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Nesses tempos em que o consumismo, e a busca do ter atormentam tanta gente, a simplicidade torna- se uma das mais raras e valiosas qualidades humanas! Ela nos une à natureza, mostra-nos a verdadeira importância da vida, das coisas e das pessoas. Afasta-nos do luxo, da sofisticação, da falsa aparência, daquilo de que não necessitamos. Mas também, viver de forma simples pode ser um aprendizado que se adquire ao longo de uma vida, onde as dificuldades, a escassez e a insuficiência de direitos tenha traçado linhas estreitas na caminhada da existência. Seu João Pedro dos Pau D'arcos, como é conhecido e D. Ana Alves de Antunes, vivem numa simplicidade surpreendente! Conhecendo o lugar onde moram, analisando o jeito que levam a vida e conversando com eles, somos convidados a uma extraordinária viagem pelas suas histórias, relembrando nossos antepassados indígenas. Antigas memórias e verdadeiros valores podem ser descobertos em nós mesmos, quando pensamos na leveza que uma vida simples pode nos trazer! Ele é uma pessoa muito agradável. Acolhe com alegria quem chega na sua singela e bela casa, ou mais precisamente na sua “sala de visita”, que é uma aconchegante palhoça, onde passa boa parte do dia em um tucum. Ela, sua esposa, sábia e paciente, recebe os visitantes amorosamente, oferecendo de vez em quando, um delicioso cafezinho e participando da conversa, com franqueza e naturalidade. Maria, uma de suas filhas, sempre nos acompanha nesses encontros. Sorridente e serena, demonstra admiração e respeito ao que seus pais dizem e como decidem levar a vida. Depois de terem enfrentado juntos, tantos momentos difíceis, seu João e dona Ana aprenderam a viver com o mínimo necessário. Não é na posse de nada que eles depositam a segurança ou a felicidade. As palavras de seu João dizem isso: “Toda vida eu tive felicidade! Toda vida!” Tem satisfação em contar que seu pai abrigava em sua casa, aqueles que chegavam com fome, precisando de um lugar pra morar. Daí passavam a fazer parte da família. “Nunca sofri, nada, nada! Tenho 94 anos, graças a Deus, não tem problema nenhum na minha vida, de jeito nenhum! Eu plantava, tudo eu tinha, mas eu não trabalhava pros outros nera? Era só dentro de casa. Aquele poquim que eu arrumava ajuntava dentro de casa. Eu nunca no mundo tive maldade com ninguém não! Nunca, nunca, por isso que eu tenho felicidade!” O desapego de seu João aos bens materiais é tão grande que chega a dar todo o valor da sua aposentadoria. “E você sabe por que eu dou? Dou! A senhora sabe, eu sou aposentado com essa muié, ela tira o dinheiro dela, eu tiro o meu. Eu não sei o que é que ela faz do dinheiro dela, num sei quanto ela tira, num sei quando ela tira, agora eu tiro o meu. É uma menina que tira, me deu aqui mil conto, eu tirei duzentos pra um, cem pra outro, duzentos pra outro, e pra pessoa de fora também. Pra pessoa de fora, dou tudo, dou tudo, fico sem nada! Maria, sua filha rir e diz: “Ele tem essa vontade de ajudar os outros!” Mas é se a pessoa pedir? “Não, não precisa a pessoa pedir não, eu pego o que eu tenho e dou tudo, dou tudo!. Desde d'eu criança que eu tenho distino de dar, graças a Deus nunca me faltou nada, nunca, nunca!” Viver com o mínimo necessário, de fato não é uma lição fácil de ser compreendida e aplicada, mas é possível de ser bem vivida. As vezes a simplicidade é uma escolha, outras vezes estamos obrigados a adotá-la para convivermos em situações desfavoráveis. O importante é percorrer o caminho da solidariedade, da partilha, do desapego, da paz e da delicadeza que uma vida simples nos oferece, sem contudo abrirmos mão dos nossos direitos e de uma participação ativa na sociedade, que construímos com o nosso trabalho. Finalizando nossa conversa seu João revela sua magnífica sabedoria com essas belas palavras: “Me perguntaram: João tu sabe o que é a humanidade? Sei, nós somos todos irmãos! Da humanidade nós tem um pedaço. O segredo é o pensamento. Tudo quem faz é o pensamento!" O que é felicidade? Ele responde: “Felicidade é ter saúde e paz!” Emocionado, despede-se com os olhos cheios de lágrimas. OS SIMPLES SABERÃO O QUE Boletim Informativo do Programa Uma Terra e Duas Águas Ano 9 • nº1837 Março/2015 São Benedito Realização Apoio Boletim Informativo do Programa Uma Terra e Duas Águas É FELICIDADE

Os simples saberão o que é felicidade

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A história de Seu João e D. Ana reflete o valor da simplicidade, elemento fundamental na convivência com o semiárido. A riqueza da partilha do pouco que se tem e do muito que se sabe mostra o quanto isso foi importante para que o casal enfrentasse as estiagens, as dificuldades materiais e ficasse na terra. Resistir aos apelos do consumismo e ao acúmulo de bens é praticar na vida simples, a cultura da paz do sossego e da felicidade.

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Page 1: Os simples saberão o que é felicidade

N e s s e s tempos em que o consumismo, e a b u s c a d o t e r atormentam tanta g e n t e , a simplicidade torna-se uma das mais raras e valiosas q u a l i d a d e s humanas! Ela nos une à natureza, m o s t r a - n o s a verdadeira importância da vida, das coisas e das pessoas. Afasta-nos do luxo, da sofisticação, da falsa aparência, daquilo de que não necessitamos. Mas também, viver de forma simples pode ser um aprendizado que se adquire ao longo de uma vida, onde as dificuldades, a escassez e a insuficiência de direitos tenha traçado linhas estreitas na caminhada da existência.

Seu João Pedro dos Pau D'arcos, como é conhecido e D. Ana Alves de Antunes, vivem numa simplicidade surpreendente! Conhecendo o lugar onde moram, analisando o jeito que levam a vida e conversando com eles, somos convidados a uma extraordinária viagem pelas suas histórias, relembrando nossos antepassados indígenas. Antigas memórias e verdadeiros valores podem ser descobertos em nós mesmos, quando pensamos na leveza que uma vida simples pode nos trazer!

Ele é uma pessoa muito agradável. Acolhe com alegria quem chega na sua singela e bela casa, ou mais precisamente na sua “sala de visita”, que é uma aconchegante palhoça, onde passa boa parte do dia em um tucum. Ela, sua esposa, sábia e paciente, recebe os visitantes amorosamente, oferecendo de vez em quando, um delicioso cafezinho e participando da conversa, com franqueza e naturalidade. Maria, uma de suas filhas, sempre nos acompanha nesses encontros. Sorridente e serena, demonstra admiração e respeito ao que seus pais dizem e como decidem levar a vida.

Depois de terem enfrentado juntos, tantos momentos difíceis, seu João e dona Ana aprenderam a viver com o mínimo necessário. Não é na posse de nada que eles depositam a segurança ou a felicidade. As palavras de seu João dizem isso: “Toda vida eu tive felicidade! Toda vida!” Tem satisfação em contar que seu pai abrigava em sua casa, aqueles que chegavam com fome, precisando de um lugar pra morar. Daí passavam a fazer parte da família. “Nunca sofri, nada, nada! Tenho 94 anos,

graças a Deus, não tem problema nenhum na minha vida, de jeito nenhum! Eu plantava, tudo eu tinha, mas eu não trabalhava pros outros nera? Era só dentro de casa. Aquele poquim que eu arrumava ajuntava dentro de casa. Eu nunca no mundo tive maldade com ninguém não! Nunca, nunca, por isso que eu tenho felicidade!” O desapego de seu João aos bens materiais é tão grande que chega a dar todo o valor da sua aposentadoria. “E você sabe por que eu dou? Dou! A senhora sabe, eu sou aposentado com essa muié, ela tira o dinheiro dela, eu tiro o meu. Eu não sei o que é que ela faz do dinheiro dela, num sei quanto ela tira, num sei quando ela tira, agora eu tiro o meu. É uma menina que tira, me deu aqui mil conto, eu tirei duzentos pra um, cem pra outro, duzentos pra outro, e pra pessoa de fora também. Pra pessoa de fora, dou tudo, dou tudo, fico sem nada! Maria, sua filha rir e diz: “Ele tem essa vontade de ajudar os outros!” Mas é se a pessoa pedir? “Não, não precisa a pessoa pedir não, eu pego o que eu tenho e dou tudo, dou tudo!. Desde d'eu criança que eu tenho distino de dar, graças a Deus nunca me faltou nada, nunca, nunca!” Viver com o mínimo necessário, de fato não é uma lição fácil de ser compreendida e aplicada, mas é possível de ser bem vivida. As vezes a simplicidade é uma escolha, outras vezes estamos obrigados a adotá-la para convivermos em situações desfavoráveis. O importante é percorrer o caminho da solidariedade, da partilha, do desapego, da paz e da delicadeza que uma vida simples nos oferece, sem contudo abrirmos mão dos nossos direitos e de uma participação ativa na sociedade, que construímos com o nosso trabalho.

Finalizando nossa conversa seu João revela sua magnífica sabedoria com essas belas palavras: “Me perguntaram: João tu sabe o que é a humanidade? Sei, nós somos todos irmãos! Da humanidade nós tem um pedaço. O segredo é o pensamento. Tudo quem faz é o pensamento!" O que é felicidade? Ele responde: “Felicidade é ter saúde e paz!” Emocionado, despede-se com os olhos cheios de lágrimas.

OS SIMPLES SABERÃO O QUE

Boletim Informativo do Programa Uma Terra e Duas Águas

Ano 9 • nº1837

Março/2015

São Benedito

Realização Apoio

Boletim Informativo do Programa Uma Terra e Duas Águas

É FELICIDADE

Page 2: Os simples saberão o que é felicidade

Romper a timidez, iniciar uma conversa era coisa complicada antigamente. Seu João passou por essa dificuldade e precisou de uma ajudinha! Ele nos conta essa história com precisão de detalhes, como se tudo tivesse acontecido ontem. “Aí nesse dia eu fui pa festa, cheguei lá, muito matuto. Era numa latada assim. Aquele friviado, aí eu vim e me pus assim no pé duma furquia. Aí eu tava ali, cumpoca, chegou uma mocinha, foi puracolá, foi puraculá, cumpoca tava de olho ni mim. Eu saí dali e fui bem praculá. Cumpoca ela andou, andou, andou, cumpoca tava lá, puxou uma cunvesinha, mas eu não cunvesava, que eu num sabia. De vez em quando ela botava uma cunvesinha e eu saía puracolá. Um sujeito ia passando e disse assim: rapaz a moça quer cunvesar contigo e tu não cunvesa rapaz! Será arrumação! Não, eu não quero cunvesar com ninguém não, e fui bem praculá. Ah, mas é matuto mermo! Eu fiquei nessa agunia! Eu ia pra lá, quando dava fé, ela tava lá. Eu ia pra cá, quando dava fé ela tava aqui. Quando foi uma das horas, eu tava assim nessa furquia do mei, ela vei puracula, vei vindo, vei vindo, aí tava junto de mim querendo cunvesar comigo e eu ali me incuiendo. Aí o caboco ia passando dançando e disse: Rapaz, cumé que a moça quer cunvesar contigo rapaz e tu anda é se escondendo rapaz, num faz uma coisa dessa não rapaz! Tu quer beber dois dedo de cachaça? Aí eu tava era me vendo de medo da moça! Eu quero! Ora mais, com 18 anos num é? Eu sabia que tinha cachaça, mas eu lá sabia que gosto tinha cachaça! Aí ele disse, pois anda, arrudiou assim, botou quase três dedos num copo, alí me deu... eu ouvia falar na cachaça, mas eu num sabia que gosto tinha. Botei na boca, achei ruim, mas engoli, engoli. Ora, num deu três minuto eu andava mais a moça!». E hoje, com tantos meios de comunicação que nos aproxima de quem vive tão longe, que nos mostra os acontecimento do mundo em tempo real, como está a qualidade da nossa comunicação, será que avançou mesmo? Seu João e Dona Ana viveram as secas de 32 e a de 58, experiências dolorosas para eles! Dos 14 filhos que tiveram apenas 3 sobreviveram, uma delas adotada. Várias causas provocaram a morte de tantas crianças: Abortos espontâneos, fome, doenças... Para suportar as dores de tantas perdas D. Ana recorre a uma espiritualidade consoladora dizendo: “Eu achei foi bom os bichim... Achei mermo! O povo diz tu é doida? Sou doida não, tenho é meu juízo, porque Deus quis levar, deixe levar!” Num tempo em que as Mulheres não tinham a mínima assistência à gravidez e ao parto, por parte do Estado, nem políticas de saúde voltadas para o combate à desnutrição, doenças infecciosas e outras, a mortalidade infantil era exageradamente elevada, principalmente na região Norte e no Semiárido Brasileiro. Estamos completando 100 anos da Seca do Quinze. Há muito o que se pensar e comparar com os dias atuais em que, assim como naquele tempo, estamos também completando um período de três anos seguidos de estiagem. O que mudou e o que ainda precisa mudar? Qual a contribuição que o Programa de Formação e Mobilização Social para a Convivência com o Semiárido, P1MC e o P1+2 tem trazido para as famílias enfrentarem os períodos de seca?

Na comunidade de Pau D'arco dos Altos, distante 10km de São Benedito – CE, num cantinho do Semiárido cearense, é onde mora o casal, seus filhos e netos. Na casa, uma trempe, um pequeno armário, potes de barro, duas camas, um tucum, alguns utensílios e duas mesas, é tudo o que existe lá!

Por que alguém deixaria de q ue r e r uma c a sa mo d e r na , mobiliada, com fogão à gás? D. Ana é ligeira na resposta: “Não tenho vontade de ter não, um fogão? Tem não senhora, tem não. Não tenho vontade! Porque as vezes o povo diz assim: faz um fogareiro pra tu cozinhar. Quero não, mermã, quero não. Fogareiro? Fura do lado de fora da parede, vem um menino solta uma paia dentro e eu não tenho vontade não! Eu não boto nada aí não. Boto só coisa de comida. É o feijão, é o arroz, é o açúcar é o café.”

Seu João demonstra o mesmo sentimento com as poucas coisas que tem. Quando pergunto, o senhor assiste televisão? Responde: “Não senhora, na minha casa não tem nada, nada! Na minha casa num tem um rádio, num tem televisão, num tem nada!” O senhor não tem vontade de ter essas coisas? “Não senhora. Eu num tenho vontade não!” Por que? É porque não me serve não. Pra que uma pessoa de idade como eu, pra que essas coisas? As vezes uns homens de Sobral, do Rio, chega por aqui e diz: Seu João por que o senhor não faz uma casa? Não, eu num faço não!

Tai, lá está a casa do meu fi acolá, mas a minha é essa!” Nem energia o senhor não quer? “Nada, nada eu não quero nada!” Como é que ilumina a casa de noite? “A muié compra um gás, bota ali numa lamparina, e ali, compra umas lamprinha véia e culareia por ali, mas aqui num tem, num tem, num tem, num tem! Aqui tudo é antigo.” Seu João (94) e D. Ana (89) conservam esse jeito de viver, completamente desprovidos de qualquer vaidade que possa lhes tirar o sossego ou atrair a menor preocupação com a imagem ou posse de bens. Apesar das poucas posses, são generosos na partilha, lição que aprenderam de seus pais.

Articulação Semiárido Brasileiro – CearáBoletim Informativo do Programa Uma Terra e Duas Águas