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Os Ultimos Quartetos de Beethoven e Outros Contos · Mercedes Sosa. Que nós nunca mais ouvimos, mas estão aí. E se der uma espiada nos livros da estante? Lembra do primeiro livro

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O pôster

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Uma sala de estar e de jantar de um apartamento de classemédia, pequeno mas bem decorado. Uma porta aberta à esquerdamostra a cozinha, onde Maria prepara o jantar. Na sala, João está defrente para um pôster emoldurado do Che Guevara, o único quadro nasparedes. Abaixo do pôster há uma pequena prateleira com livros e CDs.Em cima da mesa de centro da sala há dois grandes livros de arte. Mariae João têm a mesma idade, quase 30 anos. Maria grita da cozinha:

—Será que esse seu André gosta de bacalhau com creme? Vai terquegostar.Éoúnicoprato.

—Nãosei.Mariaaparecenaportadacozinha.—Elevemcomamulher?ExisteumasenhoraAndré?—Nãosei.— Eu botei lugares para três na mesa. Se aparecer uma senhora

André,ésóbotarmaisum.Melhorbotardoquetirar.Vocênãoacha?—Tábomassim.—QueidadetemesseseuAndré?— Uns quarenta e poucos. E ele não é “meu” André. É o chefe da

minhaseção.—Efoielemesmoqueseconvidouprajantaraqui?—Foi.EleprecisaescolheralguémparaavagadopobredoValtinho

eachoquequerconheceroscandidatosmaisdeperto.—Eleestáseconvidandoparajantarnacasadetodososcandidatos

àvaga,antesdeescolher?—Achoquesim.Maseusouoprimeiro.—Elesimpatizoucomvocê.—É.Porisso,Má,estejantartemqueserperfeito.Nóstemosqueser

umcasalperfeito.—Meu bacalhau eu garanto. O vinho branco está na geladeira. Eu

prometonãoarrotaroulimparosdentescomaunha.—Obrigado.Oquevocêachadestepôster?—OChe?Oquequetemopôster?—Eleficaaíouagenteesconde?

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—Esconderporquê?— Porque o André pode não entender. Pode ter uma impressão

errada.—Que impressão errada ele pode ter?Que nós somos um casal de

revolucionários? João, lembra daquele pôster de tourada que a tia BelatrouxepravocêdaEspanha?Tinhaoseunomecomoumdostoureiros.Eninguém pensou que você tivesse participadomesmo de uma tourada. OpôsterdoCheéamesmacoisa.UmpôsterdoChenaparedenãosigni icanada.Umdiapodetersignificado,mas...

—Aíéqueestá.Umdiasignificou.—Evocêtemvergonhadotempoemquesignificou?—Nãoé isso.O importanteéoqueoAndrévaipensar.Elenãotem

como saber se o pôster não signi icamais nada, e é apenasumapeçadedecoração,ouaindasigni icapramimoquesigni icouumdia.Enestecaso,adeusvagadoValtinho.

—EsseseuAndrénãopodesertãotapadoassim.Elesabequeacarado Che aparece até em tambor de escola de samba. Até em camiseta daNarcisaSeiLáoQuê.Hojenãoésímbolodenada,émoda.AgarotadaqueusaacaradoChenaroupanemsabequemelefoi.

—É,masaindaachoarriscadodeixaroCheaí.Praquearriscar?—Seépor isso,émelhoresconderesses livrosdecimadamesade

centrotambém.OseuAndrépodenãogostar.—Porquê?—OslivrossãodoPicassoedoFrancisBacon.—Edaí?—Umcomunistaeumveado.EseeleexaminarosnossosCDs?Muita

MercedesSosa.Quenósnuncamaisouvimos,mas estão aí. E sederumaespiada nos livros da estante? Lembra do primeiro livro que eu te dei?Quandonósnemestávamosnamorandoainda?Eleestánaestante,bemàvista.As veias abertas da América Latina, do Galeano. Que você brincou edissequepensavaqueotítulofosseAsvéiasabertasdaAméricaLatinaeolivrofossesobrecirurgiaemidosas.

—Evocênãoachouamenorgraça.

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—Nãotinhagraça.Naépoca,nãotinhagraça.—Vocêsemprefoimaissériadoqueeu.Eravocêquemecarregava

paraaspasseatas.—TalvezvocêdevameesconderdoseuAndrétambém.—Elenãoé“meu”André,Má.Nãoentendoessasuaimplicânciacom

alguémque nem conhece. Você sabe o que signi ica ser escolhido para olugar do Valtinho, queDeus o tenha?Nossa renda pode duplicar. Vamospodertrocardeapartamento.ViajarparaaEuropanasférias.Oquevocêtemcontramelhorardevida?

—Dependedoqueagentesacrificapramelhorardevida.— E o que nós estamos sacri icando? Esconder o pôster do Che

Guevaraésacrificaralgumacoisa?—Decertamaneira,é.— Você mesma disse que um pôster do Che Guevara não signi ica

maisnada.—Opôsternãosignificanada.Esconderopôstersignifica.—Maria...—João,quersaberdeumacoisa?Fazoquevocêquiser.Euvouvero

meubacalhau.Mariavoltaparaacozinha.Joãoaacompanhacomoolhar.Depoisde

algunsminutos,elegrita:—Maria!Elaaparecenaportadacozinha.—Ahn?—VocêvaireceberoAndrécomessaroupa?Mariaseexamina.Pergunta:—Porquê?Estámuitoruim?—Porquevocênãobotaaqueleseupreto?—Aquelecomodecote?—É.—Oquemostraosseios?—É.—VocêquerqueoseuAndrévejaosmeusseios?

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—Nãoéisso,Maria.Lávemvocê.Queroquevocêestejabonitapararecebê-lo.

—Comosseiosàmostra,comoumaoferenda.—Não. Com toda a sua beleza emevidência. Ele vemaqui parame

conhecermelhor, para ver como é aminha vida fora da irma. Como é omeumundo.Evocêéumaparteimportantedessemundo.

—Euemeusseios.—Vocêesuabeleza.— E se o seu André se entusiasmar com osmeus seios? Se quiser

testá-los, para ver se são verdadeiros, quando você não estiver olhando?Se cochichar no meu ouvido que quer se encontrar comigo a sós paraconversarmossobreoseufuturonafirma?

Joãoficaemsilêncio.Maria:—Éoquevocêquer?—Claroquenão,Má.Masachoquevocêdeveestardispostaafazer

umsacri íciopelonosso futuro.Sabequantoscandidatos têmparaavagadopobredoValtinho?Nomínimocinco.Istoéumaguerra,minhaquerida.Precisamosusartodasasarmasquetemos.

—Evocêestáconvocandoosmeuspeitosparaaguerra.—Não,Maria.Eu...Ouve-seosomdointerfone.Joãovaiatender.— Oi... Epa, pode subir. Quarto andar à direita de quem sai do

elevador.Touabrindoaporta...Abriu?Grande.João desliga o interfone e começa uma correria. Tira o pôster da

paredeeoentregaaMaria.—Rápido.Levapronossoquarto.EolivrodoGaleano.Enãoesquece

aMercedesSosa.—Calma.Eusótenhoduasmãos.—Etrocadevestido.—Nãovaidartempo.—Vai,vai.Eureceboeleenquantovocêtrocadevestido.Maria sai da sala, carregando o pôster, o livro e os CDs. Deixa cair

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algunsCDsevoltaparapegá-losdochão.Osomdacampainha.Joãoabreaporta.Andrééumhomemdebaixa

estatura,cabelogrisalho,semgravatamaselegantementevestidocomumblazerazul-marinho.

JOÃO:Aíestáele!ANDRÉ:Mr.John.Howareyou?— Bem, bem. Vá entrando. Senta naquela ali, que é a mais

confortável.—Queapartamentosimpático.André senta numapoltrona e imediatamente pega umdos livros de

arteesquecidossobreamesadecentro.—Epa.FrancisBacon.Esseéocara.Viumaexposiçãocompletíssima

deleemMadri,nãofazmuito.Esseécraque.EleeoLucianFreud...—Eutambémgostomuitodosdois.—Vocêmorasozinhoaqui,João?—Não,não.Eu...Mariaentranasala.Elatrocoudevestido,maspôsumfechadoatéo

pescoço. André ergue-se da poltrona, visivelmente surpreso. Joãoapresenta:

—Essaéminhaesposa,Maria.—Maria!Queprazer.EunãosabiaqueoJoãoeracasado.—Eleàsvezestambémesquece.Ostrêsriem,Joãosemvontade.— Bom— diz Maria, dirigindo-se para a cozinha—, vou tratar do

nossojantar.Esperoqueosenhorgostedebacalhau.—Adoro.E,porfavor,nãomechamede“senhor”.Mariaentranacozinha.Joãocomeçaaperguntar:—Vamoslogoprumvinhozinho,ouvocêprefereumuísqueantes,ou

um...Andréointerrompe,comumamãonasuacoxa:—Eupenseiquefossecomerumjantarfeitoporvocê.Medisseram

quevocêéumbomcozinheiro.—Não.Brincadeiradopessoal.Sóseifazerotrivial.Mariaéqueéa

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cozinheira.AndrécontinuacomamãonacoxadeJoão.—Vocêécasadomasnãousaaliança...—Andeifraturandoestamãoeosdedosincharam.Tivequecortara

aliança.Istojáfaztempo,masaindanãomandeiconsertar.Aaliança.—Afaltadealiançapodedarumsinalerrado...—Poisé...Andrésorri.—Afaltadeumaaliançapodedestruirumsonho...Silêncio. QuandoMaria surge na porta da cozinha com a garrafa de

vinhoeumabridor,AndrétiraamãodacoxadeJoão.Mariadiz:—Precisodeumhomemparaabrirovinho.—Écomigo—dizAndré.Ele tem di iculdade em abrir o vinho e fere um dedo. Depois de

colocarovinhoabertosobreamesa,diz:—Precisolavarasmãos.Maria(examinandooferimentonodedo):—Nãoserámelhorfazerumcurativo?— Nada. É só um arranhão. Não vou morrer. Só preciso lavar as

mãos.Joãoindicaocaminhodobanheiro,paraadireitadasala.—Segundaportaàesquerda.QuandoAndrésaidasalaJoãovira-separaMariaecochicha:—“Eleàsvezestambémesquece”.Precisavadizeraquilo?Quandofoi

queeuesqueci?—Foiumapiada,João.Eelegostou.—Eessevestidoridículo?—Meuspeitos,a inal,nãoseriamnecessários.Eleestáobviamentea

fimdevocê.—Bobagem.—Vocêéquedeveseperguntarquesacri ícioestádispostoa fazer

paraganharestaguerra,João.— Má, eu acho que nós estamos agradando. Ele conhece o Lucian

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Freud. Duvido que algum dos outros candidatos à vaga do pobre doValtinhosaibaqueméoLucianFreud.Agoraésóvocênãoestragartudo.

—Nãovoumaisabriraboca.— Não. Tem que abrir. Ser simpática. Pense em tudo que está em

jogo. Pense no nosso futuro. Na nossa vida daqui pra frente se eu for oescolhido.Nonosso...

JoãoparaporqueAndrévoltouparaasala.—Erreideporta—desculpa-seAndré.—Entreinoquartodevocês.

ViquetemumpôsterdoCheGuevaraemcimadacama.Igualaumqueeutenhoemcasa.

—É—dizJoão.—Nósestamostentandodecidirondecolocá-lo.—Ali—dizAndré,indicandoolugarnaparedeondeopôsterestava.—Vamospramesa,senhores?—propõeMaria.Àmesa, João sente o joelho deAndré encostar no seu.Não afasta a

perna.

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Os últimos quartetos de Beethoven

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A turma era apaixonadapelaLivia.Todososcinco.Livialhesensinarao“twist”eobeijode língua.Liviausavabrincosnumaorelhasó.Livia fora a primeira a fumarmaconha e fazer tatuagem.Era Livia quemdizia o que eles deveriam ler, pensar e fazer, e não fazer. Foi da Livia aideiadopactodesangueparauniraturmaatéamorte.Seriaumcortenapalma da mão, depois decidiram que um corte num dedo produziria omesmoefeitoenãoprejudicariaodesempenhodaLivianovioloncelo.Umcortezinho no dedo, depois apertos de mão entre todos, inalmente seismãosentrelaçadasnumsónósangrento,eogritodaLivia,“Atéamorte!”.Masoritualacabaraassustandoemvezdeunirmaisaturma.OMaurinho,por exemplo, declarara que icara nervoso com o sangue, que a Liviaestavaquerendopuxaraturmaparaumladoescuro,queaquelacoisadelíder e discípulos estava icando séria demais, que eles não eram, a inal,apenas “a turma da Livia”, como os chamavam na escola, obrigados aseguirsuas loucuras.Depoisdopactooscincocomeçaramasedistanciar,daLiviaeunsdosoutros.Continuavam indoa todasasapresentaçõesdevioloncelo da Livia e depois se reunindo no bar do seu Antonio, onde aLiviatomavacervejapretacomgrapapara,comoeladizia,trazerdevoltaà Terra o espírito elevado pela música antes que ele evaporasse nasalturas. E a cara dos cinco ouvindo a Livia tocar violoncelo continuavasendo de adoração. “Embasbacados” era como o Lorival os descrevia. Osembasbacados da Livia. Mas o domínio da Livia sobre eles estava indolonge demais. O Maurinho foi o primeiro a desaparecer por completodepoisdopactodesangue.OMagro,oúltimo.Suspeitava-sequeoMagroera o único da turma que transara com a Livia e foi ele o último aacompanharsuasapresentaçõesdeviolonceloedepoisirbeber,sóosdois,nobardo seuAntonio, ondeumanoite aLivia lhedissera “Você tambémestá dispensado”, decretando o im o icial da amizade eterna.No im nãoicara nada da amizade, nem um vestígio, nem uma cicatriz, já que nãotinhamcortadoapalmadamão.Foicadaumparaumlado,semsaberquecaminho obscuro levara Livia para longe deles, para outro Universo. Umdia,anosdepoisdaformatura,anosdepoisdopacto,Maurinhoencontrou-se com o Magro por acaso e perguntou se ele sabia por onde andava a

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Livia. O Magro não sabia. Não via mais nem seu nome no noticiário damúsica na cidade. Livia volatizara-se. Os dois brindaram a Livia batendosuas xícaras de cafezinho e dizendo “Linda!” “Linda!”. E que im terialevado o resto da turma? Maurinho se comprometeu a reuni-los, seconseguisse localizá-los, para relembrar os velhos tempos. Talvez alguémtivesse notícia da deusa desaparecida. A verdade era que ninguém sabiamuitoa respeitodelamesmoquandoseviam todososdias.Elaera linda,elalhesensinavatudooquesabiaeelesnãosabiam,masnuncaconvidaraa turma a subir ao seu apartamento quando iam buscá-la ou levá-la emcasa, nem contaramuito da sua família e da sua vida quando não estavacom eles. Não sabiam onde ela conseguia maconha, e de onde tirava oslivros que emprestava a quem prometesse lê-los e devolvê-los. Ela nãocontava e eles nãoperguntavam.Todos se contentavamemadorá-la semfazer perguntas. Livia era Livia, as divindades não precisam contar osdetalhes banais da sua existência. As divindades não precisam ter vidadoméstica.Depois do encontro comMaurinho,Magrodecidiu fazer o quedeveria ter feitoantes, investigarodesaparecimentodaLivia,oqueseriaum pouco como investigar seu próprio passado. Estava entre empregos,tinha tempo de sobra. Ele também se assustara com o ritual de sangue,com o caminho que estava tomando aquela amizade, com a profundezapara a qual a Livia parecia querer atraí-los. Agora, anos depois, poderiaencontrar a Livia sem medo, conviver com o mito sem o perigo de sertragado pelo sumidouro. Procurou o edi ício em que Livia morava. Oporteiroaindaeraomesmoeselembrava,sim,delesedadonaLivia,quevivianoquartoandarcomopaieamãe.Amãe,donaVitória,tocavapiano.Amãesesuicidara.Opai,oporteironãosabia.OseuJoséraramentesaíade casa. Depois da morte da mulher tinha se mudado. Deixara tudo noapartamento do quarto andar, inclusive o piano da mulher. Mas não oslivros, que levara para o novo endereço, caixas e caixas de livros. Não, oporteiro não sabia qual era o novo endereço. A dona Livia? O porteirotambémnuncamaisavira.Gostavadela,apesardassuasesquisitices,dassuas roupas malucas, dos brincos numa orelha só, do véu rendado quecobriaoseurostoquandoelasaíaàruadepoisdaescola.Magrodeuuma

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risada.Ovéu!Eleseesqueceradovéu.QuandoMaurinhoconseguiureuniraturma,menosoLorival,queforaviveremCuritiba,aprimeiracoisaqueoMagroperguntoufoisetodosselembravamdovéu.

—Ovéu!Oqueeramesmoqueeladizia?Queeraparaprotegernãoo seu rosto do sol, mas os outros da luminosidade do seu rosto. Umaluminosidadedesanta.

—Diziaquenãoqueriaqueimararetinadeninguém.— Agora estou me lembrando, ela dizia que tinha saído de um

quadrodo,comoeramesmo?—Boticelli.EraumavirgemluminosadoBoticelli.—Metadedoqueeladiziaeunãoentendia.—Maselaeralinda.—Ah,era.—Evocê,Magro?Dormiucomelaounãodormiu?—Tádoido.—Conta,Magro.—Nãopintounada.Eusoulouco?O Magro poderia dizer que chegara à beira do sumidouro, mas

recuara.Nãoeralouco.—Evocêsselembramdopactodesangue?—Opactodesangue...Atéhojeeunãoentendioqueelaqueriacom

aquilo.—Oqueelaesperavadenós...O Magro contou que na última vez em que estivera com Livia ela

dissera que ele estava dispensado. Tinha a permissão dela para tambémdesaparecer, como os outros. Se a “turma da Livia” tinha uma missão acumprir, tinha fracassado. Estavam todos dispensados. Livia desistiradeles.

—Quefimterálevado?Magrocontouopoucoquesabia.Osuicídiodamãepianista,ascaixas

ecaixasde livrosdopai.Esó.Tambémfracassaracomo investigador.Porironia, foi Maurinho, o primeiro desertor, quem descobriu onde estavaLivia.Poracaso.Oprimodeuma técnicaemenfermagemque trabalhava

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numa clínica psiquiátrica contara que na clínica havia uma louca quetocava umvioloncelo imaginário, e poderia ser a Livia. Alguémdeveria irvisitá-la, para ter certeza. Só o Magro se animou. A clínica icava numantigo casarão pintado de verde.Mesmodepois de tanto tempo, oMagroreconheceu o per il da Livia, sentada perto de uma grande janela numasala vazia e ensolarada. Não teve um choque com sua velhice, com seuscabelosdesgrenhadosoucomseucamisolãobrancodetecidobarato.Masquase parou, emocionado, quando ela virou o rosto e viu que ele seaproximava, e sorriu — o sorriso era o mesmo! — e disse seu nome:“Felipe!” Ela se lembrava do seu nome! Ele curvou-se para beijá-la masnão conseguiu dizer uma palavra. Ela segurou sua mão e perguntou:“Comovãovocês?”Eleaindademorouantesdepoderdizer“Bem,bem”edepois mentir: “Todos mandam lembranças.” Depois ele foi buscar umacadeiraparasentar-seaoseuladoeelapegousuamãoentreassuasoutravezerepetiu: “Felipe!”EdissequeeledecididamentenãopodiamaisserchamadodeMagro,eosdoisriram,eoMagrotevequesecontrolarparaquearisadanãodesandasseemchoro.Perguntouseelaestavasendobemtratada,seestavabem,seprecisavadealgumacoisa,eelarespondeuqueestavaótima.Quetinhatudoqueprecisava.Etinhaasuamúsica.

—Seuviolonceloestáaqui?—Não. Eles não deixaram.O que não quer dizer que eu não toque

todososdias.Equandoacabouderir,eladisse:— Até formei um quarteto de cordas. Ensaiamos sempre. Cada um

comseuinstrumentoinvisível,imaginesó.Nãoéumacoisadelouco?—Sãotodosmúsicos?—Não!Aúnicamúsicanesta casa soueu.Osoutros só ingem.Mas

estamosprogredindo.Vamosatédarumrecital.Músicaparasurdos,oquevocê acha? Vamos tocar exatamente o que Beethoven ouvia: nada. A suamúsica interna, a música da sua cabeça, um silêncio inconspurcado porsons. In-cons-pur-cado. O que você acha? Música sem a música paraatrapalhar.

OMagroembasbacado.

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Elacontinuou:—Lembra dos últimos quartetos de corda do Beethoven?Ninguém

entendia o que ele queria dizer com aquilo, com aquela confusão, aquelaquasecacofonia.Euestoulheaborrecendo?

—Não,não.Eu...— Era diferente de tudo que Beethoven tinha feito até então.

Ninguémentendia.Umpoucocomoovéupretoqueeuusavaparataparorosto, lembra? O que era aquilo? Loucura, só loucura. Era o que todo omundopensava.

—Nósnão.—Vocêstambém.—Nóssóachávamos...estranho.— Era o que todo o mundo pensava dos últimos quartetos de

Beethoven. Uma excentricidade. Uma coisa que não era para serentendida,anãoserporelemesmo,nasuareclusãodesurdo.Masnãoeraisso. Os críticos também se enganaram. Mais tarde disseram queBeethoven estava, conscientemente, mudando o rumo da música. Queestava inaugurando a música moderna. Que o Beethoven dos últimosquartetos era o precursor direto de Schoenberg, de Stravinski, de BelaBartok.Enãoeranadadisso.Osquartetosnãoestavamcomeçandonada,estavam terminando. Beethoven estava não só acabando com o períodoclássicocomodizendoqueamúsica racionalnão tinhamaisparaonde ir,que a própria racionalidade chegara ao im. Ele mesmo não tinha maispara onde ir no mundo, a não ser para o seu exílio interior, para a sualoucura.AverdadeéqueosúltimosquartetosdeBeethovennãoforamosúltimos. Foram os penúltimos. Os últimos são os que nós tocamos. Oufingimosquetocamos.Vocêquerouvir?

—Como?—Fiqueaqui.Daquiapoucovamosensaiar.No imdodia.Agorame

contedevocês...Naquela noite oMagro relatou a visita à Livia aoMaurinho. Contou

que ao entardecer tinham chegado os outros trêsmembros do quarteto,cadaumarrastandoumacadeiraesegurandouminstrumentoimaginário.

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Etinhamcomeçadoa ingirque tocavam,parandoa intervalosparaouvirascorreçõesedireçõesdaLivia.Eramdoissenhoreseumamoça,todosdecamisolãoigualaodela.Pareciaumcongressodeanjos.Oapelidodelesnaclínicaera“aturmadaLivia”.

EoMagrocontouquenuncaviraumaexpressãodefelicidadecomoado rosto da Livia tocando seu violoncelo invisível. Estava em outroUniverso.

—Elacontinuabonita?—Linda.Eosorrisoéomesmo.—Elaperguntoupelaturma?—Perguntou,perguntou.Queriasabertudoanossorespeito.MasoMagronãodisseaoMaurinhoqueseesforçaraparaencontrar

alguma coisa para contar da turma. Algum sucesso pro issional, algumagrande alegria, alguma notícia, por medíocre que fosse, que justi icasseteremescolhido icarnoUniversodecá.Eque,nãoencontrandonadaparadizer,oMagrosevira,idiotamente,comoseaquiloresumisseosfeitosdoscinco,contandoqueoLorivalsemudaraparaCuritiba.

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Bolero

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“DormiravecvousmadameDormiravecvousC’estummerveilleuxprogrameDemandantsurtoutUmendroitdiscretmadame”

C

Enfim um bolero, n’est pas madame? Fui eu que subornei aorquestra. Agora podemos dançar juntos, eu sentindo os seus seioscontra o meu peito, você sentindo as minhas medalhas. O bolerofavorece a minha perna mecânica, ao contrário do tango, que tambémcultivo, mas só em teoria, senão eu caio na primeira rabanada. O bolerotambém nos permite falar um no ouvido do outro, ao contrário dessasdanças modernas, nas quais a única comunicação possível entre ospares é o sinal semafórico. Nenhuma conversa é tão privada e discretaquanto a de um homem e uma mulher dançando um bolero, o homemcuidando para não engatar os lábios num brinco ao mordiscar o lóbulo,onde a mulher é mais tenra, a mulher se permitindo dizer baixinho tudoque jamais diria em público, principalmente ao alcance dos ouvidos domarido. Existe um marido, pois não, madame? Deve haver um marido,senão nada disto — este salão, este bolero, seus seios contra o meupeito e a minha ereção — tem sentido. O essencial numa sedução não éo sedutor nem a seduzida, é o marido. Todo o drama, toda a aventura,toda a glória e o prazer de uma sedução está centralizada no maridoenganado. Um caso sem marido é como um merengue sem recheio,uma casca farofenta encobrindo o nada. Seu marido está nos vendo?Está seguindo nossos passos, salivando como um cão raivoso? Sintoseus olhos na minha nuca, talvez medindo-a para um golpe de cutelo,como o que mata os touros que se recusam a morrer pela espada. Sim,também já fui toureiro. E motociclista. E astronauta. E ator. E malabaristade circo. E físico nuclear. O que a gente não faz para impressioná-las,hein, madame? Posso desafiar o marido para um duelo, se lhe convier.Sim, sou do tempo dos duelos, quando a honra se lavava com sangue,

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nem que fosse apenas o sangue de um arranhão. Madame já adivinhouque sou um homem antigo. Para mim, nada é mais apropriado do queum bolero acabar num duelo. Posso mandar seu marido para umhospital. Assim nem ele ficaria sem sua honra nem nós ficaríamos semum marido enganado vivo para apimentar nossa união. Como eu perdiminha perna? Foi numa dessas guerras, não me lembro mais qual. Foiem Waterloo, foi no Somme, foi no desembarque em Omaha Beach,quem se lembra? E tudo para impressioná-la, madame. Eu ainda não aconhecia, nem sentira os seus seios contra o meu peito, e já estavamatando e morrendo e construindo civilizações para impressioná-la.Esta sedução não começa aqui, madame, começou há milhares deanos, quando nós descemos das árvores para a savana e passamos aandar de pé, com a genitália exposta. Como isto não as impressionoumuito, recorremos a outros meios de sedução. Brigas, guerras, atos debravura e audácia intelectual, boleros. Tudo para dormir com você,madame. Dormir com você. Fazermos um programa maravilhoso numlugar discreto. Champanhe, alguns canapês, cortinas de veludocerradas, um disco de vinil na vitrola (sou um homem antigo). Nãoqueremos outra coisa além de dormir com você. Nunca quisemos. E...glubz! Desculpe madame. Acho que engoli o seu brinco.

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Lo

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1Dolores, luz da minha vida, fogo das minhas entranhas.Meu pecado, minha alma. Do-lo-res: a ponta da língua viajando pelopalato em três etapas, terminado num esgar para acomodar o “res”. Do,Lo, (careta) Res.

Ela era Lola, apenas Lola, de manhã, fumando, com um pé debailarinapousadono joelhodaoutraperna. Loresnos seus slacks cordeabóbora, aterrorizando as empregadas na nossa casa em Paris, onde asbanheirastinhamaformadecisnes.DoloresFuertesyObregonnaslinhaspontilhadas, administrando sua fortuna.Mas paramim, na sua cama, nosseusbraços,cochichadonoseuouvido(oqueelaodiava),elaseriasempreDoloresFuertesdeBarriga.Minhasenhoradasdores.MinhaLo.

Quando nos conhecemos em Porto Seguro eu tinha 12 anos e elatinha36,oudiziaquetinha36.Eutinhaocabelolouroeencaracoladoeosolhosverdes,mas foraessa intromissão, talvezholandesa,nomeusangueera um baiano de cartão-postal, um mulatinho reluzente, um amor.Pergunteaqualquerumquemeconheceuentão,seencontraralgumvivo,seeunãoeradelevarpracasa.EfoioqueaDoloresfez.EumechamavaZéMariaedançavanapraiaparaosturistascomaminhairmã,Janaína.EaDoloresseencantoucomigo.“Comotellamas?”,elaperguntou.“José”,eudisse,ecommedoqueelanãoentendesserepeti: “José”eeladisse“RoséRosé,queraro!”OdinheirodelavenceuaburocraciadoBrasil,ospapéisdaadoçãosaíramlogoeemmenosdeummêsJoséJoséFuertesyObregonvoava para Paris com uma nova fatiota e uma nova mãe, além de umpassaporteeumnovonome.OMariadeZéMaria icouparatrás.SemprequepensonoBrasil,paraondenuncavoltei,pensonumaMariadançandosozinha na praia. A parte de mim que nunca cresceu. Que icou no seuporto seguro, intocada pelos contágios da vida. Bonito isso, hein, leitor?Leitora?Confiemnumassassinoparaterumestilofloreado.

Minhamãedecarnenãoseopôsàminhaida.Eraumabocaamenosem casa e ainda sobraram doze. Não sei se encontraram meu pai paracontarqueeuiaemboracomumaespanholaouseainformaçãochegouao

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seu cérebro antesde ser diluída, no caminho, pela cachaça.Nunca soubemais nada deles, ou da Janaína e dosmeus outros irmãos.No avião paraSãoPaulo, onde faríamosa conexãoparaParis,Doloresmeperguntou seeu não estava emocionado. “Por quê?”, perguntei. Ela icou chocada. Euestava dentro de uma fatiota e de um avião pela primeira vez. Estavacomeçando outra vida. Tudo seria diferente paramim dali para a frente.Eunãoestavaemocionado?“Estou!”,gritei.“Porra,estouemocionado,sim!”Comecei a chorar como chorava na praia quando um turista demorava anosdardinheiro.Senteinoseucolo.Gritei:“Obrigado!Obrigado,dona!”Elaicouradiante.Eraoquequeriaouvir.Beijoumeuscabelosencaracolados.Disse que eu não precisava agradecer. Que nós íamos ter uma bela vidajuntos.Epediuqueeunãoachamassede“dona”.

—Possochamardemãe?—Dolores.—DoloresFuertes.—Si.—DoloresFuertesdeBarriga.—No.FuertesyObregon.Ahoraessunombretambien,RoséRosé.Meatireidenovosobreela,soluçando.Ficamosabraçadosassimaté

aaeromoçaviroferecerolanche.Comiomeueodela.Leitor, leitora, isto não é um pedido de clemência. Só peço que me

entendam.Nãoseprecipitem.Aindafaltamuitacoisaparacontar.Esperempara dizer quemmereceu o quê. Leiam toda aminha con issão antes dedecidir quem é culpado, se alguém for culpado. Minha defesa: nunca nahistóriadomundoo amor corrompeualguém.Pode ter aleijado, pode termatado, mas nunca sujou. E esta, embora pareça outras coisas, é umahistóriadeamor.

2Dolores nasceu em Madri. O pai, duque de alguma coisa. A mãe,parente longe, mas não longe o bastante, dos Bourbons, parceira dejogo da rainha Victória Eugenie de Battenberg, mulher de Alfonso XIII, a

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quem teve que acompanhar para o exílio, com toda a família, em 1931.Ela e a rainha jogavam gamão. Um dia, alisando o meu braço cor deacarajé, Dolores contou que devia a brancura da sua pele a gerações egerações de casamentos mais ou menos incestuosos que tinham filtradotoda a influência moura do sangue da aristocracia espanhola, e suaeducação europeia ao gamão. Passara a infância pulando de lugar emlugar junto com a corte banida. Primeiras letras em Baden-Baden, balé epiano num internato em Genebra, equitação em Roma... As convulsõesdo século tinham sido apenas pano de fundo para a formação de umajovem de bom sangue e espírito rarefeito, a minha branquíssima Lo. ASegunda Guerra Mundial passara longe da mansão da família emMonteverde. Apenas alguns tiros pontilhando a noite, distantes, comoestrelas sonoras, e nada mais. A única má lembrança que Doloresguardava das privações de guerra, em Roma, era do dia em que, na suaaula de equitação, lhe informaram que seu cavalo preferido tinha sidocomido na noite anterior. No fim da guerra ela casara-se com Enrico, umnobre italiano com muita influência no Vaticano, suspeito de terdesviado dinheiro da cúria e conhecido como o último homem naEuropa a ainda usar o rapé e que, segundo Dolores, renunciara ao sexo,preferindo o espirro ao orgasmo. Depois de sua morte em circunstânciastrágicas no parque da Villa Pamphili (piquenique, mordida de aranha,inflamação, atendimento italiano), Dolores mudara-se para Paris,decidida a gastar sua herança numa vida artística. Dizia que não sepode ficar esperando que a vida nos tire para dançar, nós é que temosque persegui-la, enlaçá-la e sair rodopiando. Ela chegara rodopiando aParis, onde não conhecera nem Hemingway, nem Sartre nem Picassomas fora cantada no café Les Deux Magots por Gertrude Stein, queapertara seu joelho com a força de um estivador e a convidara para umfim de semana em Fontainebleu. Recusara-se a voltar à Espanhamesmo depois da permissão dada por Franco à família real e sua corteno exílio para retornar. Sua casa em Paris ficava perto do Bois deBoulogne, onde ela cavalgava todas as manhãs. Ela me instalou numquarto forrado de seda. Os meus travesseiros eram maiores do que acama em que eu dormia com mais seis. A banheira em que ela me dava

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banho tinha a forma de um cisne e era quase maior do que a nossa casade madeira em Porto Seguro. Mas não ficamos muito tempo nesteparaíso sedoso. Um dia ela me avisou que iríamos viajar. Tínhamospouco tempo para arrumar as malas. Não, eu não podia levar ostravesseiros. Haveria travesseiros iguais àqueles no lugar para ondeiríamos. Jamais me faltariam travesseiros. Ela deu uma ordem para asempregadas que eu não entendi. Depois me contou que as proibira derevelar nosso destino. Revelar para quem? Para quem perguntar,respondeu ela, rispidamente. E quando eu quis saber mais só disse“Shush” e “bamo-nos, bamo-nos”. E foi assim que começou nossa longafuga pela Europa, fugindo eu não sabia do quê. O pequeno Rosé Rosédeglutido por um continente viciado. Ou o velho continente, recém serecuperando de uma guerra, lentamente envenenado pela ingestão deum baianinho tóxico. Além de uma história de amor, esta também é umahistória de degeneração e redenção, se me perdoam a imodéstia.

3Sim leitor, leitora, ela me dava banho. Não a condenem ainda. Aexpressão no seu rosto foi de surpresa na primeira vez que meu pau de12 anos duplicou de tamanho na sua mão ensaboada. Foi disfarce, ouela não esperava mesmo um pau duro no anjo moreno que comprara emPorto Seguro? Daí em diante, toda vez que ensaboava meu pau elacantava um lied de Schubert. Talvez sua intenção fosse me iniciar naalta cultura europeia e guiar minha descoberta do meu próprio corpo, emsincronia. Ou então simular indiferença maternal à minha ereção juvenil.Ou me introduzir na doce variedade da vida, Schubert em cima e um pauensaboado embaixo, polos opostos mas compatíveis de prazer, umaeducação completa e simultânea do corpo e do espírito. O fato é que, atéhá pouco tempo, ouvir Schubert me dava tesão. Ela me tirava do banho,me enrolava num roupão e me levava para seu quarto, cantandocanções espanholas. Me secava com o próprio roupão que depoisatirava longe, e me vestia, sempre com dificuldade para acomodar

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minha rija gratidão na cueca de linho. E declinando uma lista de poetasque fariam parte da minha formação, quando eu aprendesse o francês.Um dia, citando Verlaine e Rimbaud, ela beijou a ponta do meu pau. Ummordisco, leitor, leitora. Quase uma vírgula da declamação. Dias depoisfoi a vez de Apollinaire ser interrompido por um beijo mais profundo —Apolinhamnhamnham — que por pouco não me sugou a alma.Finalmente ela um dia me fez deitar de costas na sua cama, antes de mevestir a cueca, e disse que eu me preparasse para Baudelaire, queBaudelaire mudaria a minha vida, e deitou-se em cima de mim, dizendo“É assim, é assim” e guiando meu pau para dentro dela. Dolores nuncaficou sabendo que uma turista argentina chamada Anabela já tinha memostrado o mesmo caminho muitas vezes, sem recurso a Baudelaire,em Porto Seguro.

4Nossa fuga (De quê? De quem?) começou por um dos chateauxmenores do Loire, propriedade de uma prima francesa arruinada quealugava quartos para turistas e concordara em nos alojar num sótãoinfestado de ratos. Para o meu banho, tínhamos que descer doisandares até o térreo, Dolores me carregando no colo, muitas vezesesbarrando nos corredores escuros com ingleses desorientados. Eusenti falta da minha banheira em forma de cisne de Paris e deixei claraminha revolta, recusando as carícias da Lo por noites seguidas, até elaprometer que não ficaríamos ali por muito tempo e em breve estaríamosnum chateau de verdade, longe de ratos e ingleses. O segundo chateauera de um primo, também arruinado mas não tanto, que ocupava sóquatro das suas oitenta e nove peças e nos deixou escolher o quartoque quiséssemos, desde que nos contentássemos com colchões nochão em vez de camas e água marrom nas torneiras. Lo e eu corríamospelas peças vazias do chateau, e nossas corridas sempre acabavamsobre um colchão, entre risadas, as da minha pobre Lo, gorjeios agudosque faziam balançar as teias de aranha, e se transformavam em ganidos

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quando eu a penetrava.CertodiaouvioseguintediálogoentreosegundoprimoeLo:—Elaestávindo.—Oquê?Paracá?—Recebiumtelegrama.Elacheganodomingo.—Masvemfazeroquê?—Nãosei.Talvezsaibaquevocêsestãoaqui.—Mascomoelasoube?Não ouvi a resposta do primo. Deduzi que ele apenas dera de

ombros.Naquela noite, na mesa tosca da cozinha onde comíamos (o primo

cozinhava,mal,oqueDolorescompravanomercado),perguntei:—Quemestávindoaí?—Ninguém—disseLo.—Tomeasuasopa.—Euouvivocêsconversando.—Poisouviuerrado.Seufrancêsépéssimo.—Foivocêquemeensinou.Elanãodissenada.Merevoltei.Empurreiopratodesopadaminha

frente.—Vocêtambémmeensinouagostardeostras,aspargosefoiegras,

eolhaoqueeuestoucomendo!—Poisnãocoma.Váparaoquarto.Saídamesaderrubandoacadeira.Mais tarde, ela me acordou. Queria pedir desculpas. Me beijou o

corpotodo,dizendo“Rosé,Rosé”.Perguntei:—Quemestávindoaí?—Vocênãoentenderia.—Quemé?—Éaminhaconsciência.—Oquê?—Éaminhamorte.—Oquê?—Éumaparente.

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5Seu nome era Quitéria. Uma condessa, também aparentada com osBourbons. E eu a conhecera. Na tarde antes da nossa fuga de Paris,apesar das instruções para não aparecer na sala, interrompera umaconversa dela com Dolores. As duas tomavam chá. Ela fizera um bicode espanto ao me ver, antes de perguntar:

—Eesteanjo,quemé?Lo contara que tinhame adotado. Que eu era um brasileirinho que

ela estava civilizando.Que eu estava aprendendo espanhol e francês e jáconheciaospoetas.

—Venhadarumbeijonasua tiaQuitéria—comandaraavisitante,cujo rosto parecia coberto com cal, o que realçava os olhos contornadoscom tinta preta. Ela eramais velha do que aminha Lo. Seu perfume eradoce.

Depois de um beijo em cada face ela mexera nos meus cabelosencaracolados.

—Maseleéumapreciosidade!—exclamara.Eupensaraemsubirnoseucoloecheirá-lamaisdeperto,masLome

mandara sair da sala e voltar aos meus estudos. As declinações doespanholmeaguardavam.

—Eédelaquenósestamosfugindo?—Nãoestamosfugindo.Eusónãoqueroqueelanosencontre.—Porquê?—Vocênãoentenderia.—Porquê?—insisti.MasaLo,mesmoquequisesse,nãopoderiaresponder.Tinhaomeu

pau na sua boca. Enquanto ela me chupava, pensei na Quitéria. Então amortetinhaumperfumedoce...

Nodiaseguinte,partimosparaVeneza.Outroprimoarruinado,donode um palacete em pior estado do que ele. Mais remendado do que oroupão com que nos recebeu na porta. Ele não reconheceu Dolores. Sóenxergava com um olho, o outro era de um azul leitoso e morto. Ele e

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Dolores tiveram que refazer a árvore genealógica da família por váriasgerações até encontrar um elo, enquanto o gondoleiro esperava paradescarregar asmalas e eu saltitava, tentando resistir à tentaçãodemijarnocanal.Finalmente,aluz:

—VocêébisnetadocondeRoblado!—Isso!—Mas eu não tenho onde hospedar vocês.Minha casa está caindo

aospedaços.Talvezdesmoroneestanoite.—Nós podemos dormir em qualquer canto. É só até encontrarmos

outrolugarparaficar.O primo hesitou. Seu olho bom piscou várias vezes. O outro nunca

fechava.Finalmente,concordou.—Estábien...—Viva!—gritouogondoleiro.—Viva!—griteieu.

6As paredes internas do palacete eram cobertas de afrescos desbotados,cenas da mitologia grega. O novo primo, que se chamava,apropriadamente, Moffo, nos mostrou onde poderíamos ficar. Pelomenos tinha uma cama com dossel. Mas mãe e filho teriam que dormirjuntos. O chão de ladrilhos era ondulado e toda a casa tremia quandopassava um barco a motor no canal em frente. O palacete talvez nãoresistisse mesmo a mais uma noite. Na biblioteca em que Moffo passavaos dias e as noites, os livros tinham transbordado das estantes ecobriam o chão. Moffo lia com dificuldade, porque tinha só um olho bome porque a umidade colara as páginas de todos os livros. “Ainda bemque sei o meu Virgílio de cor”, nos disse, e depois, abrindo os braços nomeio da biblioteca, com livros pelo joelho, seu roupão desfazendo-separa mostrar ceroulas manchadas de urina, declarou, rindo sem dentes:“Isto é uma metáfora do fim da Europa.” Moffo tinha uma empregada deidade indefinida chamada Gabina e dias mais tarde, quando entrei na

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cozinha e o flagrei apalpando as nádegas da Gabina enquanto elacozinhava sem lhe dar atenção, ele disse “Isto também é uma metáfora.Aristocracia decadente abusando da criadagem” e me piscou o olhobom, sem largar as nádegas da Gabina. Nas duas semanas em queficamos com Moffo, Dolores se controlou e não me tocou nem uma vez,nem para me dar banho, temendo que um dos seus orgasmos ruidososfizesse finalmente ruir o palacete, talvez Veneza inteira. Moffo dormianuma poltrona de couro rachado, na biblioteca, bebendo conhaque atévir o sono. Dizia que quando a casa ruísse pretendia naufragar juntocom seus livros. Uma noite o conhaque o impeliu, não para o sono maspara a nossa cama, onde passou a apalpar minhas nádegas, sendoimprovável que me confundisse com a Gabina. Dolores acordou, viu oque estava acontecendo e gritou “Por Dios!” Moffo fez “sshh” com umdedo na frente da boca e um gesto circular com a outra mão quemostrava sua preocupação com o efeito de um escândalo na estruturada casa, disse uma frase em latim e saiu do quarto arrastando oschinelos. No dia seguinte, Lo decidiu que iríamos embora.

7Para Roma. Onde as civilizações arruinadas se empilham, umametáfora em cima da outra. Lo descobrira que a condessa NicolettaFanfani, mãe do seu desafortunado marido Enrico, ainda vivia. Nãosabia como a condessa a receberia. Lo ficara com todo o dinheiro queEnrico roubara do Vaticano e a condessa ficara com suas propriedades,que fora obrigada a vender uma a uma para se sustentar depois daguerra. Morava num pequeno apartamento no Trastevere cercada degatos. Tinha, certamente, mais de 90 anos e mais de trinta gatos. Pediuque não espantássemos os gatos de cima dos sofás da sala. Os gatosestavam muito irritados, contou. Desconfiava que tramavam a sua mortee em breve a atacariam e comeriam. Também desconfiava que os gatosfossem comunistas. Ficamos de pé enquanto Lo e a condessaconversaram, lembrando Roma do tempo da guerra. “Tenho uma

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memória prodigiosa”, dissera a condessa. “Me lembro de tudo. Melembro até do tempo dos césares.” Mas as duas já estavam conversandopor mais de uma hora quando ela perguntou a Lo:

—Quemévocê,mesmo?—Dolores.ViúvadoEnrico.—Aaaah...—disseacondessa.Edepois:—QueméEnrico?—Seufilho.Oquemorreuhá15anos.—Naguerra?Pelapátria?PeloDuce?—Mordidadearanha.—Aaaah...E de repente a condessa se lembrou. Seu rosto se fechou como um

punho.Perguntou:—Eoquevocêquer?—EuemeufilhoestamosprocurandoumlugarparaficaremRoma.Acondessameexaminoudecimaabaixo.—Essenegroémeuneto?—Não.Éadotado.Euestavasorrindoangelicalmente,masavelhanãosorriu.Opunho

nãosedesfez.—Aquivocêsnãopodemficar.Osgatosnãoaceitariam.Mas Nicoletta Fanfani vendera uma das suas propriedades a um

primo, Ludovico, que a transformara numhotel. O hotel não era luxuoso,mas Ludovico, que ainda não pagara tudo o que devia a Nicoletta, noshospedaria e nos daria um desconto. Um telefonema rápido de Nicolettaacertou tudo. O hotel icava ali perto. Não precisaríamos caminharmuitocomnossasmalas.

Loagradeceuasuaex-sogramasestaserecusouaapertarsuamãona despedida. Fez apenas um gesto que nos enxotava da sua vida parasempre.Quandosaímos,osgatosarodeavam,comosesitiassemumfortenaiminênciadoataquefinal.

8

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O hotel não era luxuoso, mas era simpático. Ludovico ficara surdo naguerra. Tinha dentes amarelos e um grande bigode com as pontasviradas para cima, e beijou a mão de Dolores com uma mesuraexagerada. Sim, poderíamos ficar o tempo que quiséssemos, desde quelhe pagássemos por semana. Nosso quarto era pequeno ecompartilhávamos um banheiro com os outros hóspedes do andar, mashavia glicínias florescendo na nossa janela, e eu acordava todos os diascom o sol na cara, e com alguém cantando na calçada. A cama eraestreita e dormíamos abraçados. Fomos felizes em Roma, eu e Dolores.Nós nos amávamos. É preciso repetir isto, leitor, leitora. Esta é umahistória de amor. Sei que o amor de uma mulher de quase 40 por ummenino de 12 afronta todas as convenções. Sei que eu desafiava as leisnaturais e os parâmetros de gosto e libido da minha idade, enquanto eladesafiava vários códigos penais. Mas nenhum epíteto que ouvíssemos— vergonha! perversão grotesca! — diminuiria aquela verdade: a nossaera uma história de amor. Eu a traí, sim, mas o que se pode esperar deuma criança? Naqueles dias em Roma, entre as glicínias, vivemos anossa paixão ao extremo, mesmo numa cama estreita que guinchava, apoucos passos de um encardido banheiro coletivo. Não era uma paixãosem culpa. Sua consciência perseguia a minha Lo na figura, que euainda mal compreendia, da bruxa Quitéria. Que poder teria aquelamulher com a cara caiada sobre Dolores Fuertes y Obregon, a ponto defazê-la abandonar as alamedas do Bois de Boulogne por ondecavalgava como uma infanta, e suas banheiras em forma de cisne, parafugir com um filho falso por uma Europa convalescente? Mas Loesquecia Quitéria, os ruídos da cama, o cheiro do banheiro e o mundo láfora nos meus braços, todas as noites. Devido à sua surdez, sóLudovico, no hotel, não ouvia os sons orgiásticos e os guinchos dacama que emanavam do nosso quarto e da nossa paixão, por issoinsistia em convidar Dolores para sair com ele. Podiam deixar o“bambino” com as camareiras e ir jantar, ou a um cinema. Dolores sorria,e se desculpava. Não era possível. O “bambino” não dormia sem apresença da mãe.

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9Nosso idílio romano não durou muito. Um dia, quando voltávamos parao hotel de uma feira de rua, Ludovico nos disse que uma “signora”andara nos procurando. Uma senhora? Dolores pediu que Ludovico adescrevesse. Ludovico não ouviu o pedido. Dolores teve que gritar. Maseu não precisava ouvir a descrição do Ludovico. Ao entrar no hotelsentira um cheiro conhecido de perfume. Um perfume doce. O perfumeda morte.

ComoQuitéria nos encontrara? Foi a pergunta que Lo se fez váriasvezes, enquanto enchia asmalas. Ignorando as perguntas insistentes queeufazia:oqueQuitériaqueriadenós?Porqueestávamosfugindodela?Lome deixou no quarto de hotel com ordens para não sair de lá e nãoreceber ninguém e foi tratar da etapa seguinte da nossa fuga. Ludovicoacompanhou nossa saída do hotel com um agitado balé de consternação.Porqueestávamosindoembora?Ele izeraalgumacoisa?Eraculpadele?Algumproblemacomoencanamento?Oquedeveriadizerà“signora”quenosprocurara,quandoelavoltasse?Logritounoseuouvido:“Digaquenosafogamos no Tevere!” “O quê?” “Não diga nada!” “O quê?” Lo continuouignorando minhas perguntas no trem para Milão, depois no trem queatravessouaSuíça,aténossachegadaaosombrioquartodeumhotelcomum comprido nome alemão que seria nosso esconderijo em Viena —enquantoQuitérianãonosencontrasse.

10Nos nossos primeiros dias em Viena, Lo me proibiu de sair do quarto.Ela mesma só saía do hotel atrás de um banco que a ajudasse aacessar sua conta em Paris. Não tinha parentes ou conhecidos emViena e o dinheiro que trouxera na fuga — o nosso dinheiro —começava a rarear. Não teríamos o suficiente para pagar o hotel, se apenúria continuasse. Nos enchíamos de comida no café da manhã, queestava incluído na diária, e passávamos o resto do dia sem comer. Um

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martírio especialmente cruel em Viena, uma cidade feita de pão de ló echantili. Finalmente Lo encontrou um banco disposto a lhe abrir umalinha de crédito até que chegasse dinheiro de Paris e comemoramoscom um jantar no Hotel Sacher, onde comi três grandes fatias do sacher-torte. Lo se encantou com a minha boca lambuzada de chocolate e disseque mal podia esperar para voltarmos à nossa cama no hotel. Passamosdias, semanas, nos lambuzando mutuamente em Viena enquanto omedo de que Quitéria nos encontrasse outra vez amainava. Depois deum mês fui liberado para sair sozinho do hotel. Com dinheiro no bolso —o que Dolores me dava, complementado pelo que eu roubava da suabolsa — conheci todas as confeitarias num raio de um quilômetro dohotel. Foi quando comecei a engordar.

11Lo finalmente me contou quem era Quitéria e por que ela estava nosperseguindo. Eram primas e tinham dormido no mesmo quarto durantedois anos no internato em Genebra. Quitéria era religiosa. ForçavaDolores a rezar com ela todas as noites e a pedir a Deus que assalvasse dos pecados da carne. Mas dizia que ter um corpo já era umpecado irremissível. Contara a Dolores que Jesus Cristo estava semprecom ela. Uma noite, com as luzes já apagadas, Lo perguntara a Quitériase Jesus Cristo estava com ela na cama, naquele momento. Quitériarespondera “Sim, ele está aqui. Posso senti-lo ao meu lado. Sinto seuhálito morno no meu rosto. Poderia abraçá-lo, se quisesse. Ele estáaqui. Ele está aqui!”. Lo perguntara se também poderia ter Jesus Cristona sua cama e Quitéria respondera que não. Ela era muito bonita, játinha seios e seus seios eram muito brancos, Jesus Cristo não sedeitaria sozinho com ela. Mas ela poderia ir para a cama da Quitéria,onde as duas aqueceriam Jesus e se aqueceriam. Quitéria jurara quesalvaria Dolores da danação de ter um corpo, que nunca a deixaria asós nem com Deus nem com o Demônio para tentá-los, e que guiariaseus passos por entre os alçapões do mundo. E tinham passado a

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dormir juntas todas as noites. Depois do internato viera a separação. Afamília de Dolores a levara para Roma, a de Quitéria emigrara para aVenezuela. De onde Quitéria mandava cartas quase diárias para aprima, alternando advertências sobre as tentações da carne e aimportância de seguir todos os mandamentos da Igreja e declarações deamor. Uma vez mandara uma carta apenas com um coraçãotrespassado por uma cruz, pintado com o que Lo julgara ser seu sanguemenstrual. Quitéria voltara da Venezuela para a Espanha com a famíliae entrara numa organização religiosa ultraconservadora, o que nãoimpedia que andasse sempre bem maquiada, com os olhos cercados depreto, e perfumada. Lo me contou que, depois que eu saíra da sala,quando Quitéria nos visitara em Paris, ela repetira:

—Eleéumanjo,umanjo.Eacrescentara:—DoDemônio.Precisolivrá-ladele.Minha Lo tentara convencer Quitéria que eu era apenas seu ilho

adotivomasQuitériainsistiraqueteriaquemetirardassuasmãos,queeueraasuaperdição.Que,comseunomeesuatradição,Lotinhaaobrigaçãode defender a Europa cristã, mesmo que fosse apenas com o gestosimbólicodefecharaspernas.

12Um dia, comendo um sorvete multicolor, sozinho numa das confeitariasmais ornamentadas de Viena, vi refletida num dos espelhosemoldurados em ouro... Não. Não podia ser. Mas era. A prima Quitéria!Antes que eu pudesse me esconder embaixo da mesa com tampo demármore e pé de bronze contorcido ela estava do meu lado, e gritou:

—RoséRosé!Comovocêengordou!Os beijos estalaram nas minhas bochechas indefesas. Não, ela não

estava nos perseguindo. Que ideia. Aquilo era uma coincidência incrível.Ela estava em Viena para uma convenção da organização católicainternacionalaquepertencia,nuncasonharaencontrar-nosdaquele jeito,

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poracaso.Eporsinal,ondeestavaDolores?Deionomedonossohotelerrado.Quitériasentou-seàminhafrente,

joelhoajoelho,epegouumadasminhasmãosentreassuas.—Vocêéumanjo,umanjo.E então me convidou para ir até o seu hotel, que icava ali perto.

Imediatamentepensei: elanãovaiquerer sexocomumanjodoDemônio.Portanto, vai mematar. Vai me sufocar com um travesseiro e depois iráatrás da Lo. Fui mais rápido. Quando chegamos ao seu quarto de hotelatirei-aemcimadacamae tapeiseurostocomumtravesseiro.Deitei-meemcimadotravesseiroeassim iqueiatéqueelaparassedeespernear.Éprecisoentender,leitor,leitora,queseeunãoestivessetãogordonãoteriaconseguidomatá-la. As confeitarias de Viena tinhamme preparado paraaquele momento. Quitéria devia seu destino à sacher-torte. Quandolevantei o travesseiro vi que o rosto dela era um borrão só, contorcido,rímel, batom e cal misturados. E o perfume doce aumentara com suamorte.Operfumeimpregnavaoquartotodo.Operfumemeseguiuquandosaídohotelemeenvolveucomoumhaloquandovolteiàconfeitariaepediumapfelstrudelcomcreme.

13Não tive tempo de contar a Lo que estávamos livres de Quitéria parasempre. Que matara a sua consciência e a sua morte. Que podíamosvoltar para Paris, para Roma, para onde quiséssemos, sem medo. Lonão tinha paciência para ler os jornais em alemão e nunca ficariasabendo que uma delegada espanhola ao Congresso da Regeneraçãoem Cristo fora encontrada morta no seu quarto de hotel, aparentementeasfixiada. Continuaríamos em Viena. Mas, leitor, leitora, nosso amor nãoera mais o mesmo. Eu engordara demais. Não era mais um baianinhomimoso. O Zé Maria que dançava na praia de Porto Segurodesaparecera sob camadas de boa vida. Dolores não me chupava mais,não tinha mais seus orgasmos ruidosos, gritando “Rosé, Rosé!”. Mas averdadeira causa da nossa separação, o meu pecado imperdoável, foi

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fazer 14 anos. Naquela noite, quando voltei para o nosso quarto, elafingia que dormia. Cochichei no seu ouvido “Dolores Fuertes de Barriga,você não me ama mais?” Ela continuou de olhos fechados. Insisti: “Lo,Lola, Lora...” E então ela roncou. Roncou! Um ronco exagerado, como ode um animal acuado para intimidar um predador. Minha senhora dasdores me castigava por ter engordado e envelhecido. Foi o ronco queme fez decidir ir embora. De manhã, enquanto ela dormia, fiz minhamala em silêncio e peguei todo o dinheiro que encontrei noapartamento. E fugi, chorando. Se senti remorso por ter matado Quitéria,a nossa predadora? Não. Era ela ou eu. Às vezes ainda me lembro doseu rosto contorcido e suas cores misturadas como numa paleta. Masme perdoei.

14Dez anos depois eu estava morando no pequeno quarto que me deramna área de serviço do Hotel Splendid, em Montreux, Suíça, ondetrabalhava como garçom. Estava com 24 anos. Tinha emagrecido, ecomeçara a escrever, ainda sem saber bem por quê, esta minha história.Escrevia à mão e em português. Reaprendera a minha língua maternaconvivendo com os outros brasileiros do grupo Candombleu, do qualparticipei como ritmista e bailarino durante quatro anos, depois quevoltei a Paris. Sim, bailarino. Junto com o português também recuperaraalguns passos que fazia com Janaína nas areias de Porto Seguro. Antese depois do Candombleu, fizera de tudo. Durante dez anos perambularapela Europa, lavando chão, me prostituindo, fazendo literalmente detudo. Nunca deixei para trás meu aparelho de som, meus discos e meusvolumes de poesia. Para alguma coisa tinha servido a educação que Lome dera, entre orgasmos. Acabara no restaurante do Splendid, numemprego que consegui porque era limpo e poliglota, embora desconfieque o cabelo encaracolado e os olhos verdes tenham ajudado. Eu faziamuito sucesso com as mulheres e não foram poucas as camareiras dohotel que bateram na minha porta no meio da noite, e entraram já tirando

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a camisola. Fiz amizade com um poeta russo chamado V.Sirin quemorava no hotel com a esposa. Frequentemente, depois do almoço,quando a mulher dele ia dormir a sesta, ficávamos os dois à mesa,conversando em francês e bebendo o que restara do vinho, e ele já meconvidara a acompanhá-lo na sua caça a borboletas na vizinhança dohotel. Ele era apaixonado por borboletas e xadrez. Infelizmente, eu nãocompartilhava das suas duas paixões, mas encontramos uma coisa emcomum, que passou a dominar nossas conversas. Quando contei queestava escrevendo um livro sobre minha experiência com Dolores, elearregalou os olhos e contou que tinha publicado um livro, usando umpseudônimo, que tratava de um assunto parecido, no seu caso o amorde um homem maduro por uma menina de 12 anos. Era o sucessocomercial do livro que lhe permitia morar numa suíte do Splendid etomar uma garrafa de Cheval Blanc por dia. Talvez o meu livro tivesse omesmo sucesso, com as mesmas recompensas. Lamentei que estivesseescrevendo em português, senão lhe daria o manuscrito para comentar.Ele disse, simpaticamente, que iria esperar a tradução. E,enigmaticamente, que uma vez testara Camões com o pé e recuara, semmergulhar.

15Eu conhecia o livro dele, que escandalizara meio mundo, de ouvir falar,mas não o tinha lido. Sirin não parecia muito disposto a comentar areação provocada pelo livro. Ele era um poeta sério, um esteta, umcavalheiro, não era um pornógrafo. As pessoas não tinham entendido olivro, que compravam aos milhões pelas cenas eróticas que quase nãohavia. Perguntei se ele não concordava que nossas histórias eramhistórias de amor. Ele concordou, mas depois se corrigiu. Amor, não.Obsessão. Amour fou. O livro dele era uma ficção, o meu seria umaautobiografia, mas os dois eram sobre o que ele chamava de umapatologia romântica, uma obsessão que transbordava de convençõesmorais e literárias, incompreendida e finalmente trágica. A minha história

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terminaria tragicamente? Respondi que eu recém-começara a escrevê-la e não sabia o seu fim. Decidi ali mesmo que leria o seu livro e talveztomasse alguma coisa emprestada para o meu. Sua história era sobre oenlevo de um intelectual europeu por uma presa ainda malformada,simbolizando uma América em que a cultura europeia só sobreviviacomo afetação. A minha era sobre o quê? Um anjo perdido, respondi.Ou pelo menos uma perdição, não estava bem clara de quem.

Ele comparava a literatura à lepidopterologia. Dizia que existemtrilhõesdepersonagensreaisouimagináriosborboleteandopelomundoàespera de um escritor que capture um espécime e o ixe numa história,comonumestojo, comumaagulha.A agulha atravessaopersonagemeoexpõe, para a admiração, a estranheza ou o horror do mundo, parasempre.Láestão, cadaumnoseuestojoeterno,Hamlet,MadameBovary,Rascolnikov, Swann... Sirin reclamavaqueasborboletasdosarredoresdoSplendideramcomunsequeaindanãopegaranenhumaquemerecesseirparaasuacoleção.Mas tambémnuncasouberadeumpersonagemsuíçoquemerecessesertrespassadoparaaposteridade.SirinrepetiamuitoqueasborboletasdoBrasilerammaravilhosas.Deviaserparameagradar.Outalvezparameconvencersutilmenteadesistirdaliteraturaemededicaraelas.Nãosei.

16E, como não poderia deixar de ser... Um dia Lo apareceu no restaurantedo Splendid. A princípio não a reconheci. Os dez anos tinham feitoestragos. Ela estava acompanhada de um europeuzinho com uma franjaloura colada na testa. Ele não tinha mais do que 12 anos e já olhava aoredor com um nojo de gerações. Pedi informações na recepção do hotel,para ter certeza de que não me enganara. Era ela. E enteado. Estava emMontreux para um torneio de equitação. Aproximei-me da mesa delescomo se fosse encher os copos com água. Simulei surpresa, com umcerto exagero.

—DoloresFuertesdeBarriga!

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—YObregon—corrigiuela.Nãopareciaestarsurpresa.Outalveznãomereconhecera.—SoyRoséRosé.—Eusei.Sente-se.Procurei o gerente do restaurante com o olhar. Ele já reclamara do

meu hábito de sentar à mesa com Sirin depois do almoço. Garçons doSplendid não deveriam confraternizar com os clientes. O gerente só nãoinsistiranareprimendaporquetambémvisitavaomeuquartonomeiodanoite,etambémentravajátirandoacamisola.Sentei-me.

— Este é Dieter — disse Lo, apontando para o garoto, que meofereceuumamãolânguidaparaapertar.Resistiàtentaçãodelhedarumpontapéporbaixodamesa.

—Elejáconhecetodosospoetasfranceses?—Todos.—VocêsvivememParis?—Sim.Numapartamento.Vendiacasa.—Easbanheirasemformadecisnes?—Estãonumdepósito.—QuefimlevouaQuitéria?—Vocêéquedevesaber.Vocêfugiucomela.—Eu?!— Você pensou que eu não mandaria investigar o seu misterioso

desaparecimentoemViena?Você foi vistopelaúltimavez saindodeumaconfeitaria com a Quitéria. Um garoto gordo com uma mulher de carabranca.

—Nãoeraeu.— Era. Sempre imaginei o que Quitéria faria com você. Castrá-lo,

provavelmente.Elaaindaestáviva?— Não sei. Não fugi de Viena com ela. Nunca mais a vi, depois

daquelavezemsuacasa.Emnossacasa.Sósentioseuperfume...—Nãotemimportância.Faztantotempo.—Dezanos.—Dieter,comaosseusaspargos.

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Inclinei-meparafalarnoouvidodaLo.—Lo,lembradasglicínias?—Asquê?—Asglicínias.Najaneladonossohotel.EmRoma.—Não.Pronto,pensei.Terminou.Mentalmente,atravessei-acomumaagulha.

17E passaram-se anos. Continuo no Splendid, onde hoje sou gerente dorestaurante e trato os garçons com rigor. Nada de muita conversa comos clientes. Sirin e sua mulher já morreram. Li o seu livro e copieialgumas coisas, mas ainda não consegui publicar minha história, quepasso o tempo todo retocando. Decidi que será um conto, ou umdepoimento, uma confissão, sem a plumagem e as garras de umromance, como diria Sirin. Nunca mais vi a Lo. Ela tinha quase trintaanos mais do que eu, deve ter morrido. Ou então definha em algumasilo, esperando que a morte venha tirá-la para dançar. Meus cabelosencaracolados esbranquiçaram, minha próstata aumentou e ninguémmais visita meu quarto no meio da noite. Conclusão, leitor, leitora: nóspodemos nos perdoar, mas a vida não nos perdoa.

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Contículo

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O avião sacudiueohomempegouamãodamulher sentadaaoseulado.

—Desculpe—disseohomem.—Équeeu...—Osenhortemmedodevoar,éisto?—É.Naverdade,medonão.Pavor.Ohomemcontinuavaapertandoamãodamulher.Eladisse:—Acalme-se.Foisóumasacudida.Oaviãodeuoutrasacudida.Ohomemgemeuepediu:—Vocêpodemeabraçar?A mulher relutou, mas concordou. Envolveu o homem nos seus

braços.—Obrigado—disseohomem.—Eraoqueamamãe fazia,quando

eueragarotoenósviajávamosdeavião.—Pronto,pronto—disseamulher.—Estátudobem.Outrasacudida.—Eupossoagarraroseuseio?—pediuohomem.—Meuseio?!—Paramelembrardamamãe.Vaimedarmaissegurança.— Pode— disse amulher, abrindo a blusa para o homem segurar

seuseio.Nissoouviu-seavozdaaeromoçaavisandoqueeraparaapertarem

os cintos de segurança porque o avião estava entrando numa zona deturbulência.

— Ai, meu Deus— disse o homem. E para amulher:— Comece atirararoupa!

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Obsessão

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A culpa não é minha, delegado.Édonarizdela.Elatemumnarizarrebitado,masissonãoénada.Narizarrebitadoagenteresiste.Masapontadonarizsemexequandoelafala,delegado.Issoquemresiste?Eu não. Nunca pude resistir amulher que quando fala a ponta do narizsobe e desce.Muita gente nemnota. É preciso prestar atenção, é precisoserumobsessivocomoeu.

•••

Onarizmexemilímetros,delegado.Paraquemnãoestávidrado,nãohámovimentoalgum.Àsvezessósenotadedeterminadaposição,quandoa mulher está de per il. Você vê a pontinha do nariz se mexendo, meuDeus.Subindoedescendo.Nocasodelatambémseviadefrente.Umavezelareclamou, “Vocêsempreolhaparaaminhabocaquandoeu falo”.Nãoera a boca, era a pontadonariz. Eu icava vidradononariz.Nuncadissepra ela que era o nariz. Eu sou louco, delegado? Ela ia dizer que eramentira,queseunariznãomexia.Eraatécapazdearranjarumjeitodeonariznãomexermais.

•••

Mas a culpa mesmo, delegado, não é do nariz, não é dela e não éminha. A culpa é da inconstância humana. Ninguém é uma coisa só, nóstodos somosmuitos. E o pior é que de um lado da gente não se deduz ooutro, não émesmo?Você, o senhor, acreditaria queumhomemsensívelcomo eu, umhomemque chora quando oBrasil ganha bronze, delegado,bronze? Que se emocionava com a penugem nas coxas dela? Que agoramesmo não pode pensar na ponta do nariz dela se mexendo que icaarrepiado?Que eu seria capazde atirar umdicionário na cabeçadela?EumAureliãocompleto, capadura,nãoaediçãocondensadaouoCD?Masatirei.Porqueelatambémserevelou.Elaeraelaeeraoutras.

•••

Amultiplicidadehumanaé isso.Atragédiaéessa.Doisnuncasãosó

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dois,sãodezessetedecadalado.Equandovocêpensaqueconhecetodos,aparece o décimo oitavo. Como eu podia adivinhar, vendo a ponta donarizinho dela subindo e descendo, que um dia ela me faria atirar oAurelião completo na cabeça dela? Capa dura e tudo? Eu, um homemsensível? Porque ela não era uma, delegado. Tinha outra, outras, pordentro.Tudobem,eu tambémtenhooutrospordentro.Porexemplo:nósjáestávamos juntoshaviaum tempãoquandoeladescobriuqueeu sabiaimitar o Silvio Santos. Sou um bom imitador, o meu Romário também ébom, faço um Lima Duarte passável, mas ninguém sabe, é um ladomeuque ninguém conhece. Ela icou boba, disse “Eu não sabia que você eraartista”. E eu também sou um obsessivo. Reconheço. E a obsessão foi acausadanossabriga inal.Tenhooutrospordentroquenemeuentendo,minhateoriaéqueagentenascecomváriaspossibilidadesequandoumapredomina as outras icam lá dentro, como alternativas descartadas,de inhandoemsegredo,ressentidas.E,vezqueoutra,querendoaparecer.Tudobem,viverjuntoséirdescobrindooquecadaumtempordentro,osdezessete outros de cadaum, e aprendendo a viver comeles. A gente seadapta.Umdosmeusdezessetepodenãocombinarcomumdosdezessetedela, então a gente cuida para eles nunca se encontrarem. A felicidade ésempreumaacomodação.

•••

Eu estava disposto a conviver com ela e suas dezessete outras, adesculpar tudo, delegado, porque a ponta do seu narizmexe quando elafala.Masaísurgiuadécimaoitavaela.Nósestávamosdiscutindoasminhasobsessões.Elaestavasequeixandodasminhasobsessões.Nãoseicomo,adiscussão derivou para a semântica, eu disse que “obsedante” e“obcecante”eramamesmacoisa,eladissequenão,eudissequeasduaspalavras eram quase iguais e ela disse “Rará”, depois disse que“obcecante”eracom“c”depoisdo“b”,eudissequenão,quetambémeracom“s”, fomosconsultarodicionárioeelaestavacerta,eaíeladeuoutrarisadaaindamaisdebochadaeeunãomeaguenteieoAureliãovoou.Sim,atireioAureliãodecapaduranacabeçadela.Agenteaguentatudo,nãoé

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delegado,menoselasquereremsabermaisdoqueagente.Arrogânciaintelectual,não.

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Memórias

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Estavamna casa de campo,ele e amulher. Iam todos osins de semana. Era uma casa grande, rústica, copiada de revistaamericana,eafastadadetudo.Nãotinhatelefone.Otelefonemaispróximoicava a sete quilômetros. O vizinho mais próximo icava a cinco. Elesestavamsozinhos.Amulhersóiaparaacompanhá-lo.Nãogostavadacasade campo. Tinha de cozinhar com lenha enquanto ele icavamexendo nojardim, cortando a grama, capinando, plantando. Foi da janela da cozinhaqueelaviuele icarsubitamentetesoelargaraenxada,comoseaenxadativesselhedadoumchoque.Elacorreuparaaportadacozinhaegritou:

—Sãoasdores?Elesópôdefazer“sim”comacabeça.Elafoibuscá-lo.Trouxe-opara

dentro de casa, amparando-o a cada penoso passo. Ele suava muito.Cheiravaàterra.Elaperguntou:

—Oremédioestácomvocê?Ele disse que não. Foi mais um grunhido. Subiram, a custo, os dois

degraus da porta da cozinha. Ele não quis ir para a cama. Quis icar nacadeiradevimedacozinha.Iapassar.

—Ondeéqueestáoremédio?Elefezumgestoquequeriadizer“poraí”.Elainsistiu,jáempânico:—Ondefoiquevocêbotouoremédio?Comamesmamãoelepediutempoparapensar.Ondetinhapostoo

remédio? Ela não esperou. Foi revistar o casaco dele, pendurado noarmário,pertodaentrada.Nãoencontrouoremédio.Correuparaoquartodeles. Ele tinha atirado tudo que trouxera da cidade — livros, revistas,alguns papéis do escritório— em cima da cama. Procurou nos bolsos dacalçaqueeletambémjogaranacama.Oremédionãoestavaali.Elavoltouparaacozinha:

—Ondeéquevocêpôsoremédio?Ele tentava reconstruir,mentalmente, tudo o que izera ao chegar à

casanodiaanterior.Descidocarro.Abriaportadafrente.Fuidiretoparaonossoquarto.Atirei os livros, as revistas e os papéis em cimada cama.Giselaestavaembaixodoslençóis,nua,sóasuacarasorridenteparafora.Masoqueéisso?Nãotinhaninguémembaixodoslençóis.Eleforaajudara

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mulher a abrir as janelas. Depois... Depois o quê? Voltara para o carro epegara os pacotes de comida. Levara para a cozinha. Saíra pela porta dacozinhaeforaligarachavedaluzque icavadoladodefora.Viraoseupainomeiodogramado,decostasparaele,chorando.Claroquenãovira.Seupaimorreraantesdeelesconstruíremacasa.

—Tenteselembrar!—gritouamulher,assustadacomadorquevianoseurosto.

—Estoutentando.Olhenocarro.Ela foi olhar no carro. Procurou no porta-luvas e no chão. En iou a

mão dentro dos bancos. Nada. Voltou para dentro da casa e começou aabrirgavetas.Gritouparaacozinha:

—Vocêtemcertezaquetrouxe?—Tenho.Tenho!—gritouele,impacienteporqueelainterromperaa

sequênciadoseupensamento.Troqueideroupa.Atireiascalçasdacidadeemcimadacama.—Procurenasminhascalças,noquarto!

—Jáprocurei!—gritouela.A dor estava aumentando. Ele precisava organizar seu pensamento.

Biguá,Briae Jaime.Oquadradodahipotenusa.Calma,calma.Boteiminharoupade jardineiro.O remédiodevia estar junto comas coisas de banhoqueamulhersempretrazianumasacoladeplástico.Bauer,ElieBigode.

—Asuasacoladeplástico.—Eununcatragooremédionasacola.Vocêéquetrazcomvocê.—Devetercaídonochão.—Adornãoestápassando?—Não.Ela correu para o quarto e começou a engatinhar. O remédio devia

ter caído do bolso quando ele tirara as calças. Ela procurou embaixo dacama. Nos cantos. Atrás do armário. Voltou para a cozinha. Estava com acabeçaatiradaparatrás.

—Nãomelhorou?—Maisoumenos...Masnãotinhamelhorado.—Pense!

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Ele tentou limpar a cabeça. Dar uma varrida no cérebro. Moldá-lo.Comandá-lo. Fazê-lo pontiagudo e preciso. Campidoglio. Mas queCampidoglio?Oremédio.Oremédio.Océrebroeracomoopau,impossíveldecontrolar.Gisela,Gisela.EmplastrodeVickVaporub.Ascaixasdepódasua mãe. O Vingador no rádio. Buscapé. Quem é que usa as cuecas doFiuza?Eracomoseelequisesseenxergaralgumacoisaefosseatrapalhadopor nuvens, teias, ios de açúcar, o cheiro da loção do seu pai, ios deaçúcar,oparque,seupainomeiodogramado,decostasparaele,tentandosegurarochoroenãoconseguindo,pipoca,puxa-puxa,avoltaparacasanocarro,denoite,nocolodequem,dequem?Ocheirodemadressilva.

—Euvouatéacidadecompraroremédio.—Nãodeveter...—Euvouatélá.Comoéonomedoremédio?OswaldoBaliza.Não,esseeraogoleirodoBotafogo.Tantacoisainútil.

Um bom martíni deve ser mexido, nunca sacudido. “Laura” era a GeneTierney. O nome do remédio. Concentre-se. Caixinha branca, tarjavermelha.Começacom“T”.ThuranBey.Não.“Tristeécantarnasolidão...”Talmud.Trilateral.Tesão.(Gisela,Gisela!)Bauer,Ruy,nãoEli,e,e...

—Noronha!—Oquê?—Não.Começacom“t”...A mulher disse que não importava. Na farmácia deviam saber. Ou

entãoelaprocurariaumremédio.Ondeéqueestavamaschavesdocarro?—Deixeeupensar...—AimeuDeus...Ele procurou as chavesdo carrodentrodo cérebro.Dentrodeuma

caixa de pó, redonda, da suamãe. “Seu pai se suicidou...” Fios de açúcar.Biguá,BriaeJaime.Procuroudentrodeumacaixadecharutosdoavôquetinha transformado em projetor. Onde estão as chaves do carro? Dentrodaslatascomsuacoleçãodetampinhasdegarrafanãoestavam.Atrásdoslivros na prateleira do pai, onde ele um dia descobrira um livropornográ ico, tambémnão.Amulheragoraseguravao seu rostoentreasmãos.

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—Pense!Aschavesdocarro!Eraprecisoseorganizar.Onomedosseus ilhos.FernandoeFelipe.

Onomedosnetos.Deixaver.31-33...Não, esseeraonúmerodo telefoneda Gisela. 4-16-7. A combinação do cofre. 0086... Não, seu CPF nãointeressava. As chaves do carro! Ásia, África, Europa, América e Oceania.Astrezecapitaniashereditárias.Amapola, lindíssimaAmapola.Aquelavezem Roma, no Campidoglio, em que... Não era isso! As chaves do carro. Oremédio. O nome do remédio. Estava com o cérebro entulhado. As coisasqueagenteacumula!MiltinhoeHelenadeLima.Asarmaseosbarões.OGordo e oMagro. Os negócios. Os negóciosmataram seu pai. O sapo queumdiaentraranacozinhadacasadecampo.Umsapomarrom, latejante.C’est si bon. As ruas de Copacabana, Prado Júnior,Hilário de Gouveia. OuRonald de Carvalho? Orca, a baleia assassina. Homem Bala. Namor, oPríncipeSubmarino.Começavamabrotarcaras.Nabuscadaschavestinhaperfurado um cano de caras. Colegas da escola. Professores. O tenenteBandeira.O cérebroalagadode caras.Delírio.Agoramesmoéquenão iaencontrarmais nada. Gisela. O tio Tonico! Einstein. Rita Pavone. OuviramdoIpiranga.Tentasteflertaralguém.Tudomenosaschaves!

Amulher procurava, de novo, nas gavetas. Despejou o conteúdo dasuabolsanomeiodasala.Foiaobanheiroedespejounochãooquetinhanasacoladeplástico.Voltouparaacozinha.

—Passouador?—Estápassando.Não estava. Estavapiorando. Eladisseque iria a pé até a casamais

próxima,buscarajuda.Elegritou:—Não!Nãoqueria icar sozinho comas suasmemórias. Seu cérebroestava

tentandomatá-lo. Era isso. Estava sendo assassinado por banalidades. Selembrara de coisas de quando tinha 4 anos de idade e não se lembravaondepuseraaschavesdocarro.Ouoremédio.Eratudoquímica,elesabia.Enzimas, células, combinações celulares. Nada pessoal. Quanto mais sepensavasobrepensarmaishaviasobreoquesepensar.Ocoraçãoeraoquemantinhavivoomecanismoquemantinhaocoraçãovivo.Amorteéa

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últimacoisaqueeuqueroquemeaconteça.Algumacoisanoseucérebronão queria que ele encontrasse o remédio. Ele procurava as chaves docarro e a salvação e encontrava o gosto da papinha de frutas que comiaquando ainda não tinha dentes. Era uma conspiração. Veja ilustrepassageiro.Todasascoisassemimportânciaarmazenadasem50anosdevida agora entulhavam os corredores. Sua ânsia de viver queriamatá-lo.Emergência! Emergência! Desobstruam todos os acessos. Isto não, repito,NÃO é um treino. O remédio. As chaves. Suamulher. Como eramesmo onome dela? Os Zugspitzartisten. Por que diabo estava se lembrando dosZugspitzartisten?Ondeestavasuamulher?

Elasaíra.Deviaestarcorrendopelaestrada.Elaquetinhahorrordebarroedemato.Eleiamorrer.Sério,agora.Eraumaarmadilha.Eumesmomeatraíparaaqui,compreiestacasasolitáriacommeuprópriodinheiroeesqueciondeboteiosremédioseaschavesdocarro.Deviaterdesconfiadodemimmesmoquando iz questãodenão instalar telefone. Seupai deraumtironamemória.Quemsemata,mataasuamortalidade.Osuicídioeamasturbação são manifestações clandestinas de autograti icação que osistema não previa. Como as hortas privadas nos regimes comunistas.Biguá,BriaeJaime.Eli,DaniloeBigode.Ohomeméoúnicoanimalquesemata.Ohomeméoúnicoanimalquecoleciona igurinhadebala.Ohomeméoúnicoanimalquefazcaretasparaasuaprópriacâmera.Ohomeméoúnicoanimalque lambeospésdeGisela.Adoraumenta.Euvoumorrer.Meucérebro,purgadopeloterror,transforma-se.Torna-segraveeagudo.Estáprontoparaaúltimarevelação.Sério,agora.Oquenósnãopodemosconceber é não ter amemória da nossamorte. É não poder pensar neladepois. Não poder relembrar com os amigos no velório. Passamos a vidainteiranospreparandoparaanossamorteequandoelavemnãopodemosassistir. Amorte não temdepois. Isto não é um treino.Meupai sematoupor causa dos negócios. Paguei suas dívidas, reergui os negócios, tenhonomeecasadecampo.Maseledeve,umdia, terprocuradoalgumacoisanofundodocérebroedadocomaquelehorror,comoumsapolatejando.Ohomem é o único animal que soluça escondido. Se matou porque eramortal.Porqueoseufilhoeramortal.

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Sério,agora.Chegadebanalidades.Jáqueeuvoumorrer,quevenhaaúltimarevelação.No imatéostolossãotrágicos.Atéocaramujo,nahoradasuamorte,participadograndedramadaexistência.Ohomemencheacabeça de bobagens porque não suportaria a única ideia que traz nofundo,adequevaiacabar.Océrebroéumtubarão.Nãopodepararsenãovai para o fundo. Mas agora eu quero. Pousar no fundo. Atravesseicamadas de ios de açúcar para chegar ao meu centro. Chega dedesconversa.Nãosintomaisdor.Talvez játenhamorrido.Estounofundo.Sim, sim. É uma clareira numa loresta escura. Chegou a hora. Vejo cipósreluzentes.Muitaumidade.Bemnomeiodaclareira,nocentrodocentro,há uma pedra grande. Maior do que eu, seja lá quem eu for. A pedra éescura.Háalgumacoisaescritaem letrasbrancas.En im, a explicaçãodetudo.Meaproximo,comoseboiasse.No imtodohomemtemdireito,pelomenos,àsolenidade.Volteiaomeucomeço.Aprimeirapedra.Arevelação.Jápossolerasletrasbrancas.Sério,agora.

Napedraestáescrito:“CasasPernambucanas”.Depoisficoutudoescuro.

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A mancha

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Enriquecer. Rogérioachava engraçada aquela palavra. Quando lheperguntavam o que ele izera depois de voltar do exílio e ele respondia“enriqueci” era como se fosse alguma coisa orgânica. Como se dissesse“engordei”ou “perdios cabelos”.Aspessoas riamenãopediamdetalhes,não perguntavam “Enriqueceu como?”. Se ele dissesse “ iquei rico” teriaque explicar. Contar que comprava e vendia imóveis, pegava casas eprédios abandonados, reformava e vendia, ou demolia e negociava oterreno.Masdizer“enriqueci”eraumamaneiradedesconversar.Dedizerque enriquecer lhe acontecera como qualquer outra fatalidade biológica.Nãoeraculpasua.Ospoucosqueconheciamasuavidariamdarespostacomoquemdiz:“Bemfeito!”

Compravaevendiaimóveis.Compravabarato,arrumavaevendiaoudemolia. Vivia atrás de prédios decrépitos, de casas em ruínas, de sinaisexternosdeabandono.Dedicava-seàquilo comoalguémqueseentregaauma causa. Amulher, Alice, já se acostumara com suas freadas bruscas,sempre acompanhadas da frase “Olha ali!”, quando ele avistava outroedi ício morto, outro jardim selvagem, outro possível negócio. Alice dizia“Bendito cinto de segurança”, porque o cinto salvara seu rosto e seucasamentomaisdeumavez.Rogériodesciaparaexaminaroprédioenãoera raro deixar o carro parado no meio da rua com a mulher dentroaguentandoasbuzinadas.Elaoconheceradepoisdoexílio,depoisdetudopassado. Já o conhecera assim, agitado, estabanado. Tendo pesadelos.Dizia: “Deixaopassadonopassado,queéo lugardele,Rô.”Não sabia seele já era assim antes do exílio, antes de se conhecerem, antes depassaremumanoite inteiradiscutindo cinema, discordando em tudo e seapaixonando.Amãedelenãoajudava.Dizia“Elesemprefoimuitoansioso”.Masoexemploquedavaeraojeitodeledecomerpêssegoquandogaroto.

Ele se mantinha informado sobre heranças litigiosas, falências,despejos, sinaisde inadimplênciae impostosatrasados, tudoquepudesseindicar a existência de uma propriedade desvalorizada em algum lugarpara comprar barato, arrumar e vender ou destruir e enriquecer aindamais.Edirigiaolhandoparaoslados.Examinandoasfachadasdosprédios.

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“Procurando os cariados”, dizia. Era a sua causa, por ela ele sacri icavatudo. Percorria a cidade, de carro, atrás de sinais dedecomposição.Diziaquerodeavaacidadecomoumcachorro famintorondandoumrefeitório,atentopara as sobras.Oupara comidadeteriorada.O sogro, pai deAlice,queeradoramoimobiliário,dizia:“Elevivedonossolixo.”Echamava-ode“Rogério,oDemolidor”.

—Olhaali!Freada brusca. Era umprédio estreito de quatro andares. Recuado,

atrásdeummurobaixoedeumterrenodeterrabatidaqueavizinhançaadotaracomodepósitodelixo.

—Rogério,nósestamosatrasados.Deixaparaverdepois.Estavam indo conhecer a casa nova do irmão dela. Jantar marcado

paraasnove,jáeramnoveequinze.Eacasaficavaforadacidade.—Voudarsóumaolhadarápida.O portão domuro baixo não existiamais. A porta do prédio estava

trancada. Nenhum cartaz, mas uma plaqueta pregada na porta: “TratarcomMiro” e um número de telefone. A plaqueta era pequena. Miro nãopareciamuito interessado em vender. E era antiga. Ninguém que trataracomoMironosúltimosanosfecharanegócio.Rogérioanotouonúmeronasuaagenda.Semprecarregavaumaagendanobolso,paraanotaçõescomoaquela. Era um homem organizado, apesar da agitação constante. Deualguns passos para trás para examinar a frente do edi ício. Não haviamuito o que fazer com ele. Com aquela largura, dava para uma peça nafrente,maisduasoutrêsatrás,nomáximo.Escritórios.Todooprédiocomosede de um pequeno negócio. Nem pensar em instalar elevador. Talvezvalessepeloterreno.TratariacomoMiro.

—Eestanossapolítica,seuRogério?Eestanossapolítica?O cunhado, Léo, que era dos que conheciam a sua vida, gostava de

provocarRogério.Instruíaofilhode5anos:—DizprotioRogériooquevocêé.Eomenino,enfatizandoassílabas:—Re-a-ci-o-ná-ri-o.—“Comoopapai.”Diz.

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—Co-moopa-pai.—Essemeninoestáfeitonavida—diziaRogério.—Otitioéqueestáfeitonavida,nãoé,Duda?—É—diziaogaroto.—Vocêconhecealgumdelesquenãoestejafeitonavida,meufilho?—É—repetiaogaroto,desinteressado.Acasanovadocunhadoeraumcasarãonumcondomíniofechado.O

cunhadotinhasaídoacaminharcomeledepoisdojantar.Paramostrarascanchasdetêniseolago,iluminados.

Tudocomunitário.Paracadaumdeacordocomsuasnecessidades.“Éonovocomunismo”,disseraLéo,apertandoobraçodocunhado.Aáreaeratoda cercada e patrulhada por guardas armados. O maior custo docondomínioeracomsegurança,masocunhadodiziaquetranquilidadenãotinhapreço.

— E esta nossa política, seu Rogério? O que você me diz? —provocavaocunhado.

—Nãopossomequeixar—diziaRogério.

O prédio estreito de quatro andares era da mãe do Miro. O ilhocuidavadosnegóciosdela.Amulhernãotinhapressaemvender,masseaofertafosseboa...CombinaramumencontroparaRogérioveroprédiopordentro. Miro era gordo, com uma barba cerrada, e vestia um casaco decouro preto, apesar do calor. Tinha, provavelmente, metade da idade deRogériomas respirava com di iculdade e pediu licença para não subir aescada.Rogériopodiasubir,examinaroquequisesse.Eleesperariaali.

No primeiro andar, a escada terminava no começo de um corredorescuroquelevavaparaofundodoprédio.Virandoàesquerdaepassandoo início do segundo lance das escadas, dava-se na porta aberta da únicapeçadoandarcomvistaparaafrentedoprédio,edeondevinhaaluzquepermitia a Rogério enxergar onde pisava. As janelas da peça eram doisburacosvazios.AprimeiracoisaquechamouaatençãodeRogérionasalafoi o chão coberto por um carpete. Um incongruente carpete ino, demáqualidademas inteiro, cobrindo o assoalhode parede a parede. Tambémfora a primeira coisa que ele notara anos antes, numa outra sala, numa

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outra vida, quando o negro tirara a venda dos seus olhos. O carpeteincongruente. Lembrava-se de pensar que provavelmente a sala serviapara outra coisa e na adaptação apressada não tinham se lembrado detirar o carpete. Rogério caminhou até as janelas e espiou para fora. OgordoMiroestavana frentedoprédio,chutandoochãode terrabatidaefumando.Rogériovirou-seeviuamanchanochão.UmmapadaAustrália,mais escuro do que o resto do carpete. Em seguida, sem pensar, maspressentindocomalgumapartedassuasvíscerasoqueveria,olhouparaaparede à sua esquerda, perto do teto. Lá estava ele. O per il do DonQuixote.Asparedesestavamcheiasdeestrias,emalgumaspartesorebocotinhacaído, comoquearrancadoadentadas,masoper ildoDonQuixote— o nariz adunco, a barba pontuda, até o gogó — continuava lá,inconfundível,desenhadoemsépiasobreofundobrancopelaumidade.

Mironãosabiaquemtinhaocupadooprédio.Nãosabianemquandoele fora construído. Podia perguntar para a mãe, mas duvidava que elasoubesse.Elanuncasequerviraoprédio,partedaherançadopai,oudamãe,oudeumavô,elenãosabiabem.

Eagoraamãenãopodiamaissairdecasa.Rogérioperguntouquantoqueriampelapropriedade,masnãoesperouMirocompletararesposta.

—Bom,sóoterrenovale...—Feito.—Esperaaí.Euaindanãodisseopreço!—Desculpa.—Osenhorestápassandomal?—Não,não.Porquê?—Parecemeio...—Não,não.Issoénormal.Quantovocêsquerem?Dessavez,Rogério ingiuqueprestavaatençãoe ingiuquehesitava

antes de dizer “Feito”. Combinaram se encontrar no dia seguinte, paratratardapapelada.EMiro icoude tentardescobriralgumacoisasobreahistória do prédio. Principalmente no período dos anos 60, começo dosanos70,poraí,pediuRogério.

— Anos 70?! — espantou-se Miro, fazendo uma careta. — Duvido

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quealguémaindaselembredealgumacoisadosanos70...

Rogério icaradepegara ilhanobalé.QuandochegouemcasasemAmandaamulhergritou:

—Francamente,Rogério!—Esqueci,esqueci.Voubuscá-laagora.—Euvou.Podedeixar,euvou.A ilha entrou emcasa indignada.Opai a izera esperarquaseuma

hora.Nocarro,ouviraasqueixasdamãe.“Seupaiestácadavezpior!”Chegouprotestando:—Francamente,papai!—Amêndoa,Amandinha.Amandíssima...—Nemvem.—Dáumbeijonoseupobrepai,vai.—Não-o!—Perdãoparaospatetas!—Melarga!No quarto, começou a dizer a Alice que tinha uma coisa para lhe

contarmaselanãoquisouvir.— Você não pode continuar desse jeito, Rogério. Só pensando no

trabalho.E sempreessa agitação.Essa tensão.Você sabequedorme comosdentestrincados?Sabe?

—Deixaeutecontaroqueaconteceuhoje.—Eunãoqueroouvir.Voutomarmeubanho.—Eucontopravocênobanho.MasAlicefechouaportadobanheiroantesqueelepudesseentrar.Maistarde,nacama,elaouviu.Dissequeelenãopodiatercertezade

queeraomesmoprédio.Elenãolhecontaraquenuncaviraoprédio,queeralevadoparalácomosolhosvendados?

—Maseureconheciapeça.Eamanchaestálá,nochão.Amanchadomeusangue.

—Nãopodeser.—EoDonQuixotenaparede.— Depois de tantos anos, está tudo como antes? Um prédio caindo

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aospedaços?— Justamentepor isso.Vai verninguémocupouoprédiodepois. Só

tiraramosmóveisedeixaramtudocomoera.Ocarpete,asparedescomoestavam.Nemerammuitosmóveis.Napeça,sótinhaumacadeiradeferroonde nos botavam e uma espécie de sofá onde eles sentavam. Um sofámole.Eutecontei.Onegroseafundavanosofá.

—Pensaumpouco,Rogério.Apeça icanafrentedoprédio.Dáparaa rua. Você acha que eles iam fazer uma sala de tortura na frente doprédio,paratodoobairrosaber?

—Maseumelembreidetudo.Dasduasjanelas,detudo.Eamanchadomeusangueestálá.

— Depois de quarenta anos, você reconheceu a mancha do seusanguenumcarpete.Estábom...

—EoperfildoDonQuixotenaparede.—Rogério,eusótepeçoumfavor.Nãofalenadadissona frenteda

Amanda.Foicomodizer“Nãotragaseupassadoparadentrodecasa”.RogériogostavadacaraqueoseuAfonso,seumestredeobras,fazia

semprequeexaminavapelaprimeiravezumprédioqueiriareformar.Eraumacaradedesânimo.Acaradizia“Oqueéquemearranjaramagora?”.EseuAfonsosempreterminavasuaapreciaçãocomamesmafrase:“Vamosvernoquevaidar”,numtomqueadvertiaparanãoesperaremmuitodele.ORogérioqueriafazeroquecomaqueleprédiomagroefeio?

—Vamossódarumalimpadaetaparosburacos.—Possocomeçarnaterça.Rogériohesitou.Terça.Talveznão.—Dê uma segurada, seu Afonso. Ainda tem uns problemas com os

papéis.Euavisoquandoforparacomeçar.Não havia problema com os papéis. As negociações comMiro e sua

mãe tinham sido rápidas e a documentação estava toda em ordem. Elepodia fazeroquequisesse comovelhoprédio, semdemora.Pô-loabaixoou transformar num palacete. Rogério não sabia por que hesitara. Ousabia.Nãosaberiaeraexplicar.

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—OGlennFordgostadebater.Rubinho, seu companheiro de cela, avisara que o pior deles era um

parecidocomoGlennFord.OGlennFordnãousavanenhuminstrumento.Nemprotegiaasmãos.Batiacomopunhoouamãoabertaesorriasóparaumlado,comooator.Eosoutros?

—Onegrãonãoparticipa.Temummagrinho,debigode,queéoquemais fala. Esse ameaça com um porrete. Eles também têm um negócioelétrico,umtipodedínamo,paradarchoque.Jámemostrarammasaindanãousaram.

Onegroeraoencarregadodelevá-losparaointerrogatório.Iamcomosolhosvendadosnobancodetrásdeumcarro,comonegroaolado.Umdecadavez.Subiamumlancedeescada.Eraonegroqueretiravaavendaquando chegavam à sala. Na primeira vez, Rogério icara sentado nacadeirade ferro comasmãos algemadasporbaixodeumdosbraçosdacadeiraeonegroafundadonosofámole,comos joelhosquasemaisaltosdo que a cabeça, esperando, por meia hora, sem se falarem. Rogérioolhando emvolta, o carpete surpreendente, o teto, as paredes, as formasqueasmarcasdeumidadetomavamnoreboco.Tentandoserecuperardopavor que sentira dentro do carro, com os olhos vendados. Tentando secontrolar. Aquela mancha ali parece um dragão. Aquela podia ser umchapéu.Aquela,umper ildoDonQuixotedelaMancha,semtirarnempôr.UmamanchadoDonQuixoteemvezdeumDonQuixotede la...Eentãoomagrinhodebigodeentraranasala.Semporrete.Apenasperguntara:

—OquevocêédoAlcebíades?—Quem?—DoAlcebíades.Osobrenomeéomesmo.—Nãosei.—Nãosabe.Mánotícia,meujovem.Eomagrinhodebigodesaíradasala,depoisdefazerumsinalparao

negro, que era grande e pesado e levara algum tempo para se livrar dosofámole e ir abrir as algemas. Depois a venda nos olhos e a viagemdevoltanocarrocomacoxadonegrocoladanasua.

Naprimeiravez,Rogérionãoviraotalnegócioelétrico.NemoGlenn

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Ford. Mas ele voltaria à sala atapetada. Não ser parente do Alcebíades,aparentemente,eraumerro.

Estranho.Rogérionunca sonhava comsuaprisão.Não sonharanemnoexílio.Mastinhaumsonhorecorrente.Seupairepreendendo-o,dizendo“Nóscriamosvocêpracuidardafazenda,evejaoquevocêfez.Afazendaestáabandonada.Nãotemninguémcuidandodafazenda!”.Eeletentandoesconderorosto.

Não sabia o que signi icava o sonho.A família nunca tivera fazenda.Seupainuncaforadonodenada,alémdacasacomao icinanofundo.“Eagora?”,diziaopainosonho.“Vouvoltardoexílioevoupraonde?”

Mironãodescobriranadasobreohistóricodoprédio.Provavelmentenemtentara.Amãedeletinhaumavagaideiadeteralugadodoisandaresparauma irmadededetização,ou coisaparecida.E só.Navizinhançadoprédio, ninguém se lembrava de vê-lo ocupado. Rogério tirou uma tardeparaouviravizinhança.

Noladoopostodarua,descobriuumasenhoraquemoravaalidesde1950.

—Finsdosanos60,começodosanos70.Asenhoranãoselembrademovimentonoprédio?Carroschegando.Gritosládedentro.

—Gritos?—Movimento.Carroschegandoesaindo.—Não.Desdequeeumelembro,aquilosóédepósitodelixo.—Temcerteza?—Anos 70,meu ilho. Quem é que se lembra dos anos 70? Eu não

lembromaisnada.

— Derruba logo esse prédio, Rogério — disse Alice. — O terrenoparecebom.Vendeparaumaconstrutora.Ouconstróivocêmesmo.

—Vocêquerirláolhar?—Olharoquê?—Apeça.Amancha.Praterumaideia.—Eunão!Estoutedizendopraesquecerevocêmeperguntaseeu

quero ver? Você nem sabe se é o mesmo prédio. E ica aí remoendo o

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passado.—Euseiqueé.—Entãoesquece.Põeabaixo.Nãoficaremoendo.—Éomeusanguequeestálánochão,Alice.—Nãoé.Esefosse,dequeadiantaria?Vocêquerosanguedevolta?—Nãoéisso.—Oqueéentão?—Nãoéisso.— Tenta esquecer, Rô. Fazia anos que a gente não tocava nesse

assunto. Por que icar se atormentando agora? É tudo passado. Deixa opassadonopassado,queéo lugardele.Oudestrói e constrói outra coisamaisbonitanolugar.Nãoéoquevocêfaz?

OGlennFordfizeraumacaradenojo,depoisdeimpaciência.Acertarasemquerernonariz,quecomeçaraasangrar.—Olhaoquevocêestáfazendonotapete.Era como a sua mãe, reclamando da sua sofreguidão ao comer

pêssego.Elesempresujavaacamisa.Umdiaainda iriaengolirocaroçoemorrerengasgado.

—Põeacabeçapratrás.O Glenn Ford tentara forçar sua cabeça para trás mas as algemas

presasnumpédacadeiradeferromantinhamasuaespinhaarqueadaeacabeçapendente.Osanguepingavadiretamentenochão.

—Olhaquecacaca.ÓBedeu,pegaumpanomolhado.Onegrodemorouparasairdosofámole.Quandovoltoucomumpano

molhado já havia uma poça de sangue no carpete. O Glenn Ford apertouseunarizcomopanomolhado.Opano icouempapadodesangue.OGlennForddesistiu.

—Tiraestefilhodaputadaqui.Destejeitonãoadianta.Nocarro,onegrosegurouopanocontraoseunariz.Disse,comose

fosse o parecer de um velho observador de interrogatórios, ou umreconhecimento de que, apesar da revolta do Glenn Ford, a culpa porsangrartantonãoeradoRogério:

—Narizéfoda.

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Foram as únicas palavras que Rogério e Rubinho ouviram o negrodizer,notempotodo.

Osdoiseram levadospara interrogatórioemdiasalternados,ouumde manhã e o outro à tarde. Um dia Rubinho foi levado e não voltou.Dezoito anos depois, num 2 de janeiro, Rogério viu no jornal a foto doprimeirobebênascidonacidadenaqueleano-novo,poucosminutosdepoisda meia-noite. O bebê, chamado Sidnei, no colo da mãe. A mãe olhandoternamenteparaobebê.Eaoladodamãe,sentadonacama,olhandoparaacâmeraesorrindocomorgulho,oRubinho!Identi icadonalegendacomoopai da criança,Alcides SunhozFilho, jornalista. Pareciamais gordomasnãomudaramuito. Amesma testa alta, asmesmas orelhas grandes. Nãohavia dúvida, era o Rubinho. Foi fácil para Rogério localizá-lo.Marcaramumencontro.

—Eunãome lembravadoseunome—confessouRubinho,quandoseencontraram.

—Eununcaesquecioseu.Sóqueeraumnomefalso.— Pois é. Nem me lembro por que “Rubinho”. Não tinha nada de

heroico,né?OperigosorevolucionárioRubinho.—Oquevocêfaz?—SouRPdeumaempresa.Jornalismo,mesmo,nãodeumais.—Vocêficoupreso,ou...—Fiquei,porumtempo.Depoismesoltaram.Você?—Fiqueiunsanosforadopaís.África,depoisEuropa.—Efezoquê,navolta?—Enriqueci.Ooutroriu,enãopediumaisdetalhes.Contouasuaexperiência.Voltaraao jornalismoechegaraaterumacolunaassinada,mascom

pseudônimo.Poisé,outrocodinome.Escreviasobrecinema.Rogériotalvezativesselido,àsvezes.Eleassinava-seMarcello.Homenagemao...

Rogériodebocaaberta.Outracoincidência.— Você não vai acreditar. Sabe que você é responsável pelo meu

namoro com aminhamulher? A primeira conversa que tivemos foi umadiscussãosobreasuacoluna.Um ilmequevocêeelatinhamamadoeeu

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tinhaodiado.EoMarcelloeravocê!Olhasó.OsorrisoorgulhosodoRubinhoeraomesmodafotonamaternidade.Tinhamtrocadoendereços,telefonesepromessasdefazeremalguma

coisajuntos,assimqueorecém-nascidoSidneideixasseamãesairdecasa.AAliceiaadorarconhecero“Marcello”.Masemquinzeanosnãotinhamsevisto mais. Agora Rogério procurava o nome verdadeiro do Rubinho nalistatelefônica.Comoeramesmo?

Arlindo Soares.Alcino Sunhê.Alguma coisa assim.Então lembrou-sede que tinha tudo anotado numa agenda. Costumava guardar suasagendas,emordem,porano.Emqueanoforaaqueleencontro?87ou88.Eeleanotaraqualnome,sobqueletra?ProcurouRubinho.

Lá estava (Rubinho), depois (Marcello!), entre parênteses, e AlcidesSunhoz,comoendereçoeotelefone.Ligouparaonúmero,acrescentandoo pre ixo que ainda não existia na época. Quem atendeu tinha voz deadolescente.“ÉoSidnei.”

—Seupaiestá?AlcidesSunhoztambémcustouaselembrar.—Quemé,mesmo?Depoisse lembrou.Claro,claro,poderiamseencontrar.MasRogério

notou uma ponta de irritação na sua voz. Ele provavelmente tambémachavaquelugardopassadoeranopassado.

—ComoestáoSidnei?—Estáótimo.—Eleestácomquê,15anos?—Quinze.Evocê,temfilhos?— Uma ilha. Doze anos. Amanda. Mimadíssima. Sabe como é, ilha

únicadepaivelho...—Suaesposaé...— Alice. Você não chegou a conhecê-la, da outra vez. Ela gostava

muito do que você escrevia, sobre cinema. Nós gostávamos. Você nuncaescreveumaisnada?

—Nada.Nemvoumaisacinema.—Escuta.

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—Culturalmente,vireiumabatata.Politicamentetambém.—Escuta.Naquelenossoencontro,nãochegamosafalarmuitosobre

anossaexperiênciaemcomum.Nacela,enaquelelugarquenoslevavam.QueoBedeunoslevava.

—Porra.Bedeu.Essenomeeununcavouesquecer.—EoGlennFord?—GlennFord?!—Lembra?Omaisfilhodaputa.Oquegostavadebater.— Émesmo! E sorria só prum lado. O outro, o magrinho, oWilson

Grey,usavaumporrete,masbatiamaisnacadeiradoquenagente.Eraaideiadeledecoaçãopsicológica.Sempredepaletóegravata,lembra?

Ele icou sério. Quando falou outra vez, foi com a voz embargada.Talvezfosseaprimeiravezquefalassenaquilocomalguém.

—Sabequeeunãomelembrodetermedo?Tinharaiva.Nuncasabiaoqueiaacontecer,seiamnosmatarounão.Masnãotinhamedo.Você?

—Eu icavaapavoradonocarro.Comosolhosvendados,semsaberexatamenteparaonde estavamnos levando. Lá, na cadeira, o sentimentoera de ultraje. A palavra é essa. Desamparo e ultraje. Mas pelo menosnuncausaramodínamo,lembra?Deviaestarestragado.

Rogério viu que o outro tinha baixado a cabeça. Estava de olhosfechados, com o queixo enterrado no peito, obviamente tentando secontrolar.

—Desculpe,eu...—começouRogério.Rubinho sacudiu a cabeça e fezumsinalde “tudobem” comamão.

Maslevoualgumtempoatéconseguirfalar.—O que nos izeram, não émesmo?—disse, inalmente.—O que

nosfizeram.—Escuta...—Terrível,né?Detudoaquilo,oque icoufoiaautopiedade.Olhaaí,

estou até tremendo. Nada foi conquistado, nada foi purgado. Só nosquebraram.

—Escuta.Nooutrodia,poracaso,eudescobriasala.—Asala?

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—Ondenosinterrogavam.Adacadeiradeferroedocarpete.—Nãomelembrodenenhumcarpete.—Identi iqueia salapelamanchadesanguenocarpete.Eporuma

manchanaparede.—Nãomelembrodemanchadesangue.— Quando eu sangrei do nariz, lembra? Quando o Glenn Ford me

acertouonariz.Rubinho pôs-se de pé. Estavam num café, tinham dividido uma

cerveja.Rogériosegurouoseubraçoparadetê-lo.—Oquevocêquer?—perguntouRubinho.—Tenhoqueirembora.

Umrelações-públicasdepressivonãoservepranada.—Euqueriaquevocêvisseasala.RubinholivrouseubraçodamãodeRogério.—Praquê?Pelosvelhos tempos?Oquevocêquer fazer?Querque

aquilo signi iquealgumacoisa?Não signi icounada. Só signi icouquenospegaramenosquebraram.

—Euqueriaquevocêtambémidentificasseasala.—Eutenhoqueirembora.Quantoéessamerda?—Eupago.—Émesmo,vocêérico.Entãopaga.Nósnãotemosnadaemcomum,

está entendendo? Ficarmosnamesma cela signi icou tanto quanto, sei lá.Meu ilho ser o primeiro bebê a nascer no estado em 1988. Foi umacasualidade,significandonada.

—Sentaaí,pô.Vamosconversar.—Conversarsobreoquê?Nãoseiqualéasuaintenção,masnãome

incluanela.Nãomelembrodenadadaquelasala.Sódacadeiradeferro.Mas Rubinho sentou-se outra vez. Bebeu o resto de cerveja do seu

copo como um sinal de que aceitava recomeçar a conversa, mas acontragosto.Rogériopediuoutracervejaaogarçom.

— Quem eram aqueles caras? — perguntou. — Eu fui preso peloExército,maselesnãoeramExército.NemDOPS.Quemeram?

— Era uma coisa clandestina. Tinha gente do Exército, gente dapolícia, mas era informal, clandestino. Os empresários tinham feito um

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fundo...Diziamquealgunsatéparticipavamdassessõesdetortura.—Eunemsabiaoqueelesqueriamsaber.Nãopertenciaanenhum

grupo.Apanheipararevelaroquenãosabia.—Domeugrupo,queeusaiba...Rubinhofezumapausa,depoiscompletou,olhandoparaocopo:—Sósobreieu.Queeusaiba.—Vocêcontinuousendotorturado?Depoisquenãovoltoumaispara

anossacela?—Não.Naminhaúltimasessãonacadeiradeferroperdiossentidos.

Acordei num hospital. Depois iquei preso num quartel mais algumassemanasemesoltaram.Evocê,continuouaapanhar?

—Houvemais umas duas sessões. O Glenn Ford teve o cuidado denãome fazer mais sangrar. Dois dias depois da última sessão eu estavanumaviãoparaPortugal,acaminhodailhadoSal.

—Eagora?Vocêdescobriuatalsala.Edaí?—Eucompreiatalsala.—Comprou?!— Comprei o prédio. É o que eu faço. Compro coisas passadas e

transformoemcoisasnovas.Oudestruoefaçooutras.Rubinho continuava a olhar para o seu copo. Depois de umminuto,

perguntou:—Ondeficaesseprédio?

***

Seu Afonso precisava de uma definição. Se não fossem começar a obranaquela semana, ele tinha outros serviços para a sua turma. E entãoestariam ocupados por dois meses, talvez mais. Rogério propôs quecomeçassem a tapar os buracos e a raspar as paredes para a pinturamas não tocassem na sala de frente do primeiro andar. A do carpete.

—Osenhornãoachamelhorbotartodooprédioabaixo?—Issoagentevêdepois.— Vamos restaurar e pintar essa monstruosidade, e depois, talvez,

demolir?

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—É,seuAfonso.Quandoeudecidiroquefazer,lheaviso.—Vamosvernoquevaidar—suspirouseuAfonso.AmãedeRogério costumavadizerqueeraumerro chamarvelhice

de“idadeavançada”.Era“idadeatrasada”, issosim.Eelasetransformaranuma prova disso, esquecendo coisas, trocando nomes, comportando-secomo uma criança. Ultimamente dera para resistir às frequentes idas àcasa do irmão de Alice, que gostava de reunir a família com qualquerpretextoesempreinsistianapresençadadonaDalvinha,asogradairmã.

— Nós não somos do mesmo nível deles, Rogério. Eu não me sintobem.

—Quebobageméessa,mamãe?AsenhorasempregostoudafamíliadaAlice.EagoravaiconheceracasanovadoLéo.O lugarémuitobonito.Umcondomíniohorizontal,lindo.

—Eunãomesintobem,meufilho.Eleétãorico.—Mamãe,eusoumaisricodoqueele.—Eusei.Masmesmoassim.Eraaniversáriodocunhado.Nomeiodochurrasco,Léogritouparaa

mãedoRogério,queatéalirecusaratudooquelheofereciameconfessaraparaofilho,numcochicho,queesqueceracomousartalheres:

—DonaDalvinha,convençaesseseu ilhoatirarumasférias.AAlicedizqueeleandaimpossível.

—Elesemprefoiassim.Quandoeragaroto...—Iiih—anunciouAmanda.—Lávemahistóriadopêssego!— Ele comia pêssego como se fossem roubar da mão dele. Sujava

todaacamisa.Sófaltavamorrerengasgadocomocaroço,pormaisqueeuavisasse.

De todos os desgostos que Rogério, o único ilho, dera aos pais,incluindo o envolvimento em política, a prisão e o exílio, dona Dalvinhaescolhera a história do pêssego para anular todas as outras. O pai deRogério era carpinteiro. Morrera quando ele estava no exílio. Só aoembarcarparaPortugal,comaroupadocorpoeocorpoaindadoloridodatortura, o nariz ainda inchado, Rogério descobrira que o pai pertencia auma organização religiosa com rami icações internacionais e através dela

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conseguira seuexílio,que iniciaraemCaboVerde.E sónavoltaaoBrasildescobriraqueopailhedeixaraumarazoávelherançaemdinheiro,comaqualcomeçaraacomprarpropriedadespararevender,eaenriquecercomasofreguidãocomqueseatiraranapolíticaecomiapêssego.Ascartasdopaiparao ilho exiladoeramsecas,mal-escritas. Ele tentava catequizaroilho, convencê-lo a esquecer a política e se dedicar à religião, e expiar odesgosto que causara nos pais. Na religião encontraria o que procuravacom tanta ansiedade, a salvação, a justiça, o que fosse. Dona Dalvinharesumiratudonahistóriadopêssego.

O cunhado tinha convidado alguns dos seus novos vizinhos para ochurrasco.Gentedocondomínio.Umdeleseraumempresárioaposentado,ainda vigoroso nos seus setenta e poucos anos, que apresentou como“Cerqueira, um fera no tênis”. Cerqueira tinha um olhar de águia e umacara esculpida em pedra, e depois do almoço, numa roda formada porespreguiçadeiras sobre o relvado, declarou para quem ainda estavaacordado que não tinha escrúpulo de se declarar um direitista. Era dedireita e se orgulhava disso.Marchara peloBrasil em64 emarcharia denovopelosmesmosideais.Emais.Achavaqueahistóriaaindafariajustiçaàrevoluçãoeaoregimemilitar,quetinhamlivradooBrasildocomunismoedaanarquiaemodernizadoopaís.

Ocunhadolevantouacabeça,procurouRogérioporcimadabordadasuaespreguiçadeiracomumolharmaliciosoeperguntou:

—Vocêconcordacomisso,Rogério?—Depoisdeumchurrascodestes,concordocomqualquercoisa.—Não.Sério.—Concordo,concordocomtudo.—Viu só, Cerqueira?Oque faz odinheiro.Nadamais dedireita do

queumesquerdistaqueenriqueceu.Cerqueiranãoentendeu.Parecianãoternenhumsensodehumor.—Não tem nada a ver com dinheiro. Não estávamos defendendo o

capitalismo. Estávamos defendendo a liberdade. Quebramos algumascabeças? Quebramos. Mas ninguém recebeu mais do que merecia. Elesqueriamumaguerraetiveramumaguerra.Eperderam.

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Rogério conseguiu enlaçar Amanda, que passava correndo pelaespreguiçadeirajuntocomumprimoeummeninomaisvelho.

—Mesolta,pai!—Ficaumpouquinhocomseupai.—Nãoposso!—Entãodáumbeijinho.—Saco.Toma.Pronto.OcunhadoestavacontandoqueRogériotiveraproblemas,duranteo

regimemilitar.—QueméRogério?—perguntouCerqueira.—Euaqui—disseRogério,levantandoodedo.—Sei—disseCerqueira.Enãoquissaberdosproblemas.Rogério:—Ouvi dizer que os empresários tinham um fundo para ajudar na

repressão.Umfundoquefinanciavaaçõesclandestinas.—Nós ajudamos a reprimir a subversão.Não vou negar. Ajudamos

mesmo.Nosengajamosna lutacontraocomunismo,e izemosmuitobem.Umdiaaindavãonosagradecer.

Dofundodasuaespreguiçadeira,Rogérionãoviuquemdisse:—Masosesquerdinhasestãodevolta...PodiaseropaidaAlice.—Ocomunismoécomooresfriado—disseCerqueira.—Enquanto

nãoinventaremumavacina...Cerqueiratinhasensodehumor,afinal.Continuou:—Elespodemvoltar,masnóstambémaindaestamosaqui!E ergueu o braço dramaticamente, como se empunhasse uma

bandeira. Rogério ouviu risadas e aplausos de dentro de mais de umaespreguiçadeira.Cerqueiratinhafãsnocondomínio.

—Mashojeeleséqueestãoporcima,seuCerqueira.—Éoqueelespensam!E o cunhado contou que Cerqueira ia propor a instalação de um

alarmenopórticodeentradadocondomínioparadisparartodavezqueseaproximasse um esquerdista, mas que ele vetara a ideia por questões

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familiares.Maisrisadasdasespreguiçadeiras.

Jáeranoitequandovoltaramparacasa.Amandadormindonobancodetrás,comacabeçanocolodaavó.—“Saco.”Ondeéqueessameninaaprendeadizercoisasassim?— O quê? Elas dizem coisas muito piores. Você não sabe porque

quasenãoconvivecomela.—Equemeraaquelegarotoquenãolargavadela?—ÉnetodoCerqueira.Aquelevelhocomcarade...—Euseiquemé.Onetodeveteruns20anos.—Nãoexagera.Tem14.Euconheçoamãedele.—Deonde?—Doartesanato.Docabeleireiro.Agenteseencontramuito.—Vocêconvivecomcadaum...—Elaémuitosimpática.Eessaéanossagente,Rô.Éanossaclasse.

Éasuaclasse.—Minha,não.Eusóestounelacomoouvinte.—Issonãoexiste,Rogério.Dobancodetrás,donaDalvinhasemanifestou:—SeupaidiziaqueospobresficarãocomaTerra.—Menososcondomíniosfechados,mamãe—disseRogério.

—Nãosei.Putaqueospariu,nãosei.Rubinhotinhaparadonaporta.Jádissera“Nãosei”váriasvezes.—Éamesmasalaounãoé?—Nãosei.Eunãomelembravadocarpete.—Olhaaliamanchadesangue.—Comoéquevocêsabequeésangue?Equeosangueéseu?—Acadeirade ferroeraali.Eume lembrodamanchaque icouna

frentedacadeira.PareciaomapadaAustrália.Eolha.Alinaparede.ODonQuixote.

—Onde?—Ali.OperfildoDonQuixote,semtirarnempôr.—Nãoestouvendo.

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—PoramordeDeus.Onariz,abarba...—É.Podeser.—Podeser,não.É.—Eunãovejo.Eestaportanãoeraaqui.—Claro que era. Essa porta dando para o corredor, a outra dando

paraobanheiro.—Temcerteza?—Absoluta.—Nãosei.Eumelembravadeumasalamaior...Ficaramconversandonoquintaldeterrabatidanafrentedoprédio.

Lá dentro, a turma do seu Afonso estava em ação, raspando paredes eobturandoburacos.Menosnasaladocarpete.OrdensdoseuRogério.Nãotocarnasaladocarpete.

—Melembrode icarolhandoparaacaradoBedeu,tentandoalgumtipo de contato— disse Rogério. — Pensando em perguntar qual era otime dele. Qualquer coisa que nos aproximasse. Como brasileiros. Sei lá,como gente. E ele impassível, afundado naquele sofá. Era o único que agenteconheciapelonome,lembra?

— Mas ninguém tapava a cara. Ninguém usava disfarce. O GlennFord, oWilsonGrey... Erade cara aberta.Acho até queoWilsonGrey sebarbeavapornossacausa.

— E usavam esta sala de frente. No primeiro andar. Não seimportavam que ouvissem os nossos gritos. Sabiam que ninguém navizinhançairiafazerperguntas.

—Mas nos vendavam os olhos para vir até aqui. Curioso, né? Nãotinhamproblemaemmostraracaramasnãoqueriamqueseidenti icasseoedifício.Seéqueoedifícioéestemesmo.

—Porqueumedifíciofica.Tambémenvelheceesedeteriora,comoaspessoas,mas ica.Continuaondeestavadurantetodaahistória.Ficaparalembrarahistória.OsGlennFordseosWilsonGreyseosBedeusmudamdecara,desaparecem.Saemdahistória.Sãoabsorvidospelasoutrascaras.Absolvidos pelo tempo. Pelo esquecimento. Mas um edi ício ica. Paralembrar.

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—Mesmoquenãosesaibabemoquê.Rogériocontinuou:—Umdia, faz anos, eu atépensei ter visto oGlennFordna fotode

umasolenidadenapolícia.Alguémtomandoposseoucoisaparecidaeelelá atrás, esticando o pescoço, se esforçando para aparecer na foto. Seesforçandoparavoltaràhistória,ocoitado.

—Coitadosdenós. Coitadosdosquebrados. Eu contei que todosdomeugrupodesapareceram?Esses,sim,saíramdahistória.

—Morreram?—Nãosei.Nuncamaissoubedeninguém.Denovooolhardesviado.Osolhosbaixos.Rogérionãofezapergunta:foivocêqueentregou?—Vocêdisse“Nadafoiconquistado,nadafoipurgado”.—Disse?Foiumdescuido.Meemocioneieesqueciquenãosoumais

um intelectual.Queriadizerque sóoque icoudaquilo foi a autopiedade.Foramestasnossaslamúrias.Nemcicatrizeutenho.Pelomenosnenhumaqueapareça.

— Mas alguma coisa aconteceu. Não só a nós naquela cadeira deferro. Ao país, a toda uma geração. Foi isso que eu senti quando vi amanchanochão.Porra!Algumacoisatinhahavido,edeixadoumamarca.Eesquecerissoeraumaformadetraição.

Rubinhonãogostoudapalavra.—Eoquefoitraídocomoesquecimento?Anossacausa?Eunemsei

sea suacausaera igualàminha.Oseusangue?Vocênemsabiaporqueestavaapanhandoeelesnãosabiamquevocênãosabia.Foiissootraído?Éessaahistóriaquenãodevemosesquecer,essechoquedeignorâncias?

SeuAfonsotinhasaídodedentrodoedi ícioemobrascobertodepó.A cara branca enfatizava o seu desconsolo cômico de palhaço. Parara aoladodosdoiseesperavaavezparafalar.Rubinhocontinuou:

— Sabe qual foi a única coisa que eu consegui avisar para o meuirmãoquandomeprenderam?“EscondeoLukács!”Acasaestavacheiadeindíciosdaminhaparticipaçãonogrupoeatédeplanosdeaçãodogrupo,mas eu sóme lembrei dosmeus livros. Porque eume sentiamuitomais

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revolucionário lendo do que agindo. Entende? Era a minha forma deignorância. Mas nem o Glenn Ford nem o Wilson Grey estavam muitointeressadosemestéticamarxista.OBedeu,eunãosei.

Por issovocêentregouogrupo,pensouRogério. Foi a sua formadetraição.Masnãodisseisso.Disse:

—Oqueé,seuAfonso?— Doutor, não dá pra fazer nada que preste com esta

monstruosidade.Vamosderrubar?RubinhorespondeuporRogério:—Vamos.—Calma,seuAfonso—disseRogério.—Calma.—Achoumagrandeideia,seuAfonso—disseRubinho.—Põetudo

abaixo.Éaúnicacoisaafazercommonstruosidades.Pôrabaixo,esquecerecomeçartudodenovo.Semvestígiosdopassado.

Aadesãodeumaliadonãomelhoroumuitoohumordo seuAfonso,quevoltouparadentrodomonstroaindamaisdesconsolado.

—Eafinaléounãoéasalaemquenostorturaram?—Quediferença faz?Oque você quer fazer comela?Esquece. Põe

abaixo.—Éounãoé?—Meuvotoénão.Mas,esefosse?Nãosignificanada.—Pramimsignifica.Nãoseioquê,massignifica.Temquesignificar.— Não signi ica. Nada mudou, nada avançou, nada foi purgado.

Houveumaguerraqueavizinhançanemnotou.Malouviramosgritos.Noim da guerra nenhum território tinha sido conquistado ou cedido evencidos e vencedores pegaram seus mortos e seus ressentimentos evoltaram para os seus respectivos países, que é o mesmo país! Maisestranho do que guerras que não resolvem nada é essa nossa pazpromíscua,vencedoresevencidosconvivendosemnuncasaberbemquemé o quê. No Brasil é sempre assim, e sabe por que no Brasil é sempreassim? Porque você queria perguntar ao Bedeu qual era o time dele.Queriamostrarquevocêsdoiseramdamesmaespécie,quesóaquilotinhaimportância porque a guerra era dementiramesmo. Ou queria a vitória

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das boas almas: não ganhar, mas dar remorso no inimigo. É o que vocêqueragora.Quemsabereconstituirasala?Reproduziracadeiradeferroeo sofá, dar umbrilho namancha de sangue no carpete, encenar o GlennFord e o Wilson Grey nos dando porrada. Talvez convencê-los adesempenhar seus próprios papéis, já que estão aí, abandonados pelahistória. Depois de serem os personagens mais importantes das nossashistórias, os coitados. Uma reunião sentimental: você, eu, o Glenn Ford, oWilsonGrey e oBedeu, juntos outra vez, para as novas gerações. Isso sealgumdenósaindaestivervivo,claro.

Rubinhoparoudefalar.Tinhaseexaltado.Seemocionadodenovo.— Só o que eu quero é não esquecer. Esquecer é trair — disse

Rogério.—Adiferençaéessa—disseRubinho,emoutro tom.—Vocêquer

que seja a sala, eunãoquero.Vocêquer se lembrar, eunãoquero. Sabepor quê? Meu ilho, o Sidnei, está tentando me ensinar a lidar com ocomputador. Ele sabe tudo, eu não consigo aprender. E eleme disse porquê. Disse: “Pai, você tem uma mente defensiva.” É exatamente isso.Desenvolvi uma mente defensiva como um condomínio fechado. Umamente com guarita, que abate qualquer inimigo na porteira. Novastécnicas, lembranças, ideias, tudo que possa perturbá-la e solapar suaburriceassumidaéabatidonaentrada.Durantealgumtempomerefugieinocinema,naliteratura,depoisresolvi icarburro.Merefugiarnaburrice.Meuúnico objetivona vida é ser um simpáticopro issional até podermeaposentar. E do jeito que o Sidnei é bom no computador, acho que embreveelevaipodernossustentareaminhaaposentadoriavirámaiscedo.Perguntacomoeuvouacabarosmeusdias.

—Deixapralá.—Pergunta. Vou plantarmacieiras. A família daminhamulher tem

terrasnumaregiãoaltae fria, idealparamaçãs.Quandonãoestousendosimpático,inventandomentirasburrasepromovendoeventosburrosparaos meus patrões, leio tudo o que posso sobre maçãs. São as únicasnovidades que passam pela guarita sem serem abatidas. As macieirasserão omeu exílio tardio. Você se exilou da guerra, eu voume exilar da

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paz.Eestouatépensandoemmudardenome.—Outrocodinome...—É.Oúltimo.Despediram-se com promessas de se encontrar em breve. Os dois

casais. Quem sabe um jantar? Alice precisava conhecer o “Marcello”.Aquelepseudônimoeraemhomenagemaquem,mesmo?AoMastroianni?Não,aorepórterqueoMastroianniinterpretavaem Ladolcevita, lembra?Claro. Quem poderia esquecer. Mas sabiam que nunca mais seprocurariam.

Antesdeirparaoseucarro,jácruzandoomurodoquintal,Rubinhoapontouparaoprédioegritou:

—Dinamita!E Rogério sorriu e abanou, pensando “Pelo menos ele sabe que a

culpadeleseriasoterradanosescombros.Eaminhaculpa,qualé?”

No sonho, ele escondia o rosto do pai, que dizia “Para onde eu vouvoltar, sema nossa fazenda?Eupreciso de um lugar para voltar!” Ele secontorcia,paraescapardacobrançadopai.Alicesacudiu-o.

—Quefoi?— Você estava tendo um pesadelo, Rô. Se debatendo. E com esses

dentestrincados!Rogériodecidiu:mandariademoliroprédio.Mas,antesdepoderdar

a ordem ao seuAfonso, teve uma surpresa. Foi procurado porMiro, quecumprira sua promessa e encontrara dados sobre os aluguéis no prédioherdadopelasuamãe.Aparentementeavelhaeramaisorganizadadoquese pensava e guardava toda a papelada em grandes latas quadradas debiscoito.Sócustaraumpoucoaselembrarquefaziaisso,emaisumpoucopara se lembrar onde estavam as latas. Os papéis, apesar de velhos,conservavam o cheiro bom das latas. Rogério descobriu que de 1968 a1972todooprimeiroandardoprédio tinhasidoalugadoporalguém,umhomem,comatividadedesconhecidaquepagavaemdia.Osobrenomedohomemnãoeracomum.Rogériosabiadeapenasumapessoacomaquelesobrenome.

—Flamanãoeraumsóciodoseupai?

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—Era.MeuDeus,o seuFlama.Háquanto tempoeunãoouviaessenome.OseuFlamaeadonaEster.OLéodiziaqueadonaEstercheiravaavelório. Só porque um dia foi a um velório e descobriu que o cheiro eraigualaodadonaEster.Porquê?Elemorreu?

—Nãosei.Éque...—Esperaaí.Morreu,sim.Jáfazalgumtempo.Achoqueelatambém.—Elefoisóciodoseupaidequandoaquando?—Ele fundou a irma como papai. Tanto que, no princípio, o nome

delevinhanafrente.Ficounafirmaaté,até...Nãosei.Porquê?—Nada.Éporqueeuvionomedelenunspapéisenãosabiaseeraa

mesmapessoa.ArthurFlama.—Quepapéis?—Unspapéis.Umapropriedadequeeuestouvendo.—Elesmoravamnumcasarão.Achoqueaindaédafamília.Foiuma

das primeiras casas com piscina da cidade. Não me diz que a casa estáabandonada.

—Não,não.—Aquelapartedacidadeestásedeteriorando.Ejáfoiobairromais

nobre.Comoestenosso,quetambémestáindopelomesmocaminho...

Rogério rodando pela cidade. Um cachorro faminto em torno dorefeitório, esperando encontrar um naco do que ninguém mais quer,qualquer coisa cuspida fora. O alimento que o enriquece. O rebotalho dacidade.Asuacausamisteriosa,quenemeleentende.Compraropassado,renovar, vender e enriquecer mais. Ou comprar o passado, destruir, epensarnoquefazercomovazio.

Ovislumbredeuma fachadapodrenomeiodeumquarteirãoo fazentrar na contramãopara investigar, e ele bate de frente num táxi. Alicenão pode ir buscá-lo na o icina para onde levaramo carro porque tem aapresentação de balé da Amanda, ele esqueceu? Ele esqueceu. Rogério,você não pode continuar assim. Você ainda vai se matar. A ausência nobalé lhe vale três dias de silêncio emburrado da Amanda. Amêndoa,Amandinha, Amandíssima, não odeie o seu pai. Vamos viajar, Rogério.Vamos levar a Amanda e viajar. Daqui a pouco ela entra em férias e

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poderemosviajaros três juntos.Vocêprecisapassarmais tempocomela,Rogério.Nãoprecisaganharmaisdinheiro.Játemdinheiroque...

—Vocêperguntouaoseupai?—Oquê?—SobreoFlama.—Não,esqueci.Oquevocêquersaber,mesmo?—Emqueperíodoelesforamsócios.—Porquê,Rogério?Medizporquê.—Sóparasaber.Sóisso.—Nósvamosláamanhã.Perguntevocêmesmo.

Almoçodedomingonacasadossogros.Amandanãoprecisademuitoconvencimento para repetir o seu número do balé. Todos aplaudem comentusiasmo e concordam que ela é uma grande bailarina. Depois donúmero, distraída, ela corre e se atira no colo dopai, que aproveita parabeijá-la repetidamente como um fã frenético, fazendo-a rir. Subitamenteelase lembra, “Nósestamosdemal!”,epula fora.Rogériocomeçaadizerpara o sogro que quer lhe perguntar uma coisa, mas este o interrompecomumgestodamãoeperguntaparaafilha,dooutroladodasala:

—VocêjáfalouproRogériodanossaideia?—Qualéaideia?—EstamospensandoemcomprarumterrenonocondomíniodoLéo

paraconstruirepensamos:porquenãocomprardoisterrenoseconstruirduascasasaomesmotempo?Diminuiriaocusto.Oquevocêmediz?

Asogratemoseuargumentopronto:—ParaaAmandaseriaótimo.Estariapertodosprimos...— Olha, eu até hoje não tinha visto coisa igual, em matéria de

condomíniohorizontal—continuaosogro.—Meapaixoneipelolugar.Easegurançaétotal.Hojeemdiaissoéprimordial.Eentão?

—Não—dizRogério.—Não?—Não,aAlicenãotinhamefaladonaideia.—Bom,pensema respeito.OLéo já viudois terrenosótimos. Perto

dolagoepertododeles.

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—Vamosver.—Pensembem,pensembem.Oquevocêiameperguntar?—Não.ErasobreoFlama.Elefoiseusócioatéquando?—O Flama?Deixa ver... Puxa. Um nome do passado... Por que você

quersaber?—Éque,essesdias,euvionomedelenunspapéise iqueicurioso.

Nãoéumnomecomum.—ArthurJaguaréFlama.Nãoeraumhomemcomum,também.Tinha

convicçõesfortes.Nóstodostínhamos,naépoca.EoFlamaera,umpouco,nossolíder.Nossoorientador.Seessaéapalavra.Umpoucocelerado.

—Elefoisóciodafirmaatéquando?—Até81,82,poraí.Depoisseaposentouemorreuháunsdezanos.O sogro subitamente se lembra do que sabe da vida de Rogério e

olha-ocomapreensão.Pergunta:—Vocêsandaramsecruzandoporaí?—Não,não.Eunãooconheci.Do outro lado da sala, Alice, que não perdeu uma palavra da

conversa,comenta:—Aindabemqueessetempojápassou.

Naquelanoite,nacama:—QuehistóriaéessacomoFlama?—Histórianenhuma.—Por que você quer tanto saber quando o papai e o Flama foram

sócios?—Curiosidade,Alice.Sócuriosidade.—Temavercomoedifíciodamancha,nãotem?—Alice...—Vocêaindanãodemoliuoprédio,Rogério?—Não.Voudemolir.Eusó...—Oquê?—Euprecisosaber,Alice.Tenteentender.— Saber o quê, Rogério? Deixe o passado no passado. O que eu

precisoentender?

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—Algumacoisaaconteceunaqueleprédio.Meaconteceu.Aconteceupranóstodos.

— Mas já passou, Rô. Passou do prazo. Como um enlatado. Ficoutóxico. Hoje só vai nos envenenar. E pra quê? Por quê? Só porque vocêachaqueéoseusanguenaquelecarpete?

Rogérioergueu-sedacamaepôs-seacaminharpeloquarto.Nãoeraaprimeiravezquefaziaisso.

—Rô...—AsaladocarpetefoialugadapeloFlama.Todooandarfoialugado

porele,entre1968e1972.Eleaindaerasóciodoseupai.Eu fuipresoetorturado em70. Só aparece o nome do Flama,mas existia um grupo deempresáriosquefinanciavamarepressãoparalela.

—Vocêachaqueomeupaieraumdeles?—Não sei.Vocênãoouviu eledizer, hoje?Todos tinhamconvicções

forteseoFlamaerao “nossoorientador”.Tambémeraoquemostravaacara,oqueassinavaoscontratosdealuguelefaziaospagamentos.Semprerigorosamente em dia. Porque era o que tinha as convicçõesmais fortes.Masodinheironãoerasódele.

—Eoquevocêquer,agora?Querreparação?Quervingança?Rô,sómedizumacoisa...

—Ehojeestamostodosaqui,atépensandoemmorarjuntosemvoltadeumlagoartificial.Nossapazépiordoqueasnossasguerras.

—Medizumacoisa.—Oquê?— Vale a pena? Nos envenenar, envenenar tudo, deste jeito? Só

porquevocêviuumamancha?—Nãoésóisso,Alice.—É,Rogério.Sónãoésóissosevocênãoquiser.—Morreugente,Alice.Correuoutrosangue.—Fazmuitotempo.Vempracama.—Mesintoumtraidor.Nãoseidoqueoudequem,masumtraidor.—Issopassa.Vempracama.—Vocêestámepedindoparaesquecer.

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—Não,Rô.Estoupedindoparavocêlembrar.Lembrardenós,dasuafilha,dasuasaúde.Vempracama,vem.

Emaistarde:—Rô...—Hmm?—Destróiaqueleprédio.

Seu Afonso tinha encontrado uma espécie de motor, ou dínamo,enferrujado numa das peças de fundo do primeiro andar. Para o queserviria aquilo? Rogério disse que não sabia e anunciou que trazia umanova ordem. “O senhor ganhou, seuAfonso. Pode demolir o prédio.” Se anotíciaagradouaoseuAfonso, issonãochegouaoseurosto.Elesuspirou,deu de ombros, e entrou no prédio paramandar parar a raspagem e osretoques.Murmurando:“Vamosvernoquevaidar.”Rogério icouolhandoo prédio de fora. Era realmente muito feio. Era monstruosamente feio esem graça. Nada o redimia, não merecia icar. Seus escombros, sim,serviriamparaalgumacoisa.Umasepulturapassageira,antesquetambémfossem retirados para o reaproveitamento do terreno. Uma breve tumbacontendo o quê? O sangue de um, a culpa de outro e o remorso deninguém.Eumdínamoenferrujado.

“Oqueosenhorquer?”Pelaprimeiravez,nosonho,elefalava.“Oqueosenhorquer?”Epelaprimeiravezopainãodizianada.Sóoacusavacomos olhos. De tudo que ele não izera. Do lugar para o pai voltar, quandotudotivessepassado,queelenãoprovidenciara.No imdomeuexíliovocênãopensou,diziamosolhosdopai.

— Você acha uma boa ideia, construir uma casa no condomínio doLéo?

—Oquevocêacha?— Eu confesso que não saio mais tranquila de casa, aqui no nosso

bairro.Mesmocomosseguranças.Eestátudosedeteriorando...—Vamosver.—EparaaAmandaseriaótimo.Ficarpertodosprimos.—Ondeéqueelaanda?

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—TinhaumafestinhanacasadoDico.—Dico.Esseeunãoconheço.—Conhece.ÉonetodoCerqueira.Sãoamiguinhos.—Eleéumhomemvelho.Elatemsó12anos!—Nãoéumhomemvelho.Tempoucomaisidadedoqueela.Eestão

se dandomuito bem. Aliás, ela achou péssima a ideia da viagem porquenãoquerficarlongedoDico.Aondevocêvai?

Eletinhaselevantadodapoltronamasnãosabiaparaondeir.Queriasair de carro, andar pela cidade, procurar edi ícios mortos e jardinsselvagens, inspecionar suas obras...Mas tinha jurado aAlice quepararia,que icaria mais em casa. Rogério, o Demolidor, tentaria sossegar umpouco. Domar a sofreguidão. Pôs-se a andar pela sala, examinando tudocomosefosseasuaprimeiravisita.

—Rogério,ligaatelevisão.Vailerumlivro.—Amiguinhos,amiguinhos...Nãodizemquenãoexistemaisnamoro?

Quejávaitodomundopracama,comqualqueridade?—Sabequal é outra boa razãopara fazer uma casano condomínio

do Léo? Você vai poder fazer exercício. Caminhar nos bosques.Descarregar essa energia toda no tênis. Aposto que não vaimais dormircomosdentestrincadoseterpesadelos.

Tênis, pensou Rogério. Está aí uma boa causa. A última. Tênis. Nãopodiasermuitodi ícil.Erasóemagrecerumpoucoevoltarquarentaanosparabuscarsuaspernas.Iriaaprendertudosobreotênis.

A demolição do prédio foi rápida. Seu Afonso contou: sabe aquelamancha no carpete, na sala da frente do primeiro andar? Atravessou ocarpeteemanchouopisodemadeiratambém.Rogérioimaginouamanchaatravessando a madeira e o cimento e penetrando o chão sob o prédio,entranhando-senochãosobosescombros.Todosangueencontrao lugarda sua quietude. Onde lera aquilo? O lugar da quietude do seu sangueseriaoesquecimento,embaixodaterranumbairrodesurdos,quantomaisno fundo melhor. A traição desapareceria junto com o prédio. A traiçãovirariapó.

—Osenhormesmovaiconstruiraqui?

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—Não,seuAfonso.Vouvenderoterrenovazio.—Nãotemespaçoparamuitacoisa...—Talvezoutramonstruosidade.SeuAfonsosuspirou.

LéonãopodiaseafastardachurrasqueiraepediuparaoCerqueiraacompanhá-los até os dois terrenos. Era uma caminhada curta, sobre arelva.Osdoisterrenosocupavamumaelevaçãoquecomeçavanabeiradolago. Cerqueira e o pai de Alice caminhavam na frente, comandando asubida. Talvez se conhecessem daquele tempo. Ou talvez o sogro nãoestivesse, a inal, envolvido nas atividades do seu sócio, o celerado Flama,naqueletempo.Mesmotendoconvicçõestãofortesquantoasdele.Rogérionãosabia.Tambémhaviainocentes,naqueletempo.Osquenãoouviamosgritoseosquenãoqueriamouvir.Agoranãointeressavamais.Estavatudosepultado.ERogériosesentiavitorioso.Tinhaconseguidopassarumbraçopelos ombros daAmanda semque ela o rejeitasse. E ela o abraçara pelacintura!Caminhavamassim,abraçados,nafrentedeAliceedamulherdeLéo, que subiam lado a lado, de braços cruzados, conversando, coisas decunhadas, enquanto os dois ilhos menores de Léo corriam à sua volta.Amêndoa,Amanda,Amandíssima,nãoeraistoqueeuimaginavaparavocê,naqueletempo.Nãoeraestepaís,nãoeraestafalsapaz.Eunemconheciasuamãeejápensavaemvocê,enomundoqueeuquerialhedar,naqueletempo. Você não existia e já era aminha causa. Aminha primeira causa.Nãoconsegui.Quebreiacara.Ouquebraramomeunariz.Emtrocatedouestegramado,estesol,estelago,estepaíseestepai.Todosarti iciais,maso que se vai fazer? A nossa paz em separado. O país verdadeiro ica doladodeforadacerca,masossegurançasestãoarmadosetêmordensparaatirar. E prometo que a nossa casa será a maior de todas. Enriqueci,Amêndoa.Desculpe.

Elevirou-seeperguntouparaamulherdoLéoseerapermitidofazerplantaçõesnocondomínio.Osogroouviuegritou:

—Oquê?Rogério,oDemolidor,querplantar?—Quetipodeplantação?—perguntouAlice.—Penseiemplantarmacieiras.

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—Macieiras?!Cerqueirafalousemsevirar.Comdesprezo.—Maçãsódáemlugaresaltosefrios.Cerqueiratinhaumper ildeáguiaeeraomaisaltodetodos.Apesar

daidade,caminhavacommaisenergiadoqueosoutrosechegariaaotopoda elevação primeiro. Eu vou te pegar, pensou Rogério. Vou aprendertênis, vou treinar com sofreguidão e vou te arrasar, velho ilho da puta.Vocêsnãopodemserinvencíveisemtudo.

No ponto mais alto dos terrenos Alice abriu os braços para apaisagemedisse:

—Olhaquemaravilha!EAmandaconfidenciouparaopai:—Achomaçãsumagrandeideia.Rogériobeijouatestadafilha,quaseemlágrimas.Nochurrasco,Amandaadvertiu:—Nãovaicontarahistóriadopêssegodenovo,vovó.DonaDalvinhanãoestava comendonada.Mentiraque tinha comido

emcasa. Cochichoupara o ilhoquenão se sentia bem comgente rica.Oque o pai dele diria daquilo, daquela gente? Rogério lembrou-se de umacoisaeperguntou:

—Mamãe,tinhaalgumAlcebíadesnanossafamília?—Claro.OseutioBia.—OtioBiasechamavaAlcebíades?!—Sechamava.Porquê?—Nada,nada.Comapelomenosasalada.

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O expert

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O Nabokovtemumahistóriaparecida,massobrexadrez.Estanãoéplágio,noentanto.Digamosqueéhomenagem.

—Sessentaetrêsnãofoiumbomanoparaessevinho.Muitoácido.—Quesafravocêrecomenda?—Ade65.Excelente,obouquet,otanino,tudo.Ooutroprovouovinho.—Vocêtemrazão.Muitoácido.—Masnãodeixadeserumbomvinho.Seco,mascomumsubstrato

quasedocenofinal.Oqueosfranceseschamamdeaprès-gout.—Exatamente.Jáviquevocêentende.—Modestamente.—Aceitaumpouco?—Não,obrigado.—Ah,umpurista.—Não,não.Équeeunãobebo.O outro sorriu. Obviamente, era uma brincadeira. Uma dasmaiores

autoridadesmundiaisemvinhonãobebia.Boaaquela.Insistiu:—Sóumcopo.Garantoquevocêseráindulgentecomestepobre63.—Masnãobebomesmo.Nuncaboteiumagotadeálcoolnaboca.Ooutroparoudesorrir;erasério.—Mascomo?Vocêentendedevinhoscomoninguémenuncabotou

umagotadeálcoolnaboca?—Nunca.—Nãoentendo.—Euconto.O homem tinha sido preso. Não quis entrar em detalhes. Questões

políticas. Lutava pela causa do proletariado, era contra a burguesiainconsciente e seu consumismo conspícuo, achava um absurdo alguémpagarumafortunaporumagarrafadevinhoenquantooutrosmorriamdefome,acabarapreso.

—Naprisão,nãomedeixavamlernada.Aquilo,paramim,eraapiortortura. Sempre fui um leitor compulsivo. Não podia passar sem livros erevistas.Maseraproibido.

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O outro serviumais um copo de vinho. O homem continuou na suamineral.

— Um dia, pedi uma Bíblia. Achei que aquilo eles não podiam menegar.Dissequequeriameregenerar,fazerumexamedeconsciência,meencontrar com Deus. Na verdade, queria era alguma coisa para ler,qualquercoisa.Elesachavamqueeuestavasendohipócrita.MenegaramaBíblia.

—Puxa...—Tentei outro estratagema. Gritei que queria saber quais eramos

meusdireitos. Exigia queme trouxessemuma cópiada Lei de Segurançapara eu saber exatamente em que artigos tinha sido enquadrado. Naverdade,sóqueriaalgumacoisaparaler.Elesriramdemim.

—Maldade.— Pedi que trouxessem histórias em quadrinhos, jornais antigos,

qualquercoisa.Nada.Medesesperei.Umdiarevireitodaaminharoupa,ocolchãodacela,otravesseiro.Sabeoqueéqueeuprocurava?

—Oquê?—Umaetiqueta. Sópara teralgumas letrasna frentedosolhospor

alguns instantes. Eu era comoum alcoólatra que se contentaria só comocheiro do álcool no ar.Mas não encontrei nada. Nem a pia nem a latrinatinham o nome do fabricante. Um dia, embora não fumasse, implorei porum cigarro. Um guarda me deu um. Rapidamente, procurei no papel docigarroonomedamarca.Masopapelerabranco,liso,semnemumaletra.Eunãoaguentavamais.Então...

—Oquê?—Umdiamelevaramparainterrogatório.Mebotaramdepécontra

umaparede,osbraçosestendidosparaoslados.Emcadamãoeutinhadesegurar um peso e icar assim, sem deixar cair o peso. Numa dasmãos,elescolocaramumcadeira.Enaoutra...Eunempodiaacreditar...

—Oqueera?—Umlivro!Um livropesado,capadura...Fingiquedesmaiavaecaí

abraçadocomolivro.Atéhojenãoseicomoconseguichegarcomolivroàminha cela sem que eles descobrissem. Não posso descrever a minha

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alegria. Eu inalmente ia ver letra de novo. Palavras inteiras. Frases,parágrafos, pontuação... Sentir a textura do papel, o cheiro da tinta, ovolume de uma lombada bem torneada na mão. Comecei a saborerar olivro.Sóotítuloeuliereliumascemvezes,quasechorando.

—Quelivroera?—Umaenciclopédiadevinhos.—Ah...—Passei quatro anos lendo e relendo a enciclopédia. Decorei tudo.

Quando aparecia um guarda, eu escondia a enciclopédia debaixo dacoberta. À noite lia com luz de vela. De dia, lia de trás para diante e dediante para trás. Chegava a sonhar com o livro. Sonhava com vinhedos,comchateaux,comsafrasfamosas...Atéqueumdiamesoltaram.

Ohomemtomouumgoledemineral.Sorriatristemente.—Vocêvoltouàatividadepolítica?— Não, não. Era outra pessoa. Meus companheiros tinham

desaparecido, ou também tinhammudado. Eu precisava tratar daminhavida.Procuraremprego.Umdia,quandodeipormim,estavanafrentedeuma casa de bebidas, olhando a vitrine. E me dei conta que conhecia,intimamente,tudosobrecadagarrafadevinhoexpostaali.Tudo!Entreinaloja e comecei a percorrer as prateleiras. Era como encontrar velhosconhecidos. Rótulos que eu conhecia apenas da reprodução naenciclopédiaaliestavam,aovivo.Comoúltimodinheiroquetinha,compreiuma garrafa de bordeaux, um Saint Emilionmenor. Levei para a pensãoonde estava morando. Abri a garrafa, servi no copo que usava paraescovarosdentesenão fui alémdoprimeirogole. Sempre tiveranojodeálcool e o meu gosto não mudara. Eu era um expert numa coisa queabominava.

—Edesdeentão...—Desdeentãomedediqueiàcríticaenológica.Hojesoureconhecido

mundialmente como especialista em vinhos. Escrevo para revistas degourmets. As pessoas comentam o meu estilo irônico, o meudistanciamentoaristocrático,emeimaginamumsibaritaenfastiado.Apostoque meus velhos amigos da esquerda me consideram um traidor. Sou

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convidado para mesas de milionários — como a sua — e me comportocomoumdeles.Sóquebebomineral.

—Bem,vamospassaraoconhaque.Qualéoquevocêrecomenda?—Hennesy.Quatroestrelas.

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A mulher que caiu do céu

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1. A mesma ladainhaComeço do dia no apartamento da família Vieira. DonaMargarida, a mãe, acordou mais cedo do que os outros e tenta botar ascoisas em movimento, como faz todos os dias. Chama o marido:

—ZéRoberto,olhaahora.Chamaafilha:—Michelle,tánahora,minhafilha.Chamaofilho:—Duda,acorda.Ninguémsemexe.Margaridatemuns38anos,ZéRoberto,quarentaepoucos.Michelle,

16, Duda, 11. O apartamento é pequeno, de classe média, mas tem trêsquartos.

Dacozinha,ondecomeçouaprepararocafé,Margaridagrita:—ZéRoberto,nãoéhojequevocêtemumareuniãona irma?Olhaa

hora.MargaridaentranoquartodoDudaesacodeseupé.—Duda,tánahora.Vamos,meufilho.Dudasórosna.MargaridaentranoquartodaMichelleetambémasacode.—Michelle,levanta.Aproveitaqueobanheiroestálivre.Michellesórosna.Margaridavoltaparaoquartodocasal:—ZéRoberto,suareuniãonãoéimportante?ZéRobertoproduzumafraseininteligível.Margarida:—Pelomenosesseestáfalando.Nãoseioquê,masestáfalando.Colocando-senocorredorparaserouvidaportodos,Margaridabate

palmasegrita:—Vamoslá,pessoal.Jáédia.Ânimo!Coragem!Acordem!Dessejeito

oBrasilnãovaiprafrente!Depois,parasimesma,voltandoparaacozinha:

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—AimeuDeus.Tododiaamesmaladainha.

2. O ambienteA família reunida na mesa do café. Zé Roberto lendo um jornal.Margarida pergunta a Duda quem vai levá-lo à escola.

—Hojeédiadabruxa,mãedoCarlinhos.—Duda,nãofalaassimdadonaIvana.Elaéumaótimapessoa.—Maspareceumabruxa.—Paraamamãe,todasaspessoassãoótimas—dizMichelle.—Eatéprovaemcontráriosãomesmo.ZéRoberto,lendoojornal:—Prenderamumesquartejadordemulheres.—Olhaaí,mamãe–dizMichelle.—Essetambémdeveserumaótima

pessoa.—Epoderiamesmoser,seviessedeumambientefamiliarsaudável,

comoodevocês.Oambienteétudo.Michelle:—ComoéquevocêsabequeoDudanãovai serumesquartejador

demulheres,quandocrescer?Acaraelejátem.Duda:—Oqueéesquartejador?ZéRoberto:—Vamosacabarcomessaconversa?—Euqueroseresquartejador!—protestaDuda.—Tomeoseucafé–dizMargarida.–Jáestátodomundoatrasado.A

donaIvanadeveestaresperando.

3. Um beijo na bundaMichelle e Duda saem do apartamento para a escola. Zé Roberto notaque Michelle esqueceu seu celular sobre a mesa do café.

—Olhaaí,aMichelleesqueceuocelulardela.Etemumamensagem...

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Ondeestãomeusóculos?—Nasuacabeça,comosempre–dizMargarida.Zé Roberto costuma colocar os óculos acima da testa e depois

esquecerondeelesestão.—Margarida,olhacomoterminaamensagem!Umbeijonabunda.—Dequeméamensagem?—Juca.Umbeijonabunda,assinadoJuca.—EunãoseiqueméesseJuca.—Poiséalguémqueestámandandoumbeijonabundadasuafilha!—Estábem,ZéRoberto.Nãoprecisaficaragitadodessejeito.— Como não preciso icar agitado? Tem um Juca que ninguém

conhece mandando um beijo na bunda da minha ilha e eu tenho queacharissonatural?Ondeéquenósestamos?

—Você ainda está em casa quando devia estar indo pro escritório.Suareuniãonãoéàsnove?

—MasMargarida...—Depoisagente falasobreobeijonabunda.Agorao importanteé

vocênãoseatrasar.—Masumbeijonabunda,Margarida...—Issoéojeitodessagarotadafalar.ApostoqueoJucanemconhece

abundadaMichelle.Ousãoapenasbonsamigos.—Margarida...—Vai,vai...—Ondeestãoosmeusóculos?—Nasuacabeça,comosempre.Margaridaacompanhaomaridoatéoelevador,deixandoaportado

apartamentoaberta.Dedentrodoelevadorquechegasaiumamulhercommais ou menos 60 anos, carregando uma grande bolsa. Ela ica de ladoenquantoMargaridadespede-sedeZéRobertocomumbeijo.ZéRobertoentranoelevador.Ouve-seosomdaportadoapartamentobatendo.

—Não!Bateuaportaeeufiqueinarua!A mulher que saiu do elevador sorri enquanto Margarida tenta,

inutilmente,abriraportaporfora:

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—Eagora?Comoéqueeuvouentrar?— A senhorame permite?— diz a mulher, que gira a maçaneta e

abreaporta.Para espantodeMargarida, que agradece,maravilhada, e convida a

outraaentrar.

4. Uma proposta inacreditávelDentro do apartamento, as duas se apresentam.

—MargaridaNunesVieira.—Cremilda.Margarida pede para Cremilda não reparar na bagunça, enquanto

aumenta a bagunça fazendo o café. Cremilda detém Margarida, comalgumarispidez.

—Deixaqueeufaçoocafé.—Não,podedeixarqueeu...—Sente-se.Margarida senta-se, intimidada. Com poucos movimentos, Cremilda

fazocaféecolocanamesaparaasduas.Margaridadesculpa-se:—Infelizmente,nãotemmaispão.—Temsim—dizCremilda,tirandodoispãesdabolsa.—Vejoquea

senhoraestáprecisandodeumaboaempregada.Margarida diz que não podem pagar uma empregada. Cremilda

sugereque façamumaexperiência.Trabalharádegraça,comocozinheiraefaxineira,atéasituaçãodafamíliamelhorar.

—Esenãomelhorar?—Aíeusaioperdendo.Maseuprometoquevaimelhorar.E, antes que Margarida possa responder, Cremilda começa a pôr

ordemna cozinha. Inclusive, sem queMargarida veja, Cremilda tiramaistrêsouquatrobisnagasdepãodasuabolsaeasguardanoarmário.PedeparaMargaridalhemostrarondeficaoseuquarto.

Margarida,hesitante:—Mas...Quandovocêpodecomeçar?

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—Jácomecei.—Masvocênãoprecisairemcasa,pegarsuascoisas?Cremildamostraasuabolsaedizquealitemtudoqueprecisa.Outra

surpresaparaMargarida.

5. CosteletinhasZé Roberto chega em casa.

Margarida:—Vocêemcasaaestahora?ZéRobertodecarafechada.Margarida:—Comofoiareunião?— A reunião foi ótima. Me chamaram para dizer que eu estou

despedido.—Oquê?— Despedido. Me chutaram. Com muita classe, com mil desculpas,

masmechutaram.Estoudesempregado.SurgeaCremildaepergunta:—Vaiterindenização?ZéRoberto,atordoado:—Vai,vai.Achoquevai.CremildasaidecenaeZéRobertopergunta:—Queméessa?!MargaridaexplicaqueméaCremilda.— Empregada, Margarida? E nós podemos pagar uma empregada?

Aindamaisagora?Margarida conta que Cremilda fez uma proposta inacreditável. Zé

Robertonãoacredita.ComoaMargaridapodesertãoingênua?ACremildaquertrabalhardegraçaatéasituaçãodelesmelhorar?Queréroubartudoqueelestêm.

—Enóstemosalgumacoisaparaelaroubar,ZéRoberto?AtéanossaTVaindaéempretoebranco!

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Zé Roberto insiste que Cremilda é obviamente uma vigarista. Nãopode icar ali nem mais um minuto. Reaparece a Cremilda e diz que játerminoudelimparosquartosevaicuidardoalmoço.DizparaZéRobertoquevaifazerseupratofavorito,costeletinhasdeporcocomrefogadinhodevagemecenoura.MargaridaavisaquenãotemcosteletinhasdeporcoemcasaeCremildadiz“Temsim”,antesdeentrarnacozinha.

—Comoéqueela sabequeeu...—dizZéRoberto.—Bom,ela icaatédepoisdoalmoço.Masaí,rua.

6. O mistério do manjar brancoToda a família na mesa do almoço. Zé Roberto saboreia a últimacosteletinha, fazendo “mmmm”. Cremilda de pé ao lado da mesa:

—Todosprontosparaasobremesa?Duda:—Qualéasobremesa?—Podeescolher...sorvetecomcaldadechocolate...Dudadáumpulonacadeira:—Minhafavorita!Cremilda:—Oupudimdelaranja.Michelle,batendopalmas:—Minhafavorita!Cremilda:—E para o dr. ZéRoberto,manjar branco igual ao que amãe dele

fazia.ZéRoberto,perplexo:—Comovocêsabe?CremildadizparaMichelleeDudaqueelesterãosobremesatodosos

diassemantiveremseusquartosbemarrumados,comoelaosdeixou,masquetodabagunçaserápunida.

ZéRoberto:—DonaCremilda,eutenhoumacoisapara lhedizer.Por favor,não

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leve a mal, mas eu preciso fazer isto. A senhora já mostrou que é umaótimaempregada,umaótimapessoa,umacozinheirademãocheia,masaproposta inacreditável de trabalho que fez à Margarida é, realmente,inacreditávelemeobrigaapedirque...que...asenhora...nosdiga...Oquevaifazerprojantar?

—Euestavapensandonumpernildecordeiro.Margarida:—Masnósnãotemosumpernilem...Cremilda abre a porta da geladeira, mostrando um belo pernil de

cordeiro,ediz:—Temsim.

7. Quem é esse Juca?Margarida e Zé Roberto na sala, cochichando para Cremilda não ouvirda cozinha.

—Essamulhercaiudocéu,ZéRoberto!— Calma. Se ela tivesse caído do céu, porque cairia justamente na

nossacasa?Essamulherestáquerendoalgumacoisa.—Elaéperfeita!— É perfeita demais. Como é que ela sabia que eu gostava de

costeletinhadeporco?Edomanjarbrancodaminhamãe?—Elaadivinhou.—Comoadivinhou?Aítemcoisa.Michelleentranasalaeperguntasealguémviuoseucelular.— Seu celular? Ah, sim, sim, sim. Ele está aqui—diz Zé Roberto, e

tira o celular do bolso. — Você esqueceu na mesa do café esta manhã.Aliás,comumamensagemmuitointeressantenatelinha,Ondeestãomeusóculos?

Margarida:—Nasuacabeça,comosempre.ZéRoberto,ajeitandoosóculosnonariz:—Umamensagemmuito interessantedealguémchamadoJuca,que

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terminaassim:umbeijonabunda.—Podemedarmeucelular,porfavor?—Voudar,masantesprecisosaberqueméesseJuca.—Éumamigo.—Obviamenteumamigoíntimo.Umamigoquebeijaabunda.—Ésóumabrincadeira,papai.Ninguémbeijaabundadeninguém.

Pelomenosaminhaninguémbeija.Medáocelular?—Eu gostaria de acreditar nisso,minha ilha. Qual é o pai que não

gostaria de ouvir que ninguém beija a bunda da sua ilha?Mas nós nãopodemosconheceresseJuca,paratercerteza?

Michelle,quasearrancandoocelulardasmãosdopai:—Não!Cremildaouviutudodaportadacozinha.

8. Agente AraciSaída da escola da Michelle. Cremilda, escondida, observa omovimento. Michelle e Juca saem da escola lado a lado, mas separam-se, depois de se despedirem com beijinhos nas faces. Michelle vai paraum lado e Juca vai para o outro. Cremilda segue Juca, cuidando paranão ser vista. Vê que ele se reúne com três ou quatro numa esquina enão é difícil notar que estão negociando drogas. Quando Juca se separado grupo, Cremilda o segue. Aproxima-se dele e chama: “Juca”, e,quando ele para e se vira, convida-o a tomar um suco porque precisamconversar.

—Quemévocê?—quersaberoJuca.Cremildamostra,rapidamente,umaidentidade.—AgenteAraci,PolíciaFederal,combateaotráfico.OsdoisentramnumlocaldesucoseCremildadiz:—Voulhefazerumapropostainacreditável.Eparaobalconista:—Doissucosdecaju.

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9. O fim do PachecoManhã no apartamento dos Vieira. Margarida levanta da cama e chamao marido.

—ZéRoberto,acorda.Estánahora.Diadetrabalho.ZéRobertofazsonsininteligíveis.Margaridasaidoquartoecomeçaa

ladainha.—Michelle, levanta.Aproveitaqueobanheiro está livre.Duda, está

nahora.Olhaaescola.Acorda.Elaentranacozinhaevê,comsurpresa,queMichelleeDudajáestão

tomandocafé,servidospelaCremilda.Voltaparaoquartodocasal.Chama:—ZéRoberto,levanta.Estánahora.ZéRobertofazmaissonsininteligíveis,maisalto.Margarida,sedandoconta:—Émesmo,vocêestádesempregado.Nãoprecisalevantar...Cremildaaparecenaportadoquartoediz:— Precisa levantar sim senhor. Para procurar emprego. Vamos,

doutor.Ânimo!Zé Roberto começa a se levantar, ainda zonzo. Margarida segue

Cremildaatéacozinha.Diz:—Nósesquecemosdecomprarpão,ontem...Cremildamostraumcestocheiodepãoediz:—Pãoéoquenuncavaifaltarnestacasa,donaMargarida.Ouvemtocarointerfone.Cremildaatende.Dizquetemumhomemna

portaria chamado Pacheco. Pode subir? Zé Roberto sai do quarto depijama,caradeassustado.

—OPacheco!Cremilda:—Mandosubirounão?—Manda,manda—dizZéRoberto.Zé Roberto se coloca para receber o Pacheco, ainda de pijama.

Cremildavaiabriraporta.EntraPacheco.Ésimpaticíssimo.—Meuquerido!—diz,aoapertaramãodeZéRoberto.

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Pergunta se Zé Roberto está doente. Sim, porque o procurou noempregoelhedisseramqueelepoderiaserencontradoemcasa.Égripe?Égrave?Nacozinha,MargaridaeCremildaescutamaconversa.

Cremilda:—Quemé?—ÉPacheco,oagiota.OZéRobertotemnegócioscomele.Nasala,Pachecoestádizendo:— Precisamos conversar sobre aquele nosso negocinho, querido.

Você está me devendo. Os pagamentos estão atrasados. E você sabe:pagamentodedívidaécomomenstruação,seatrasarcomeçaapreocupar.Eeuestoumuitopreocupado,amigão.

ZéRoberto diz que vai pagar, que está emdi iculdademomentâneamasvaipagar.

—Quebom—dizoPacheco.—Senãoeu teriaquequebraralgunsdosseusossos.Àsuaescolha,claro.Masquebomquevocêvaimepagaramanhã.

—Amanhã?!—Eu esqueci dedizer?Amanhã, a esta hora. É o prazo. E se cuide,

parceiro.Essagripeestámatando.Pacheco sai. ZéRoberto eMargarida se encaram.E agora?Deonde

vãotirarodinheiro?Enquantoelesfalam,Cremildavaiatéajanela.Daliaumminuto ouve-se o ruído de um carro freando, uma batida, depois umgritodemulher,muitasvozes.ZéRobertoperguntaoquefoi.

—OseuamigãoPachecoacabadeseratropelado.

10. A trocaSaída da escola. Juca sai na frente, Michelle vem atrás e o alcança.Pergunta o que está havendo. Juca não a procura mais, parece estarquerendo evitá-la.

—Éque...me izeramumaproposta inacreditávelqueeu tenhoqueaceitar,senãomeferro.

—Mascomo,queproposta?

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—Eunãopossoservistocomvocê,senãomeferro.—Masvistoporquem?!ApareceCremilda,dizendo:—Bomdia,crianças.Sr.Juca,tudobem?Vamos,Michelle.CremildasaiquasepuxandoMichelle,queaindagrita:—Metelefona,Juca!Cremilda:—Telefonanão,Juca!CremildaeumaMichelleemburradachegamemcasa.Margaridaas

recebe,excitada.—Michelle,vemver.Olhaquemaravilha.Nasala,emvezdapequenaTVempretoebrancotemumaenorme

TVacores,ligada.Margarida:—Entregaramestamanhã.ZéRoberto,maravilhado,mostraocontrolequetemnamão:—Ecomcontroleremoto!Michelle:—Masquemfoiquecomprou?Margarida e Zé Roberto se viram para Cremilda, sorridentes.

Margarida,apontandoparaCremilda:—Alguém...—Naverdade,foiumatroca.EuleveiaTVempretoebrancoparao

meuquartoesubstituíporesta.Michelleficadebocaaberta.

11. Muito estranhoCremilda ajuda Duda com seu dever de casa na mesa da cozinha. Nasala, Zé Roberto, Margarida e Michelle, com a TV ligada, falam baixo,para não serem ouvidos da cozinha.

Margarida:— As notas do Duda melhoraram muito depois que a Cremilda

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começouaajudá-lo...Michelle:—Eomeuquarto?Estásempretãoarrumadoqueeutenhopenade

deitarnacamapradormir...Margarida:—Eunãofaçomaisnadadentrodestacasa.ACremildafaztudo.Que

mulherextraordinária!ZéRoberto:—Euachoqueelaémaisdoqueextraordinária...Margarida:—Oquevocêquerdizer?—Comoéqueelasabiaqueeugostavadecosteletinhas,edomanjar

brancodaminhamãe?Michelle:—Eospães?Ninguémmaisvaiàpadariaeacasaestásemprecheia

depães.Margarida:—Vocêsachamqueelafazmilagres?Quemultiplicaospães?ZéRoberto:—Seilá.Masqueessamulhernãoédestemundo,nãoé...Margarida,pensativa:—Elaabriuaportadafrentepeloladodeforasemchave.ZéRobertoeMichelle,juntos:—Oquê?!Michelle:—Nãodáparaabriraportadafrenteporfora.Margarida:—ACremildaconseguiu.Nodiaemquechegouaqui.ZéRoberto:—Euvoudizerumacoisapravocês.AcheimuitoestranhooPacheco

morreratropeladodaquelejeitodepoisdemeameaçaresairdaqui...Margarida:—Vocêachaque...foiela?

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— Alguém que consegue abrir a porta da frente por fora emultiplicarospãesconseguefazerqualquercoisa...

Cremildaaparecenaportadacozinhaediz:—Estoufazendopãozinhosdequeijopracomercomchá.Alguémse

interessa?

12. Um telegrama!Todos na mesa do café da manhã. Zé Roberto senta-se no seu lugar evê que tem um pacotinho em cima do seu prato.

—Oqueéisto?Cremilda:— Um presentinhomeu para o senhor, doutor. É uma correntinha,

parapendurarosóculosnopescoço.ZéRobertonãoentende.Cremildamostra:—Paraosóculos.Assimosenhorsempresabeondeelesestão.—Puxa,donaCremilda.Muitoobrigado.Tocaointerfone.Dudapuladamesaevaiatender.Diz:—Oquê?Depoisgrita:—Oqueételegrama?Todosnamesaseentreolham.Telegrama?!Duda:—Podemandarsubir?—Pode,pode.Michelle:—Quecoisaantiga.Aindaseusatelegrama?Cremilda:—Euachoqueépramim...Elavaiparaoseuquarto.Otelegramaéentreguenaporta.Cremilda

emerge do seu quarto pronta para sair. Abre o telegrama, que lêrapidamente,depoisdiz:

—Comoeupensava.Vouterquesair,donaMargarida.Alguémquer

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algumacoisadarua?Margarida:—Sevocêpudercomprarbatatas...—Jácomprei,donaMargarida.—Claro.—Euvoltoparafazeroalmoço.Esai,deixandotodosintrigadoscommaisaquelemistério.

13. A SupervisoraCremilda numa galeria. Entra por uma porta onde está escrito“Despachos”. A recepção é modesta. Uma secretária diz “Ela está lheesperando” e faz sinal para Cremilda ir entrando por outra porta, queleva a um escritório também apertado, com pilhas de pastas pelo chão eem cima de uma mesa, atrás da qual está a Supervisora. Que diz:

—Ah,Cremilda.Recebeumeutelegrama.Ótimo.Vocêjásabequaléoassunto.Porqueeuaindanãotivenotíciadamortede(consultaumpapel)JoséRobertoVieira?Eleeraparatermorridohásemanas.

—Poisé,poisé.Meatraseiumpouco...— Um pouco? Exatamente (outra consulta no papel) 23 dias, dona

Cremilda! Se eu não estivesse tão atarefada com todas as mortes queacontecemnesta cidade e eu tenho que supervisionar sozinha, porque ládecimanãomemandamnemmaisverbanemmaispessoal,terianotadooatraso antes. Só fui notar agora, e me perguntei: o que a Cremilda estáfazendo que não providenciou amorte do... (nova consulta) José RobertoVieira?

—Voulheconfessar,Supervisora.Équeeusimpatizeicomele.—Oquê?!—Simpatizei. Com ele, com a família dele. Com amulher, que é um

doce...—Cremilda,háquantosanosvocêtrabalhanestemetiê?—640anos.641nestenovembro.— E você alguma vez teve notícia da morte simpatizando com

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alguém?Epoupandoalguémpordecisãoprópria?Nãoévocêquedecidequemvaimorrerequemnãovai,Cremilda.Vocêsótemquecumprirsuatarefa, como todas as outras mortes que atuam nesta cidade, e às vezesprecisamfazeratéhoraextra. Imaginasetodaselascomeçaremadecidirquem vai e quem não vai. Esta semanamesmomorreu um que não eraparamorrer,morreuantesdahoraagendada.UmtaldePacheco.Alguémandou improvisando. Assim não dá. Tem que haver um mínimo deorganização.Senãovirabagunça,eeuéquetenhoquemeexplicar, láemcima,comoriscoatédeserdespedida.

—Poisé,poisé.Achoque,nestesanostodos,euamoleci...—Amoleceumesmo.Agoravolteláefaçaoseuserviço.Amanhãsem

faltaquero teranotíciadamortedosr. JoãoRoberto.Docoração,doquevocêquiser.

Cremilda,desanimada:—JoséRoberto...—JoséRoberto.

14. O jeitinhoTarde da noite. Zé Roberto sozinho na sala, vendo televisão. Cremildaentra:

—Queralgumacoisa,doutor?Umchazinho?—Não,não.Obrigado.Sentaumpoucoaí,donaCremilda.Seujantar,

comosempre,estavamaravilhoso.Asbatatassautée,então...Cremildasenta-seaoseuladonosofá.—Obrigada...Depois de um silêncio em que é lagrante sua indecisão, Cremilda

começa:—DoutorZéRoberto,euprecisolhedizerumacoisa...—Sim?—Eunãoaparecinasuacasaporacaso.Naverdade,euvimcomum

objetivo.Vimcumprirumatarefa.Sóquenãoconseguicumpri-la...—Umatarefa?

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—Eusouasuamorte,doutorZéRoberto.Elenãosabeoquedizer.Elacontinua:—Eraparaosenhorestarmortohásemanas.Mas,sei lá.Chegueie

vi a donaMargarida se despedindo do senhor, vocês se beijando, a donaMargarida,estabanadacomosempre,deixandoaportabatere icandonarua...Depoisconheciosseus ilhos...Enãoconseguicumprirminhatarefa.Enemvouconseguir.

—Querdizerque...Eunãovoumorrer?—Sedependerdemim,não.Pelomenosnãoagora.—Massevocênãocumprirsuatarefa,oqueacontece?—Eupercooemprego.Aíseremososdoisdesempregados...Osdoisriem,depoisficamsérios.ZéRobertopergunta:—AmortedoPacheco,oagiota...Foiasenhora?—Modéstiaàparte,foi.Tivequeimprovisar.— Agora eu entendo como a senhora sabia do manjar branco da

minhamãe..— A morte de uma pessoa está com ela desde que ela nasce. O

senhor só não tinhame visto ainda,mas eu estive como senhor durantetodaasuavida.

—E agora?Elesnãopodemmandaroutramorteparamepegar, jáquevocêfalhou?

—Não. Iiih, trocardemortesdáum trabalhão. Sóaburocracia levaanos.Eeuestareiaquiparaprotegervocês.

—Eoquefaremos,osdoisdesempregados?—Achoquedáparadarumjeitinho...

15. A padariaUma padaria, com os dizeres “Padaria do Zé” e “Pão sempre fresquinho”escritos na frente. Zé Roberto e Margarida atendendo no balcão, felizesda vida, e Cremilda no fundo, coberta de farinha, produzindo pães emais pães como por passes de mágica.

ZéRoberto:

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—Ondeestãomeusóculos?Margaridadáumarisadaeaponta:—Penduradosnoseupescoço.