um aumento na violação dos direitos individuais de alguns segmentos específicos.

Para concretizar tais violações, esse período é marcado pela ampliação do número de

condutas criminalizantes, por ampliação no tempo de pena para diversos crimes, e também pela

contenção de direito a progressão de pena e o direito a liberdade condicional em determinadas

situações. Em decorrência dessas novas diretrizes, tal conjuntura acabou por proporcionar uma

grande ampliação e maiores investimentos no sistema carcerário, cujo foco atinha-se

especialmente na expansão física dos espaços, à fim de comportar cada vez mais encarcerados

(ALVEZ e CRUZ, 2021).

A contemporaneidade e a ascensão do neoliberalismo em um país periférico como o

Brasil, produz concentração de renda, regressão em políticas públicas sociais e, em decorrência

Page 20: OS SENTIDOS DO ABOLICIONISMO PENAL NA REALIDADE …

20

desses fatores, impulsiona o contingente de população submetida a pobreza (FLAUZINA,

2006). É nesse contexto de avanço do capitalismo em terras periféricas, que se nutre uma elite

que não abre mão da concentração de riquezas e do aparato do sistema penal para manter a

estabilidade e poder, criminalizando assim, as massas subalternas como o exército industrial de

reserva, grupos raciais específicos, ou também aqueles que não possuem serventia para

produção.

Alves e Cruz (2021, p. 25) trazem um trecho em seu artigo que retrata empiricamente

as medidas tomada pelo Brasil em ampliar a criminalização de condutas que antes não eram

consideradas crimes:

Ao longo das últimas duas décadas o Brasil tem adotado o recrudescimento

penal como principal meio para reprimir a dita criminalidade. De acordo com

a pesquisa realizada por Marcelo Campos (2010), 52,6% das leis legisladas

pelo Executivo, no período de 1989 a 2006, referem-se a leis mais punitivas,

entende-se por esse termo o aumento da punição comparada a lei anterior.

Ademais, 45% se enquadram na criminalização de novas condutas, ou seja,

condutas que antes não eram criminalizadas passaram a ser. Isso parece

sinalizar um caráter mais incisivo do poder público nesse universo punitivo.

O sistema penal segue fazendo esse serviço sórdido, com muita eficiência e sob uso

do véu da democracia racial. Todas as instituições do sistema penal seguem tendo como base a

criminologia positivista, e, nessa condição, temos o papel essencial dos veículos midiáticos que

constroem no imaginário das massas populares a imagem do indivíduo de bem e o infrator do

mal, que a qualquer momento pode violar sua propriedade privada. Está posto então os estigmas

e, por conseguinte, a seletividade desse sistema e o controle social exercido sobre determinados

grupos.

Segundo Flauzina (2006, p. 87):

É justamente orientadas por esse tipo de pressuposto que as agências

da criminalização secundária vão formatando a criminalidade numa seleção

que, se discursivamente está posta para o controle de uma pobreza

generalizada, segue, na prática, atuando de acordo com os postulados de

cunho racista que a preside. Nesse tocante, atentando para a movimentação do

aparato policial percebemos uma disposição inequívoca em recrutar os

indivíduos negros para as fileiras da punição. A vigilância ostensiva

empreendida nos bairros populares de maioria negra é um primeiro indício

dessa tendência.

Nesse período de neoliberalismo em um país periférico como o Brasil, não podemos

deixar de citar o grande empreendimento lucrativo que o sistema penal tem se tornado. Tal

processo é mais notório e prossegue de maneira mais avançada nos Estados Unidos, ao qual

denominamos de complexo industrial prisional.

Page 21: OS SENTIDOS DO ABOLICIONISMO PENAL NA REALIDADE …

21

Porém, o Brasil também tem avançado nesse empreendimento lucrativo. A política

contra as drogas, em grande acentuação em nosso país, pode ser analisada como uma forma de

justificar a intensificação na intervenção e investimentos nas instituições do sistema penal.

Segue números da evolução das despesas per capta com a função segurança pública entre os

anos de 2011 e 2020:

Tabela 1 – Evolução das despesas per capita com a Função Segurança Pública, por região

Em R$ constantes de 2020

Regiões 2011 2012 2013 2014 2015 2016

Região Norte 388,21 395,93 403,32 438,32 448,59 409,65

Região Nordeste

267,59

297,93

274,80

289,97

278,09

292,45

Região Sudeste

389,69

370,43

399,61

424,85

436,15

403,49

Região Sul 284,09 303,45 323,79 353,94 357,03 363,90

Região Centro-

Oeste 398,19

419,45

403,21

455,32

498,52

498,90

Regiões 2017 2018 2019 2020 Variação % Média

Região Norte 416,04 447,78 468,72 469,35 20,90 428,59

Região Nordeste 293,37 307,78 313,48 309,46 15,65 292,49

Região Sudeste 391,62 388,06 375,76 357,05 -8,38 393,67

Região Sul 390,41 384,68 380,24 385,00 35,52 352,65

Região Centro-

Oeste 478,74

496,44

522,75

483,84

21,51

465,53

Fonte: FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA (org.). Anuário Brasileiro de

Segurança Pública. 2021.

Flauzina (2006, p. 91) comenta sobre essa relação da criminalização do comércio das

drogas ilícitas, como também a criminalização do uso de drogas com a indústria do controle do

crime:

Com a consolidação de um mercado surpreendente, a partir dos anos 70, o

comércio de drogas ilícitas é capaz de movimentar recursos volumosos e,

principalmente, justificar os excessos cometidos no controle dos segmentos

marginalizados. Nesses termos, longe de corresponder à plataforma que a

sustenta, qual seja a persecução dos grandes produtores e comerciantes dos

Page 22: OS SENTIDOS DO ABOLICIONISMO PENAL NA REALIDADE …

22

produtos ilícitos, essa é uma atividade que, pela sua grande penetração no

imaginário como atividade altamente reprovável, serve de sustentáculo

ideológico para o avanço do controle penal sobre os alvos efetivos do sistema.

Ainda nesse latente crescimento de empreendimento, a segurança privada tem se

tornado um setor de destaque em nossa economia. A ascensão do complexo industrial prisional,

em pleno capitalismo monopolista e globalizado, sem descrença nenhuma é um dos maiores

motivos em contexto neoliberal para a manutenção do sistema prisional. À respeito do lugar de

destaque aos quais os empreendimentos de segurança privada têm ocupado na economia no

país nos últimos anos, podemos observar que:

Diante desse cenário, os números brasileiros apontam para um setor em plena

expansão, que não parece mesmo contar com qualquer limite à incrementação

de seus investimentos. O mercado de segurança privada que vende uma

espécie de proteção ilusória, mas muito lucrativa, é o maior responsável pelas

altas cifras desse empreendimento no país. De acordo com Luis Mir, em 1999

enquanto vários setores da economia tiveram uma redução em sua margem de

lucros, o aparelho de segurança privada teve um crescimento em torno de 4 a

5% ao ano em seus lucros, que de R$ 6,9 bilhões em 1994, saltaram para R$

14,5 bilhões em 2001 (FLAUZINA, 2006, p. 92).

Mais uma vez, trazendo à exemplo os Estados Unidos – que possui a maior população

carcerária do mundo e um complexo industrial prisional mais evidente. Algumas prisões já não

são gerenciadas pelo setor público, e nestas, empresas privadas assumem o comando da

administração e gestão das instituições, bem como também é comum a presença de corporações

que lucram com a exploração do trabalho de encarcerados e/ou prestam os mais variados

serviços de manutenção.

Em nosso país, além do grande destaque das empresas privadas de segurança, têm-se

uma firme presença de implantação de tecnologias como forma de segurança, a exemplo das

câmeras de reconhecimento facial. Gilmore (2020) comenta o aumento dos recursos para o setor

de segurança:

Portanto, se olharmos mais especificamente para o que aconteceu nos

orçamentos estaduais e municipais, vemos a expansão dos orçamentos

dedicados ao encarceramento em massa, às prisões e à polícia. Vemos não

apenas isso, mas também que nos aparatos sociais que supostamente deveriam

trabalhar para outros fins – educação, saúde e assim por diante -, há um

aumento das funções policiais.

Abaixo temos números da quantidade de vigilantes que possuem vínculo ativo por

regiões do país no ano de 2021. É nítido o quantitativo bem maior na região sudeste, região que

concentra os maiores centros urbanos do país e as maiores favelas:

Page 23: OS SENTIDOS DO ABOLICIONISMO PENAL NA REALIDADE …

23

Tabela 2 – Quantidade de vigilantes com vínculos ativos

Brasil, Regiões e Unidades da Federação

Vigilantes

Ns. Absolutos Percentual do total

Especializadas Orgânicas Especializadas Orgânicas

Brasil 502.318 23.790 100,0 100,0

Região Norte 34.068 1.119 6,8 4,7

Acre 1.555 184 0,3 0,8

Amazonas 8.420 162 1,7 0,7

Amapá 1.668 22 0,3 0,1

Pará 14.780 506 2,9 2,1

Rondônia 4.913 176 1,0 0,7

Roraima 1.017 0 0,2 0,0

Tocantins 1.715 69 0,3 0,3

Região Nordeste 98.802 5.362 19,7 22,5

Alagoas 4.409 706 0,9 3,0

Bahia 28.077 736 5,6 3,1

Ceará 16.191 990 3,2 4,2

Maranhão 9.356 195 1,9 0,8

Paraíba 5.782 326 1,2 1,4

Pernambuco 19.181 1.324 3,8 5,6

Piauí 3.944 321 0,8 1,3

Rio Grande do Norte 6.317 589 1,3 2,5

Sergipe 5.545 175 1,1 0,7

Região Sul 75.633 3.019 15,1 12,7

Paraná 24.628 1.133 4,9 4,8

Rio Grande do Sul 30.970 984 6,2 4,1

Santa Catarina 20.035 902 4,0 3,8

Continua

Page 24: OS SENTIDOS DO ABOLICIONISMO PENAL NA REALIDADE …

24

Brasil, Regiões e Unidades da Federação

Vigilantes

Ns. Absolutos Percentual do total

Especializadas Orgânicas Especializadas Orgânicas

Brasil 502.318 23.790 100,0 100,0

Região Sudeste 243.633 12.392 48,5 52,1

Espírito Santo 11.437 247 2,3 1,0

Minas Gerais 33.105 1.647 6,6 6,9

Rio de Janeiro 49.295 1.864 9,8 7,8

São Paulo 149.796 8.634 29,8 36,3

Região Centro-Oeste 50.182 1.898 10,0 8,0

Distrito Federal 23.174 373 4,6 1,6

Goiás 14.895 922 3,0 3,9

Mato Grosso do Sul 4.709 293 0,9 1,2

Mato Grosso 7.404 310 1,5 1,3

Fonte: FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA (org.). Anuário Brasileiro de

Segurança Pública. 2021.

Em seguida, temos o quantitativo de empresas ativas por regiões do país no ano de

2021, e mais uma vez é nítido os números mais expressivos vindo da região sudeste do país:

Tabela 3 – Quantidade de empresas, por tipo

Brasil e Regiões

Especializadas Orgânicas Total

Total (sem curso de

formação) Empresas de

curso de formação

Total (incluindo curso de

formação) Ns. Abs %

Sem curso de formação

Incluindo curso de formação

Ns. Abs

% Ns. Abs

% Ns. Abs

% Ns. Abs

%

Brasil 2.235 100,0 236 2.471 100,0 1.154 100,0 3.389 100,0 3.625 100,0

Norte 185 8,3 24 209 8,5 91 7,9 276 8,1 300 8,3

Nordeste 503 22,5 59 562 22,7 293 25,4 796 23,5 855 23,6

Sul 396 17,7 41 437 17,7 153 13,3 549 16,2 590 16,3

Sudeste 881 39,4 86 967 39,1 516 44,7 1.397 41,2 1.483 40,9

Centro-Oeste 270 12,1 26 296 12,0 101 8,8 371 10,9 397 11,0

Fonte: FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA (org.). Anuário Brasileiro de

Segurança Pública. 2021.

Page 25: OS SENTIDOS DO ABOLICIONISMO PENAL NA REALIDADE …

25

2.3 A VIOLÊNCIA COMO POTÊNCIA IDEOLÓGICA E ECONÔMICA

A população negra está sujeita a várias formas de genocídio. No entanto, é preciso

salientar e termos em mente que este genocídio não se conclui apenas em extermínio direto da

vida, mas pode também se expressar por meio de processos que fazem com que a vida negra

esteja mais sujeita à morte.

Para melhor compreensão, podemos começar pensando na organização geográfica de

todas as nossas cidades e centros urbanos, que historicamente pressionou e isolou a população

negra em áreas marginais aos centros urbanos, sem nenhum tipo de política pública de

habitação. É uma população que está mais sujeita a pobreza e não só se explica essa sujeição

pelo sistema capitalista em território periférico como o nosso, mas principalmente pelo trajeto

histórico de falta de integração social destes, que na prática nunca tiveram sua liberdade

concreta, e cujo controle social – por meio de punições e extermínio – apenas passou do âmbito

privado, para o âmbito público.

Outro grande exemplo de extermínio advém do escasseamento de acesso da população

negra à educação. São muitos os motivos que levam a essa evasão: pobreza extrema à qual são

mais prováveis de estarem submetidos em decorrência da trajetória histórica de exploração, a

falta de representatividade nas escolas – inclusive na falta de disciplinas que tratem sobre a

trajetória do povo negro –, bem como a forma de assimetria social presente no ambiente escolar,

que, assim como o sistema penal, molda um tipo de hierarquização entre os bons e os maus

(FLAUZINA, 2006).

Essa falta de incentivo à inserção da população negra na educação é também uma

estratégia de aumentar as dificuldades dessas pessoas possuírem uma qualificação maior em

busca de uma ascensão financeira. A mesma estratégia vale-se ao fato das escolas estarem

aderindo um modelo de segurança e disciplina que supera o ensino intelectual e crítico,

assemelhando-se com medidas tomadas no sistema prisional (DAVIS, 2019a).

Portanto, é necessário enxergar esta escassez de oportunidades como uma forma

estratégica de apagamento da cultura, da consciência e do conhecimento de sua própria história.

Ao analisarmos, por exemplo, a população negra dos Estados Unidos que em todo o processo

histórico sofreu muito fortemente esta tentativa de apagamento com o intuito de disciplinar e

desarticular qualquer revolta, ao ponto de boa parte não se reconhecer enquanto um grupo de

semelhantes; é uma população negra que não se reconhece como descentes de africanos, são

apenas norte-americanos.

Page 26: OS SENTIDOS DO ABOLICIONISMO PENAL NA REALIDADE …

26

Os africanos trazidos ao Brasil, por algumas poucas causalidades, mas principalmente

em decorrência de muita resistência, conseguiu passar por gerações uma parte considerável de

influência das culturas africanas. No entanto, é equivocado justificar este fato pelo motivo de

que a escravidão no país foi mais maleável do que em outras colônias. Muito pelo contrário,

além do Brasil ter sido o último país a proclamar a abolição da escravatura, o país foi uma

colônia com meros objetivos de exploração4, onde a riqueza era toda usufruída pelos países

exploradores. Diferentemente dos Estados Unidos, por exemplo, onde os ingleses que chegaram

nesse novo território tinham o objetivo de fundar uma colônia de povoamento5 e trazer suas

famílias. Comparado a certas colônias, o Brasil teve um processo de escravidão

disparatadamente mais brutal e genocida.

Afastar a população negra brasileira do acesso à educação também é uma forma de

afastamento de conhecimento de todo seu processo histórico e de consciência, tendendo a se

formar uma massa populacional mais maleável. Sobre os esforços das elites no apagamento das

culturas africanas e do contexto histórico de escravidão brutal como uma estratégia de controle

e de retirar a identidade do povo afro-brasileiro, Nascimento (2019, p. 65-66) diz:

No sentido de apagar da lembrança do afro-brasileiro a horripilante etapa

histórica brasileira do escravagismo, a camada dominante no Brasil não tem

poupado esforços. Com esta providência se conseguiriam vários benefícios:

primeiro, aliviaria a consciência de culpa dos descendentes escravocratas, os

mesmos que ainda hoje continuam dirigindo os destinos do pais; segundo,

simultaneamente ao desaparecimento do seu passado, o negro brasileiro

assistiria também à obnubilação de sua identidade original, de sua religião de

berço e de sua cultura, o que resultaria na erradicação da personalidade

africana e no orgulho que Ihe é inerente.

Mais explicitamente temos o sistema penal e suas instituições, ao destacar a polícia e

seu vínculo direto com o racismo e com o extermínio direto da população negra.

4 “Colônia de exploração (Pflanzungskolonien) – O objetivo seria a exportação de produtos

primários para os países europeus. Geralmente, o número de europeus seria baixo, eles não se tornariam

cidadãos locais e o uso de mão de obra escravidão seria frequente. [...] este tipo de colônia não tende a

desenvolver-se como nação.” (HEREEN, 1987 apud MONASTERIO e EHRL, 2015, p. 11)

5 “Colônia de povoamento (Ackerbaukolonie) – A tradução literal seria colônia de

agricultores. Optamos por alterar o termo para manter consistência com a tradução feita por Leroy-

Beaulieu (1902). Nestas, os colonos são agricultores europeus e proprietários de terra. Este tipo de

colônia tenderia a tornar-se uma nação independente.” (HEREEN, 1987 apud MONASTERIO e EHRL,

2015, p. 11)

Page 27: OS SENTIDOS DO ABOLICIONISMO PENAL NA REALIDADE …

27

Indicada a participação do sistema penal na consolidação de um quadro que

situa o Brasil entre os países em que mais se mata no mundo é preciso avaliar

de perto os desdobramentos desse empreendimento para a população negra.

Como agência central na movimentação do aparato penal e tendo em vista a

histórica relação que se estabeleceu entre Polícia e racismo no Brasil, é preciso

considerar em primeiro plano a participação dessa instituição na conformação

da realidade em tela. Em primeiro lugar, é importante termos em mente que a

instância policial é a que assume o maior quinhão das decisões no âmbito do

sistema penal (FLAUZINA, 2006, p 115).

Ainda sobre as mais variadas formas de genocídio da população afro-brasileira no

Brasil, Nascimento (2019, p. 185) declara:

Destruição sistemática ou genocídio que se tem concretizado tanto pelo

assassínio direto dos africanos matança pelos capitães-de-mato, agressões

permanentes da polícia, liquildação coletiva através da fome, ausência de

moradia decente e de assistência médica adequada; mas genocídio ainda por

intermédio da destruição das línguas, cultura, costumes, religiões e

instituições dos africanos escravizados e seus descendentes.

O embranquecimento da população afro-brasileira também se enquadra como uma

forma de genocídio, muito bem disfarçado e pouco pautado como tal. Esse embranquecimento

coercitivo vem se instaurando advindo da elite branca, como uma forma de chegar aos objetivos

aparentes de uma harmonia racial em nosso país. No entanto, não há dúvidas que é uma forma

de aniquilar qualquer resquício de povos negros africanos.

As condições da vida encarcerada dispõem de violações de direitos, torturas e mortes.

É uma rotina sem grandes reflexões ou socioeducação. Há descaso em coisas vitais, como

alimentação, espaço físico, insalubridade. O descaso no âmbito da saúde segue o mesmo rito, a

exemplo de pessoas detidas que são usuárias de substâncias psicoativas e necessitam de um

acompanhamento médico, tal acompanhamento que dificilmente irá existir. Davis (2019b, p.93)

traz em seu livro “Uma Autobiografia” a experiência de sua rotina, das violações sofridas e

presenciadas do encarceramento; ela afirma que “prisões e penitenciárias são desenhadas para

subjugar seres humanos, para converter sua população em espécimes de zoológico – obedientes

a nossas tratadoras, mas perigosas umas para as outras.”

O contexto histórico em que esse trabalho está sendo produzido é uma conjuntura em

que as nuances de viver em um país capitalista periférico e racista ficam mais evidentes. Temos

um país afundado em uma crise sanitária e econômica e sem perspectivas de um contexto

melhor, seja, de combate a pandemia, sem investimentos na ciência, no SUS e na propriamente

vacina, como também economicamente. É nesse mesmo cenário que a democracia racial

também cai por terra. A situação da população negra em contexto de pandemia segue muito

Page 28: OS SENTIDOS DO ABOLICIONISMO PENAL NA REALIDADE …

28

grave, seja pelo acesso fragilizado à saúde, como pelo fato do setor de determinados empregos

em que sua maior parte são ocupados por pessoas negras estarem sendo mais afetados pela

COVID-19. As condições de moradia também é um fator a serem levados em consideração em

uma crise sanitária. A total desqualificação do governo federal em lidar com as expressões da

questão social que estão postas e mais graves nesse momento de pandemia tem matado milhares

de brasileiros, que não estão morrendo só da doença em questão, mas também por estarem

submetidos a uma vida subumana. E esses brasileiros possuem classe e cor. Nenhuma política

pública ou atenção especial foi criada ou dada para essa população em situação de

vulnerabilidade.

O sistema carcerário nessa conjuntura de pandemia se encontra em condições graves.

Como já é de conhecimento, as estruturas carcerárias no Brasil são profundamente precarizadas,

no qual a população que ali está inserida sobrevive em condições subumanas, pouco espaço

para muitos encarcerados, falta de alimentação adequada, falta de higienização adequada ou

nenhuma higienização, assistência à saúde escassa. Em agosto de 2020 o Brasil contabilizava

um percentual de 1% da população encarcerada tinha testado positivo para o COVID-19, sendo

o quarto país com mais mortes de encarcerados (RUIZ e ABRANTES, 2020). A proliferação

do vírus nesses espaços tem sido muito grande. Há relatos de encarcerados e ex-encarcerados

de que não existe o distanciamento social, lugares com circulação de ar adequado, falta de

distribuição de produtos de higiene pessoal, deficiência no direito à assistência à saúde. Os

encarcerados que foram testados positivos para o COVID-19 estão sendo isolados de maneira

indevida, em locais fechados e inapropriados. E diante dessas condições, mais uma vez a

população negra tem sido o grande alvo de mortes, sendo a população carcerária constituída

por 61,7% de pessoas negras ou pardas (BRASÍLIA, 2018).

Segue um levantamento de número de pessoas encarceradas de acordo com raças do

Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2021:

Page 29: OS SENTIDOS DO ABOLICIONISMO PENAL NA REALIDADE …

29

Tabela 4 – Evolução da população prisional por cor/raça

Ano

Negra (1) Branca Amarela Indígena

Ns. Absolutos

% Ns.

Absolutos %

Ns. Absolutos

% Ns.

Absolutos %

2005 91.843 58,4 62.574 39,8 1.046 0,7 279 0,2

2006 135.426 56,7 97.422 40,8 1.587 0,7 602 0,3

2007 199.842 58,1 137.436 39,9 2.234 0,6 539 0,2

2008 217.160 56,8 147.438 38,5 2.733 0,7 511 0,1

2009 240.351 59,0 156.197 38,4 2.026 0,5 521 0,1

2010 252.796 59,8 156.535 37,0 2.006 0,5 748 0,2

2011 274.058 60,3 166.340 36,6 2.180 0,5 769 0,2

2012 294.999 60,7 173.463 35,7 2.314 0,5 847 0,2

2013 307.715 61,7 176.137 35,3 2.755 0,6 763 0,2

2014 312.625 61,7 188.695 37,2 3.312 0,7 666 0,1

2015 289.799 63,5 162.731 35,7 3.028 0,7 770 0,2

2016 340.611 63,6 188.741 35,2 3.111 0,6 654 0,1

2017 370.976 64,5 198.244 34,5 5.022 0,9 1.090 0,2

2018 399.657 66,0 198.804 32,9 5.522 0,9 1.201 0,2

2019 438.719 66,7 212.444 32,3 5.291 0,8 1.390 0,2

2020 397.816 66,3 195.085 32,5 5.864 1,0 1.167 0,2 Variação

(entre 2005-2020 em %)

333,1 13,5 211,8 -18,3 460,6 46,8 318,3 9,6

Ano

Outras Total presos com informações sobre

cor/raça

Total de pessoas

encarceradas

Razão entre total presos com

cor/raça informado e total

de pessoas encarceradas (em

%) Ns. Absolutos %

2005 1398 0,9 157.140 361.402 43,5

2006 3989 1,7 239.026 401.236 59,6

2007 4053 1,2 344.104 422.373 81,5

2008 14.685 3,8 382.527 451.429 84,7

2009 8.058 2,0 407.153 473.626 86,0

2010 10.686 2,5 422.771 496.251 85,2

2011 10.809 2,4 454.156 514.582 88,3

2012 13.996 2,9 485.619 548.003 88,6

2013 11.527 2,3 498.897 581.507 85,8

2014 1.608 0,3 506.906 622.202 81,5

2015 - - 456.328 698.618 65,3

2016 2.627 0,5 535.744 722.120 74,2

2017 - - 575.332 722.716 79,6

2018 - - 605.184 744.216 81,3

2019 - - 657.844 755.274 87,1

2020 - - 599.932 759.518 79,0 Variação (entre 2005-2020 em

%) - - - 110,2 81,7

Fonte: FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA (org.). Anuário Brasileiro de

Segurança Pública. 2021.

Page 30: OS SENTIDOS DO ABOLICIONISMO PENAL NA REALIDADE …

30

Em decorrência dos grandes números de infecções pela Covid-19 e óbitos ocasionados

pela doença no sistema prisional, tanto dos encarcerados, quanto dos funcionários do sistema,

assim que ocorreu a organização de grupos prioritários para tomar a vacina da imunização, o

sistema carcerário foi contemplado como setor prioritário para a vacinação.

Tal contemplação como grupo prioritário foi bastante criticada pela população de

senso comum, que se viu no lugar de presenciar “criminosos” sendo os primeiros grupos a

terem o direito a imunização. Porém, dado a todas as circunstâncias de condições do

encarceramento brasileiro é um direito totalmente incontestável.

Tabela 5 – Painel sobre a pandemia de Covid-19 no sistema prisional

Brasil e Unidades da Federação

Covid-19 em pessoas encarceradas

Casos acumulados

Óbitos acumulados

Letalidade Taxa de

incidência (4) Taxa de

mortalidade (4)

Total (3) 57.619 201 0,3% 7.642,1 26,7

Acre 286 4 1,4% 3.613,8 50,5

Alagoas 95 - - 963,9 -

Amapá 346 1 0,3% 12.572,7 36,3

Amazonas 927 2 0,2% 7.429,7 16,0

Bahia 1.040 3 0,3% 7.232,3 20,9

Ceará 2.304 6 0,3% 6.834,8 17,8

Distrito Federal 2.138 4 0,2% 13.355,8 25,0

Espírito Santo 1.150 6 0,5% 4.887,8 25,5

Goiás 2.282 9 0,4% 9.926,9 39,2

Maranhão 506 3 0,6% 4.133,6 24,5

Mato Grosso 2.825 4 0,1% 17.807,6 25,2

Mato Grosso do Sul 4.500 5 0,1% 23.388,8 26,0

Minas Gerais 6.425 13 0,2% 10.212,7 20,7

Pará 886 - - 4.364,3 -

Paraíba 367 4 1,1% 2.931,1 31,9

Paraná 4.063 13 0,3% 6.624,8 21,2

Pernambuco 2.504 9 0,4% 7.597,1 27,3

Piauí 989 1 0,1% 21.232,3 21,5

Rio de Janeiro 531 21 4,0% 1.090,2 43,1

Rio Grande do Norte 636 - - 5.888,3 -

Rio Grande do Sul 3.146 19 0,6% 8.097,8 48,9

Rondônia 1.298 3 0,2% 9.842,3 22,7

Roraima 268 9 3,4% 7.017,5 235,7

Santa Catarina 3.062 6 0,2% 13.049,8 25,6

São Paulo 13.742 53 0,4% 6.276,9 24,2

Sergipe 424 2 0,5% 7.574,1 35,7

Tocantins 877 1 0,1% 20.395,3 23,3

Fonte: FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA (org.). Anuário Brasileiro de

Segurança Pública. 2021.

Page 31: OS SENTIDOS DO ABOLICIONISMO PENAL NA REALIDADE …

31

Porém, mesmo sendo incluídos como um dos grupos prioritários no Plano Nacional de

Operacionalização da Vacinação contra a COVID-19, a vacinação tem sido uma realidade em

distante desse grupo e tem andado a passos lentos no avanço da imunização. Segue números de

imunização de funcionários do sistema de privação de liberdade e da população privada de

liberdade:

Tabela 5 – Vacinação contra Covid-19 no sistema prisional

Brasil e Unidades da Federação

Funcionários do Sistema de Privação de Liberdade (2)

População Privada de Liberdade (2)

1a dose

% da população atendida com 1a dose

2a dose

% da população atendida com 2a dose

1a dose

% da população atendida com 1a dose

2a dose

% da população atendida com 2a dose

Total 84.751 72,5 36.663 31,4 66.651 8,8 1.728 0,2

Acre 1.135 72,2 89 5,7 617 7,8 0 0,0

Alagoas 1.519 170,1 273 30,6 2.637 26,8 4 0,0

Amapá 733 152,7 41 8,5 6 0,2 0 0,0

Amazonas 1.194 76,5 8 0,5 1.030 8,3 43 0,3

Bahia 1.571 39,1 0 0,0 537 3,7 21 0,1

Ceará 1.404 36,4 20 0,5 160 0,5 15 0,0

Distrito Federal 1.170 66,7 433 24,7 64 0,4 11 0,1

Espírito Santo 3.137 87,1 33 0,9 148 0,6 22 0,1

Goiás 3.328 91,1 647 17,7 7.822 34,0 25 0,1

Maranhão 3.675 98,2 1.599 42,7 260 2,1 11 0,1

Mato Grosso 1.977 78,2 400 15,8 643 4,1 42 0,3

Mato Grosso do Sul 1.489 86,8 948 55,2 1.324 6,9 28 0,1

Minas Gerais 10.993 56,3 1.793 9,2 4.932 7,8 120 0,2

Pará 1.449 53,7 365 13,5 1.077 5,3 23 0,1

Paraíba 664 30,8 26 1,2 736 5,9 0 0,0

Paraná 3.725 90,7 333 8,1 9.400 15,3 12 0,0

Pernambuco 2.205 77,0 23 0,8 648 2,0 3 0,0

Piauí 641 57,5 104 9,3 1.696 36,4 30 0,6

Rio de Janeiro 3.069 102,6 888 29,7 2.628 5,4 247 0,5

Rio Grande do Norte 1.353 90,7 275 18,4 166 1,5 23 0,2

Rio Grande do Sul 3.958 74,8 732 13,8 14.201 36,6 105 0,3

Rondônia 1.198 49,7 167 6,9 2.389 18,1 14 0,1

Roraima 255 87,0 2 0,7 1 0,0 1 0,0

Santa Catarina 2.608 56,9 82 1,8 10.428 44,4 59 0,3

São Paulo (3) 29.316 84,8 27.348 79,1 2.797 1,3 869 0,4

Sergipe 162 20,7 5 0,6 192 3,4 0 0,0

Tocantins 823 62,3 29 2,2 112 2,6 0 0,0

Fonte: FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA (org.). Anuário Brasileiro de

Segurança Pública. 2021.

É necessário realçar que os números tendem a ser bem piores do que esses

disponibilizados. Os fatores para afirmar que esses números são mais alarmantes advém a

princípio de que são dados que não possuem a mínima relevância e preocupação para os meios

Page 32: OS SENTIDOS DO ABOLICIONISMO PENAL NA REALIDADE …

32

midiáticos, para as massas populares que estão vinculadas aos estigmas e muito menos para a

elite dona do país. Além dessa concretude de fatos, existe a escassez de testes nessas instituições

prisionais, somado a toda insalubridade e condições subumanas já citadas que os encarcerados

estão submetidos.

Em vários países, nesse contexto de pandemia, foram adotadas medidas de

desencarceramento, como a saída de pessoas em grupos de risco, a exemplo de gestantes,

idosos, indivíduos com comorbidades para a modalidade de prisão domiciliar, ou

monitoramento eletrônico. Algumas penas também foram perdoadas e outros atos infracionais

estão sendo descartados para serem motivos de uma sentença de prisão em meio fechado (RUIZ

e ABRANTES, 2020).

O Brasil tem ido no caminho oposto, mais evidentemente em decurso das

perspectivas de uma “segurança pública mais firme” do governo federal, que são melhores

traduzidas para perspectivas de culpabilização, criminalização e genocídio da população pobre

e afro-brasileira. Como um exemplo concreto da postura do governo federal ao enfrentamento

da COVID-19 no sistema carcerário foi a publicação da Portaria nº 135/202043, por Sergio

Moro, ex-ministro de Justiça e Segurança Pública do governo Bolsonaro. Nessa Portaria foi

estabelecida medidas padrões para o combate a disseminação e prevenção da proliferação da

COVID-19 no sistema prisional, medidas essas que em sua maioria prever mais permanência

de encarceramento e violações direitos, como a proibição de visitas dos familiares, dos

advogados, permanência de pessoas de grupos de riscos encarceradas. Aqui estão algumas

dessas medidas (RUIZ e ABRANTES, 2020):

1. restrição, ao máximo, da entrada de visitantes e advogados nas unidades prisionais

– desrespeita a prerrogativa de assistência jurídica a encarcerados; nega a entrada de produtos

básicos para a subsistência (as famílias se responsabilizam pelo que o Estado deveria prover);

2. criação de áreas específicas para isolamento de presos acometidos de sintomas

gripais – o Depen anunciou o uso de contêineres de ferro como alternativa às unidades

prisionais para o enfrentamento da nova pandemia. O Conselho Nacional de Política Criminal

e Penitenciária (CNPCP) vetou tal medida;

Page 33: OS SENTIDOS DO ABOLICIONISMO PENAL NA REALIDADE …

33

3. isolamento de presos maiores de 60 anos ou com doenças crônicas – com “cortinas”

ou “marcações no chão”, definindo espaço de dois metros de distância dos demais custodiados,

caso não haja possibilidade de isolamento;

4. promoção de meios e procedimentos carcerários para assepsia diária das celas;

5. promoção de campanhas educativas sobre os meios de prevenção da doença,

envolvendo servidores, visitantes e privados de liberdade – o Núcleo de Estudos da Burocracia

da Fundação Getúlio Vargas (FGV) aponta outra fragilidade: o nível de preparo de agentes

penitenciários para lidar com a pandemia;

6. suspensão de saídas temporárias – de acordo com a OAB/SP, “Restringir ainda mais

os direitos dessa população vulnerável é aplicar duplamente a punição imposta, o que não é

permitido pela nossa Carta Maior. E vai mais além, é tratar como não humanas as pessoas que

estão em situação de encarceramento”;

7. gestões entre os órgãos competentes visando à atenção e critérios restritos na

concessão de prisão domiciliar aos privados de liberdade que se enquadrem nas hipóteses

concessivas legais e tenham estrutura familiar, com monitoramento da pena via tornozeleiras

eletrônicas e aferição do impacto possível na sobrecarga do sistema de segurança pública e

saúde – estrutura familiar é conceito altamente subjetivo, e sobrecarga já existe, com presídios

superlotados.”

A criminologia crítica no Brasil precisa avançar no sentido de não secundarizar a causa

racial ao tentar aprofundar a crítica ao sistema penal. Essa criminologia ainda segue na maior

parte das produções e crítica na pauta apenas da classe social. Como já foi comentado

anteriormente, o sistema penal e o ato de encarcerar foi e é usado hoje principalmente em

decorrência de interesses capitalistas, no sentido de conter a massa proletária de uma possível

revolta, de manter a disciplina, despejar o exército industrial de reserva e pessoas que não se

enquadram no perfil de útil para esse capital, seja produzindo, como também consumindo. Mas

o Brasil tem sua particularidade histórica e esse sistema penal foi criado com objetivos de conter

e disciplinar determinadas classes sociais, vai para além dessa dimensão de classe. Temos um

Page 34: OS SENTIDOS DO ABOLICIONISMO PENAL NA REALIDADE …

34

sistema penal criado quase que exclusivamente para manutenção da escravidão, e que mantém,

com novas técnicas e tecnologias, a perseguição e genocídio do povo negro.

É necessário citar também a secundarização do sexismo em relação a crítica ao

sistema penal. O racismo e o sistema patriarcal são dois componentes que regem diretamente

esse sistema, tanto quanto a questão da classe. Significa dizer também que não importa quem

esteja sob tutela desse sistema, deixando claro que existe sim uma diferença de tratamento em

relação a brancos e negros dentro do sistema, porém, ele vai operar com sua base de

instrumentos racistas e sexistas.

Page 35: OS SENTIDOS DO ABOLICIONISMO PENAL NA REALIDADE …

35

3. A CRIMINOLOGIA COMO INSTRUMENTO DE DOMINAÇÃO

3.1 A CRIMINOLOGIA COMO FORMA DE CONTROLE SOCIAL

A primeira concepção que é necessário ter em mente para direcionar a uma discussão

sobre a criminologia crítica, é compreender que o crime não é ontológico. Ao partir desse ponto,

todas as definições de criminologia elaboradas ao longo dos períodos possuem um teor de

finalidade. Ou seja, não são discursos neutros. São discursos que carregam intenções e

interesses de determinados contextos históricos e/ou grupos. Batista (2011, apud CASTRO,

1983) traz um conceito de criminologia:

Para Lola Aniyar de Castro, é a atividade intelectual que estuda os processos

de criação das normas penais e das normas sociais que estão relacionadas com

o comportamento desviante dessas normas; e a reação social, formalizada ou

não, que aquelas infrações ou desvios tenham provocado: o seu processo de

criação, a sua forma e os seus efeitos.

Em seguida, ela faz uma pequena análise desse conceito, identificando que essa

definição da Lola, se contrapõe aos manuais jurídicos, que traz o conceito de criminologia como

o exame casual-explicativo do crime e dos criminosos, ou seja, uma concepção positivista

(BATISTA, V. 2011).

Ao voltar a questão de que cada concepção de criminologia possui um teor de atender

certos interesses de um determinado período, Batista (2011, p. 15) afirma que “entender o crime

como um constructo social, um dispositivo, é o primeiro passo para adentrarmos mais além da

superfície da gestão criminal”. Por conseguinte, ao entender o crime como um constructo social

e dispositivo, é necessário pensar que toda a questão criminal vai estar intrinsecamente ligada

às necessidades de manutenção da ordem e estabilidade de uma determinada classe social, o

desenvolvimento da questão social está intimamente atrelado ao desenvolvimento do sistema

capitalista e de acumulação de capital.

Nesse mesmo contexto de linhas de pensamentos criminológicos e seus interesses,

temos a presença de um sistema penal que possui o discurso de um sistema justo e igualitário

para todos. Porém, é um sistema profundamente seletivo e que atinge indivíduos de

determinados grupos sociais, usando suas condutas como “justificativa”.

Batista (2011) cita que, para alguns autores, a partir do momento em que a vítima se

tornou um secundário na situação do crime – tendo como marco as penas em público, a partir

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36

do século XIII – deu-se início a uma criminologia. Nesse contexto, era necessário construir a

figura de inimigo e medo, onde entram em cena os personagens do “herege” e da “bruxa”. De

mesmo modo, se trouxermos para a nossa realidade atual, a grande mídia tem-se demonstrado

a principal responsável por desempenhar este papel de objetificação das pessoas.

O início da acumulação do capital, que impulsiona ao longo dos períodos o

mercantilismo, manufatura e posteriormente a Revolução Industrial, é um grande marco para

que avultem novos métodos da criminologia. Havia-se agora, uma sociedade de classes e uma

necessidade de disciplinar e conter uma massa de mão de obra para as novas necessidades do

capitalismo (BATISTA, V. 2011).

Neste sentido, cabe uma reflexão no tocante à transição dos grandes eventos em que

se tornaram os castigos e execuções públicas, para uma nova forma de punição advinda com o

surgimento das prisões. Esse marco é geralmente debatido e mencionado como um momento

reformista e humanitário, pois agora, ao invés das torturas e execuções públicas, é

proporcionada a “dignidade” do indesejado pagar a sua penitência, isolado e refletindo sobre o

ato cometido para que este não venha a se repetir.

Não há discordância de que foi realmente uma transformação reformista e, que de certo

feitio, poupou alguns tipos de torturas e mortes cruéis caracterizadas como grandes eventos.

Porém, é necessário ir mais à fundo nessa questão, em especial se pensarmos na eminente

necessidade que o capitalismo em ascensão tinha de envolver a massa de mão de obra, e conter

uma população pobre e fora do mercado. Essa população atravessou um contexto de revolução

burguesa e, agora, possuía uma perspectiva revolucionária; as prisões, portanto, surgem como

novas alternativas de punir os indesejados e de disciplinar a mão de obra para conter essa massa

e as técnicas de criminalização e contenção da população pobre chega até as colônias,

destacando-se o Brasil, com um reflexo mais precarizado e cruel.

Batista (2011, p. 29) afirma que essa criminalização cruel, ao chegar no Brasil e seu

contexto histórico de violações de corpos em nome da produção capitalista, acabou por efetivar

uma “democracia” restrita para alguns: “Na periferia do capitalismo, e no Brasil em particular,

tudo isso vai se agregar ao genocídio colonizador, às marcas da escravidão, à república nunca

consolidada, ao estado previdenciário já malhado antes de nascer, aos paradoxos da cidadania”.

Após a Revolução Burguesa e a necessidade de reformulação do sistema punitivo, têm-

se a ascendência de uma criminologia modelada pelo positivismo, que usava como artificio a

desqualificação da ideia de igualdade. Essa ideologia – que surge com o intuito de responder

as novas demandas do capitalismo e em prevenir possíveis revoltas, ou até mesmo uma

Page 37: OS SENTIDOS DO ABOLICIONISMO PENAL NA REALIDADE …

37

revolução – fora amplamente explorada e instaurada, tendo suas aparentes contradições com a

escola clássica, se apropriando como base a generalização, e a outra a individualização; no

entanto, essas contradições são aparentes, pois, as diferenças na identificação do objeto

criminalizante dessas duas tendências de pensamento são, na verdade, complementares

(FLAUZINA, 2006).

A criminologia positivista está baseada diretamente com a individualização de tal

episódio de conduta criminalizante, que põe a ordem legal como uma ordem conatural, onde

homens loucos ou sem moral que a violam são indivíduos que não se adaptaram à sociedade

(BATISTA, N. 2007).

Portanto, nessa lógica de culpabilização de indivíduos e generalização de

determinados segmentos da população como sendo propensos ao crime, é possível identificar

que o sistema penal opera com base em critérios quantitativos e qualitativos. O ponto

quantitativo é exposto quando identificamos que o sistema penal não possui condições reais de

administrar todos os atos criminosos que ocorrem frequentemente. Nesse caso, esse aparelho

opera usando a seletividade como uma ferramenta para buscar os quantitativos e, dessa forma,

pessoas de seguimentos hegemônicos estão mais propensas a serem inocentadas do que aquelas

em segmentos de vulnerabilidade (FLAUZINA, 2006).

Ou seja, atenua-se o estigma de que pessoas de determinada classe e raça são mais

tendentes a cometerem atos criminosos, com base pelo simples dado do perfil de pessoas

inseridas no sistema penal. E é exatamente dessa forma que o discurso raso é propagado para

as massas populacionais, sendo a mídia o seu mais eficaz disseminador.

Ademais, é nessa perspectiva de ligação do sistema penal aos objetivos de

criminalização de condutas e grupos específicos, que Flauzina (2006, p. 25) afirma que o ponto

qualitativo se apresenta. Ela diz: “Nesse âmbito, a grande conclusão efetuada a partir da ruptura

de paradigmas em Criminologia, é que as atribuições do sistema penal relacionam-se mais

concretamente ao controle e perseguição de determinados indivíduos do que com a contenção

das práticas delituosas.”

Logo, à vista do exposto em relação a questão criminal e o discurso criminológico,

afirmar que o sistema penal está falido é um equívoco. Esse sistema possui projeto e objetivos

de contenção e criminalização, respondendo aos mandos e aos interesses da classe burguesa.

Flauzina (2006) afirma que:

Ao final, o que ficou definitivamente explicitado é que a alardeada “falência

do sistema penal” é, em verdade, slogan de mais uma manobra. O sistema

penal funciona e funciona bem. Funciona para os fins para os quais foi sempre

Page 38: OS SENTIDOS DO ABOLICIONISMO PENAL NA REALIDADE …

38

dirigido: manter as pessoas onde estão. Nesse sentido, “... mais do que uma

trajetória de ineficácia, o que acaba por se desenhar é uma trajetória de eficácia

invertida, na qual se inscreve não apenas o fracasso do projeto penal

declarado, mas, por dentro dele, o êxito do não-projetado; do projeto penal

latente da modernidade (p. 25).

Deste modo, resta evidenciado que o campo do direito possui o objetivo de

garantir a estrutura do modelo econômico e social da sociedade capitalista; ou seja, objetiva

manter a hegemonia e o consenso das massas, e deter quem estiver fora desse modelo padrão

social. Sendo assim, podemos determinar como uma forma de controle social.

3.2 A CRIMINOLOGIA NA DOMINAÇÃO PERIFÉRICA

No contexto da América Latina, intensamente marcada pela exploração e

genocídio, até os dias atuais é nítida a presença de uma criminologia positivista com seus traços

definidos de classificação e hierarquização, em decorrência da herança de colonização. Sobre

esse cenário, “Máximo Sozzo analisa o nascimento da criminologia na América Latina como

uma colossal tradução do positivismo, uma importação cultural que configuraria

racionalidades, programas e tecnologias governamentais sobre a questão criminal” (SOZZO,

2006 apud BATISTA, V. 2011, p. 46).

A América Latina constituiu sua história como principal campo de atuação a

exploração dos países europeus, sendo demarcada por um processo de escravização, genocídio

e precipuamente, apagamento da cultura e de autorreconhecimento dos povos; Flauzina traz

uma análise de Lélia González em relação a esse apagamento sofrido pelos povos trazidos para

essas terras, como os negros africanos, e dos indígenas que já às habitavam. Inclusive, a própria

generalização e nomeação de uma “América Latina” possui esse intuito de apagamento de

identidades das mais diversas populações que aqui estavam e, assim, construía-se

estrategicamente uma forma de velar o racismo e transparecer um continente de harmonia entre

vários povos, porém, sem desestruturar a dominação da classe hegemônica branca.

De acordo com Lélia González, a América Latina está muito mais vinculada

a sua herança indígena e africana do que propriamente latina. Nesse sentido,

a latinidade é entendida como uma formulação eurocêntrica forjada com o

intuito de inferiorizar culturalmente e eliminar os traços dos grupos que

efetivamente conformam a identidade desse território. Assim, a América

Latina, em verdade, configura-se enquanto uma América Latina, em que o

racismo, desde a própria nomeação conferida, opera para a subjugação dos

segmentos vulneráveis. Atentando para os usos da linguagem, que assume

para si os embates da arena social, percebemos a cristalização de uma imagem

que abre as frestas da exclusão simbólica dos segmentos, como pressuposto

fundamental à produção do extermínio físico (FLAUZINA, 2006, p. 30 apud

GONZÁLEZ, 1988).

Page 39: OS SENTIDOS DO ABOLICIONISMO PENAL NA REALIDADE …

39

É nessa concreticidade de um histórico de dominação de elite branca europeia,

criminalizando e apagando as identidades de povos africanos e indígenas como uma forma de

“civilizar” o território, que o sistema penal operou e opera até os dias atuais na América Latina,

baseando-se essencialmente na criminalização e opressão de determinados povos através do

racismo.

Tendo como base essa relação íntima entre o racismo e a operação do sistema penal, é

necessário ter em mente que os estudos de criminologia crítica – em especial no contexto de

Brasil e América Latina – com o objetivo de ter uma apreensão aprofundada desse sistema,

obrigatoriamente não deve secundarizar a pauta do racismo que o estrutura. Sobre a

criminologia latino-americana, Flauzina (2006, p.35) diz:

A Criminologia latino-americana e, muito especialmente a brasileira, vive um

momento decisivo. Com uma realidade que, de tão evidente, começa a não

caber mais em si, estamos, irremediavelmente, diante de duas direções não

conciliáveis que apontam no horizonte. De um lado, já se consolida uma

construção teórica que, apesar de reconhecer as iniqüidades estruturais

próprias de nossa região, se recusa a trabalhar toda sua complexidade,

trazendo a questão racial como um apêndice dos sistemas penais para o

conforto de nossas elites. De outro, uma concepção que, deslocando o papel

cumprido pelo racismo em nossos sistemas da periferia para o centro da

análise, pressente uma formulação que atinge não somente os aparelhos

repressivos, mas a própria narrativa da formação dos Estados e tudo o que

disso decorre.

Na criminologia, em determinados períodos houve a ruptura com o positivismo, e o

surgimento de novas linhas de pensamento. Pôde-se, portanto, acompanhar a introdução da

sociologia e do rotulacionismo, sendo ambos possuidores de métodos diferentes na busca do

conhecimento da criminologia ou de quem é definido por criminoso. No entanto, tais rupturas

tiveram suas limitações, principalmente ao deixar de lado a análise da influência da acumulação

do capital e da relação homem x trabalho na questão criminal.

[...] essa despolitização não foi capaz de aprofundar sua interpretação da

questão criminal, nem de entender, os mecanismos reguladores da população

criminosa, nem as relações de poder sobre as classes criminalizadas. Seu

caráter formalista e universalizante acabou produzindo uma visão política de

médio alcance, deslocada da economia, do processo de acumulação do capital.

(BATISTA, V. 2011, p. 77)

É inegável que a criminologia baseada no pensamento sociológico foi um

amadurecimento significativo, em especial na percepção de romper com convicções de que o

ser criminoso é algo biologicamente determinado. A sociologia transfere a criação de um ato

criminoso, e o que faz um indivíduo ser um criminoso, para a forma como uma sociedade se

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40

organiza. Ou seja, é uma linha de pensamento que defende que a criminalidade não é um fato

preexistente; Baratta (1976, p. 14) afirma que “Isto significa que existe um recrutamento de

uma circunscrita população criminosa, selecionada dentro do mais vasto círculo daqueles que

cometem ações previstas sob o código criminal e que, distribuída através de todas as classes

sociais, constitui não a minoria, mas a maioria da população.”. Nesse mesmo pensamento,

Flauzina (2006, p. 19) traz uma tese que sustenta a criminologia sociológica:

A tese central desenvolvida nessa perspectiva, é a de que o desvio é criado

pela sociedade. Assim, o crime não existe como realidade ontológica, pré-

constituída, mas como fruto da reação social (controle), que atribui o rótulo

de criminoso (etiqueta) a determinados indivíduos.

Sendo assim, à contraponto do positivismo, cujo objeto central era o indivíduo

delinquente, na sociologia este objeto passa a ser as determinações que o fizeram um criminoso,

dando a abertura necessária para questionarmos quais as intenções reais delas (FLAUZINA,

2006).

A introdução do pensamento marxista na criminologia foi a referência mais importante

e mais eficaz no emprego de romper totalmente com o pensamento positivista/iluminista no

âmbito da questão criminal. A concepção basilar no pensamento marxista-criminológico é

ponderar os objetivos do sistema capitalista e o seu manuseamento da questão criminal para

obter êxito no controle social, para uma submersão das lutas de classe, para manter sua

dominação e, principalmente, para mantar a classe trabalhadora disciplinada em busca da

produção da mais-valia. Batista (2011, p. 81) afirma que “O processo punitivo estaria

integralmente ligado ao controle e disciplinamento do mercado de trabalho. A sansão pena teria

então um vínculo direto com a força de trabalho e com o exército industrial de reserva”.

Essa criminologia, agora introduzida ao marxismo, teve mudanças significativas de

como pensar o crime e o criminoso. No pensamento positivista tinha-se a pergunta central de

“quem é o criminoso?”; no pensamento marxista temos o deslocamento desse sujeito

“criminoso” para as condições objetivas, estruturais e funcionais do sistema capitalista.

A base da criminologia crítica é questionar o que na criminologia tradicional é

inquestionável. Têm-se o objetivo de analisar o código penal e trabalhar em que contexto ele

foi feito, quais as motivações e a quem interessa. Além disso, é uma linha de pensamento que

não se limita ao que está posto, mas vai discutir a que missão de fato o sistema penal possui,

além de seu funcionamento prático e suas relações como instrumento de controle social

(BATISTA, N. 2007). Essa criminologia crítica trabalha em anular a teoria de que a

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41

criminalidade é ontológica, científico-naturalista e bio-psicológica, defendida pela criminologia

positivista.

Baratta determina o salto de análise qualitativa da criminologia crítica comparado à

criminologia positivista:

O Salto qualitativo que separa a nova da velha criminologia consiste,

sobretudo, na superação do paradigma etiológico, que era o paradigma

fundamental de uma ciência entendida, naturalisticamente, como teoria das

“causas” da criminalidade. A superação de tal paradigma traz consigo a

superação de suas implicações ideológicas: a concepção da conduta desviante

e da criminalidade como realidade ontológica preexistente à reação social e

institucional, assim como a aceitação a crítica das definições legais, como

princípio de individualização daquela pretendida realidade ontológica- duas

posições, entre si, absolutamente contraditórias. (BARATTA, 1978, p. 09)

3.3 BREVE DISCUSSÃO SOBRE A CRIMINOLOGIA BRASILEIRA

É perceptível a presença do pensamento reformista, inclusive no Brasil. No entanto, é

fundamental rejeitar e afastar-se de soluções que se limitam a meras “melhorias de condições”

das prisões. O sistema prisional serve para um propósito, e possui suas determinadas funções

em favor do controle da massa popular e disciplinamento, causando dor, tortura e violando

corpos. Segundo Batista (2011, p. 91): “A verdadeira relação entre o cárcere e sociedade, diria

o sábio Barata, é entre quem exclui e quem é excluído, ou, melhor dizendo, entre quem tem o

poder de criminalizar e quem está sujeito à criminalização”.

O direito criminal da contemporaneidade tem introduzido novas leis no sentido de

documentar a tendência de reeducação e reinserção do encarcerado à vida social. Ocorre que, é

muito incoerente o pensamento otimista de que essas novas leis possam acabar com os

estereótipos e de que os efeitos estigmatizantes da sociedade possam cessar, tornando menos

desfavorável a volta desses indivíduos à vida social. Ademais, outro elemento da realidade ao

qual é necessário analisar, é que na realidade estes indivíduos encarcerados estão em uma

situação real de socialização e educação, ao invés de ressocialização e reeducação (BARATTA,

1976).

Essas pessoas que estão mercê de serem engolidas pelo sistema penal, são pessoas que

muitas vezes se encontram em situação de violação de direito, como a falta de acesso à

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educação6, ou outros direitos básicos, onde o estado sempre esteve ausente. Logo, esse grupo

é notado finalmente pelo estado apenas no momento de punição.

Segundo Batista (2006, p. 99), o modelo neoliberalista se difere dos outros períodos

pelo sucedido de conciliar o sistema penal com novas técnicas, novas tecnologias e novos

desdobramentos de opressão para constituir e controlar determinados bairros pobres e

determinadas populações. Ela cita o exemplo do Rio de Janeiro, sendo uma realidade mais

próxima para nós brasileiros:

As favelas do Rio que estão ocupadas manu militari são vendidas como um

modelo que se assemelha aos territórios ocupados da Palestina: muros,

controle minucioso da movimentação, novas armas, novas técnicas, mas

principalmente uma gestão policial da vida.

É de certa percepção que os veículos de comunicação das grandes mídias é o grande

pilar que sustenta a legitimação do sistema penal, enraizando um sentimento de medo, criando

um inimigo constante, alimentando estigmas e, principalmente, tratando o sistema penal através

de um discurso simplista e raso, disseminado para a grande massa e ao qual Batista (2006, p.

102) chama de “populismo criminológico”. Segundo ela, “Nilo Batista demonstra as relações

entre mídia e sistema penal no capitalismo de barbárie, denunciando seu inédito protagonismo.

Quem pauta as agências do sistema penal é o monopólio global da mídia no Brasil”.

Esses veículos midiáticos possuem o objetivo de introduzir e sedimentar o campo da

ideologia da massa popular. Campo este, que possui um papel central de introduzir e

transformar interesses de um grupo dominante minoritário, em interesses gerais da sociedade;

no caso do sistema penal, introduz-se a inversão do sentido da lei, pondo o homem em condição

de existir para a ela, e não ela existindo ao homem (BATISTA, N. 2007).

Ao discutir o sistema penal, é definível três grandes linhas de pensamento: “Lei e

Ordem”, direito penal mínimo e o abolicionismo penal. No entanto, como a própria Batista

(2006) cita, não quer dizer que a perspectiva de “Lei e Ordem” seja característico

exclusivamente do campo ideológico da direita, o direito penal mínimo exclusivamente do

centro, e o abolicionismo penal exclusivo da esquerda; trata-se de uma questão muito complexa,

a ser melhor debatida. Os abolicionistas penais, por exemplo, tendem a se aliar à tendências,

órgãos e ONGs que possuem propensões reformistas, pelo motivo da vida no cárcere ser algo

6 Segundo dados do InfoPen (apud SINHORETTO, 2015, p. 29), entre 2005 e 2012 “a maior

parte dos(as) presos(as) não chegou a completar o ensino fundamental. Para este mesmo período

constata-se que uma parte muito restrita da população prisional possuía ensino superior [...]”.

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43

de intervenções urgentes, mesmo que mínimas e que signifiquem na manutenção do sistema

penal. Ou seja, são estratégias imediatistas e necessárias para as vidas no cárcere que estão

sendo violadas.

Nessa mesma linha, há o apelo dos movimentos sociais em criminalizar certos atos

como uma forma de justiça, à exemplo da violência contra mulher, racismo, LGBTfobia, entre

outros. Essa recorrência à justiça criminal é totalmente plausível, em decorrência das condições

objetivas em que vivemos, e por ser também demandas imediatas; viver no capitalismo da

barbárie é ter como exclusiva opção imediata recorrer à justiça criminal, pois, a prazos curtos,

não há mais nada a recorrer. Neste caso, a ponderação que mais precisa ser feita dentro dos

movimentos sociais, é que a luta e a conquista não podem se limitar e esgotar-se ali, naquele

ato de criminalizar. É necessário ir além e buscar novas estratégias fora do sistema criminal,

que de fato sejam mais efetivas no tocante à uma mudança de cultura, de superação do sistema

capitalista e dos seus meios de opressão e controle, pois esse sistema de punir é uma máquina

criada e mantida para outros propósitos, visando inclusive, gerar mais violência.

Flauzina (2007, p. 77) faz uma análise de como o direto penal e o sistema penal não

possuem o poder de emancipar, libertar e de proporcionar igualdade social se são segmentos

que estão expressamente firmados pelo racismo:

São inócuos porque o Direito Penal, ao contrário dos demais ramos do Direito,

é um campo da negatividade e da repressão, não se constituindo enquanto

espaço para a promoção de interesses de caráter emancipatório. Além disso, e

mais importante, o Direito penal se materializa pelo sistema penal. E como

engrenagem que toma o racismo como pressuposto de sua atuação, o sistema

é um espaço comprometido, inadequado e incapaz de gerir as demandas a

partir de uma perspectiva de igualdade, a exemplo do que ocorre com as

demandas femininas.

E principalmente para os movimentos negros, não se esgotar na conquista de apenas

criminalizar o racismo, pois procurar viabilizar direitos e igualdade entre raças através do

sistema penal, é buscar onde justamente o racismo desde todos os períodos é base pilar de

sustentação desse sistema. Se findar apenas na criminalização é o significado de que não vamos

ter concretamente uma emancipação e igualdade. É um problema bem mais enraizado do que

apenas criminalizar, inclusive através da instituição criada historicamente para contes a

população negra, esse não é o caminho.

Tendo em vista esse cenário, o sistema penal tem sido considerado como um

espaço impróprio para a resolução dos conflitos de gênero, na medida em que

sob o discurso da proteção, especialmente da liberdade sexual, acaba por

duplicar a vitimização feminina. Assim, a partir da cultura machista que o

preside, o aparato criminal reproduz a violência na seleção de vítimas,

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44

reforçando os estereótipos que as catalogam e consequentemente dividem,

além de não dar uma resposta efetiva ao ato infracional praticado

(FLAUZINA, 2006, p. 130).

Por fim, tomando a concepção de Baratta (1976), não há como pensar no fim do

sistema penal e marginalização criminal sem uma mudança diretamente na estrutura social e

econômica em que estamos inseridos. O sistema capitalista necessita da hierarquização e

criminalização de grupos de determinada raça e classe, e o sistema penal cumpre o papel de

manter essa estrutura de organização social distinguindo sobre critérios de seletividade quem

merece a “liberdade”, e quem precisa ser criminalizado e excluído de uma integração social.

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45

4. O ABOLICIONISMO PENAL NA TRADIÇÃO DAS LUTAS SOCIAIS

ANTICAPITALISTAS

4.1 ABOLICIONISMO PENAL: ASPECTOS HISTÓRICOS E TEÓRICOS

O abolicionismo penal é um pensamento, uma teoria, como também é um movimento

social advindo dos novos movimentos da criminologia crítica, que porta vários sentidos plurais

e libertários frente ao controle social em sentido amplo (ANDRADE, 2020). O movimento

abolicionismo possui característica ir ao confronto de ideias reducionistas do que é o “crime”,

do senso comum criminológico, da universalidade do discurso penal e trata a situação-problema

de forma subjetiva, confrontando a decisão do soberano e defendendo a não existência do

soberano e das prisões (PIRES, 2020).

O abolicionismo penal no Brasil é carregado de muito senso comum, distorção, o que

ocasiona deslegitimação. O pensamento no senso comum tem atribuído vários modelos de

conceito e características do abolicionismo penal, a exemplo de atribuir o modelo monopolítico,

ou seja, referenciado de forma singular e o modelo totalizador e estático, ou seja, como se o

abolicionismo penal defendesse um sistema pronto, que está pronto para ser implementado, no

pensamento de que hoje estamos na base do sistema penal e amanhã já podemos acordar com

os abolicionistas penais derrubando todas a prisões e acabando com o controle social. Outra

estigma atribuído ao abolicionismo é que o ato de abolir vai significar caos, desordem, todos

voltando ao estado de natureza, olho por olho e dente por dente, estado de guerra, deixando a

sociedade à mercê da criminalidade e indivíduos perigosos. Há quem afirme também que o

abolicionismo é apenas um pensamento inconsequente e irresponsável, advindo dos setores

marginalizados e que não merece espaço na discussão criminológica. E principalmente é colado

como um sistema utópico, da ilusão vinda da Europa e que jamais será possível ser

implementada na realidade brasileira, em decorrência das diversidades de contextos

(ANDRADE, 2020).

O abolicionismo não é um receituário pronto de que já está pronto para ser

implementado. É uma teoria/movimento que está dentro das lutas processuais e micro, a ser

exercida cotidianamente, até sem a própria ciência de que é um exercício frente ao sistema

penal. Por exemplo, o antiproibicionismo das drogas é também uma luta abolicionista, tendo

como contexto contemporâneo brasileiro, o proibicionismo das drogas, o tráfico de drogas tem

sido o maior motivo de mortes e encarceramentos de jovens. É necessário deixar exposto que

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46

o abolicionismo penal não é uma forma de ausentar o controle social, mas sim o controle social

punitivo. E de fato, o abolicionismo penal adveio pioneiramente de pensadores europeus, mas

é um movimento que chegou a todo o mundo, inclusive na discussão da criminologia crítica

latino-americana, bebendo de fontes europeias, mas colocando como centralidade o contexto

da América Latina.

O primeiro passo para tratarmos sobre o abolicionismo penal é labutar o ponto

ideológico. Fazer com que as pessoas possam se questionar se não existe alternativas frente ao

sistema penal que possam de fato ser efetivo no que concerne a integridade física e psicológica

a todos os indivíduos. Muito pelo contrário, o que ocorre é uma alimentação do imaginário da

população a existência de inimigos perigosos. Porém, é um sistema que não faz ninguém se

sentir mais seguro, mas na verdade tira o seu foco dos verdadeiros ameaçadores de segurança.

Davis (2020, p. 41) afirma: “Teoricamente, isso deveria fazer com que as pessoas se sentissem

melhor, mas o que realmente faz é desviar sua atenção das ameaças à segurança geradas pelas

forças armadas, pela polícia, pelas corporações gananciosas e, algumas vezes, pelos próprios

parceiros íntimos de uma pessoa.”

O trabalho ideológico de fundamentar que o sistema penal é algo essencial e que não

há mais nada além que possa substitui-lo é um trabalho feito através da popularização de

discursos simplistas, fazendo com que não haja uma discussão e uma reflexão mais aprofundada

sobre as nuances que perpassam as situações que levam as pessoas até o cárcere. É estabelecido

a figura de um indivíduo mal e desumanizado, e você pode ser apenas contra ou a favor desse

inimigo e seus atos. Os veículos midiáticos, principalmente o jornalismo policial

sensacionalista, que está presente na vida da população brasileira, tem feito esse trabalho

ideológico, alimentando a criminalização de afro-brasileiros.

É muito fácil limitar o discurso de que o sistema penal é algo necessário e naturalizado.

Não vai ser preciso refletir sobre a história do Brasil, sobre em que contexto se efetivou um

sistema penal nesse país de capitalismo periférico e o motivo de sua manutenção. Nos tira a

responsabilidade de pensar sobre as problemáticas do racismo, de gênero, de classe que estão

postas. A organização social de um país periférico que atribui ideologicamente uma democracia

racial, como também a presença de uma mídia que naturaliza a criminalização, nos distancia

também da realidade subumana, das violações de direitos, da violação dos corpos que

perpassam a vida no cárcere.

O abolicionismo penal vai muito além do que apenas uma reivindicação de um mundo

sem um sistema penal. Como já foi refletido anteriormente, o sistema penal foi criado para

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47

manter interesses de uma elite branca e sua necessidade de criminalizar e conter a população

afro-brasileira da garantia de uma verdadeira integralidade social. Sendo, assim é um sistema

que perpassa por interesses de classe, de uma determinada raça em manter a soberania política,

econômica, social, cultural e ideológica. Portanto, discutir abolição do sistema penal é

necessariamente discutir sobre esses determinantes que sustentam esse sistema e trazer a mesa

todos as problemáticas de uma democracia nos moldes do capitalismo.

Davis (2020) recorrentemente explicita uma análise do Du Bois. Para Du Bois, o fim

da instituição escravidão não era para ter sido apenas um fim por si só. Mas que a abolição da

escravidão viesse juntamente com a criação de novas instituições que garantissem a

integralidade social efetiva desses ex-escravizados. Trazendo para a nossa realidade brasileira,

foi algo que não ocorreu e sim a introdução de um sistema de criminalização. Essa mesma

análise pode ser usada no abolicionismo penal. Não apenas o ato de acabar o sistema penal,

mas também a criação de novas instituições que atuem efetivamente de forma democrática nas

expressões da questão social que incidem na população e os levam em direção ao sistema penal.

Davis (2020, p. 93) afirma:

Cabe a nós insistir na obsolescência do encarceramento como forma

dominante de castigo, mas não podemos fazer isso brandindo machados e

investindo literalmente contra os muros dos presídios, mas sim reivindicando

novas instituições democráticas que discutam os problemas que nunca são

discutidos pelos presídios de maneira produtiva.

O debate sobre o sistema penal vem se tornando necessário, graças as denúncias das

condições subumanas e as mais variadas violações, trazidas pelos próprios detentos, por ex-

detentos e principalmente pela mobilização de familiares, que estão profundamente engajados

lá luta pelos Direitos Humanos, nas frentes de desencarceramento. Ou seja, mais uma vez o

debate tem tomado espaço em decorrência de muita luta e resistência. Bem como várias

entidades de esquerda que vem dialogando a pequenos passos sobre o sistema penal de uma

forma crítica. Esses pequenos passos da esquerda brasileira no diálogo e na atuação frente ao

sistema penal reflete em um limitado engajamento apenas no quesito reformista desse sistema.

Hulsman e Celis (2018, p. 93) afirmam o quão é impossibilitado uma mudança de fato efetiva

nas prisões, estando elas inseridas no sistema penal e na sua real funcionalidade:

Não basta tentar modificar a situação dos detentos, para que alguma coisa

realmente mude. A concentração das tentativas de mudança nesta última fase

do processo penal se revela, na práti-ca, inoperante. Pretender transformar a

prisão - e somente a prisão - significa trabalhar no interior de uma posição

imutável, sem qualquer perspectiva de progresso. É preciso se situar mais

acima, lá no começo do processo, onde são selecionadas as pesssoas que vão

se tomar detentas.

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48

As próprias prisões, em um determinado período histórico, foram uma criação

reformista, progressista e que ampliava os direitos dos cidadãos; uma forma humana de lidar

com os indesejados. A punição antes das prisões era um espetáculo público, onde pessoas eram

executas e/ou torturadas de diversas formas em praças públicas e diante de uma plateia, com o

intuito de exacerbar a sensação de retaliação ao crime cometido.

Criou-se então nos reformistas da época, o pensamento de que, isolar tal indivíduo e

colocá-lo em uma penitenciária – para como o próprio nome já diz, pagar uma penitência - seria

de fato um caminho para “corrigi-lo” perante a lei. Ou seja, a lógica simples é que, ao cometer

tal ato, aquela pessoa seria isolada da sociedade, perderia seu direito de liberdade, para

simplesmente refletir sobre o seu ato, como se fosse algo parecido com um retiro. Após sua

reflexão, autoconscientização e aprendizado, a tal pessoa era inserida novamente na sociedade,

arrependida do que fez e consciente de não cometer novos atos. A história das prisões está

imbricada com a ideia de reforma. Davis (2019a, p.43) afirma que, “se as palavras ‘reforma

prisional’ saem com tanta facilidade de nossos lábios, é porque ‘prisão’ e ‘reforma’ estão

indissociavelmente ligadas desde o início do emprego do encarceramento como o principal

meio de punir aqueles que violam as normas sociais.”

O aumento do encarceramento no Brasil nos últimos anos, principalmente em

decorrência da “guerra às drogas”, tem proporcionado algumas movimentações equivocadas

que tinham como sentido a resistência ao aprisionamento, porém, possui quase um efeito

contrário. Como a exemplo de criações de penas alternativas, a criação de prisões “vips”. São

movimentos que mais agravam e naturalizam o sistema penal. Um exemplo muito claro é a

prática da justiça restaurativa. Para a justiça restaurativa não está em questão o ato de punir,

muito pelo contrário, a justiça restaurativa está bastante embricada com as tendências neoliberal

de punir mais e melhor. São práticas que estão conectadas com a tendências das mais variadas

formas de punição fora do encarceramento propriamente dito (PASSETTI, 2020), ampliando

os instrumentos de disciplina e controle social e mesmo sendo formas alternativas de punir, não

necessariamente está ligado a diminuição do número de encarcerados, pelo contrário, é um

número que cresce a cada novo ano.

O movimento abolicionista também tem participado desses espaços de diálogos de

mediações reformistas do sistema penal, diálogos da justiça restaurativa, dado que, as condições

da vida no cárcere necessitam de intervenções imediatas, além da corrente reformista ao longo

dos tempos tem se inserido com êxito em algumas conquistas, como reformulação de leis, como

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49

também uma bandeira de promessa de “reinserção social”. Mas não se pode perder de vista que

defender apenas reformas no sistema penal, significa sua permanência na sua mesma essência

racista, bem como, reafirmar a ideologia de que é impossível a abolição do sistema penal.

A questão mais imediata hoje é como prevenir um aumento ainda maior das

populações carcerárias e como levar tantos detentos do sexo masculino e do

sexo feminino quanto possível de volta para o que os próprios chamam de “o

mundo livre”. Como podemos descriminalizar o uso de drogas e o comércio

de serviços sexuais? Como podemos levar a sério estratégias de justiça

reparadora em vez de uma justiça exclusivamente punitiva? Alternativas

eficazes envolvem a transformação tanto das técnicas de abordagem do

“crime” quanto das condições sociais e econômicas que levam tantos jovens

de comunidades pobres, especialmente das comunidades de pessoas de cor, ao

sistema correcional juvenil e depois à prisão. O desafio mais difícil e urgente

hoje é explorar de maneira criativa novos terrenos para a justiça nos quais a

prisão não seja mais nossa principal âncora (DAVIS, 2019a, p. 22).

4.2 PERSPECTIVAS POLÍTICAS DAS ESTRATÉGIAS ABOLICIONISTAS

Davis (2019a) nos faz comparar algumas instituições que foram bem consolidadas,

que estavam em um lugar de essencialidade e de interesses econômicos, políticos e socias de

uma classe e raça dominantes, mas que se tornaram obsoletas. Sendo um exemplo muito claro,

a escravidão, o linchamento e a segregação. O exercício de pensar o quão deveria ser difícil

vislumbrar uma organização social sem a escravidão, mas que foi possível chegar a uma

abolição, por mais que esse momento no Brasil tenha ocorrido em contexto de interesses da

elite branca, mas também por muita luta e resistências de movimentos negros que lutavam por

uma democracia plena, bem como, hoje ativistas antiprisionais defendem a abolição com o

mesmo propósito de democracia legitima.

O método de encarcerar pessoas, surgiu juntamente com a ascensão do sistema

capitalista e não é nenhuma coincidência. Temos que pensar que esse sistema penal que

encarcera classe trabalho, principalmente a classe trabalhadora afro-brasileira, faz parte da

necessidade de produzir criminalização, contenção e empobrecimento dessa população, e da

manutenção do sistema capitalista. Estar na luta de combate do capitalismo é necessariamente

abraçar a luta contra o sistema penal.

O grande maior entrave em promover debates sobre o abolicionismo penal é o

questionamento do que viria depois e do que substituiria esse sistema. Bem como, há uma

expectativa que abolicionistas penais tenhamos a obrigação de ter tudo estruturado de como

será esse depois e como lidar com tantos encarcerados, com essa população que cometeram

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50

atos infracionais. Pensar dessa forma simplificada e individualizada não é o caminho para uma

reflexão mais profunda para um caminho de tornar as prisões obsoletas.

O primeiro caminho de ponderação é pensar que o sistema penal não é algo isolado do

setor de segurança. Como foi enfatizado anteriormente, o sistema penal está historicamente e

completamente imbricado com as necessidades do sistema capitalista e racista. Em toda a

história do Brasil é testemunhado a criação e ascensão do sistema penal brasileiro

desempenhando o papel de criminalizar, em manter a escravidão, em conter e impedir a

integralidade social de afro-brasileiros sempre em propício da manutenção da política

econômica e social regida pela elite branca brasileira. Sem descolar do processo histórico do

sistema penal brasileiro, trazendo para a nossa contemporaneidade de capitalismo monopolista,

de grandes corporações e tecnologia; vivenciamos o convênio desse modelo capitalista e o

sistema penal. Sendo assim, podemos começar a dialogar mais profundamente o real propósito,

permanência e para quem ele de fato serve e o quão está conectado com todas as estruturas

político-econômica, político-social e nuances na esfera de classe, raça e gênero do sistema

capitalista.

Ao tratar o sistema penal e suas as relações políticas, sociais e econômicas, as

estratégias e intervenções abolicionistas precisam estar pautadas nessas nuances. Significa

perpassar por lutas no âmbito de raça, classe, gênero. Lutas por uma educação democrática, em

combate a militarização desse espaço. Lutas por um acesso a saúde de qualidade democrático

e gratuito para todos e principalmente uma luta anticapitalista. Voltando a grande referência do

Du Bois trabalhada pela Davis, é uma estratégia para o abolicionismo penal a criação de novas

instituições que possam de fato trabalhar as nuances e expressões da questão social que tendem

a encarcerar uma certa parte da população e que essas instituições possam substituir o sistema

penal da nossa organização social e do nosso ideológico de necessidade de punição. Davis

(2019a, p. 116) analisa o âmbito do fortalecimento das escolas, sem militarização, com um

ensino democrático e representativo como uma forma de estratégia para a diminuição de

encarcerado:

As escolas devem, portanto, ser encaradas como a alternativa mais poderosa

às cadeias e prisões. A menos que as atuais estruturas de violência sejam

eliminadas das escolas nas comunidades pobres e de pessoas de cor —

incluindo a presença de guardas e policiais armados — e a menos que o

ambiente escolar se torne um lugar que incentive o prazer de aprender, as

escolas continuarão a ser o principal canal para as prisões. A alternativa seria

transformar as escolas em veículos para o desencarceramento.

Page 51: OS SENTIDOS DO ABOLICIONISMO PENAL NA REALIDADE …

51

Ao debater o setor da saúde, é nítido, e principalmente em nossa conjuntura de governo

federal no que se refere ao sucateamento do Sistema Único de Saúde, sistema esse, que que tem

como dever prover a garantia de acesso à saúde de forma gratuita a todos. A população que se

encontra em condições de pobreza recorre ao SUS como um dos seus únicos meios de acesso à

saúde, e são recepcionados por sistema que está fragilizado e sem condições de proporcionar

um acolhimento imediato. É palpável que o direito ao acesso à saúde é incompatível entre a

população na situação de pobreza e a população burguesa. A população empobrecida não possui

meios financeiros para recorrer a outras alternativas além do SUS, seja arcar financeiramente

com o acompanhamento à saúde particular, como a contratação de planos de saúde também no

âmbito particular. É necessário ter consolidado que o acesso a um direito com qualidade se

esbarra na disparidade de classe e de raça no Brasil.

A descriminalização das drogas é outro fato a ser defendido e trabalhado, tanto para

combater o racismo, quanto para a luta do desencarceramento. Haja vista que, a criminalização

das drogas e principalmente a “guerra as drogas” instaurada no Brasil tem levado muitos afro-

brasileiros em situação de pobreza ao encarceramento. Nesse sentido, é necessário pensar o

usuário de drogas como uma demanda de saúde pública, além da necessidade do

desenvolvimento de programas, projetos fortalecidos de redução de danos para que esses

usuários possam recorrer de forma acessível e gratuita. É um caminho mais efetivo no objetivo

de tratar diretamente a relação da dependência de drogas que alguns países já tem adotado,

tendo em vista que encarcerar essas pessoas é apenas uma forma de punir, sem efetivação direta

com a dependência em questão, além de não obter nenhum resultado em relação a uma

diminuição, seja no tráfico, ou no consumo. E mais uma vez nos vemos no debate de um

Sistema Único de Saúde bem consolidado no que se refere aos investimentos e ampliação. Um

dos exemplos que pode ser citado dos inúmeros países que vem adotando uma postura de

redução de danos é Portugal, segue um trecho de um artigo do jornal El País, relatando como

Portugal se tornou referência mundial na regulação das drogas, é nítido os resultados positivos

colhidos, seja na diminuição do consumo de drogas, como na diminuição da transmissão de

algumas doenças, como também a diminuição de encarceramento por motivos de drogas:

Foi então que o Governo aprovou uma nova estratégia que começaria a ser

implementada dois anos depois, após longos debates com a sociedade civil e

no Parlamento. A legislação estava longe de ser revolucionária:

descriminalizar o consumo daqueles que portassem no máximo 10 doses de

uma determinada substância ilícita. Não muito diferente do que acontece

na Espanha, por exemplo. Mas o que fez a diferença foi a mudança de

sensibilidade em relação aos viciados: deixaram de ser tratados como

criminosos, receberam programas de cuidados, de substituição de heroína por

Page 52: OS SENTIDOS DO ABOLICIONISMO PENAL NA REALIDADE …

52

metadona, foram incluídos no sistema de saúde para tratarem suas doenças.

Os resultados não demoraram a chegar. Apesar de o consumo global de drogas

não ter diminuído, o de heroína e cocaína, duas das mais problemáticas,

passou de afetar 1% da população portuguesa para 0,3%; As contaminações

por HIV entre os consumidores caíram pela metade (na população total,

passaram de 104 novos casos por milhão ao ano em 1999 para 4,2 em 2015),

e a população carcerária por motivos relacionados às drogas caiu de 75% a

45%, segundo dados da Agência Piaget para o Desenvolvimento (LINDE,

2019).

É necessário apontar que esses programas, projetos de redução de danos necessitam

possuir um caráter universal e gratuito. Não é só uma questão de estabelecer novas alternativas

não-criminalizantes desses usuários, pois esse suporte de instituições que tratam de usuários de

drogas existe igualmente nos países que estão traçando a “guerra as drogas”, o ponto é que essas

instituições são de cunho particular e de custos muito altos. Ou seja, mais uma vez o recorte de

classe e raça nesse contexto. O usuário de drogas de classe alta, não será tratado como um

criminoso, será tratado apenas como um dependente que precisa de um tratamento de cunho de

redução de danos, pois existe a possibilidade de arcar com os custos dessas instituições. Nessa

mesma posição de usuário e drogas, a classe pobre e de cor do país é afogada na criminalização

e no encarceramento. A luta precisa ser na criação de instituições que possam contribuir com o

desencarceramento, mas sempre levantar a pauta de que elas precisam ser gratuitas e para todos.

Outra pauta de intensa relevância, principalmente porque ela tem sido uma discussão

central ao redor do mundo, é a questão de imigrantes. Tem sido centro de discussões a nível

mundial, pois essa evasão de pessoas do se lugar de origem em destino a outros países, tem sido

bastante recorrente. Essas pessoas se motivam a sair de seus países de origem, por motivos

variados, seja fugindo de guerras, de violência, de intolerâncias, da extrema pobreza. Porém,

os motivos sempre se voltam a busca dessas pessoas de viverem de forma mais digna e

melhorarem sua qualidade de vida. Ou seja, a deslocação de pessoas para países de “primeiro

mundo” resulta das desigualdades do capitalismo global, a estruturação econômica dos países.

Em resposta a essa imigração, os países que são os destinos desses emigrantes têm adotado a

política de criminalizar essas pessoas que entram no país de forma irregular. Nos últimos anos,

esses países têm investido em centros de detenções específicos para imigrantes, encarcerando

essas pessoas, além de ser fonte de lucro de muitas corporações que fortalecem o complexo

industrial prisional. Segue um trecho de um artigo da BBC que discute os lucros por trás do

encarceramento de imigrantes nos Estados Unidos:

Além dos centros de detenção, há também uma ‘complexa rede de negócios

privados lucrando com a crise migratória’, segundo Tylek. ‘No setor de

transportes, por exemplo, estão as empresas que transportam os imigrantes

Page 53: OS SENTIDOS DO ABOLICIONISMO PENAL NA REALIDADE …

53

desde a fronteira até os centros de detenção. Em alguns casos, as empresas de

transporte são propriedade dos mesmos conglomerados donos dos centros de

detenção. Isso ocorre com o Geo Group e o CoreCivic, por exemplo’, diz ela.

Além disso, diversas companhias aéreas americanas alugam seus aviões para

o transporte de imigrantes, para deportação ou para enviá-los a centros de

detenção. Nas últimas semanas, com o aumento das críticas públicas, muitas

delas se negaram a transportar crianças que tivessem sido separadas de suas

famílias. O fornecimento de alimentação e telefonia para os centros de

detenção também produz contratos lucrativos (BERMÚDEZ, 2018).

Não é necessário ir muito longe para compreender diante do que foi exposto aqui, que

é mais lucrativo criminalizar imigrantes, do que investir em uma política de acolhimento e de

seguridade de direitos dessa população. Trazendo para a realidade do Brasil, que também está

tendo um aumento significativo no número de imigrantes, é muito comum ver essas pessoas

em situação de rua, em sinais de trânsito pedindo alguma contribuição financeira, ou

executando trabalhos insalubres, como limpando para-brisas de carros, ou vendendo balas. Essa

população pode não ser inserida no cárcere de imediato ao chegar no país, mas as condições de

desassistência que encontram, fazem com que os levem a serem criminalizados. Ou seja, uma

população que saiu do seu país de origem, buscando dignidade de vida, chega no país de destino

para se inserir em condições até piores, por falta de políticas fortalecidas de acolhida e garantias

para essas pessoas.

Como já foi amplamente discutido anteriormente o sistema penal brasileiro foi

concebido nos moldes do racismo de um sistema de exploração de corpos, e ao longo de todo

o processo histórico apenas se adaptou as novas realidades e criou novas formas de criminalizar

negros e pobres. Não há como discutir e desenvolver um abolicionismo penal brasileiro, sem

discutir o racismo como base estruturante desse sistema. As lutas contra o racismo também não

podem ser descoladas da luta pelo desencarceramento.

Essa compreensão mais elaborada do papel social do sistema de punição exige

que abandonemos nossa maneira habitual de pensar sobre a punição como

uma consequência inevitável do crime. Teríamos que reconhecer que o

“castigo” não é uma consequência do “crime” na sequência lógica e simples

oferecida pelos discursos que insistem na justiça do aprisionamento, mas sim

que a punição — principalmente por meio do encarceramento (e às vezes da

morte) — está vinculada a projetos de políticos, ao desejo de lucro das

corporações e às representações midiáticas do crime (DAVIS, 2019a, p. 121).

Davis (2019a) traz também a alternativa de transferir crimes para a responsabilidade

de civil e não criminal, como uma forma de combater a retaliação dessas pessoas. Em alguns

países e até mesmo nos Estado Unidos, algumas organizações e os próprios indivíduos tem

adotado o método de justiça restaurativa ou reparadora. Consiste em tratar o indivíduo que

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54

cometeu o ato em um devedor e não em um criminoso, mas devendo se responsabilizar pelo

ato cometido e repara-lo.

Hulsman e Celis (2018) também é outro pensador que traz uma estratégia essencial

rumo a uma mudança de mentalidade em relação a estigmas e estereótipos. Ele afirma que a

modificação da linguagem usada, como exemplo as palavras crimes, criminoso, criminalidade,

substituindo para palavras como “situações problemáticas”, “pessoas envolvidas”, seria uma

forma de romper com o ideológico criado em cima da figura do “criminoso” e do ato

infracional. Além de possibilitar novas formas de resolver tais acontecimentos conflitantes.

A dificuldade de pensar em uma vida sem prisões está muito atrelado aos ideológicos

que sustentam a nossa contemporaneidade e o sistema penal. O sistema penal tem sido usado

para dissuadir os reais problemas societário de um país capitalista periférico. O sucateamento

e privatização de direitos básicos, como educação e saúde. O desvio de foco das lutas de gênero,

de classe, a própria pobreza. Os objetivos são sempre distanciar as massas de um embate frente

as condições que o capitalismo está propiciando. Para que caia por terra a ilusão de que o

sistema penal é uma solução de problemas, o movimento abolicionista precisa traçar estratégias

anticapitalistas, o movimento nunca será apenas uma luta para o fim das instalações físicas das

prisões e do sistema penal, é uma luta principalmente ideológica. O abolicionismo penal precisa

vir na educação dos indivíduos, sendo trabalhado na subjetividade, mas ao mesmo tempo que

trata o individual, trata também de uma absorção coletiva. Davis (2018, p. 36) traz o quão o

sistema penal nos limita em algumas reflexões:

Por que aquela pessoa é má? A prisão impede essa discussão. Qual é a

natureza dessa maldade? O que a pessoa fez? Por que a pessoa fez aquilo? Se

pensarmos a respeito de alguém que cometeu atos de violência, o que permite

aquele tipo de violência? Por que os homens se envolvem em comportamentos

violentos contra as mulheres? A própria existência das prisões impossibilita

esse tipo de discussão, que é necessário para que imaginemos a possibilidade

de erradicar tais condutas.

O capitalismo monopolista detectou o sistema penal como uma forma de lucro. Há a

necessidade de mais corpos criminalizados e encarcerados para que o sistema penal siga

funcionando e ampliando suas estruturas. Aí entra as empresas terceirizadas prestando os mais

diversos serviços para essas estruturas, além de diversas empresas de segurança que lucram

com a banalização da criminalização. Diante do exposto, o maior grande interessado atual na

manutenção e ampliação do sistema penal são as grandes corporações do capitalismo

monopolista. Davis (2018, p. 101) traz uma fala bem emblemática do real significado do

sistema penal:

Page 55: OS SENTIDOS DO ABOLICIONISMO PENAL NA REALIDADE …

55

Coloquem-nas, todas, em uma imensa lata de lixo, acrescentem algum tipo de

tecnologia eletrônica sofisticada para controlá-las e deixem que definhem ali.

Ao mesmo tempo, criem a ilusão ideológica de que a sociedade ao redor está

mais segura e mais livre porque pessoas negras, latinas, indígenas e asiáticas

perigosas, pessoas brancas perigosas e, decerto, pessoas muçulmanas

perigosas estão trancadas!

Os indivíduos que se inserem no cárcere, são pessoas que tiveram suas vidas

perpassadas por violações de direitos, não tiveram acesso à educação pública qualidade, a um

emprego, uma moradia, acesso a saúde pública de qualidade, ou seja, condições subumanas

proporcionadas pelo capitalismo e o que as restaram foi a criminalização e o cárcere, para que

a sociedade não sinta mais responsável por aquela vida que o capitalismo violou.

Outra estratégia citada por Davis (2018), é a necessidade de unificação e conexão das

lutas frente ao capitalismo. O que o feminismo negro interseccionalidade. É necessário haver

uma interseccionalidade das lutas, seja elas nacionais, como também internacionais, para que

possamos unificar forças em todas as causas e principalmente a anticapitalista.

4.3 O ABOLICIONISMO PENAL NA REALIDADE BRASILEIRA

O Brasil enquanto país capitalista periférico, com um sistema penal que em sua

essência de surgimento está atrelado aos interesses da classe dominante e segue servindo aos

mesmos propósitos, apenas se adequando as novas demandas. Como já foi citado anteriormente

os afro-brasileiros são sempre o que mais perpassam pelo sistema penal, em decorrência do

contexto histórico dos negros e o direito de uma integralidade social que sempre lhes forem

negadas. O encarceramento segue de uma certa forma escondendo essa população e suas reais

necessidades sociais e econômicas, propiciadas pelos problemas concretos no modo de

produção capitalista. No Brasil, segundo o Levantamento Nacional de Informações

Penitenciárias (2020), crimes que mais encarceram são crimes contra o patrimônio (38,65%) e

em seguida relacionados a drogas (32,39%).

Page 56: OS SENTIDOS DO ABOLICIONISMO PENAL NA REALIDADE …

56

Figura 1 – Quantidade de incidências por tipo penal

Fonte: Departamento Penitenciário Nacional (org.). Levantamento Nacional de Informações

Penitenciárias (2020)

Esses crimes contra o patrimônio que estão evidenciados no gráfico acima que

chegaram a o encarceramento, são crimes cometidos por indivíduos de condições

socioeconômicas precarizadas, são roubos de objetos pessoais, automóveis. Dificilmente temos

um encarceramento de crime por questões de crime patrimonial que sejam de fato

economicamente grande, como a exemplo de questões tributárias. Sendo assim, é notório que

o sistema penal alcança pessoas que estão expostas as expressões da questão social no sistema

capitalista e consequentemente atinge a maior parte dos afro-brasileiros.

O marco no aumento no número de encarcerados que se inserem em decorrência

de crime relacionado as drogas se caracterizou principalmente após a Lei Federal nº

11.343/2006, a partir de então foi intensificado o processo de criminalização tanto do que se

trata do tráfico de drogas, como também para os usuários. Ao criminalizar também os usuários

têm-se a situação de tratar questões de saúde pública, redução de danos de uma forma criminal.

A guerra as drogas, baseada no proibicionismo, fez com que os números do encarceramento

aumentassem exorbitantemente, ignorando qualquer tipo de realidade objetiva das pessoas que

se inserem no cárcere em decorrência dos crimes de drogas e mais uma vez criminalizando

Page 57: OS SENTIDOS DO ABOLICIONISMO PENAL NA REALIDADE …

57

majoritariamente determinados grupos sociais que são a ponta mais frágil do sistema de tráfico

de drogas e usuários.

Segue gráfico da quantidade de incidências por tipo penal dividido por gênero

masculino e feminino:

Figura 2 – Quantidade de incidências por tipo penal, Masculino e Feminino.

Fonte: Departamento Penitenciário Nacional (org.). Levantamento Nacional de Informações

Penitenciárias (2020)

Nesse gráfico dividido por gênero masculino e feminino, é evidente um número

considerável do gênero feminino se enquadrando em crimes de drogas. As mulheres tem se

inserido no encarceramento de forma muito expressiva, principalmente em decorrência do

crime de tráfico de drogas. Essas mulheres, devido as condições objetivas de pobreza, mulheres

essas que geralmente são as responsáveis pelo núcleo familiar, tem tomado um lugar no sistema

de tráfico de drogas em seu geral como “mulas”7 de droga. Ou seja, essas mulheres ocupam

um lugar de vulnerabilidade, de exposição e de descarte maior mesmo nessas atividades ilegais,

a discussão de gênero perpassa todas as estruturas socais.

É inadiável tomar como uma estratégia abolicionista o desinvestimento no

sistema penal. Como já foi analisado anteriormente, o complexo industrial prisional tem

avançado, e essa inserção direta de lucratividade capitalista no sistema penal tem sido a amarra

mais difícil de se romper para pensarmos mais concretamente em um projeto de uma sociedade

sem o sistema penal. Seguindo nessa estratégia, devemos lutar para o direcionamento desses

orçamentos destinados ao setor de segurança, para setores de direitos sociais, educação, saúde,

políticas públicas, assistência social.

7 Indivíduo que realiza o transporte de droga transfronteiriço.

Page 58: OS SENTIDOS DO ABOLICIONISMO PENAL NA REALIDADE …

58

É muito bem apregoado como consenso geral a ideia de que para termos uma

ordem social, manutenção da integridade das pessoas, é necessário encarcerar determinados

indivíduos. Contudo, pouco se reflete sobre as motivações reais de encarceramento desses

corpos, tornando-se assim, algo distante abstrato. O abolicionismo como estratégia política de

classe, supõe engendrar um trabalho de base, a partir da tomada de consciência da massa

popular de que o sistema penal é apenas uma máquina de criminalizar, excluir e matar pessoas.

É substancial deixar entendível que é um sistema que mesmo com seu intuito inicial de

substituir os regimes de punição pautados os castigos físicos e execuções públicas, segue

agredindo corpos e os assassinando. Além de descortinar a ideia de que o sistema penal e sua

expansão atua diretamente na diminuição de ocorrência de crimes e violência, são variantes que

não correm na mesma direção e proporção. Ao alcançar uma consciência popular, a

reivindicações abolicionistas vira pauta popularizada. O Hulsman e Celis (2018, p. 61-62)

afirma o quão os corpos encarcerados são agredidos em situação de encarceramento:

Mas, é também um castigo corporal. Fala-se que os castigos corporais foram

abolidos, mas não é verdade: existe a prisão, que degrada os corpos. A

privação de ar, de sol, de luz, de espaço; o confinamento entre quatro paredes;

o passeio entre grades; a promiscuidade com companheiros não desejados em

condições sanitárias humilhantes; o odor, a cor da prisão, as refeições sempre

frias onde predominam as féculas - não é por acaso que as cáries dentárias e

os problemas digestivos se sucedem entre os presos! Estas são provações

físicas que agridem o corpo, que o deterioram lentamente.

Pensar em abolir o sistema penal, significa abolir também ideologicamente. É

necessário desconstruir o sistema penal como um meio de trazer segurança, resolver os

problemas, afastar e punir o inimigo. Ou seja, uma mudança de percepção, de como ligar com

ações conflitantes. Tudo isso envolve uma série de mediações que precisam desvelar a forma

como a banalização do crime se processa na sociedade e no prisma do aparato legal

institucional, de modo que permear a alienação ideológica e estrutural da ordem capitalista

fundamentada na criminalização da pobreza. Trazendo para a realidade objetiva brasileira e o

contexto histórico marcado por escravidão dos corpos negros e o seguimento da não

integralidade social dos afro-brasileiros é necessário o abolicionismo frente a ideologia racista.

Ao tratar das perspectivas do sistema penal brasileiro e a presença determinante

do racismo estrutural, as lutas abolicionistas se fazem fundamentais na realidade brasileira para

fins de garantia de direitos humanos, garantia de políticas públicas sociais, a partir de uma

sociedade com práticas libertárias. O abolicionismo penal deve estar presente nos segmentos

de lutas atuais, além de ser tratado como um movimento em prática e não como uma utopia.

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59

Deixar sempre enfatizado que não é um movimento que visa reformas, ou manutenção e sim

um movimento que é uma viabilidade incomparável e possui de abolir o encarceramento da

população que está à mercê do sistema penal.

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60

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O abolicionismo penal é uma luta urgente a ser democratizada em âmbito

universal. O processo histórico brasileiro é construído através da exploração e genocídio de

povos, em prol do domínio dos colonizadores, um país cuja condição econômica e social da sua

formação nacional esteve e permanece submetida à dinâmica capitalista dependente de

desenvolvimento desigual e combinado do capitalismo mundial. Aqui, o sistema penal emergiu

a serviço de uma classe e de seus interesses capitalistas de proteção e ampliação da propriedade

privada burguesa, sem que precisasse bancar os débitos pressupostos na perspectiva moderna

dos pactos de civilidade do capitalismo ocidental. Revestida de uma ideologia da ordem

abarcadas por falsas condutas morais, criou um distintivo social, determinando quem é “útil”

para o sistema capitalista do lado de fora e quem é mais “útil” dentro das prisões. Assim, o

sistema penal brasileiro é uma grande máquina de moer gente, corpos que possuem raça, que

fazem parte de uma determinada classe social, que possuem determinadas subjetividades, que

tiveram e têm seus direitos fundamentais negados e violados, velado pelo manto da

“democracia racial”.

O movimento abolicionista precisa ser uma pauta de lutas em todos os

segmentos de lutas da sociedade e principalmente anticapitalista, pois estamos todos presos a

esse sistema que sempre será seletivo, violador de direitos de alguns e jamais romperemos com

as violações das minorias. O capitalismo necessita das expressões da questão social, das

periferias para seguir operando, que sempre precisará de um sistema penal reformado ou não,

mas um sistema que não perderá sua essência de operar aos interesses da manutenção dos lucros

capitalistas. O sistema penal é um grande negócio extremamente lucrativo para o capitalismo

que serve tanto à ilegalidade como também ao legalismo, ou seja, é um sistema utilitarista das

classes dominantes.

O crescimento do conservadorismo é um fenômeno mundial. Contudo, em

países da periferia capitalista, o contexto de crise do capital convive com o levante de

vanguardas neoliberalistas e protofascistas, que flertam com os interesses imperialistas centrais

e asfixia com ameaças, expropriações e violações de direitos sociais a frágil democracia

burguesa conquistada historicamente pelas lutas populares e do conjunto de trabalhadores/as.

A maior expressão disso, no Brasil, é representada pelo bolsonarismo, o processo de

sucateamento de políticas públicas, retirada de direitos e a guerra aos pobres tem se

intensificado e sido mais evidenciado nos últimos anos, através do encarceramento em massa,

Page 61: OS SENTIDOS DO ABOLICIONISMO PENAL NA REALIDADE …

61

do aumento da letalidade policial, em determinados territórios. Além da falácia de um

posicionamento aberto bolsonarista de intensificação nos segmentos de segurança. Essa

intensificação não significa necessariamente investimentos, mas trago com o significado de

uma legitimação de torturas, de matar corpos sem muito receio de velar a conduta de letalidade

policial.

Apesar de uma conjuntura quase que inteiramente desfavorável para concretização de

lutas sociais, é necessário a resistência e traçar estratégias que concretizem a resistência. A

universidade, mesmo sendo impactada com os retrocessos da onda bolsonarista, ainda é um

espaço propício de resistência, através dos espaços de trocas de debates, das produções

acadêmicas e democratização do conhecimento crítico. É necessário um fortalecimento das

bases de resistência, de uma democratização de conhecimentos e conscientização popular e

principalmente das lutas unificadas, a necessidade de um entendimento e concretização da

interseccionalidade das lutas, feministas, antiracistas, anticapitalistas, LGBTQIA+, dos

imigrantes. É necessário traçar estratégias internacionais, e que esses movimentos possam se

apoiarem e se fortalecerem ao objetivo de uma emancipação social, tendo em vista que as

questões, de classe, raça, gênero no sistema capitalista se interseccionam e geram diversas

formas de opressão.

Tendo o entendimento que o abolicionismo penal brasileiro precisa estar

essencialmente sedimentado na luta antiracista e anticapitalista se torna de fato uma

concretização distante, tendo em vista o contexto mundial e brasileiro de ascensão do

neoliberalismo no sistema capitalista e uma superação do capitalismo como algo

ideologicamente e concretamente ainda muito distante. Porém, o fatalismo não é o caminho que

irá mudar a realidade ou nos fortalecer. A resistência do movimento, o debate abolicionista seja

pela academia, como nas frentes populares de desencarceramento, nas famílias de jovens que

estão encarcerados. É uma forma de sedimentar raízes e de questionar o hoje, o hoje de um

sistema penal que racionalmente não possui funções de proteger a integridade de pessoas, mas

que possui funções de contenção social, seletividade, punitivismo e genocida em função das

classes dominantes em seus interesses de falsa moralidade, políticos e econômicos. Precisamos

ter objetivos utópicos para resistir e solidificar caminhos que nos leve aos objetivos utópicos e

nos faça superar esse capitalismo da barbárie.

Page 62: OS SENTIDOS DO ABOLICIONISMO PENAL NA REALIDADE …

62

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