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Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Santos – 29 de agosto a 2 de setembro de 2007 1 Os valores-notícia como efeitos de verdade na ordem do discurso jornalístico 1 Leonel Azevedo de Aguiar 2 Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro/PUC-Rio Resumo A partir da premissa de que os discursos jornalísticos são dispositivos que produzem representações sociais da realidade, este artigo visa contribuir com determinadas questões para a Teoria do Jornalismo. Para esta tarefa, identifica conceitos na obra de Foucault que possam ser utilizados para a compreensão da ordem do discurso jornalístico: relações de poder, vontade de saber e efeitos de verdade. Levanta a hipótese de que os valores-notícia são conjuntos de regras anônimas e históricas que definiram as condições de exercício da função enunciativa do discurso jornalístico. Palavras-chave Discurso jornalístico; relações de poder; ordem do discurso; efeitos de verdade; valores- notícia. Introdução Pela teoria do newsmaking, o discurso jornalístico constitui-se como um dispositivo de produção da realidade. Para ser mais exato, conforme aponta Traquina (2005a), na década de 70, um novo paradigma manifesta-se nos estudos sobre o jornalismo: as notícias enquanto construção discursiva. Se, para o senso comum da comunidade interpretativa dos jornalistas, as notícias são relatos verdadeiros de fatos significativos, para os teóricos do newsmaking, não é mais possível entender a informação jornalística como mero reflexo do real, um “espelho” que reflete fielmente o que se dá a ver. A ética profissional dominante, entretanto, acredita que o fato e o relato jornalístico possuem uma nítida demarcação epistemológica. Disso resulta que a credibilidade e a legitimidade da atuação dos jornalistas estão sedimentadas na crença de que as notícias retratam, com objetividade e neutralidade, os fatos. Respeitando esses parâmetros éticos que norteiam a profissão, os jornalistas realizam seu trabalho de relatar os fatos, apresentando-se como simples mediadores que reproduzem, na notícia, a realidade social. Para situar melhor a idéia de que o jornal reflete a realidade, a visão histórica de Lage (1979) sobre a técnica da notícia permite compreender o desenvolvimento do formato do jornalismo informativo, demonstrando como as 1 Trabalho apresentado no VII Encontro dos Núcleos de Pesquisa em Comunicação – NP de Jornalismo. 2 Doutor em Comunicação/UFRJ. Professor do Departamento de Comunicação Social da PUC-Rio, onde ministra aulas no Programa de Pós-graduação e na graduação. Exerce o cargo de coordenador do curso de Jornalismo.

Os Valores-notícia Como Efeitos de Verdade

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    Os valores-notcia como efeitos de verdade na ordem do discurso jornalstico1

    Leonel Azevedo de Aguiar2 Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro/PUC-Rio Resumo

    A partir da premissa de que os discursos jornalsticos so dispositivos que produzem representaes sociais da realidade, este artigo visa contribuir com determinadas questes para a Teoria do Jornalismo. Para esta tarefa, identifica conceitos na obra de Foucault que possam ser utilizados para a compreenso da ordem do discurso jornalstico: relaes de poder, vontade de saber e efeitos de verdade. Levanta a hiptese de que os valores-notcia so conjuntos de regras annimas e histricas que definiram as condies de exerccio da funo enunciativa do discurso jornalstico. Palavras-chave Discurso jornalstico; relaes de poder; ordem do discurso; efeitos de verdade; valores-notcia.

    Introduo

    Pela teoria do newsmaking, o discurso jornalstico constitui-se como um

    dispositivo de produo da realidade. Para ser mais exato, conforme aponta Traquina

    (2005a), na dcada de 70, um novo paradigma manifesta-se nos estudos sobre o

    jornalismo: as notcias enquanto construo discursiva. Se, para o senso comum da

    comunidade interpretativa dos jornalistas, as notcias so relatos verdadeiros de fatos

    significativos, para os tericos do newsmaking, no mais possvel entender a

    informao jornalstica como mero reflexo do real, um espelho que reflete fielmente o

    que se d a ver.

    A tica profissional dominante, entretanto, acredita que o fato e o relato

    jornalstico possuem uma ntida demarcao epistemolgica. Disso resulta que a

    credibilidade e a legitimidade da atuao dos jornalistas esto sedimentadas na crena

    de que as notcias retratam, com objetividade e neutralidade, os fatos. Respeitando esses

    parmetros ticos que norteiam a profisso, os jornalistas realizam seu trabalho de

    relatar os fatos, apresentando-se como simples mediadores que reproduzem, na notcia,

    a realidade social. Para situar melhor a idia de que o jornal reflete a realidade, a viso

    histrica de Lage (1979) sobre a tcnica da notcia permite compreender o

    desenvolvimento do formato do jornalismo informativo, demonstrando como as

    1 Trabalho apresentado no VII Encontro dos Ncleos de Pesquisa em Comunicao NP de Jornalismo. 2 Doutor em Comunicao/UFRJ. Professor do Departamento de Comunicao Social da PUC-Rio, onde ministra aulas no Programa de Ps-graduao e na graduao. Exerce o cargo de coordenador do curso de Jornalismo.

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    empresas jornalsticas emergentes criaram uma linguagem adequada aos novos padres

    industriais e as necessidades da sociedade de massas.

    Ao contrapor diferentes teorizaes sobre o campo jornalstico, as pesquisas que

    abordam a parcialidade do jornalismo a partir de conceitos como manipulao

    ideolgica e distoro das notcias no se sustentam. Como no questionam a distino

    entre fato e relato, na qual se assenta a teoria do espelho, os estudos sobre a ao

    social das notcias se limitam ao questionamento da ideologia das empresas

    jornalsticas. O enfoque da manipulao das notcias no s favorece uma perspectiva

    moral ou psicolgica da imparcialidade como tambm dificulta a compreenso do

    discurso jornalstico enquanto um processo historicamente situado. Desse modo, o que

    nos interessa entender que as notcias so construes discursivas que produzem as

    condies de possibilidade atravs das quais a realidade se torna visvel e dizvel. Para

    este percurso terico, procuramos nos mtodos arqueolgico e genealgico de Foucault

    noes que funcionem como uma caixa de ferramentas (Foucault, 1979: 71) para a

    reflexo sobre o discurso jornalstico contemporneo.

    Discurso: poder e saber a ordem do discurso que estabelece, para Foucault (1996), as possibilidades

    de organizao do real. Esta ordenao, alm de possuir uma funo normativa e

    reguladora, age por meio da produo de saber, de estratgias de poder e de prticas

    discursivas. Tomando as noes tericas foucaultianas, podemos afirmar: discurso no

    , apenas, o lugar onde o desejo se manifesta ou se oculta, mas , antes de tudo, o objeto

    do desejo. Mais ainda: o discurso traduz mais do que as lutas polticas, pois se torna,

    principalmente, o poder pelo qual se deseja lutar para exerc-lo; portanto, preciso

    pensar o discurso como o lugar do exerccio do poder.

    Ao realizar uma investigao crtica sobre a temtica do poder, Foucault

    assegura que uma questo emprica como se exerce o poder? no tem por funo

    denunciar como fraude uma metafsica ou uma ontologia do poder. Afirmar que as

    relaes de poder se exercem atravs da produo e da troca de signos (Foucault, 1995:

    241) ressaltar a positividade produtora do poder, pois aponta para a construo da

    realidade, j que o poder produz campos de objetos e rituais de verdade (Foucault,

    1977: 172). Este o contraponto em relao a tese de que o poder age apenas por

    violncia ou pelo convencimento ideolgico. Ao pensar em uma microfsica do poder

    atuando como uma rede produtiva que atravessa com eficcia todas as instncias da vida

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    social, Foucault destaca o poder como produo e no apenas como represso. O poder

    produz saber, imbricando continuamente poder e saber, de modo que no h relao de

    poder sem a constituio correlata de um campo de saber, nem saber que no suponha e

    no constitua, ao mesmo tempo, relaes de poder (idem, 30).

    A noo foucaultiana dos jogos de poder-saber contesta a idia de que o poder

    localiza-se nos aparelhos ideolgicos de Estado subordinando-se, portanto, a uma

    infra-estrutura econmica, ao modo de produo , pois as relaes de poder so

    imanentes a todos os tipos de relaes, no estando em posio de superestrutura, mas

    possuindo, l onde atuam, um papel diretamente produtor (Foucault, 1980: 90). Logo,

    se o poder no est localizado nos aparelhos de Estado, o prprio Estado que se torna

    o resultado de uma multiplicidade de engrenagens e de focos que constituem uma

    microfsica do poder. O poder passa a ser menos propriedade de uma classe e mais uma

    estratgia: o poder se exerce mais do que se possui, no sendo o privilgio adquirido ou

    conservado da classe dominante, mas o efeito de conjunto de suas posies estratgicas.

    No existindo mais um lugar privilegiado de onde possa ser exercido, o poder torna-se

    difuso, no localizvel, sendo exercido a partir de inmeros pontos e em meio a relaes

    desiguais e mveis.

    Para Foucault, justamente no discurso que se articulam poder e saber. Sendo

    assim, preciso conceber o discurso como uma srie de segmentos descontnuos, cuja

    funo ttica no uniforme nem estvel (idem, 95). Admitir a complexidade e a

    instabilidade de um jogo em que o discurso pode ser, simultaneamente, instrumento e

    efeito de poder e, tambm ponto de resistncia e ponto de partida de uma estratgia

    oposta aceitar a regra da polivalncia ttica dos discursos. O discurso veicula e

    produz poder; refora-o, mas tambm o mina, expe, debilita e permite barr-lo (idem,

    96). Enfim, o que devemos ter em mira so os efeitos recprocos de poder e saber que os

    discursos produzem. Tambm devemos perguntar qual a conjuntura e correlaes de

    foras que tornam imprescritvel a utilizao do discurso como articulao entre poder e

    saber.

    Os discursos so, portanto, blocos tticos no campo das correlaes de fora: os

    efeitos recprocos de poder e saber proporcionam sua produtividade ttica. J a sua

    integrao estratgica dos discursos implica na produo de efeitos de verdade.

    Vivemos em uma sociedade que produz e faz circular discursos que funcionam como

    verdade, que passam por tal e que detm, por este motivo, poderes especficos

    (Foucault, 1979: 231). Assim, alm da vontade de saber e da vontade de poder que

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    atravessam os discursos, a vontade de verdade constitui e, simultaneamente,

    constituda pelos discursos. Desse modo, o conceito de ideologia e, por conseguinte, o

    de manipulao ideolgica pode ser descartado por estar vinculado a idia nostlgica

    de um saber transparente e livre do erro e da iluso.

    Em seu conceito moderno, a ideologia apresenta-se em oposio a verdade; ou

    melhor, ope-se a um discurso capaz de revelar a verdade, j que a ideologia representa

    o falso. Alm disso, a ideologia vista como uma produo discursiva realizada por um

    sujeito com o objetivo impedir o conhecimento da verdade. Neste caso, o papel do

    intelectual seria o de denunciar o discurso falso isto , ideolgico e, ao mesmo

    tempo, apontar que a ideologia situa-se secundariamente em relao a uma dimenso

    objetiva a infra-estrutura econmica que determina, em ltima instncia, a

    superestrutura ideolgica. O que se deve observar, para Foucault, como os efeitos de

    verdade so produzidos dentro dos discursos que, em si mesmos, no so falsos nem

    verdadeiros. O que ele se prope a estudar o regime da verdade enquanto um

    componente efetivo na constituio das prticas discursivas.

    Seguindo essas proposies foucaultianas, podemos entender a verdade como

    um conjunto de procedimentos regulados para a produo, distribuio e funcionamento

    dos discursos. A verdade est circularmente ligada a sistemas de poder que a produzem

    e a confirmam, e a efeitos de poder que ela induz e que a reproduzem (Foucault, 1979:

    14). O regime da verdade no meramente ideolgico ou superestrutural, pois atuou

    como uma condio de formao e desenvolvimento do capitalista. A questo central,

    conseqentemente, no a conscincia alienada pela ideologia, mas o prprio regime

    poltico e institucional de produo da verdade, j que o saber no est em uma relao

    superestrutural com o poder.

    O trabalho de Michel Focault sobre as relaes de poder nos oferece importantes ferramentas analticas. Foucault distingue entre explorao, dominao e sujeio. Ele argumenta que a maioria das anlises sobre o poder concentra-se exclusivamente nas relaes de dominao e explorao: quem controla quem e quem extrai os frutos da produo dos trabalhadores. O terceiro termo, sujeio, enfoca aquele aspecto do poder mais distante da aplicao direta da fora. Esta dimenso das relaes de poder onde a identidade de indivduos e grupos est em jogo, e onde a ordem, num sentido amplo, toma forma. Este o espao no qual cultura e poder esto mais proximamente interconectados. (Rabinow, 1999: 102).

    Os mtodos foucaultianos concentram suas anlises exatamente nas prticas

    culturais em que o poder e o saber se cruzam. Dentre essas prticas, ele destaca o

    jornalismo, inveno fundamental do sculo XIX (Foucault, 1979: 224), ressaltando a

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    importncia da materialidade dos meios de comunicao, comandados por interesses

    econmico-polticos e que obedecem a mecanismos do poder. Mais especificamente, o

    discurso jornalstico alm de produzir e ser produzido por relaes de poder-saber e

    pela vontade de verdade formado por um conjunto de enunciados que se apia em

    um mesmo sistema de formao. Nossa hiptese de trabalho que, se de um modo

    geral o discurso constitudo por um nmero limitado de enunciados para os quais

    podemos definir um conjunto de condies de existncia (Foucault, 1997: 135), o

    discurso jornalstico se constri por um conjunto de regras annimas e histricas que

    definiram as condies de exerccio de sua funo enunciativa. Esse conjunto de regras

    pode ser denominado como valores-notcia e esto vinculados aos critrios de

    noticiabilidade, que passaremos a discutir.

    Discutir valores-notcia

    Conforme Wolf (2003), os valores-notcia derivam de pressupostos implcitos e

    que so relativos a cinco critrios. Para este autor, a noticiabilidade um conjunto de

    critrios, operaes e instrumentos que controla a quantidade e qualidade dos

    acontecimentos para selecionar os que sero produzidos como informao jornalstica

    e a sua aplicao est baseada nos valores-notcia. Essa noo news values

    (Tuchman, 1983) constitui a resposta a esta questo central no jornalismo: quais so

    os acontecimentos considerados suficientemente interessantes e significativos para

    serem formalizados na ordem do discurso denominada notcia? A metodologia adotada

    prev mostrar que as diferentes estratgias que se desenrolam no discurso jornalstico

    derivam de um mesmo jogo de relaes: ordenar, disciplinar, discorrer e controlar

    (Gomes, 2003). Passemos, ento, a resenhar os valores-notcia.

    Os critrios substantivos vinculam-se s caractersticas do contedo das notcias;

    ou seja, ao acontecimento se transformar em notcia. Por sua vez, os critrios

    substantivos articulam-se em dois fatores: a importncia e o interesse da notcia.

    A importncia pode ser determinada por quatro variveis. A primeira

    notoriedade implica no grau e nvel hierrquico dos envolvidos no acontecimento

    noticivel; isto , dos indivduos em suas hierarquias sociais referentes s instituies

    governamentais ou privadas. A hierarquia governamental claramente visvel e est

    definida em termos de autoridade, o que facilita a tarefa dos jornalistas nas avaliaes

    de importncia. Outros fatores que definem, operativamente, o valor-notcia

    importncia de um acontecimento so: o grau do poder institucional, o relevo de

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    outras hierarquias no institucionais, a possibilidade de serem reconhecidas para alm

    do grupo de poder em questo e a amplitude e o peso dessas organizaes em termos

    sociais ou econmicos.

    A varivel proximidade relaciona-se com o impacto sobre a nao e sobre o

    interesse nacional, em termos de proximidade geogrfica ou de proximidade econmica,

    poltica ou cultural. Portanto, o segundo fator que determina a importncia de um

    acontecimento a sua capacidade de influir ou incidir no interesse do pas. Para ser

    noticivel, o acontecimento deve ser significativo; isto , suscetvel de ser interpretado

    no contexto cultural do leitor. Associado a este fator est o valor-notcia da

    proximidade, sobretudo em termos geogrficos, mas tambm em termos culturais.

    Notcias culturalmente prximas referem-se a acontecimentos que j fazem parte do

    repertrio informativo dos jornalistas e do pblico. A proximidade geogrfica refere-se

    regra prtica das notcias internas de um pas. Em relao s notcias externas,

    preciso ressaltar que a distncia geogrfica distorcida pelos mecanismos de apurao

    das informaes.

    J a varivel relevncia aponta para a quantidade de pessoas que o

    acontecimento, de fato ou potencialmente, envolve. A comunidade dos jornalistas

    atribui importncia a acontecimentos que dizem respeito a muitas pessoas. Este valor-

    notcia determina que a noticiabilidade tem relao com a capacidade do acontecimento

    incidir ou ter impacto sobre diversos grupos sociais ou sobre o pas. Neste fator, existe

    complementaridade dos valores-notcia, j que est ligado diretamente ao fator da

    afinidade cultural e da distncia: existe uma correlao negativa entre proximidade ou

    poder no cenrio internacional e negatividade do acontecimento.

    A quarta varivel significatividade relaciona-se com a importncia do

    acontecimento quanto evoluo futura de uma determinada situao. A cobertura

    jornalstica reservada aos primeiros episdios de um acontecimento que tm uma

    durao prolongada adquire uma importncia muito maior do que os episdios

    intermedirios.

    Apontamos dois critrios substantivos: a importncia e o interesse da notcia. Se

    as notcias avaliadas como importantes so selecionadas obrigatoriamente, o fator

    interesse provoca uma avaliao mais aberta s opinies subjetivas. O interesse da

    notcia est vinculado s representaes que os jornalistas tm do pblico e ainda ao

    valor-notcia definido como capacidade de entretenimento. A capacidade de uma notcia

    em entreter o leitor situa-se em uma posio elevada na lista dos valores-notcia, seja

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    como fim em si mesma ou como instrumento para concretizar outros ideais

    jornalsticos, como superar a concorrncia. So consideradas interessantes as notcias

    que procuram dar uma interpretao de um acontecimento baseada no fator interesse

    humano; ou seja, as curiosidades e o inslito que atraem a ateno.

    A categoria critrios relativos ao produto vincula-se disponibilidade do

    material e s caractersticas especficas do produto informativo; ou seja, ao conjunto dos

    processos de produo e realizao. Em relao disponibilidade, trata-se de saber

    quanto o acontecimento acessvel para os jornalistas e quanto tratvel,

    tecnicamente, nas formas jornalsticas habituais (Elliott e Golding, 1979: 144). Os

    critrios relativos ao produto podem ser explicados em termos de consonncia com os

    procedimentos produtivos, de congruncia com as possibilidades tcnicas e

    organizativas, com as restries de realizao e com os limites prprios de cada meio de

    comunicao.

    Nesta categoria tambm est includo o critrio da brevidade: por um lado,

    brevidade est associada aos valores-notcia relativos ao produto e, por outro, ao

    mecanismo de seleo de notcias. Limitar as notcias aos seus elementos mais bvios

    essencial para que se deixe espao para uma mnima seleo dos acontecimentos do dia.

    Nos critrios de relevncia concernente ao produto, engloba-se tambm aquele

    que se refere notcia como resultado de uma conceituao da informao, baseada, por

    sua vez, na histria dos sistemas informativos e do jornalismo. O acontecimento que se

    constitui em notcia aquele capaz de alterar a rotina cotidiana: quanto mais negativo

    nas suas conseqncias um acontecimento, mais probabilidade tem de se transformar

    em notcia. Diversos elementos, complementares entre si, esto enraizados na noo de

    notcia: a origem e o tipo de evoluo que as empresas jornalsticas tiveram e o gnero

    de opinies relativas ao pblico partilhadas pelos jornalistas. Um dos princpios

    fundamentais do jornalismo que, quanto mais inslito ou mais sangrento o

    espetculo, maior o valor-notcia (Schudson, 1978). Por conseguinte, a ideologia da

    notcia est estreitamente ligada ao carter fragmentrio da cobertura informativa.

    Outro valor-notcia em estreita conexo com o produto informativo a

    atualidade. A periodicidade da produo informativa um fator constituinte, por si

    prpria, do quadro de referncia em que os acontecimentos so captados: a produo

    cotidiana estabelece um quadro dirio e os fatos noticiveis devem ter acontecido

    durante as 24 horas de intervalo entre um noticirio e outro para serem includos.

    Existem alguns critrios operativos para se estabelecer o tipo e o percentual de

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    atualidade que os acontecimentos devem apresentar para se transformarem em notcias.

    No critrio atualidade interna, os jornalistas avaliam se uma notcia atual para eles

    prprios e, caso seja, tambm o ser para os leitores. Outro critrio inerente atualidade

    o tabu da repetio: se uma notcia classificada como repetitiva ou semelhante a

    outras, no considerada suficientemente noticivel. Isto, entretanto, no vlido de

    forma indiscriminada, dado que o valor-notcia importncia prioritrio e permite

    coberturas jornalsticas, de modo constante e repetido, de personagens e temas que nele

    se inserem.

    Outro valor-notcia referente ao produto a composio equilibrada do

    noticirio em seu conjunto. O limiar de noticiabilidade de certos fatos depende da

    quantidade de uma determinada categoria de acontecimentos que j existe no produto

    informativo: se no existe, a notcia tem probabilidades de ser aprovada, mesmo que

    no seja muito importante, exatamente porque serve para equilibrar a composio global

    do noticirio.

    Na terceira posio, alinham-se os critrios relativos ao meio de comunicao.

    As conexes e as avaliaes, que se cruzam com outros valores-notcia, tornam os

    critrios vinculados ao meio de comunicao mais complexo do que pode parecer. Alm

    disso, este valor-notcia est diretamente associado a todos os critrios de relevncia

    atrelados ao pblico, seja quanto finalidade de entreter e de fornecer um produto

    interessante ou ao propsito de no cair no sensacionalismo. Mesmo no jornalismo

    impresso, a avaliao de noticiabilidade de um acontecimento tambm tem relao com

    a possibilidade de fornecer imagens que no correspondam aos modelos tcnicos

    normais, mas que sejam tambm significativas.

    Outro critrio de noticiabilidade relacionado ao meio de comunicao a

    freqncia, relacionada ao lapso de tempo necessrio para que um acontecimento tome

    forma e adquira significado. Quanto mais a freqncia do acontecimento se assemelhar

    freqncia do meio de informao, mais provvel ser a sua seleo como notcia.

    Em quarto, esto os critrios sujeitos ao pblico. Esses critrios referem-se ao

    papel da representao que os jornalistas fazem do seu pblico leitor. Trata-se de um

    aspecto difcil de definir e rico em tenses opostas. Por um lado, os jornalistas

    conhecem pouco o seu pblico e suas preferncias: o seu dever profissional produzir o

    noticirio mais do que satisfazer a um pblico. Por outro, a referncias s necessidades e

    s exigncias dos destinatrios constante e, nas prprias rotinas produtivas, esto

    presentes pressupostos implcitos acerca do pblico.

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    Os jornalistas explicam o seu conhecimento dos interesses do pblico fazendo

    referncias s noes correlativas de profissionalismo, empenho e experincia. Trata-se

    de um argumento circular: dada a sua capacidade de discriminao, derivada de sua

    imerso no universo das notcias, o jornalista encontra-se na melhor posio para

    discernir o que interessante para o pblico. Esta explicao, entretanto, no fornece

    nenhum critrio independente. Segundo Wolf (2003: 213), o termo de referncia

    constitudo pelas opinies que os jornalistas tm acerca do pblico e os limites dessa

    referncia so um dos aspectos mais interessantes e menos aprofundados na temtica do

    newsmaking.

    Na quinta posio alocam-se os critrios ligados concorrncia. A situao de

    competio entre os jornais d origem a trs tendncias, que, por sua vez, se refletem

    sobre alguns valores-notcia, reforando-os. Os jornais competem na obteno de

    material informativo exclusivo e tambm na inveno de novas rubricas editoriais. Em

    conseqncia, acentuam-se os impulsos para a fragmentao, para centrar a cobertura

    informativa em personalidades da elite e para todos os demais fatores co-responsveis

    pela distoro informativa que pretere uma viso articulada da realidade social. A

    segunda tendncia consiste nas expectativas recprocas: uma notcia pode ser

    selecionada porque se espera que os concorrentes faam o mesmo. Em terceiro, as

    expectativas recprocas se transformam num lao comum, desencorajando as inovaes

    na seleo de notcias. Isto poderia suscitar objees por parte dos nveis hierrquicos

    superiores, o que, por sua vez, colabora para a semelhana das coberturas jornalsticas

    entre os concorrentes.

    A competio implica, ainda, como conseqncia, em contribuir para o

    estabelecimento dos parmetros profissionais e modelos de referncia. No caso da

    imprensa norte-americana, esta funo desempenhada pelo New York Times e pelo

    Washington Post (Wolf, 2003: 215). No Brasil, os atuais modelos de referncia

    profissional so os jornais O Globo, Folha de So Paulo e O Estado de So Paulo.

    Em sntese: os valores-notcia so as qualidades da construo jornalstica dos

    acontecimentos, conforme apontam Elliott e Golding (1979: 114). Bourdieu j afirmou

    que os jornalistas possuem culos especiais atravs dos quais vem certos

    acontecimentos e no outros e vem de uma certa maneira as coisas que vem

    (Bourdieu, 1997: 25). Esses culos so os valores-notcia atravs dos quais os

    jornalistas operam uma seleo e uma produo discursiva daquilo que selecionado.

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    Ou seja, so as condies de possibilidades de ver e dizer sobre a realidade social que

    esto estratificadas na comunidade interpretativa (Traquina, 2005b) dos jornalistas.

    Consideraes finais

    Esses modos do visvel e do dizvel sobre o real implicam, para as comunidades

    interpretativas, relaes de poder-saber e produes discursivas atravessadas por efeitos

    de poder. Assim, analisar os dispositivos do poder a partir de uma estratgia imanente s

    correlaes de fora apontar para os investimentos na ordem do discurso.

    Dentro das quatro regras que funcionam mais como prescries da prudncia do

    que como imperativos metodolgicos, Foucault nos recomenda que afirmar a regra da

    imanncia dizer que no h nenhuma exterioridade entre as tcnicas de saber e as

    estratgias de poder, ainda que cada uma tenha seu papel especfico e que se articulem

    entre si a partir de suas diferenas. Estratgias e tcnicas, conjuntamente, constituem

    focos locais de poder-saber. O que devemos buscar o esquema das modificaes que

    as correlaes de fora implicam atravs de seu prprio jogo. A dinmica extremamente

    mvel de funcionamento do poder ressalta que as relaes de poder-saber so matrizes

    de transformaes. Esse movimento de transformaes est inserido dentro de uma

    estratgia global que, por sua vez, se apia em diversas relaes locais de poder.

    J a relao que se estabelece entre o nvel estratgico e global e o nvel local e

    ttico implica em um duplo condicionamento, no qual no h descontinuidade nem

    homogeneidade, apesar das diferenas e especificidades. O modo de articulao dos

    dispositivos de poder e as estratgias globais so caracterizados exatamente por esta

    determinao recproca. Duplo condicionamento: de uma estratgia, atravs da

    especificidade das tticas possveis; e das tticas, pelo invlucro estratgico que as faz

    funcionar (Foucault, 1980: 95).

    O que este ensaio pretendeu foi uma primeira aproximao entre a metodologia

    foucaultiana e os conceitos da Teoria do Jornalismo para circunscrever a noo de

    valores-notcia como um obscuro conjunto de regras annimas que formatam a

    produo da ordem do discurso jornalstico. A noticiabilidade de um acontecimento

    sempre depende dos jogos de poder-saber estabelecidos entre as empresas jornalsticas e

    a comunidade interpretativa dos jornalistas: se, por um lado, os critrios de relevncia

    so flexveis e variveis quanto mudana de certos parmetros, por outro, so sempre

    considerados em relao forma de operar do meio de comunicao que produz a

    informao. No h um processo rigidamente fixado e uma avaliao esquematicamente

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    pr-ordenada da noticiabilidade: suas margens de flexibilidade e de ajustamento

    induzem, portanto, a avanarmos na direo de uma hiptese sobre o carter negociado

    dos processos de produo da informao. O produto informativo parece ser o resultado

    de uma srie de negociaes micropolticas que tm por objeto aquilo que publicado e

    o modo como editado no jornal. Essas negociaes so efetuadas pelos jornalistas em

    funo de fatores que possuem diferentes graus de importncia e ocorrem em diversos

    momentos do processo produtivo.

    Em suma: o processo de fabricao da informao jornalstica configura-se

    como um espao pblico de lutas micropolticas no qual diversas foras sociais,

    polticas e econmicas disputam, pela construo discursiva, a produo de sentido

    sobre a realidade social.

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