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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS CAMPUS V PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA REGIONAL E LOCAL OSCAR SANTANA DOS SANTOS UMA VIAGEM HISTÓRICA PELAS ESTRADAS DA ESPERANÇA: representações literárias do cotidiano, da região e da desativação da Estrada de Ferro Nazaré (Bahia, 1960 - 1971) SANTO ANTÔNIO DE JESUS, BA 2011

Oscar Santana dos Santos

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Page 1: Oscar Santana dos Santos

UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB

DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS – CAMPUS V

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA REGIONAL E

LOCAL

OSCAR SANTANA DOS SANTOS

UMA VIAGEM HISTÓRICA PELAS ESTRADAS DA ESPERANÇA: representações literárias do cotidiano, da região e da desativação da

Estrada de Ferro Nazaré (Bahia, 1960 - 1971)

SANTO ANTÔNIO DE JESUS, BA

2011

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2

OSCAR SANTANA DOS SANTOS

UMA VIAGEM HISTÓRICA PELAS ESTRADAS DA ESPERANÇA:

representações literárias do cotidiano, da região e da desativação da

Estrada de Ferro Nazaré (Bahia, 1960 - 1971)

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação

em História Regional e Local da Universidade do Estado

da Bahia (UNEB, Campus V), como requisito final para

obtenção do título de Mestre em História.

Orientador: Prof.Dr. Paulo Santos Silva.

Universidade do Estado da Bahia

Programa de Pós-Graduação em História Regional e Local

2011

Page 3: Oscar Santana dos Santos

3

___________________________________________________________________________

S237 Santos, Oscar Santana dos.

Uma Viagem Histórica pelas Estradas da Esperança: representações

literárias do cotidiano, da região e da desativação da estrada de ferro

Nazaré (Bahia, 1960 – 1971) / Oscar Santana dos Santos - 2011.

92f.: il

Orientador: Prof. Dr. Paulo Santos Silva.

Dissertação (mestrado) - Universidade do Estado da Bahia, Programa

de Pós-Graduação em História Regional e Local, 2011.

1. Ferrovias – História - Bahia. 2. História - Bahia. I. Silva, Paulo

Santos. II. Universidade do Estado da Bahia, Programa de Pós-

Graduação em História Regional e Local.

CDD: 385.098142

___________________________________________________________________________

Elaboração: Biblioteca Campus V/ UNEB

Bibliotecária: Juliana Braga – CRB-5/1396.

Page 4: Oscar Santana dos Santos

4

UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB

Departamento de Ciências Humanas – Campus V

Programa de Pós-Graduação em História Regional e Local

OSCAR SANTANA DOS SANTOS

UMA VIAGEM HISTÓRICA PELAS ESTRADAS DA ESPERANÇA:

representações literárias do cotidiano, da região e da desativação da

Estrada de Ferro Nazaré (Bahia, 1960 - 1971)

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História Regional e Local da

Universidade do Estado da Bahia (UNEB, Campus V), como requisito final para obtenção do

título de Mestre em História.

BANCA EXAMINADORA

Profª Dra. Ely Souza Estrela (UNEB)

Prof. Dr. Rinaldo César Nascimento Leite (UEFS)

Prof. Dr. Paulo Santos Silva (UNEB – Orientador)

Santo Antônio de Jesus, 25 de abril de 2011

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5

À minha mãe,

Carmelita dos Santos

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6

AGRADECIMENTOS

A Deus, criador e protetor da minha vida.

Ao Prof. Dr. Paulo Santos Silva, pela orientação, dedicação, compromisso e apoio.

Aos professores do Programa de Pós-Graduação em História Regional e Local da

UNEB, Campus V, Santo Antônio de Jesus.

À professora Ely Estrela e ao Professor Rinaldo Leite, pelas colaborações no exame de

qualificação deste estudo.

A Aline Najara Gonçalves, pela leitura prévia e revisão do texto.

A Rosiery, Miguel e Vânia Maria Moura de Santa Inez, familiares do autor de As

estradas da esperança, pessoas que colaboraram com a realização desta pesquisa,

emprestando os livros (os romances), textos não publicados e indicando algumas informações

sobre a vida de Antônio Leal de Santa Inez.

À minha mãe, Carmelita dos Santos, que não teve oportunidade de estudar, mas

sempre lutou pela educação dos filhos, discordando do meu pai quando dizia que ―a caneta do

filho do pobre é uma enxada‖.

Ao meu pai, Nilo Santana dos Santos, homem do campo, que batalhou muito e

conseguiu, com o incentivo da minha mãe, comprar uma casa no bairro da Cajazeira, na

cidade de Mutuípe, para que seus filhos chegassem ao Ensino Médio. Foi assim que pude

conciliar trabalho e estudo. Você também, pai, contribuiu com minha formação, porque me

tornei professor de História da Educação Básica.

Aos meus irmãos, Reginaldo, Rogério, Terezinha e Suely, que sempre torceram pelas

minhas conquistas acadêmicas.

Page 7: Oscar Santana dos Santos

7

Ói, ói o trem, vem surgindo de trás das montanhas azuis, olha o trem

Ói, ói o trem, vem trazendo de longe as cinzas do velho néon

Ói, já é vem, fumegando, apitando, chamando os que sabem do trem

Ói, é o trem, não precisa passagem nem mesmo bagagem no trem

Quem vai chorar, quem vai sorrir?

Quem vai ficar, quem vai partir?

Pois o trem está chegando, tá chegando na estação

É o trem das sete horas, é o último do sertão, do sertão

Ói, olhe o céu, já não é o mesmo céu que você conheceu, não é mais

Vê, ói que céu, é um céu carregado e rajado, suspenso no ar

Vê, é o sinal, é o sinal das trombetas, dos anjos e dos guardiões

Ói, lá vem Deus, deslizando no céu entre brumas de mil megatons

Ói, olhe o mal, vem de braços e abraços com o bem num romance astral

Amém.

(Trem das sete, Raul Seixas)

Page 8: Oscar Santana dos Santos

8

RESUMO

O objetivo desta dissertação é analisar o romance As Estradas da Esperança, de Antônio Leal

de Santa Inez (1982), como fonte histórica para a interpretação do cotidiano do Recôncavo

Sul e Sudoeste da Bahia, focando peculiaridades da região e o processo de desativação da

Estrada de Ferro Nazaré (Bahia). Ao criar suas personagens e relatar as viagens do trem, de

estação em estação, o romancista reconstrói em moldes ficcionais a história dessa ferrovia. A

narrativa constitui uma interpretação das memórias de suas viagens, do desenvolvimento do

comércio na região do Recôncavo Sul e do Vale do Jequiriçá na primeira metade do século

XX, e da desativação da ferrovia — ―a morte do trem‖ —, dando visibilidade ao processo de

desestruturação de um conjunto de cidades baianas. O trem é retratado como o principal meio

de transporte da Região do Recôncavo Sul e das cidades do Vale do Jequiriçá desde o início

da construção da ferrovia (1871) até sua desativação (1971). Na obra de Santa Inez, vê-se a

representação do período compreendido entre os anos 1960 (início da desativação) e 1971

(liquidação da ferrovia). Para viabilizar a proposta aqui apresentada e fundamentar a análise

da obra citada foram realizadas consultas a atas, relatórios, fotografias, jornais, livros de

memórias e trabalhos acadêmicos que versam sobre temas correlatos.

PALAVRAS-CHAVE: Literatura. Representação. História. Cotidiano. Ferrovia.

Page 9: Oscar Santana dos Santos

9

ABSTRACT

The objective of this dissertation is to analyze Antônio Leal de Santa Inez’s novel, As

Estradas da Esperança, as a historical source for the interpretation of the everyday life in

southeast of Bahia and in an area in the same state called Recôncavo Sul, focusing on

peculiarities of the region and the shut down process of Nazaré railroad in Bahia. When the

author creates the characters and reports the train journey from station to station, he rebuilds

the history of this railroad in a fictional format. The narrative is an interpretation of his travels

memories, of the market development in Recôncavo Sul and Vale do Jequiriçá in the early

20th century, and the shutdown of the railroad — ―the train’s death‖ —, giving visibility to

the process of unsettlement of a group of cities in Bahia. The train is depicted as the most

important means of transportation in Recôncavo Sul region and in the cities in Vale do

Jequiriçá since the beginning of the railroad construction (1871) until its close-down (1971).

In Santa Inez’s work we observe the representation of the period comprehended between 1960

(beginning of the close-down) and 1971 (shut down of the railroad). To turn the proposal here

presented feasible and to settle the analysis of the work studied, it was carried out

examinations of minutes, reports, photographs, newspapers, memory books and academic

works about correlate themes.

KEY WORDS: Literature. Representation. History. Everyday life. Railroad.

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10

LISTA DE ABREVIATURAS

AEE – As Estradas da Esperança

CPE – Comissão de Planejamento Econômico

EFN – Estrada de Ferro Nazaré

RFFS/A - Rede Ferroviária Federal Sociedade Anônima

SEPLAN – Secretaria do Planejamento do Estado da Bahia

TRN - Tram Road de Nazareth

VFFLB - Via Férrea Federal Leste Brasileiro

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO, 12

2 AS ESTRADAS DA ESPERANÇA E AS REPRESENTAÇÕES DA ESTRADA DE

FERRO NAZARÉ, 18

2.1 Ficção e memória na obra As estradas da esperança, 18

2.2 A trajetória de Franz, 21

2.3 O cotidiano nas proximidades da ferrovia: literatura e memória do cultivo da

mandioca, 25

2.4 As representações da Estrada de Ferro Nazaré e Ferrovia na Bahia, 31

3 A REGIÃO PERCORRIDA PELO TREM DE NAZARÉ E O COTIDIANO DOS

PASSAGEIROS, 40

3.1 Jequié (―Cidade Sol‖): fim de linha da Estrada de Ferro Nazaré, 41

3.2 Ferrovia, coronelismo e cidades, 48

3.3 Areia (Ubaíra): cidade mais antiga do Vale do Jequiriçá, 56

3.4 Santo Antônio de Jesus e Nazaré (Recôncavo Sul): janela do litoral, 63

4 A MORTE DO TREM: A DESATIVAÇÃO DA ESTRADA DE FERRO NAZARÉ, 66

4.1 O choro de um narrador, 66

4.2 Ferrovia e rodovia: sai o trem, entra o caminhão, 70

4.3 O retorno de Alípio para Jequié, 73

4.4 ―Doenças‖ que causaram ―a morte do trem de Nazaré‖, 77

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS, 83

FONTES E BIBLIOGRAFIA, 85

ANEXO, 93

Page 12: Oscar Santana dos Santos

12

1 INTRODUÇÃO

Em As estradas da esperança, obra publicada pela Editora Clube do Livro (SP), em

1982, os editores destacam que Antônio Leal de Santa Inez estava entre os escritores

brasileiros que concorreram aos últimos concursos literários para a concessão do Prêmio

Nacional Clube do Livro. Informam que ele foi classificado no 6.º Concurso com a láurea de

Menção Honrosa pela obra A Ilha Esquecida.1 De acordo com essa editora, o autor era nome

―de boa expressividade‖ no mundo das letras. A riqueza temática e a originalidade no estilo

— poético, lírico e fotográfico — lhe dava o merecido destaque na moderna literatura

nacional.

Santa Inez nasceu em Laje, baixo sudoeste da Bahia, em 1927 e recebeu uma educação

tradicional. Em Salvador, estudou no Colégio da Bahia e depois, em Jaguaquara (Bahia), no

Colégio Taylor Egídio. Migrou para o Rio de Janeiro em 1952 e formou-se em Direito pela

Universidade do Distrito Federal, em 1960. Dedicou-se à Publicidade e, em particular, à

Pesquisa Mercadológica. Em 1962, assumiu o cargo de gerente no escritório de Pesquisa

Mercadológica, em São Paulo e, em 1972, fundou sua própria empresa, o Instituto Paulista de

Pesquisas de Mercado. Possuía cursos de especialização em Estatística e era conferencista

nesta área. Publicou os romances Serra do Meio (1980), seu primeiro livro, pela Edições

Melhoramentos e As estradas da esperança (1982). Escreveu também Contos de amor e

ternura e A família é um arquipélago ou os Santa Inez da Bahia. Estes, encadernados,

datilografados e guardados com muito zelo pela filha Vânia Maria, não foram publicados.

Santa Inez morreu em São Paulo, em 1995.2

O romance As estradas da esperança é o objeto e a principal fonte deste estudo por

representar aspectos históricos e memorialísticos da linha ferroviária que ficou conhecida

como Estrada de Ferro de Nazaré (EFN). Chamada inicialmente de Tram Road de Nazareth

(TRN), a ferrovia partiu de Nazaré em 1871, chegando a Jequié em 1927. Com extensão de

290 km, fazia o transporte de passageiros e dos principais produtos agrícolas da região, como

café, fumo e cacau. Entre os anos de 1871 (início da construção) e 1971 (quando foi

desativada), a estrada permitia a integração das micro-regiões do Vale do Jequiriçá /

1SANTA INEZ, Antônio Leal de. As estradas da esperança. São Paulo: Clube do Livro, 1982, Notas biográficas

do autor, p. 9. O trabalho de pesquisa com familiares do autor não possibilitou identificar se A Ilha Esquecida é

um poema, um conto ou um romance. O único texto de Santa Inez, cujo título se aproxima desta obra é A família

é um arquipélago ou os Santa Inez da Bahia, não publicado. 2 Ibidem, p. 9.

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13

Recôncavo Sul / Jequié e Salvador, conectando ferrovia e navegação, contribuindo assim com

intercâmbios culturais, sociais e econômicos. Servia também para transportar passageiros e

escoar a produção cafeeira do Vale do Jequiriçá, que se integrou aos principais centros

regionais da época, como Nazaré, Santo Antônio de Jesus e Amargosa, além dos extra-

regionais como Salvador e Jequié.3

A fonte literária aqui empregada não permite explorar o período de construção e

ampliação da ferrovia (1871 a 1927, quando alcança a cidade de Jequié). A maioria dos

diálogos que envolvem as personagens criadas por Santa Inez acontecem no interior do trem e

referem-se, principalmente, aos anos de 1960, quando começa a desativação da ferrovia na

região do Vale do Jequiriçá, e 1971, ano da desativação do último trecho, que ligava Santo

Antônio de Jesus e Nazaré.

A obra As estradas da esperança permitiu articular uma discussão envolvendo

literatura, história, memória, ferrovia e cotidiano. Neste estudo, a palavra literatura está sendo

utilizada para especificar a fonte literária — o romance — como possibilidade de

interpretação e compreensão de processos históricos. Já os conceitos de história e memória,

apesar das aparentes semelhanças, diferem-se. No entanto, ambos têm o passado como

substrato comum.4

No que se refere ao tema da ferrovia, esta relação é esclarecida no decorrer da análise

da obra. Antônio Leal de Santa Inez apresenta como cenário um conjunto de cidades do

interior da Bahia e as pequenas estações ferroviárias dos povoados rurais, que eram servidas

pelo trem de Nazaré. O cotidiano por sua vez é representado pelas características das

personagens: suas ações, envolvimentos em brigas e/ou relações amorosas, profissões

(marinheiro, carpinteiro, sanfoneiro, fiscal do trem, trabalhador rural) e modos de viver

(pedindo esmola, bebendo cachaça, tocando, cantando, cultivando mandioca).

Em A invenção do cotidiano, Michel de Certeau analisou as práticas cotidianas das

pessoas comuns, como fazer compras, caminhar pela vizinhança, arrumar a mobília ou ver

televisão. A rua, o bairro, a cidade e a casa, por exemplo, são espaços que ganham sentido

3 O conceito de região não deve ser recortado apenas como uma unidade econômica, política ou geográfica. Este

conceito é entendido como um campo de estudo, marcado por discursos e imagens; como uma produção

imagético-discursiva gestada historicamente, em relação a uma dada área do país. Ver ALBUQUERQUE

JÚNIOR, Durval Muniz de. A invenção do nordeste e outras artes. 2. ed, Recife: FJN, Ed. Massangana; São

Paulo: Cortez, 2001. p. 49. Nesta dissertação, a região é associada aos trilhos do trem de Nazaré, relacionando

economia, política, rio, cidade e agricultura por intermédio do discurso literário. 4 Cf. PINTO, Júlio Pimentel. Uma memória do mundo: ficção, memória e história em Jorge Luís Borges.

Estação Liberdade: FAPESP, 1998. p. 287-321; LE GOFF, Jacques. História e memória. 5ª. Ed. Campinas, São

Paulo: UNICAMP, 2003. p. 17-172; p. 419-476; CHARTIER, Roger. A História Cultural entre práticas e

representações. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990.

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14

pela presença e o fazer do ser humano. Esse autor define o cotidiano como ―aquilo‖ que nos é

dado cada dia (ou que nos cabe em partilha), nos pressiona dia após dia, nos oprime, pois

existe uma opressão do presente.5 O uso freqüente do trem para diversão ou trabalho; como

meio de deslocamento até uma cidade maior com a finalidade de estudar num colégio

importante ou consultar-se com um médico da capital; o hábito de parar nas estações para

fazer um lanche; comprar um cafezinho ou um mingau; almoçar; embarcar ou desembarcar

produtos e passageiros; visitar familiares ou encontrar-se com a namorada; vender doces ou

frutas no interior desse meio de transporte; conversar com amigos ou desconhecidos; viajar

durante a noite ou o dia e irritar-se com o atraso, a poeira ou um acidente na estrada, são

atividades perceptíveis na obra As estradas da esperança.

Nesse sentido, o cotidiano é a percepção do ―comum‖, daquilo que se tornou habitual

e que muitas vezes não é descrito numa abordagem macrohistórica. No romance As estradas

da esperança vê-se a presença de personagens simples, homens e mulheres que criavam

porcos, galinhas, torravam farinha, faziam beiju de forma artesanal e sobreviviam nas

proximidades da EFN. Neste estudo é feito um recorte regional, que se propõe a uma redução

de escala de análise ao partir da fonte literária e de um olhar para a vida nas estações, na linha

e no interior do trem de Nazaré. As experiências individuais, locais e regionais estão

relacionadas a assuntos mais amplos, como a implantação e desativação de linhas férreas no

cenário nacional.6

Nota-se na obra uma relação estreita entre as personagens e o narrador, o que leva a

concluir que nasceram de sua memória, tendo como referência pessoas vivas, companheiras

de viagens no trem.7 Assim como no discurso literário de Santa Inez, em outros romances de

cunho memorialístico, os autores se revelam, criam, imaginam, contam histórias, expressam e

se realizam por intermédio de suas personagens.8

Tanto na literatura como na historiografia, o tema ferrovia é bastante representado.

Muitas estradas de ferro foram construídas e desativadas no Brasil. Algumas caíram no

5 CERTAU, Michel de; GIARD, Luce e MAYOL, Pierre. A invenção do cotidiano. 2. Morar, cozinhar.

Petrópolis – Rio de Janeiro: Vozes, 2001, p. 31. 6 Sobre a microhistória, Cf. LEVI, Giovanni. Sobre a microhistória. In: BURKE, Peter. A escrita da história:

novas perspectivas. São Paulo: Editora da UNESP, 1992. p. 133 – 161; A herança imaterial. Trajetória de um

exorcista no Piemonte do século XVII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. 7 Sobre a personagem do romance, Cf. MELLO E SOUZA, Antônio Candido de. A personagem de ficção. 7ª. ed.

São Paulo: Perspectiva, 1985. p. 53 – 80. 8 Cf. BAKHATIN, Mikhail. Estética da criação verbal. 4ª Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. 476p. (p. 3 –

20).

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esquecimento e outras foram pesquisadas e ficaram registradas em forma de livro.9 A EFN foi

privilegiada com um registro deixado por Santa Inez — a obra As estradas da esperança.

Na obra Mad Maria (1980), Márcio Souza conta a história da construção da ferrovia

Madeira-Mamoré com riqueza de detalhes, informando os conflitos étnicos entre as

personagens que representam os trabalhadores (americanos, indianos, chineses, africanos,

alemães, espanhóis, portugueses, indígenas); os desafios enfrentados para sobreviver na selva

com as epidemias, principalmente de malária; as dificuldades encontradas pelos estrangeiros

para retornar ao país de origem, em função da baixa remuneração que recebiam; o trabalho

dos operários, enfermeiros, médicos, engenheiros e a fiscalização dos guardas para evitar as

fugas; o calor; a chuva rápida; a lama; a ameaça dos escorpiões; a febre; a diarréia; a vida; a

morte; enfim, o cotidiano das pessoas que se aventuraram pela Amazônia na esperança de

trabalho e de uma vida digna.10

Se, por um lado, Souza apresenta um discurso amargo, vingador, trágico, denunciador

de políticos corruptos e de desilusão com as ferrovias, criticando a construção da Madeira -

Mamoré, no início do século XX, por outro, em As estradas da esperança, Santa Inez, talvez,

influenciado pelas discussões referentes ao sucateamento das linhas férreas, no Brasil,

especificamente, nos anos de 1960 e à crise internacional do petróleo entre os anos de 1970 e

1980, se posiciona contra as rodovias, revela sua admiração e apego ao antigo sistema de

transporte, considerando um crime ―a morte do trem‖. Ambas as obras foram publicadas em

datas próximas (1980 e 1982). Elas retratam períodos diferentes, mas têm em comum o tema

do cotidiano: uma narra a vida dos trabalhadores durante a construção, a outra, a vida dos

passageiros do trem de Nazaré durante a desativação. Porém, o objetivo deste estudo não é

fazer uma comparação das duas obras, mas ressaltar a temática das ferrovias no âmbito da

literatura brasileira.

No romance, O pecado viaja de trem, publicado em 1960, Nelson Gallo informa que

ao longo das estações ferroviárias baianas havia carregadores, desocupados, vendedores de

frutas, bolos, mingau, rolete de cana, beiju e pamonhas, assim como parentes ou conhecidos

dos viajantes, que diziam uma última palavra e davam um último abraço ou aperto de mão nos

9 FERREIRA, Manoel Rodrigues. A Ferrovia do Diabo. São Paulo: Melhoramentos / Secretaria de Estado da

Cultura, 2ª ed., 1981; HARDMAN, Francisco Foot. Trem Fantasma: a modernidade na selva. São Paulo:

Companhia das Letras, 1988. 291 p.; MELO, Josemir Camilo de. Ferrovias Inglesas e mobilidade social no

Nordeste. Campina Grande: EDUFCG, 2007. 233 p.; NUNES, Ivanil. Douradense: a agonia de uma ferrovia.

São Paulo: Annablume, FAPESP, 2005. 194 p.; PAULA, Dilma Andrade de. Fim de linha: a extinção de ramais

da Estrada de Ferro Leopoldina, 1955 – 1974. Tese de doutorado – Dep. De História da Universidade Federal

Fluminense. Niterói, 2000. 10

SOUZA, Márcio. Mad Maria. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980 / Record: 5ª ed. 2005. 461 p.

Page 16: Oscar Santana dos Santos

16

que partiam. ―A locomotiva arfava. A sineta vibrou. O apito estridente do chefe da estação

dominou todos os outros ruídos‖.11

Neste estudo, além da análise da obra As estradas da esperança, houve a necessidade

de consultar trabalhos acadêmicos que, de modo integral ou parcial, representam aspectos

históricos da EFN e ajudaram a problematizar algumas questões, como a existência e

desativação da ferrovia. Dessa forma, Ferrovia e Rede Urbana na Bahia, de Francisco

Antônio Zorzo; As Estradas de Ferro no Recôncavo, de Lindinalva Simões; As Estradas de

Ferro de Nazaré no contexto da política nacional de viação férrea, de Cássia Maria Muniz

Carletto e Mudança na paisagem física e social associados à ferrovia: Estrada de Ferro de

Nazaré no Vale do Jequiriçá, de Elenildo Café de Jesus foram alguns dos estudos

consultados.12

Articuladas ao romance As estradas da esperança, outras fontes como livros de

memórias, atas, relatórios, jornais e fotografias da EFN foram úteis para auxiliar na

interpretação do recorte temporal e evidenciar as representações dessa ferrovia,

principalmente nas questões referentes à desativação e à região percorrida pelo trem de

Nazaré. Considerando a ambigüidade do termo representação, que, por um lado, evoca a

ausência e, por outro, torna visível a realidade representada sugerindo a presença, é possível

afirmar que a imagem é, ao mesmo tempo, presença e sucedâneo de algo que não existe.13

A obra As estradas da esperança, além do cotidiano, tem como matéria a região e a

desativação da EFN, pois Santa Inez usou o nome real das cidades e dos povoados que eram

conectados por essa ferrovia, lamentou o fim da estrada e criou personagens baseadas em suas

viagens no trem.

Para viabilizar a exposição dos resultados da pesquisa realizada, a dissertação foi

dividida em três capítulos. O primeiro apresenta o enredo do romance, problematizando

ficção, memória e cotidiano a partir da trajetória das personagens Franz, Laura e Lourenço.

Destaca as representações da EFN com base na fonte literária e em alguns memorialistas, que

reproduzem um discurso da ferrovia como fator de modernidade e progresso.

11

GALLO, Nelson. O pecado viaja de trem. São Paulo: O livreiro LTDA, 1960, p. 14. 12

ZORZO, Francisco Antônio. Ferrovia e Rede Urbana na Bahia: Doze Cidades Conectadas pela Ferrovia no

Sul do Recôncavo e Sudoeste Baiano (1870 – 1930). Feira de Santana, UEFS, 2001. 264 p. Livro originado da

tese de doutorado, intitulada ―Práticas de Territorialização e a Formação de uma Rede Urbana no Brasil‖,

Universidade Politécnica da Catalunya, Espanha, 1999; SIMÕES, Lindinalva. As Estradas de Ferro no

Recôncavo. UFBA, Salvador, BA. Dissertação de Mestrado, 1970. (166 p.); CARLETTO, Cássia Maria Muniz.

As Estradas de Ferro de Nazaré no contexto da política nacional de viação férrea. Dissertação de Mestrado.

UFBA, 1979. (360 p.) e JESUS, Elenildo Café de. Mudança na paisagem física e social associados à ferrovia:

Estrada de Ferro de Nazaré no Vale do Jequiriçá, Bahia. Dissertação de Mestrado, UESC, 2008. 84p. 13

GINSBURG, Carlo. Representação: a palavra, a idéia, a coisa. In: ___ Olhos de Madeira: nove reflexões

sobre a distância. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. p. 85 – 103.

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17

O segundo capítulo ocupa-se da representação da região percorrida pelo trem de

Nazaré, destacando as cidades servidas pela ferrovia, bem como suas características

geográficas, culturais, sociais e econômicas. Neste capítulo o cotidiano da ferrovia e dos

passageiros do trem de Nazaré é representado pelas personagens criadas por Santa Inez com o

auxílio de fotografias. A parada do trem na estação promovia a feira e ―a festa‖, o comércio,

os encontros, o namoro, a despedida, a política, a descrição dos alimentos consumidos e

produtos agrícolas comercializados. Portanto, a região e o cotidiano aparecem entrelaçados

com as cidades e a ferrovia. Os diálogos das personagens no interior do trem e nos arredores

das estações fornecem subsídios para abordar essas questões.

O terceiro e último capítulo aborda a desativação da EFN — o ―choro‖ do narrador

com o fim da estrada, o surgimento das rodovias e as ―doenças‖ que causaram ―a morte do

trem‖. As dificuldades relacionadas aos transportes no Vale do Jequiriçá são delineadas

quando Santa Inez apresenta os diálogos em que o caminhão e o jipe substituem o trem nos

trechos desativados.

O trem foi ―aposentado‖, mas, entre os anos 1960 e 1971, havia poucos automóveis na

região para transportar passageiros e produtos agrícolas. Pela forma como a ferrovia foi

desativada, o Vale do Jequiriçá perdeu o seu principal meio de transporte e, por algum tempo,

ficou apenas com os trilhos e estradas de rodagens precárias. A narrativa de Santa Inez indica

que muitos moradores migraram para Jequié, Santo Antônio de Jesus, Valença, Salvador, Rio

de Janeiro e São Paulo.14

Definitivamente, a desativação da ferrovia alterou os meios de

transportes no Brasil, e o cotidiano de numerosos homens e mulheres na Bahia.

14

Um estudo chamado ―Diagnóstico dos Municípios do Vale do Jequiriçá‖ informa que o êxodo rural desta

região foi o maior da Bahia, na década de 1960, período que a ferrovia passa a ser desativada. BAHIA.

Diagnóstico de Municípios Vale do Jequiriçá. Edição SEBRAE. Salvador, Março de 1995. 125p.

Page 18: Oscar Santana dos Santos

18

2 AS ESTRADAS DA ESPERANÇA E AS REPRESENTAÇÕES DA

ESTRADA DE FERRO NAZARÉ (EFN)

2.1 Ficção e memória na obra As estradas da esperança

Em nota explicativa, prefaciando o livro de seu pai, Vânia Maria Moura de Santa Inez,

relata que o romance As estradas da esperança conta uma das histórias mais bonitas que ela

já leu: a história de um trem que realmente existiu e foi desativado. Ela informa que seu pai

viajava neste trem, conheceu as personagens que descreve e, numa daquelas viagens,

conheceu a esposa, a senhora Maria Carmelita. ―Porque meu pai nasceu naquelas matas da

Bahia, naqueles sertões tão bem retratados por ele‖, afirma.15

Ainda que Antônio Leal de Santa Inez não tivesse a pretensão de apresentar aspectos

históricos importantes da Estrada de Ferro Nazaré, nota-se que sua obra representa traços da

história e da memória dessa estrada. É inegável que Santa Inez tenha se apropriado de outras

leituras, de outros discursos acerca dessa ferrovia, mas a data de publicação de sua obra, sua

posição social, intelectual, sua história de vida, onde morou, estudou, trabalhou, tudo isso

ajuda a compreender melhor o seu discurso literário.

Ao criar suas personagens e relatar a viagem do trem, de estação em estação, falando

das noites quentes em Jequié, do acidente em Lagoa Queimada, do aleijado, do sanfoneiro, da

banana frita, do mingau de tapioca, de Jaguaquara (a toca da onça), da farinha de mandioca,

dos beijus, dos umbus e licuris de Santa Inês, do Coronel e sua grandeza, de Areia (atual

Ubaíra), da notícia da morte do trem em Mutuípe, de Laje, de São Miguel, Amargosa, enfim,

de todas as estações ou cidades que o trem passava, Santa Inez constrói uma representação

dessa estrada, revelando vários aspectos do cotidiano da ferrovia.

Em Mad Maria, Márcio Souza descreve o cotidiano dos trabalhadores que construíram

a Ferrovia Madeira – Mamoré na Amazônia, um ambiente insalubre e perigoso para suas

personagens: engenheiros, enfermeiros, médicos, indígenas, pessoas de diferentes

nacionalidades e origem étnicas. Esse autor conta história de forma romanceada, criticando o

capitalismo e as dificuldades enfrentadas para se construir aquela ferrovia, no meio de uma

floresta composta por árvores enormes, formigas, escorpiões, cobras, mosquitos, insetos,

pragas naturais diversas, rios e cachoeiras. Sua narrativa informa sobre as atividades

15

SANTA INEZ, Antônio Leal de. As Estradas da Esperança. São Paulo: Clube do Livro, 1982, p. 7.

Page 19: Oscar Santana dos Santos

19

desenvolvidas, a carga horária de trabalho e o estado físico e psicológico dos indivíduos

envolvidos na execução daquele projeto:

Os chineses trabalhavam no desmatamento, iam avançando pela floresta. Os alemães

cuidavam do serviço de destocamento e da terraplanagem. Os barbadianos estavam

no serviço de colocação do leito ferroviário. Os espanhóis, egressos do sistema

repressivo colonial em Cuba, faziam as vezes de capatazes e compunham a guarda

de segurança. Cada homem tinha o seu trabalho definido, e a jornada era de onze

horas por dia, com direito a um intervalo para o almoço. Mas o aspecto de cada

homem era igual, independente de sua nacionalidade. Todos estavam igualmente

maltrapilhos, abatidos, esqueléticos, decrépitos como condenados de um campo de

trabalhos forçados.16

Mad Maria e As Estradas da Esperança, mesmo que se considerem suas diferenças

quanto à forma e ao conteúdo, irredutíveis a comparações estritas, servem para abordar

questões que outras fontes não permitiriam e para perceber que os discursos históricos e

literários constroem uma ideia de realidade e nos ajuda a refletir sobre o ofício do historiador.

Pensar uma discussão envolvendo a relação da literatura com a história exige reflexão sobre

conceitos como imaginário, real, representação, discurso, narrativa histórica e ficção. Deve-se

considerar que, para construir a sua representação sobre o passado a partir das fontes ou

rastros, o caminho do historiador é montado por estratégias que se aproximam das dos

escritores de ficção, através de escolhas, seleções, organização de tramas, decifração de

enredo, uso e escolha de palavras e conceitos.17

O que diferencia o historiador do romancista é a sua dependência do arquivo, o dever

de fazer a citação das fontes, a não liberdade para criar personagens e inventar os fatos. Ainda

que a literatura não se comprometa diretamente com a veracidade, discursos ficcionais como

o de Santa Inez contêm história e memória.

O enredo do romance As Estradas da Esperança é baseado nas fugas das personagens

Franz e Alípio. O primeiro rouba o seu próprio pai e, aos 15 anos de idade, foge do meio rural

para a cidade. Descrito como aventureiro, torna-se marinheiro e viaja pelo mundo, mas

retorna trinta anos depois. Fracassado e pobre, recomeça a vida trabalhando em fazendas. Nos

diálogos que envolvem esta personagem não há muita ênfase nas viagens do trem, que

acontecem ora muito distante, ora nos arredores da ferrovia. Alípio, por sua vez, engravida a

personagem Rosa e foge no trem partindo de Jequié em direção a Nazaré, para não ser morto

16

SOUZA, 5ª ed., 2005, p. 20. 17

PESAVENTO, Sandra Jatahy. História & literatura: uma velha-nova história. In: Nuevo Mundo Mundos

Nuevos, Debates, 2006, p. 6. Disponível no sítio eletrônico http://nuevomundo.revues.org/index1560.html .

Acesso em 28 de outubro, 2009.

Page 20: Oscar Santana dos Santos

20

pelo pai da moça. Alípio desce na estação da cidade de Mutuípe, consegue emprego na

prefeitura e, depois de algum tempo, quando tenta retornar para Jequié, encontra problemas

relacionados aos transportes, pois a EFN já havia sido desativada no Vale do Jequiriçá. Como

se não bastasse a dificuldade para regressar à sua cidade de origem — algumas partes do

percurso foram feitas de caminhão, jipe e caminhada —, descobre que Rosa é namorada de

Franz e os dois travam uma luta por causa desta mulher.

Além de Franz e Alípio, as personagens principais que figuram a obra de Santa Inez

são: o sanfoneiro Patrocínio, que tocava e cantava no trem, fazendo a diversão dos

passageiros; o aleijado, que ganhava a vida pedindo esmolas; o louco, que aparece na

narrativa quando o trem passa pela estação da cidade de Jaguaquara e vai até Rio Fundo,

próximo a Nazaré, para tratar-se com o curador Zé Felício; e o coronel Astério, que entra no

trem na estação da cidade de Itaquara, acompanhado da filha Lininha e da esposa, Dona Caró,

que estava doente e ia se consultar com os médicos de Salvador. Os diálogos que envolvem

estas personagens acontecem no interior do trem em movimento, deslocando-se de Jequié em

direção a Nazaré.

Há também as personagens secundárias, como Dona Sé e Téia, que com a desativação

da ferrovia no Vale do Jequiriçá migraram de Lagoa Queimada para Jequié; o tropeiro

Sebastião e seu ajudante Benedito, que se tornou sócio de Franz e abriu uma carpintaria nesta

cidade; Maria Soldado, cuja casa era uma espécie de pousada e bordel, também localizada em

Jequié; Alexandre e Lidinha, o casal pobre, que morava em São Miguel das Matas e migrou

para Santo Antônio de Jesus (onde ainda havia o trem). A narrativa envolvendo essas

personagens é exterior ao trem e reflete um momento em que o trecho da estrada que ligava

Santo Antônio de Jesus a Jequié já havia sido desativado.

Ainda como personagens secundárias e desligadas do enredo no interior do trem,

Laura e Lourenço, o casal que sonhava ficar rico cultivando mandioca, representa a vida no

meio rural e foi importante para interpretar o cotidiano nas proximidades da ferrovia.

Algumas práticas cotidianas também são descritas na trajetória de Franz, permitindo

problematizar a relação entre ficção e memória, autor e personagem, ou seja, criador e

criatura.

Page 21: Oscar Santana dos Santos

21

2.2 A trajetória de Franz

Na abertura do romance As estradas da esperança, Santa Inez apresenta o matrimônio

da personagem Lidinha — que se casou grávida de sete a oito meses, de véu e grinalda —, a

primeira cerimônia que o padre Anselmo havia celebrado na igreja de São Francisco das

Andorinhas. Lidinha era filha do velho Maia (Meyer), um alemão aventureiro, que se

encantou com a localidade e a simplicidade dos moradores e decidiu fixar-se ali, onde

também havia casado. Teve dois filhos, ficou rico e transformou-se numa pessoa muito

conhecida, porém sua vida tornou-se trágica e solitária após a morte da esposa e de um dos

filhos, seguida do abandono do outro, que o rouba e desaparece no mundo (AEE, p. 15 –

16).18

A referência a tais personagens torna possível problematizar ficção, memória e

cotidiano, com base na trajetória da personagem Antônio Francisco (Franz), o filho que

desestruturou a vida do velho Maia. Após a fuga do filho ele começou a beber cachaça,

vender os bens, as terras, os objetos de valor, perdendo a vontade de viver. ―Toda a riqueza

acumulada em quarenta anos de luta desapareceu em três ou quatro anos de tristeza‖ (AEE, p.

16).

Ao longo da obra, Santa Inez menciona situações, modos de viver — a moça que se

casou grávida, o velho que vivia embriagado, caía à porta das vendinhas e trocava objetos de

valor por garrafas de cachaça — e lugares como São Francisco das Andorinhas, Lagoa

Queimada (uma das estações da EFN), as noites quentes de Jequié (fim de linha da EFN) e a

culinária de Nazaré (ponto de partida do trem).

Ao descrever a vida da personagem Franz, Santa Inez relata que o rapaz herdara do pai

o espírito de aventura e fazia mais de trinta anos que fugira de São Francisco das Andorinhas.

―Muitos diziam que ele havia morrido afogado no Paraguaçu e outros apostavam que tinha se

tornado milionário na Alemanha‖ (AEE, p. 48). Entretanto, enquanto o trem fumaçava e se

arrastava no calor da manhã, um homem alto e forte, rosto marcado pela vida, sujo e

esfarrapado, mergulhava os pés na lama das estradas que o levavam de Ilhéus a São Francisco

das Andorinhas. ―Era Franz, o aventureiro, que voltava em busca do seu porto definitivo‖

(AEE, p. 50).

Franz retornou humilhado, pobre e rejeitado. Preocupava-se ao pensar na repercussão

da atitude de outrora frente aos moradores e amigos de infância. Em suas aventuras nas

18

A partir daqui a abreviatura AEE será utilizada nas referências à obra As Estradas da Esperança. (SANTA

INEZ, Antônio Leal de. As Estradas da Esperança. São Paulo: Clube do Livro, 1982).

Page 22: Oscar Santana dos Santos

22

grandes cidades, tornou-se marinheiro, viajou pelos quatro continentes, prestou serviços na

guerra (os bombardeios na Europa) e passou alguns dias preso na cadeia de Ilhéus, após se

envolver numa briga. Não sabia que seu pai havia morrido e que tinha uma irmã, mas voltou

em busca do perdão (AEE, p. 52-53).

De regresso para casa, conseguiu trabalho numa fazenda que se localizava nas

proximidades de Ilhéus e Itabuna. Lá, além da casa grande, havia uma barcaça onde secava o

cacau, uma venda e as casas dos trabalhadores. A narrativa de Santa Inez permite considerar

que o consumo de cachaça e as aventuras com mulheres eram sinônimos de confusão e

impedimento para que Franz conseguisse emprego. Porém, sua habilidade como carpinteiro

contribuiu para conquistar confiança e amizade. ―Em um mês trabalhou por um ano.

Consertou casas, construiu cancelas, endireitou cangalhas, refez a barcaça, recondicionou

móveis inutilizados e ganhou dinheiro‖ (AEE, p. 60), revela o narrador.

Nas características que atribuiu à personagem Franz, Santa Inez descreve o trabalho e

o cotidiano, principalmente quando o transforma em carpinteiro. O Franz marinheiro recebeu

uma referência rápida das cidades bonitas que conheceu: Paris, Londres, Nova Iorque, portos

distantes do Pacífico e ilhas perdidas da Ásia (AEE, p. 79). No seu retorno de Ilhéus para São

Francisco das Andorinhas, além de trabalhar em fazendas, Franz ganhou a companhia do

cachorro Piau, do tropeiro Sebastião e ficou hospedado na casa de Maria Soldado, em Jequié:

— Donde o senhor vem, moço?

— De Ilhéus, dona Maria.

— Ah!... Nasceu em Ilhéus mesmo?

— Não, senhora, dona Maria. Nasci aqui perto. Na Serra das Andorinhas.

— Morava em Ilhéus há muito tempo?

— Na verdade, eu não venho de Ilhéus. Eu venho do mar. Fui marinheiro durante

muito tempo. Mas aí me cansei, e resolvi voltar para minha terra.

— Eu acho que o senhor está falando a verdade. Mas se não tiver, o senhor é que é o

responsável...

— Fique descansada, minha tia. As maluquices que eu tinha de fazer na vida, já fiz.

Agora eu sou um homem direito (AEE, p. 81).

Neste diálogo, Santa Inez descreve Maria Soldado como uma negra velha de cabelos

brancos, rezadeira, um pouco curandeira, alcoviteira, festeira, alegre, cautelosa —

principalmente na hora de hospedar um desconhecido—, uma espécie de mãe e ponto de apoio

para qualquer problema das pessoas humildes de Jequié e cidades circunvizinhas. A mocinha

grávida, a mulher doente, o velho faminto, o homem apaixonado ou o que se envolvia em

confusão, todos lhes procuravam. ―Sua casa não era um bordel. Que ninguém pensasse nisto.

Mas era escola de vida, igreja, delegacia, hospital, creche, hotel e clube (AEE, p. 82).

Page 23: Oscar Santana dos Santos

23

O narrador relata que após o banho no Rio de Contas e o almoço na casa do tropeiro

Sebastião, Franz ficou em Jequié, onde em sociedade com Benedito (ajudante do tropeiro),

desenvolveu a idéia de montar uma carpintaria. Ainda nesta cidade conheceu a personagem

Rosa, com quem desenvolveu um romance. Antes de se cruzar com Alípio e travar uma luta

em disputa de Rosa, coordenou os trabalhos para amenizar ―a cheia do Rio de Contas‖,

causada pela chuva do sertão, que vinha de Brumado, de Caculé e de Condéuba. ―O Rio

Gavião já estava muito cheio, e suas águas desciam e engordavam o Rio de Contas‖ (AEE, p.

104).

Ao narrar a enchente do Rio de Contas, o romancista revela o seu conhecimento sobre

o nome de cidades baianas — Brumado, Caculé, Condéuba —, descreve os prejuízos

causados a Jequié, especificamente, ao bairro do Jequiezinho, e as coisas e animais que as

águas levaram: toras de madeira, cancelas, canoas, utensílios domésticos e vacas mortas. ―Um

dia aquilo não aconteceria mais. Uma represa um pouco acima de Jequié iria domar o Rio de

Contas e controlar as suas águas‖ (AEE, p. 105). A referida represa é a Barragem de Pedras de

Jequié, atestando que a obra As estradas da esperança é composta por ficção e memória,

mesclando aspectos do imaginário e do real.

A trajetória de Franz é marcada ainda por sua luta com Alípio. Depois de muita

discussão na casa de Maria Soldado, o enfrentamento corporal deixou ambos hospitalizados.

Enquanto Alípio foi dispensado em poucos dias, Franz ficou bastante debilitado. Teve febre,

delírios e fraqueza, em decorrência de uma facada que o atingiu. O desespero de Rosa era

evidente, afinal de contas, estava grávida e com o coração dividido entre o pai de seu filho e o

novo amor, o carpinteiro. (AEE, p. 110).

A dúvida acerca do destino de Rosa desperta uma sensação de curiosidade no leitor de

As Estradas da Esperança. Os capítulos que retratam esta luta são intercalados com outros

que fazem referência à desativação da ferrovia. Franz passa a ser visitado por Téia — uma

adolescente que presenciou a briga —, e lhe pede que cuide de Piau, seu cão. Avaliando a

situação em que se encontra, Rosa opta por dar uma segunda chance a Alípio, o homem que

lhe abandonou grávida. Ao final da narrativa, os diálogos que envolvem essas personagens

tratam de conciliação e declarações amorosas, do término do namoro de Rosa com Franz, do

perdão de Franz a Alípio, do desejo de Franz retornar para Serra das Andorinhas e do início

do romance entre Franz e Téia (AEE, p. 115 – 122).

A narrativa acerca da trajetória de Franz registra que a sua vida melhorava a cada dia.

Sua carpintaria em Jequié produzia pontes, janelas, vigas e assoalhos. A sociedade com

Benedito havia dado certo. Criaram uma linha de móveis em madeiras nobres, que era sucesso

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24

na região: mesas de jacarandá, camas de sucupira, cômodas de vinhático, arcas, malas,

cadeiras, baús, armários e estantes. O principal produto, contudo, eram umas cadeiras

especiais chamadas de ―espreguiçadeira‖, que se transformavam em cama. Feitas com alto

acabamento em jacarandá e vendidas a particulares, eram também enviadas para Salvador.

Com a demanda, os sócios não tinham como atender todas as encomendas e Franz era

obrigado a ir cada vez mais longe procurando madeira: Jaguaquara, Itiruçú, Brejões, Nova

Canaã, Conquista, Ubaíra, Amargosa (AEE, p. 127).

Além de possuir uma carpintaria em Jequié, Franz herdou uma fazenda em São

Francisco das Andorinhas, que era do seu pai, o velho Maia. Esta personagem é consagrada

por Santa Inez e tem um final de sucesso. De ladrão fugitivo, torna-se marinheiro, empregado

de fazendas, carpinteiro de sucesso e casa-se com uma jovem bonita. A obra é introduzida e

finalizada com uma cerimônia de casamento, na mesma igreja e localidade.19

O matrimônio de Franz e Téia causou um movimento impressionante na igreja de São

Francisco das Andorinhas: jipe, caminhão, pessoas à cavalo, à pé, vestidas com roupas

coloridas, sapatos novos, cabelos penteados, sombrinhas nas mãos. ―Além do padre, esteve

presente o tabelião, o sacristão, o juiz de paz, e tanta gente para ver o casamento‖ (AEE, p.

143).

A igreja católica estava presente nos pequenos distritos na época. Chegava antes da

emancipação política da cidade e outros serviços básicos. Santa Inez se revela através de sua

personagem, ao descrever que o crescimento do povoado ocorreu por influência de Franz, que

conseguiu escola, posto de saúde, casa de farinha, engenho de rapadura, armazém, a melhoria

das estradas e as pontes (AEE, p. 145). Ele se realiza atribuindo a Franz as atividades de um

prefeito.

O criador se aproxima da criatura, ou seja, um pouco dos sonhos e da vida de Santa

Inez coincide com as características que atribuiu à personagem Franz: o gosto pela contação

de histórias infantis, as cidades por onde passou, conheceu ou gostaria de conhecer e o

sucesso com a carpintaria. Enfim, o sair e retornar para São Francisco das Andorinhas — que

o autor também nomeia de Serra das Andorinhas —, revela traços da memória da comunidade

rural onde ele nasceu e cresceu: Serra Grande, distrito da cidade de Valença (Bahia).

19

Vânia Maria Moura de Santa Inez, prefaciando o livro do seu pai, além de afirmar que ele conheceu as

personagens que descreve e a própria esposa, numa das viagens no trem, destaca: ―E muito do homem que volta,

este Franz humano e generoso, tem muito de meu pai. Principalmente, a sua coragem, o seu desprendimento, a

sua sensibilidade‖ (AEE, p. 7). A narrativa sobre casamento é influenciada pela própria história de vida de Santa

Inez, pois quando migrou para o Rio de Janeiro ainda namorava Maria Carmelita, a mulher que ele deixou na

Bahia e prometeu voltar, casar e levar consigo. Depoimento de Vânia Maria, filha do autor. Salvador,

12/12/2009.

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25

É interessante pensar os motivos pelos quais uma parte da narrativa de Santa Inez se

concentrou em Jequié e no conhecimento que possuía das cidades circunvizinhas. Como

conseguiu abordar com propriedade a cheia do Rio de Contas, o trabalho nas fazendas e

descrever os móveis da carpintaria, por exemplo? Por que São Francisco das Andorinhas

caminha com Franz do início ao fim da obra? Santa Inez nasceu em 1927, migrou para o Rio

de Janeiro em 1952, depois para São Paulo em 1972 e publicou sua obra em 1982. A memória

que deixou registrada expressa o que viveu na Bahia, principalmente suas viagens no trem

(tema do segundo e terceiro capítulos), e as lembranças dos locais por onde passou. Não

aparece quase nada referente às duas grandes cidades onde morou, a não ser a curta referência

ao marinheiro e o uso da gíria ―mano‖ ou ―maninho‖, quando introduz a fala das personagens.

Por intermédio do discurso literário Santa Inez aproxima ficção e memória ao referir-

se aos nomes reais das cidades baianas, ao viver e à moradia em Jequié e São Francisco das

Andorinhas e ao descrever práticas cotidianas (brigas, relações amorosas, atitudes solidárias,

costumes e trabalho). Se, por um lado, a existência de personagens é uma característica da

obra como ficcional, por outro, as atividades desenvolvidas pelos seres criados possibilitam o

conhecimento acerca de elementos da vida do criador.

Através de Laura e Lourenço, cultivadores de mandioca, obtêm-se o conhecimento de

como se fazia a farinha nas proximidades da EFN. Nota-se também uma representação do

trabalho, dos laços de solidariedade entre os trabalhadores, formas de viver, alimentar-se, o

desejo de prosperar economicamente e, principalmente, a memória de Santa Inez ao criar

essas personagens.

2.3 O cotidiano nas proximidades da ferrovia: literatura e memória do cultivo da

mandioca

Em O Cotidiano e a História, Agnes Heller (1992) ajuda a refletir sobre a estrutura da

vida cotidiana, os preconceitos, os papéis sociais, o indivíduo e a comunidade, enfim, as

relações entre a ética e a vida social. De acordo com essa autora, considera-se valor tudo

aquilo que produz diretamente a explicitação da essência humana ou é condição de tal

explicitação. A vida cotidiana é a vida do homem inteiro, portanto, sejam as ―práticas‖ ou o

―comportamento‖, a organização do trabalho e da vida privada, os lazeres e o descanso, a

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26

atividade social sistematizada, o intercâmbio e a purificação.20

Nesse sentido, a economia ou a

política não são mais ou menos importantes que as práticas cotidianas, dignas de estudos

separadamente. Estão entrelaçadas, coexistindo na vida humana.

Na obra As estradas da esperança, as práticas cotidianas relacionadas ao trabalho e

exterior ao trem, são representadas quando Santa Inez menciona o diálogo das personagens

Laura e Lourenço, um casal que sonhava ficar rico com o plantio da mandioca. Nota-se que

este romancista conhecia algumas práticas rurais, como secar o cacau, fazer beijus, cultivar o

solo, plantar, cuidar, raspar, ralar e transformar a mandioca em farinha. Quando ele migrou

para a cidade do Rio de Janeiro, em 1952, já tinha 25 anos de idade e, na composição de sua

narrativa, percebe-se a memória de um jovem do meio rural, que expressou com indignação a

desativação da EFN.

Ao intercalar a viagem do trem, sentido Jequié a Nazaré, com a narrativa que envolve

as personagens Laura e Lourenço, Santa Inez revela o seu conhecimento e a sua memória

acerca do cultivo da mandioca. Era um casal ainda jovem, que morava nos arredores de Serra

Grande e sonhava ficar rico com o plantio da mandioca.21

Eles acreditavam na possibilidade

de comprar mais terras, na alta do preço da farinha e na fabricação e venda do beiju. As

relações trabalhistas, o estado de saúde, a condição social e o tipo de alimentação sobressaem

quando o narrador reforça que tais personagens não tinham patrões, não eram pobres,

famintos, infelizes, sem esperança, ou doentes. Se houvesse doença não era diferente das dos

ricos da cidade. ―Sua fome era apetite mesmo, e se a refeição não era balanceada, pelo menos

era saudável, saborosa e sábia, pois vinha mantendo gerações e gerações‖ (AEE, p. 25).

Pode-se afirmar que Santa Inez, em As estradas da esperança, ao narrar o cultivo da

mandioca e a trajetória das personagens Laura e Lourenço, apresenta uma memória do

cotidiano rural, relacionada à economia local. Segundo o autor, esta lavoura dá muito trabalho

a quem se dedica a ela. Tem que limpar o mato, cavar a terra, saber plantar para as raízes não

se afundarem muito, manter a lavoura limpa de matos, evitar que as formigas derrubem as

folhas, combater as lagartas e impedir que animais, como os porcos ou o gado, entrassem na

plantação (AEE, p. 26).

Além de apresentar uma ―aula‖ a respeito dos cuidados para se cultivar a mandioca,

Santa Inez informa sobre as diferentes espécies dessa planta de acordo com a linguagem dos

20

Cf. HELLER, Agnes. O Cotidiano e a História. São Paulo: Paz e Terra. Trad. de Carlos Nelson Coutinho e

Leandro Konder, 4ª ed. 1992. p. 17 – 18. 21

Comunidade rural que pertence à cidade de Valença – BA, onde Antônio Leal de Santa Inez morava com sua

família antes de migrar para o Rio de Janeiro. Alguns de seus familiares ainda moram nesta comunidade (dois

irmãos e alguns sobrinhos). As estações ferroviárias mais próximas eram as das cidades de Mutuípe (13 Km) e

Laje (aproximadamente, 20 Km).

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27

trabalhadores: ―venenosa‖ (mandioca) e ―mansa‖ (aimpim). Ele evidencia os nomes comuns

ao aimpim: aimpim cacau, peixe, pacaré, aimpim pão, manteiga, vassourinha, cambraia, entre

outros. Havia uma sabedoria para se fazer as roças sem misturar as espécies, com o intuito de

descobrir as mais rentáveis e produtivas para se fazer uma farinha alva e cheirosa. O próprio

caule dessa planta serve como semente — a maniva.22

―A distinção básica era pelo nome; o

aimpim podia-se comer cozido, frito, assado, em bolos. Os roceiros chamavam de impim. A

mandioca só servia para fazer a farinha‖ (AEE, p. 26).

Ao aprofundar a descrição das personagens Laura e Lourenço, o narrador relata que

este era um casal unido. Amavam-se e alimentavam o sonho de prosperidade com o trabalho.

Enquanto Lourenço, com a enxada no ombro, assobiava a caminho do roçado de manhã cedo

para ―pegar a fresca do dia‖, Laura ficava em casa preparando o almoço, que levaria para ele

mais tarde. Na hora de tomar uma decisão, um consultava o outro, por isso, ambos pensaram

na possibilidade de plantar cacau enquanto a mandioca crescia, pois sabiam que alguns

fazendeiros das cidades de Ilhéus e Itabuna ficaram ricos com o cultivo deste produto (AEE,

p. 31-32).

No trecho transcrito acima, nota-se a divisão do trabalho entre o homem e a mulher, as

formas de sobrevivência em uma economia simples e artesanal, os afazeres diários assim que

acordavam e o desejo de vencer as dificuldades, a vida oprimida e tornarem-se ricos. As

atividades desenvolvidas pelas personagens Laura e Lourenço evidenciam o que Certeau

caracterizou como cotidiano. ―Todo dia pela manhã, aquilo que assumimos, ao despertar, é o

peso da vida, a dificuldade de viver, ou de viver nesta ou noutra condição, com esta fadiga,

com este desejo‖.23

Santa Inez enfatiza que a habilidade de Laura e Lourenço era com o plantio da

mandioca. Enquanto o trem descia para a cidade de Itaquara, tais personagens chegavam ao

fim do eito, guardavam as enxadas e se preparavam para ir ajudar os vizinhos (as personagens

Bento e Matilde). Estes pensavam em ―arrancar‖ uma tarefa de mandioca, mas sozinhos

encontrariam muitas dificuldades para transformar as raízes em farinha. Precisava levar em

lombo de animais para a casa de farinha, do auxílio de algumas pessoas, em sua maior parte

mulheres e mocinhas, que raspavam metade das raízes enquanto outro grupo, os ―tomadores‖,

seguravam as partes já raspadas e completavam o trabalho de limpeza. Com isso, as raízes

escuras, sujas de terra, transformavam-se em ―pirâmides‖ de raízes brancas, alvas,

descascadas, contrastando com o verde das folhas de bananeira, que serviam para forrar o

22

Parte externa, o caule, enquanto o termo ―mandioca‖ é utilizado para designar as raízes, os tubérculos. 23

CERTEAU; GIARD E MAYOL, 2001, p. 31.

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28

chão. Após raspar, ralava-se a mandioca, que era comprimida na prensa de madeira para

extrair-lhe a seiva e facilitar a secagem. Neste processo devia haver certos cuidados,

principalmente, para transformar em farelos as raízes brancas, porque as serrilhas do aparelho

poderiam ferir os dedos. Era uma técnica especial e o ―cevador‖ evitava distrair-se com as

conversas, para ralar as raízes mais depressa do que eram raspadas (AEE, p. 38 – 40).

As lembranças de Santa Inez sobre os modos de vida no campo e o cotidiano

relacionado às atividades com a mandioca, são resultado de sua infância na fazenda de seu

pai, onde havia alambique, engenho, girau (secador de café), curral para o gado e uma casa de

farinha.24

Entretanto, não é possível afirmar que ele executava estas tarefas ou apenas as

presenciavam. A maioria das personagens de As estradas da esperança foi criada com base na

trajetória de vida do autor, complementada por sua imaginação. As tramas que envolvem

Franz e o seu pai, o velho Maia, por exemplo, sugere uma relação dialógica entre o campo e a

cidade. São dois Franzs: o carpinteiro de fazendas, que consertava as cercas e as cancelas para

o gado e o Franz comerciante (dono de carpintaria em Jequié), que produzia móveis por

encomendas, para vender em Salvador.

A memória de Santa Inez transita entre o campo e a cidade porque a personagem

Franz desenvolve atividades em ambos os espaços. O velho Maia não sai de São Francisco

das Andorinhas, torna-se rico, volta a ser pobre e quando morre deixa uma fazenda para o

filho. Franz também passa por oscilações na condição social, mas finaliza com duas

propriedades: a carpintaria na zona urbana – Jequié, e a fazenda na zona rural – no povoado

de São Francisco das Andorinhas.

Já Laura e Lourenço, além de representarem pessoas humildes e simples, oriundas do

meio rural, estão localizadas na comunidade de Serra Grande, povoado em que a economia

local não permitia negociações como a da cidade de Jequié. Estas personagens refletem o

imaginário do romancista, entrelaçado com a localidade que ele nasceu e cresceu e com as

experiências do cultivo da mandioca.

Santa Inez descreve que além de servir para fazer a farinha, a mandioca também servia

para fazer beiju. Depois de raspada, ralada e prensada, extraía-se a ―água de tapioca‖ para

aproveitar a goma.

Os cochos e as gamelas se enchiam daquela água branquicenta para que o polvilho

assentasse. Horas depois era só escorrer a água já então transparente, e o que ficava

no fundo do vasilhame, alvíssimo, era a goma, a tapioca, o polvilho. Era só misturar

com açúcar e coco ralado, uma pitada de sal, e espalhar sobre o alguidar. Beijus de

24

Depoimento de Miguel Santa Inez, irmão do autor, nascido em 06/10/1932, residente na Fazenda Cariri,

Mutuípe – BA, agricultor, 77 anos. Entrevista concedida em setembro de 2009.

Page 29: Oscar Santana dos Santos

29

lenço, de colher, roló, de folha; outros de massa, do próprio farelo que se

transformava em farinha; outros, ainda misturando a massa e a goma, originando

uma terceira categoria (A E E, p. 44).

Nota-se que o conhecimento de Santa Inez não foi adquirido em livros, mas fruto de

sua prática no meio rural. Em Serra do meio, seu primeiro romance publicado, ele conta uma

história envolvendo a vida, os costumes, as lutas e as esperanças de uma gente simples e

humilde, que habitava as matas e os sertões da Bahia.25

É um romance rural, que descreve

atividades como a colheita do feijão, o hábito de apanhar café, mexer farinha, pescar de cesto

e cortar fumo para o cigarro. É uma memória que representa a comunidade de Serra Grande

(distrito de Valença) limitando-se territorialmente com o município de Mutuípe. Esta obra

revela alguns eventos importantes que aconteciam nesta comunidade, como a missa, os

batizados, a queima do Judas e a festa de São João.

Outra obra de Santa Inez que permite conhecer seus familiares e um pouco da sua

história de vida é A família é um arquipélago ou os Santa Inez da Bahia.26

Nesta obra ele

menciona, além de Serra Grande, Serra do Rato, Serra do Roçado, Serra do Frio e Serra do

Abiá. Informa que o mundo de seus familiares estava restrito a meia dúzia de municípios

baianos: Nazaré, Amargosa, Jequié, São Miguel das Matas, Mutuípe e Valença,

especificamente, em Serra Grande.

Em A família é um arquipélago ou os Santa Inez da Bahia, Santa Inez também nos

informa acerca dos produtos agrícolas cultivados, relatando que as terras de São Miguel, e dos

municípios vizinhos nada tinham de especial. Cultivava-se fumo e café, cana de açúcar e

mandioca, algum milho, algum feijão, que se resumia à economia local. Ele acrescenta:

Tudo se processava de maneira primária, primitiva. Nem trator, nem arado, nem

máquinas. O machado, a foice, a enxada e o fogo formavam a base da lavoura.

[...] muita coisa produzida ali, ali mesmo era consumida: aguardente, rapadura,

farinha de mandioca. Para exportar, somente fumo em folha, café e algum porco

levado para o litoral, e daí para Salvador (A família é um Arquipélago, p. 4).

A partir do discurso literário de Santa Inez pode-se elucidar que as comunidades rurais

do Vale do Jequiriçá e do Recôncavo Sul da Bahia, localizadas nas proximidades da ferrovia,

quase todas cultivavam a mandioca. A farinha servia para o consumo alimentício das próprias

famílias, para vender nas feiras ou ser enviada pelo trem até a capital (Salvador). Os frutos de

plantas como bananeira, mangueira, jaqueira e coqueiro, entre outros, serviam para o

25

SANTA INEZ, Antônio Leal de. Serra do meio. São Paulo: Edições Melhoramentos, 1980. 115p. 26

SANTA INEZ, Antônio Leal de. A família é um arquipélago. Obra não publicada, encadernada, datilografada,

enviada de SP para a família na Bahia, com a data de 11/04/1987. 47p.

Page 30: Oscar Santana dos Santos

30

―lanche‖, que era feito na casa de farinha durante o trabalho. Os moradores às margens da

EFN, também criavam galinhas, porcos e gados. Esses animais, quando citados na obra As

estradas da esperança, não aparecem integrados à dinâmica comercial do mundo capitalista,

sendo relacionados apenas a uma economia de subsistência.

Ainda que o sonho das personagens Laura e Lourenço fosse enriquecer cultivando a

mandioca, nos diálogos criados por Santa Inez envolvendo tanto estas personagens quanto

Bento e sua esposa, Matilde, notam-se laços de solidariedade entre pessoas simples, que não

estavam tão afetados pelos valores do mundo capitalista. Nas comunidades rurais, às margens

da estrada de ferro, era comum emprestar ou dividir a farinha, o beiju, o sal e o açúcar, entre

familiares e vizinhos, que trocavam favores solidários para executar trabalhos (limpar e

cultivar o solo, torrar a farinha e fazer beiju, por exemplo). Porém, não se pode pensar que as

relações trabalhistas entre todos os moradores da zona da EFN aconteciam de forma amistosa.

Vale reforçar que Santa Inez expressa a sua memória do cultivo da mandioca por

intermédio das personagens Laura e Lourenço e, secundariamente, Bento e Matilde,

referindo-se à comunidade rural de Serra Grande, distrito de Valença, de onde era originário.

Este romancista representou a EFN como fator de progresso e modernidade, principalmente,

para o Vale do Jequiriçá.

A linha da EFN nasceu no Recôncavo Sul da Bahia e seguiu o traçado Nazaré – Onha

– Santo Antônio de Jesus – Amargosa – São Miguel – Laje – Mutuípe (na época, Distrito de

Paz de Mutum, que pertencia a Jequiriçá) – Jequiriçá – Areia (atual Ubaíra) – Santa Inês –

Itaquara – Jaguaquara – Jequié. Ainda vale ressaltar os nomes de estações (povoados que

aparecem na obra As estradas da esperança) servidas pelo trem, como Corta-mão

(Amargosa), Barra do Jaguaritu (entre Mutuípe e Jequiriçá), Jenipapo e Volta do Rio (entre

Ubaíra e Santa Inês), Lagoa Queimada (entre Santa Inês e Itaquara) e Caatinga e Baixão

(entre Jaguaquara e Jequié).

Page 31: Oscar Santana dos Santos

31

2.4 As representações da Estrada de Ferro Nazaré e ferrovia na Bahia

A obra As estradas da esperança evidencia um discurso de progresso acerca da EFN,

quando Santa Inez informa que a cidade de Santa Inês era composta por ruas estreitas, que

pareciam ficar menor ainda com a chegada do trem. [...] ―era o monstro mecânico e

barulhento, a coisa maior, mais forte, mais rápida, mais moderna e mais bonita, que cortava

de progresso e de alegria a pasmaceira daqueles sertões‖ (AEE, p. 53).

A construção da EFN, no Recôncavo Sul e no Vale do Jequiriçá, favoreceu a

integração comercial dos povoados, vilas e de um conjunto de cidades, que eram conectadas

pelo trem de Nazaré. Em As estradas da esperança, ao criar o diálogo entre as personagens

Alípio e ―o aleijado‖, Santa Inez registra:

Alípio pensava em Rosa quando o aleijado puxou conversa:

—Té onde vai, mano?

— Santo Antônio.

— Boa cidade. Já tive lá. Mas agora só vou até Mutuípe.

Alípio resolveu dar corda ao assunto. Precisava de saber tudo daquele mundo que

lhe era estranho.

— Teve muito tempo em Santo Antônio?

— Oito dias.

— Nunca fui. A feira é boa?

O aleijado entusiasmou-se. Enfim, alguém queria ouvi-lo:

Boa, boa, não é. Mas é bem diferente daqui. Muita farinha, fumo, café, cacau,

rapadura... E cada moça! Mas não é boa de esmola. (AEE, p. 28).

A memorialista Helena Rebouças, em seu livro Mutuípe, Pioneiros e Descendentes,

quando se refere à EFN, informa que a região do Vale do Jequiriçá registrou uma maior

movimentação de pessoas em trânsito, fossem engenheiros, operários e curiosos. O apito da

locomotiva anunciava a sua aproximação, integrava a vida da comunidade, atraía as pessoas

para as estações do trem; os que iam embarcar ou esperar alguém, ou ainda adquirir jornais e

revistas, que lhes traziam as novidades da capital do Estado.27

De acordo com Rebouças, o comércio em geral passou a ser beneficiado pelos trens

(de carga ou não) em transportes de mercadorias — incluindo-se os produtos agrícolas

exportáveis — fazendo conexão com o vapor, que partia de Nazaré para Salvador nos dias de

27

REBOUÇAS, Helena Pires. Mutuípe, Pioneiros e Descendentes. Salvador, BA: Ed. Universitária Americana,

1992. p.19-20.

Page 32: Oscar Santana dos Santos

32

segunda, quarta e sexta-feira e de lá voltava nos dias de terça, quinta e sábado, ao sabor da

maré de enchente, deixando os viajantes à espera, hospedados nos hotéis de Nazaré.28

É compreensível que os povoados e cidades contemplados pelas estações da EFN,

principalmente nas três primeiras décadas do século XX, apresentaram-se como local propício

ao passeio, ao namoro, ao fluxo de pessoas, ao trabalho — dos vendedores de mingau de

milho, rolete de cana, bolachinha de goma, amendoim, banana seca, ramalhetes de angélicas e

frutas. Enfim, além do comércio, a passagem do trem também era diversão e trazia

informação. Ao relatar a forma como as notícias chegavam à cidade de Mutuípe, Rebouças

destaca:

Os jornais e revistas de Salvador chegavam com regularidade a Mutuípe,

comercializados pelos Srs. Mário e Pedro Mansur, que viajava de Nazaré a Jequié,

vendendo: Vida Doméstica, O Cruzeiro, Noite Ilustrada, Almanaque do Tico Tico, Eu

Sei Tudo, A Tarde, O Imparcial, Diário de Notícias, Folha do Roceiro (jornalzinho

chistoso, crítico e que usava um linguajar sertanejo), O Paládio de Antônio Mendes

de Araujo (Santo Antônio de Jesus, Jornal de Modinhas e outros. Eram sempre bem-

vindos, pois constituíam uma distração, vindo a isso atrelado o interesse de estar

presente à passagem do trem para um namorico rápido com alguma passageira,

juntando-se à massa de queimadeiros, doceiros, vendedores de frutas que

apressadamente mercadejavam: ―Olha o mingau de milho‖. Olha o amendoim!‖

―Banana seca, quem vai querer?‖.29

Em As estradas da esperança pode-se identificar a feira, o comércio, o cotidiano da

ferrovia e a utilidade do trem, quando em sua narrativa, Santa Inez se refere à estação de

Varzedo, explicando que a meninada vendia cajus, rolete de cana, bolinhos, laranjas, numa

repetição do que vinha acontecendo nas outras cidades. ―Gente entrando e saindo, gente

embarcando, a estaçãozinha movimentada. O trem era a vida. Era a certeza de que o mundo

estava alí, ao alcance da mão‖ (AEE, p.70). Portanto, antes da chegada do automóvel nas

cidades servidas pela EFN, o trem representava o ―progresso e a modernidade‖, porque o

jornal, a revista, a notícia, a novidade, a doença (a epidemia de varíola que houve no Distrito

de Mutum, em 1917), os produtos comercializados, tudo isso chegava e saía na Maria fumaça,

ou estava associado aos trilhos.

Na obra Colégio Taylor Egídio: 100 anos, Daria Gláucia Vaz de Andrade relata que o

trem era a grande via de comunicação das ―matas do Sertão de Baixo‖ (o Vale do Jequiriçá),

28

Ibidem, p. 20. 29

REBOUÇAS, 1992, p. 21.

Page 33: Oscar Santana dos Santos

33

tanto para efeito de correspondência, jornais, revistas, livros, catálogos, como para as idas e

vindas do povo. Segundo essa autora, em 1922, quando o Colégio Taylor Egídio foi

implantado em Jaguaquara, havia o trem para levar e trazer alunos, parentes e mais os

missionários de outras terras que buscavam a casa de estudo como um referencial de cultura,

informação e, sobretudo um celeiro de futuros intelectuais.30

É válido lembrar que Santa Inez

também estudou neste colégio e usava este meio de transporte. Talvez, isso o tenha

influenciado ao caracterizar a EFN de As estradas da esperança.

Andrade, referindo-se à importância do trem — ―A civilização sobre os trilhos‖, citou

Izaías Alves para informar que a chegada da estrada de ferro teria propiciado um grande

impulso. Desde a Monarquia, a locomotiva teria despertado o povo. A autora enfatizou um

discurso progressista relacionado à ferrovia, explicando que a velha Maria Fumaça invadia o

sertão e cortava as serranias e os vales, como um clarim de progresso e esperança. E

acrescentou:

Pode a engenharia do som, pelos seus sofisticados instrumentos, reproduzir o

resfolegar da máquina, o chiar das rodas sobre os trilhos e o silvo do trem, para as

gerações que não o conheceram, tal qual era até a explosão das ―quatro rodas‖ dos

caminhões, ônibus e carros. Mas dentro da nossa lembrança viverá a imagem e o

som da locomotiva operando a tração dos vagões de cargas ou de passageiros,

dobrando a curva para chegar ou para partir, num repetido adeus.31

Em Uma história... Jaguaquara com outras histórias, Lígio Ribeiro Farias informa

que em 1913, a EFN chegou ao povoado de ―Toca da Onça‖ e foi fator de grande

desenvolvimento para o comércio e a agricultura.32

Ítalo Rabêlo do Amaral destaca que no

projeto original de construção da estrada, os trilhos passariam fora deste povoado, mas, por

influência do Coronel Guilherme Silva, o trajeto foi alterado, e a estação foi construída na

sede da antiga fazenda, a referida ―Toca da Onça‖, que em 1921, já era a próspera cidade de

Jaguaquara, tendo seu território desmembrado do município de Areia, atual Ubaíra.33

Em Capítulos da história de Jequié, Emerson Pinto de Araujo relata que até a primeira

metade do século XIX, o comércio entre a capital e o interior do estado era feito em lombo de

burro. Diariamente, chegavam a Nazaré e a Aratuípe tropas e mais tropas, trazendo café,

cacau, farinha, açúcar, cereais e outros gêneros que, depois de descarregados, seguiam para

Salvador em saveiros e barcos de maior porte. Em troca, as tropas retornavam conduzindo

30

ANDRADE, Daria Gláucia Vaz de. Colégio Taylor Egídio: 100 anos (org.). Ed. Eletrônica, 1998, p. 32. 31

ANDRADE, 1998, p. 31. 32

FARIAS, Lígio Ribeiro. Uma história... Jaguaquara com outras histórias. Santo Antônio de Jesus, BA: União

Artes Gráfica Editora LTDA, 2005, p. 17. 33

AMARAL, Ítalo Rabêlo do. Jaguaquara: Dados Históricos; Intendentes e Prefeitos. Salvador, Bahia, 2008, p.

18.

Page 34: Oscar Santana dos Santos

34

produtos industrializados, muitos dos quais importados da Europa. Segundo Araújo, do alto

sertão chegavam boiadas para o abate, utilizando as estradas reais, também conhecidas como

―estradas muladeiras e estradas boiadeiras‖. ―Durante o inverno, as vias de acesso ficavam

intransitáveis, motivo por que comerciantes, políticos, administradores e proprietários rurais

idealizaram uma via férrea, partindo de Nazaré‖.34

Anterior à ferrovia, de Jequié a Nazaré, demorava-se de 12 a 16 dias para se fazer o

transportes dos produtos, em lombos de animais, percurso que o trem fazia em 12 horas,

levando consigo uma quantidade bem maior de produtos e passageiros.

A EFN tem origem em 1871, para servir o município de Nazaré e, em 1877, uma lei

provincial efetivou a concessão para ser realizado o prolongamento da linha até Santo

Antônio de Jesus.35

Essa estrada não foi construída imediatamente. Alcança a cidade de

Jequié, em 1927. Partia do porto fluvial no rio Jaguaripe, na borda Sul do Recôncavo, e

dirigia-se para o Sudoeste da Bahia, atravessando o vale do rio Jequirçá e atingindo o meio

curso do rio de Contas, numa extensão de 290 Km. A ferrovia ligava o litoral ao sertão,

conectando viação férrea e fluvial, o interior do estado à capital, com o objetivo de explorar a

riqueza da região.

O prolongamento da EFN até Jequié estava sempre ligado às possibilidades

econômicas da região. O café produzido nos vales dos rios Jaguaripe e Jequiriçá era a

principal riqueza agrícola, sendo considerado de excelente qualidade. O cultivo deste produto

estendia-se por toda zona do chamado ―Baixo Sudoeste da Bahia‖ (hoje, denominado de Vale

do Jequiriçá) e constituiu o interesse central para a construção e ampliação da ferrovia.

Porém, se por um lado, o café influencia na construção da estrada, por outro, esta

também amplia o cultivo dos cafezais na região. Entretanto, vale destacar outros produtos

transportados pela ferrovia, como o fumo, a farinha de mandioca, o cacau, a mamona, a

banana, o sisal e outros de menor importância.

Na obra As estradas da esperança, Santa Inez menciona alguns produtos agrícolas,

quando o trem passava pelas estações de algumas cidades: licuri e umbu, em Santa Inês;

farinha e cacau, em Mutuípe; e alambiques de cachaça, em Laje, São Miguel das Matas e

Santo Antônio de Jesus. Alguns desses produtos eram de consumo local e outros seguiam até

Nazaré, Salvador, e, de lá, para o mundo – o café e o fumo, por exemplo.

Na Bahia e no Brasil, no final do século XIX e na primeira metade do XX, a ferrovia

servia para transportar os produtos agrícolas, passageiros e fazer a conexão entre as cidades.

34

ARAÚJO, Émerson Pinto de. Capítulos da História de Jequié. Salvador: EGB Editora, 1997. p.180. 35

SIMÕES, 1970, p. 25.

Page 35: Oscar Santana dos Santos

35

No início da obra Traços de Ontem, Joanita da Cunha Santos relata aspectos de sua memória

acerca da viagem de trem de Alagoinhas para Salvador:

[...] O trem cantava a única música que ele sabia: café com pão... café com pão... e

se enroscava acompanhando as nascentes dos morros, atravessando túneis,

pontilhões, sempre rangendo sobre os trilhos. Os rolos de fumaça e fuligem,

arremetidos pelo vento, entravam às vezes pelas janelas, sujando a roupa e

incomodando a vista.

Já havia passado por várias estações. Em cada uma delas aparecia algo diferente

para comer ou beber. Em Mata de São João, vendia-se um delicioso mingau de

tapioca; mas tão quente... tão quente, quando se conseguia começar a beber

(soprando) o trem dava sinal de partida. Entregava-se, às pressas, o contingente e

grande parte do conteúdo.36

Além de elogiar o mingau de tapioca, consumido nas paradas do trem nas estações, a

autora informa que os trens de carga saíam superlotados de engradados de laranjas, que

seriam exportados para a Inglaterra. Porém, na Capital, teriam de concorrer com as afamadas

e tradicionais laranjas do Cabula. Em relação à distância da viagem (Alagoinhas a Salvador),

ela informa que era de 125 km de ferrovia e os alagoinhenses viajavam para a capital para

resolver negócios, fazer compras, ou mesmo para assistir aos filmes em que apareciam

estrelas famosas, como Greta Garbo, Marlene Dietrich e outras em voga na época.37

A memória de Joanita Cunha sobre ferrovia na Bahia permite perceber uma classe

social diferente da representada por Nelson Gallo, no romance O pecado viaja de trem. Ao

relatar a história das personagens Detinha, Julinda e Edna, esse autor destacou que eram

mocinhas pobres, semi-analfabetas, com idade entre os 17 e 20 anos. Elas deixaram suas

famílias no interior do estado e de trem chegaram à capital, Salvador, na luta pela

sobrevivência. Segundo o romancista, essas jovens trabalhavam como garçonetes ou

domésticas, na Baixa dos Sapateiros, nos cafés da cidade e muitas vezes, se sentiam

pressionadas, seduzidas por homens casados e/ou solteiros; pelo próprio patrão que lhes

davam presentes ou algum dinheiro em troca de sexo.

Ao narrar sobre a morte da personagem Julinda, Gallo contou que quando ela acabara

de chegar a Salvador — a ―Bahia‖ —, uma bala perdida cortou-lhe para sempre, num

segundo, o fino fio da existência. O corpo moreno e bonito ficou metade dentro do ―Café

Noite e Dia‖, metade nas pedras irregulares da rua suja e fedorenta. A morte colheu-a quando

se levantara da mesa onde pela última vez fizera uma refeição: média de café com pão duro e

amargo e uma longínqua presença de manteiga. O autor descreveu que de sua boca e do seu

36

SANTOS, Joanita da Cunha. Traços de Ontem. Belo Horizonte: Graphilivros Editores, 1987. p.18 37

SANTOS, 1987, p. 23-30.

Page 36: Oscar Santana dos Santos

36

peito-esquerdo, beijados e mordidos por um freguês qualquer, uma hora antes da morte, o

sangue corria, grosso e escuro, formando duas pequeninas lagoas rubras: uma junto à cabeça,

a outra nas pedras toscas da rua:

Julinda tinha apenas dezessete anos!

Havia somente três dias que desembarcaram de um trem na estação de calçada e

nem sequer vira a cidade. Não fora à igreja do Bonfim, conforme era seu desejo,

nem contemplara, maravilhada, as praias da Barra, Amaralina e Itapoâ. Sempre

desejara ver o mar e até isso lhe foi negado. Morreu sem conhecer a burguesa Rua

Chile e a proletária Baixa dos Sapateiros. Sem ter o efêmero prazer de adquirir na

grande cidade um vidro barato de perfume, uma caixa de pó-de-arroz ou mesmo um

sabonete. Chegou e morreu à noite, não viu senão a noite e aquela rua nauseante.38

O romance de Nelson Gallo permite, a partir de suas personagens, interpretar

informações acerca da vida cotidiana de mulheres e homens que chegavam ou viviam em

Salvador, na primeira metade do século XX: comerciantes, vendedores ambulantes,

telegrafista, estudantes, médico, delegado, trabalhadores diversos, enfim, a prostituição como

uma alternativa de emprego e o destaque para o trem como o principal meio de transporte.

O processo de implantação das ferrovias no Nordeste e no Brasil era resultado da

organização de grupos capitalistas, tanto nacionais, como estrangeiros, atraídos pelas

concessões de juros do governo provincial e imperial. Francisco Antônio Zorzo, referindo-se

à implantação das ferrovias na Bahia, afirma que ―o governo central e o provincial eram os

maiores fiadores dos empreendimentos e garantiam altos juros (de 6 a 12% ao ano) sobre o

capital ingressado nas ferrovias‖.39

As construções de linhas férreas na Bahia tiveram altos custos e as companhias

(fossem elas, nacionais e/ou estrangeiras) ―premiadas‖ com a garantia de juros, para

realização da obra, caso não tivesse sucesso, a concessão era repassada a outra companhia.

Com isso, algumas estradas demoravam décadas para alcançar o destino projetado. Isso

aconteceu com a Estrada de Ferro da Bahia ao São Francisco, que após ser concedida a

permissão à Junta da Lavoura e outros proprietários, teve a concessão transferida para Bahia

and San Francisco Railway Company, com capital de 16. 000: 000 $ 000, instalada em

Londres. A estrada atingiu a localidade de Alagoinhas em 13 de fevereiro de 1863. Em 1871,

foi autorizada a continuação, chegando a Senhor do Bonfim, em 1877 e, a Juazeiro em 1895,

totalizando 578 km. Esta companhia foi resgatada pelo governo federal em 1901, composta

pelos ramais de Salvador (então ―Bahia‖) à Alagoinhas; de Alagoinhas a Juazeiro; de Água

38

GALLO, Nelson. O pecado viaja de trem. São Paulo: O livreiro LTDA, 1960, p. 20. 39

ZORZO, 2001, p. 78.

Page 37: Oscar Santana dos Santos

37

Comprida a Buranhen (E. F. Centro Oeste); de Bonfim a França e Sub-Ramal Campo

Formoso.40

Mais uma estrada de ferro construída no estado. Trata-se da Central da Bahia, a

segunda da província, chamada inicialmente de Paraguassu Steam Tram Road Company

(1865) e Brazilian Imperial Central Bahia Railway Company (1875). Esta partia de São Felix,

no Recôncavo, para a Chapada Diamantina e daí para o Sul do estado e para Minas. Na

década de 1920, esta estrada fez a conexão de Salvador com Santo Amaro e Cachoeira,

transportando produtos, como açúcar, fumo, café e gado. Esta ferrovia foi efetivamente

integradora, ligando o Recôncavo com o alto sertão, transportando produtos agropecuários e

minerais. ―Entre 1876 e 1888, a empresa registrou vários anos superavitários comprovando a

validade econômica de sua construção‖.41

No cenário histórico das ferrovias na Bahia, talvez fosse possível apresentar a Estrada

de Ferro de Santo Amaro como a ferrovia do açúcar, por este ser o principal produto

transportado. Porém, a estrada teria um sabor amargo, logo na fase inicial de construção, com

problemas técnicos e terrenos sem estabilidade, causando muitas despesas para o governo

provincial — altos investimentos financeiros e a não obtenção de lucros proporcionais.42

Ao se referir à Estrada de Ferro de Santo Amaro, Cássia Carletto considera que ―foi

uma obra bastante onerosa para os cofres públicos, principalmente se considerarmos o regime

de déficit que caracterizou a maior parte de sua atuação‖.43 Esta estrada foi iniciada em 1875,

localizada no Recôncavo, partindo de Santo Amaro para Bom Jardim (Teodoro Sampaio),

totalizando 40,9 km de extensão.

A Estrada de Ferro de Bahia e Minas foi construída em 1881 e teve o incentivo das

duas províncias. Ficava localizada no Extremo Sul da Bahia, partindo de Caravelas (Ponta de

Areia) para Aimorés e daí até Araçuaí, em Minas Gerais. Os principais produtos transportados

por esta ferrovia eram o cacau, café e cereais.

Outra ferrovia construída no estado foi a Centro Oeste da Bahia, que ligava o Nordeste

baiano ao Estado de Sergipe. Em 14 de julho de 1884, teve início a construção do trecho de

Alagoinhas a Timbó e posteriormente, em 06 de abril de 1908, de Timbó a Propriá (Estado de

Sergipe). Esta ferrovia transportava produtos como fumo, cereais e pecuárias suína.

A última estrada a ser citada neste estudo pode ser denominada ferrovia do cacau.

Obra iniciada em 12 de janeiro de 1904, localizada no Centro Sul da Bahia, partia

40

SIMÕES, 1970, p. 23-24. 41

ZORZO, 2001, p. 80-81. 42

Ver SIMÕES, 1970, p. 25. 43

CARLETTO, 1979, p. 33.

Page 38: Oscar Santana dos Santos

38

inicialmente de Ilhéus a Itabuna, com derivações para Aurelino Leal e Itajuípe. A ferrovia

Ilhéus a Conquista tinha, aproximadamente, 82 km de extensão, excluindo os desvios. Não

alcançou o seu destino final (Vitória da Conquista), passando a ser chamada apenas de

Estrada de Ferro de Ilhéus, a partir de 1950. Esta ferrovia foi construída para transportar,

especialmente, o cacau produzido nesta região.

De forma sintética tentou-se apresentar o panorama histórico das ferrovias na Bahia,

notando-se que estas eram exploradas por companhias concessionárias (nacionais e

estrangeiras, em sua maioria de inglesas), ou pelo regime de arrendamento. O trem partia,

quase sempre do litoral, em busca do sertão, mas a maioria não penetrou profundamente as

áreas sertanejas, com exceção da Estrada de Ferro do São Francisco e a Central da Bahia.

Verificou-se também que as linhas férreas da Bahia nem sempre alcançavam os objetivos

projetados. Algumas pararam no meio do caminho, outras tiveram seu traçado modificado e

no período da República foram encampadas pelo governo federal e arrendadas. Notou-se

também a falta de interligação das estradas, de recursos financeiros para ampliar as

construções, ausência de manutenção, repasse dos contratos de arrendamentos e das

concessões de garantias e juros, falência de companhias e criação de novos grupos

capitalistas.

No final do século XIX e início do XX, em quase todo o território brasileiro, o trem

era o principal meio de transporte. Algumas ferrovias nasceram e viveram mais tempo, outras

se tornaram patrimônio histórico e cultural; algumas morreram em fase de construção, outras

eram mais rentáveis para sua região; algumas viraram atrações turísticas e muitas nem saíram

do projeto. No Brasil, o tempo do trem já passou. Porém, em algumas cidades do país ainda

restam os traços da história, embutidos nas construções do século XIX, nas estações, restos de

trilhos e trens, na memória das pessoas mais velhas, enfim, na literatura sobre este meio de

transporte.

Na obra Mad Maria, Souza informa que a estrada de ferro Madeira – Mamoré foi

inaugurada em 07 de setembro de 1912. Neste mesmo ano, a borracha da Amazônia tinha

perdido o monopólio internacional para as plantações inglesas na Ásia e aparentemente, a

ferrovia começava a deixar de fazer sentido. Em 1916, o governo brasileiro pagou ao grupo

Farquhar a importância de 62.194: 374 $ 366, embora os empreiteiros exigissem um total de

100.223: 281 $ 372. Em 1966, por decisão do Ministro dos Transportes, Juarez Távora, a

linha férrea foi desativada e vendida como sucata a um empresário paulista.44

44

SOUZA, 5ª Ed., 2005, p. 455 – 456.

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39

Se Mad Maria é um romance histórico que tenta reconstruir a história da construção

da estrada de ferro Madeira – Mamoré, As estradas da esperança é um registro

memorialístico da EFN. No capítulo 16, o narrador conta que o trem havia passado por Areia,

Jenipapo, Volta do Rio e Santa Inês e, antes de chegar a Lagoa Queimada, houve um acidente.

As rochas saíram dos trilhos, afundaram na terra e as pranchas do fim despejaram a carga

humana nos espinhos dos cactos que margeavam a ferrovia. Alguns passageiros se assustaram

e a maioria gritou ironicamente: ―Chegou! Chegou! Chegou em Jequié!‖. Era apenas um

anúncio falso e a pressa com que desejavam que aquele dia não existisse; uma forma de

disfarçar o incômodo causado pelo sol e o calor. ―Lá do alto o sol espiava aqueles homens,

sedentos, suados, caminhando para a lagoa lodosa, que se alongava pela margem da ferrovia

(AEE, p. 24).

A narrativa referente ao acidente permite saber que o trem deslocava-se de Nazaré

para Jequié e aproxima fato e ficção, porque em 1960, a EFN já funcionava em condição

precária, necessitando da substituição dos dormentes, que deslizavam sobre o leito,

provocando descarrilamentos, nos trechos mais antigos da estrada. Segundo Zorzo, os

problemas operacionais nas vias, estações e nos veículos eram muitos, ―com grandes danos

nos equipamentos e enormes indenizações pelas perdas de mercadorias e vidas de passageiros,

que chegavam, na década de 1950, à ordem de um milhão de cruzeiros em cada caso‖.45

Outro problema da EFN eram os trilhos fraturados em trechos antigos, os TR 20 (de

20 kg/m), que não haviam sido substituídos pelos TR 32 (de 32 kg/m). O acidente narrado na

obra As estradas da esperança pode ter ocorrido porque os trilhos TR 20, usados no trecho

entre as cidades de Santa Inês e Jaguaquara eram ainda os originalmente instalados nas obras

de 1912 a 1914 e estavam desgastados nos boletos e corroídos nos patins, além de mostrarem

pontas deformadas.46

O discurso ficcional não apresenta a data do acidente, porque a memória oscila no

tempo. Porém, o narrador descreve o trecho da estrada (passou Areia, Jenipapo, Volta do Rio

e Santa Inês e antes de chegar a Lagoa Queimada, houve um acidente) e a forma como

aconteceu (As rochas saíram dos trilhos, afundaram na terra e as pranchas do fim despejaram

a carga humana nos espinhos dos cactos que margeavam a ferrovia). Mesmo com algumas

evidências das outras fontes, o romance não possibilita afirmar o acontecimento do referido

acidente, mas indica o cotidiano e a região percorrida pelo trem de Nazaré.

45

ZORZO, 2001, p. 242. 46

Ibidem, 2001, p. 242. Esse autor faz tais afirmações baseando-se no Plano de Reequipamento da EFN, emitido

pela CPE – Comissão de Planejamento Econômico de 1958, que informa a ocorrência de 45 fraturas ao longo da

linha, em 1951 e 300 no ano de 1956. Nota 8, p. 246.

Page 40: Oscar Santana dos Santos

40

3 A REGIÃO PERCORRIDA PELO TREM DE NAZARÉ E O

COTIDIANO DOS PASSAGEIROS

O conceito de região pode ser associado aos fatores físicos, sociais, culturais e

econômicos, bem como aos elementos naturais, como o clima, o relevo, o solo, a vegetação e

a hidrografia.47

O rio Jequiriçá é uma das referências que caracterizam parte da região

percorrida pelo trem — o Vale do Jequiriçá. Neste sentido, o trem de Nazaré percorria uma

região ou micro-regiões mista, composta por áreas de matas, abundância e escassez de água,

plantações agrícolas variadas (o café, o cacau, a mandioca, o fumo, o sisal e cereais) e ligava

o litoral ao sertão. Entretanto, será feito o caminho inverso (do sertão para o litoral), seguindo

a narrativa de Santa Inez que ―viaja‖ pelos trilhos da EFN (de Jequié para Nazaré).

Neste capítulo, as personagens envolvidas na representação da região e do cotidiano

são: Alípio, que se desloca de Jequié para Mutuípe; Rosa, residente em Jequié; o sanfoneiro

Patrocínio e o aleijado, que entram no trem na estação de Baixão — o primeiro vai até

Nazaré, enquanto o segundo fica em Santo Antônio de Jesus; os dois soldados e o louco, que

se deslocam de Jaguaquara para Rio Fundo, com o objetivo de encontrar o curador Zé Felício;

o coronel Astério, sua esposa Dona Caró e a filha Lininha, localizados na estação de Itaquara,

que vão até Nazaré e daí, de navio para Salvador; o fiscal do trem que aparece na narrativa na

estação da cidade de Santa Inês; o coronel Marcionílio, específico da cidade de Ubaíra; o

Governador do Estado, o prefeito e o noivo, localizados, especificamente, na estação de Barra

do Jaguaritu e um velho que dialoga com o aleijado, quando o trem passa pela estação de

Mutuípe.

47

Ver NEVES, Erivaldo Fagundes. Uma comunidade sertaneja: da sesmaria ao minifúndio (um estudo de

história regional e local). Salvador: EDUFBA; Feira de Santana: UEFS, 2008, p. 25 – 30; AMADO, Janaína.

História e região: reconhecendo e construindo espaços. In: SILVA, Marcos A. República em Migalhas: história

regional e local. São Paulo: Editora Marco Zero: Anpuh, 1990. p. 8; SILVEIRA, Rosa Maria Godoy. Região e

História. Questão de Método. In: SILVA, Marcos A. op. Cit., p. 20. Neste estudo, o conceito de região está

relacionado com o espaço geográfico e ao trem, um espaço móvel. Porém, a noção de espacialidade foi se

alargando com o desenvolvimento da historiografia do século XX: do espaço físico ao espaço social, político e

imaginário, e daí até a noção do espaço como ―campo de forças‖ que pode inclusive reger a compreensão das

práticas discursivas. Consultar BARROS, José D’Assunção. História, região e espacialidade. Revista de História

Regional 10(1): 95-129, Verão, 2005.

Page 41: Oscar Santana dos Santos

41

3.1 Jequié (“Cidade Sol”): fim de linha da Estrada de Ferro Nazaré

As estradas da esperança nos permite identificar algumas características da cidade de

Jequié (noites quentes, caatingas, morros pelados, desertos de velame branco e gravatá) e a

região nos aspectos cultural, geofísico, econômico e social. Quando Santa Inez, no capítulo

13, apresenta As riquezas do licuri, ele revela conhecimento com o tipo de trabalho

empregado para fazer ―rapadura‖ e descreve o cotidiano da personagem Alípio.

O narrador conta que Alípio tinha uma vida miserável, pois acordava ainda no escuro

da madrugada e ia — cada vez mais longe — derrubar as palmas dos licurizeiros, que eram

trazidas como um imenso buquê verde, amarrados ao gancho, na cancalha do burro Curió. E

daquelas folhas retiravam a cera — homens, mulheres e crianças de faquinha à mão, raspando

o dorso de cada folha — pó branco e leve que era, depois, derretido, e formava ―rapaduras‖.

―Depois, Alípio foi aprendendo. Levava uma escada, usava uma foice de cabo longo para

derrubar as folhas e, finalmente, descobriu que era mais prático levar as mulheres e crianças,

armar um rancho, no mato, e trazer apenas as rapaduras de cera‖ (AEE, p. 22).

O romance As estradas da esperança representa Jequié como a cidade do calor, mas

este discurso vem de tempos anteriores, desde a emancipação política e pode ser constatado

na letra do hino do município:

Jequié cidade sol, cidade sol é Jequié...

De morros circundada

Um sol ardente, Rio das contas, um lençol de prata

Cantando endechas pelo sol poente e às noites de luar em serenata

Datas idas, um moço inconfidente ficou na terra brava, em plena mata

Um marco que redoura o teu presente sob um facho de luz que se desata

Refrão:

Jequié cidade sol, cidade sol é Jequié...

A heráldica do teu fidalgo porte

Força em teu povo a sagração viril

Que empolga as caminhadas do teu norte

Que o teu futuro envolva em glórias mil

Para que invejando a tua sorte me abisme

Nas grandezas do Brasil 48

48

Hino Oficial do município, letra de Wilson Novais e Música: Maestro Alcyvando Luz. In:

www.jequie.ba.gov.br. Consultado em 19 de jul. de 2010.

Page 42: Oscar Santana dos Santos

42

A cidade de Jequié está situada na região Sudoeste do Estado da Bahia e localizada a

360 km da capital Salvador. O nome originou-se da palavra Jaquieh, que na língua dos índios

Tapuias significava ―onça‖, por influência da grande quantidade do felino na região. A

alegoria da emancipação política é representada por esse animal.

Algumas tribos tapuias, cotoxós e mongóis assimilavam elementos culturais do

vocábulo tupi, dai admite-se uma associação das raízes do nome Jequié à palavra Jequi, cesto

de apanhar peixe.

O historiador Emerson Pinto de Araujo considera que a cidade é originada da sesmaria

do capitão-mor João Gonçalves da Costa, que sediava a Fazenda Borda da Mata. Esta foi

vendida a José de Sá Bittencourt, refugiado na Bahia após o fracasso da Inconfidência

Mineira.49

Com sua morte, em 8 de Março de 1832, a fazenda foi dividida entre os herdeiros

em vários lotes (em onze propriedades). Um deles foi chamado Jequié e Barra de Jequié, que

se tornou distrito de Maracás, ao qual pertenceu de 1860 a 1897, e dele se desmembrou, tendo

como primeiro intendente Urbano de Souza Brito Gondim. O município se desenvolveu a

partir de movimentada feira que atraía comerciantes de todo território do Médio Rio das

Contas, do Baixo Sul, Vale do Jequiriçá e Vitória da Conquista, no final do Século XIX e

início do XX.50

49

José de Sá Bittencourt é homenageado na letra do Hino do Município ―um moço inconfidente ficou na terra

brava, em plena mata‖. 50

Consultar ARAÚJO, Émerson Pinto de. A Nova História de Jequié. Salvador: EGB Editora, 1997. p. 75 – 152.

Este livro é uma versão revisada e ampliada do anterior: Capítulos da História de Jequié. Salvador: EGB

Editora, 1997. 262 p.

Page 43: Oscar Santana dos Santos

43

Pelo curso navegável do Rio das Contas, pequenas embarcações desciam

transportando hortifrutigranjeiros e outros produtos de subsistência. No povoado, os mascates

iam de porta em porta vendendo toalhas, rendas, tecidos e outros artigos trazidos de cidades

maiores. Tropeiros chegavam à cidade de Jequié carregando seus produtos em lombo de

burro. A feira livre do distrito ganhou mais organização, a partir de 1885, com a iniciativa de

alguns comerciantes e líderes da comunidade italiana, que compravam todo o excedente dos

canoeiros e de outros produtores.

Em 13 de junho de 1910, Jequié foi elevada à condição de cidade, tornando-se um

importante ponto comercial na região, abastecendo o Sudeste do Estado e a bacia do Rio das

Contas. Com a enchente de 1914, a feira e o comércio passaram a se desenvolver em direção

às partes mais altas. A chegada da EFN, em 1927 contou com a presença do governador Góes

Calmon, sua comitiva e outras personalidades de destaque. Escolas desfilaram ao lado das

filarmônicas local e de Nazaré, calculando-se que dos 13 mil habitantes da cidade, 8 mil se

acotovelaram na Praça da Estação. Houve discursos eloqüentes, tendo a firma Grillo Lamberti

& Cia. oferecido um lauto banquete às autoridades.51

Em As estradas da esperança foi possível notar aspectos históricos importantes sobre

o cotidiano de pessoas simples; nomes de bairros; uma memória do autor sobre as condições

de moradia na cidade de Jequié, referente à época e posterior à ferrovia; as transformações

sócio-econômicas e a importância do trem. O narrador conta que as pessoas pareciam

fantasmas na escuridão das ruas, porque a iluminação elétrica era muito ruim e as lâmpadas,

esparsas, pareciam brasas. Água, luz, calçamento, tudo era precário.

As ruas da periferia apresentavam enormes valetas, erosão no barro vermelho do que

seria a calçada. A Rua Rio de Contas, a Gameleira, a Ladeira do 29, mesmo o

Maracujá, de tantos pecados, tudo era sujo, pobre e esburacado.

E nem se precisa falar na pobreza do Barro Preto, da Caixinha das Almas, do

Mandacaru. Mas havia o trem. Jequié era porta do sertão. Era e é. Hoje, bonita e

cuidada, asfaltada e limpa, já não se lembra a falta de água e de luz, mas ainda

guarda algumas palhoças, nas pontas de ruas distantes, onde se dançava o ―pó de

palha‖ e de onde vinham os moleques esfarrapados que, por um níquel, guardavam o

lugar no trem para os passageiros importantes que se levantavam na madrugada (A.

E. E, p. 21-22).

Nesta tentativa de caracterizar a região, Jequié é o fim de linha da EFN e Alípio fugirá

das noites quentes desta cidade para onde o trem lhe levar, pois, ―tirar a filha dos outros de

casa‖, ou seja, engravidá-la antes do matrimônio, seria motivo de morte ou casamento

51

Consultar ARAÚJO, 1997. p.182 - 183.

Page 44: Oscar Santana dos Santos

44

obrigatório, por desonrar os valores familiares de uma época. O narrador conta que foi no

cansaço do trabalho, nas distâncias dos descampados, nas noites quentes da caatinga que

Alípio adormeceu nos braços de Rosa e gerou um filho. Porém, Rosa era ainda muito jovem,

seu pai era muito valente e Alípio não queria, ainda, casar-se com Rosa nem com ninguém. E

para não morrer ou não matar, achou que o melhor era fugir. ―Um homem vive em qualquer

parte. Seu pensamento estava todo voltado para o drama que iria acontecer naquele dia,

enquanto ele estivesse fugindo...‖ (AEE, p. 23).

A narrativa de Santa Inez, além de nos apresentar o calor de Jequié, nos informa

também, que Rosa escondia a barriga porque seu pai, certamente lhe daria uma surra ou a

colocaria para fora de casa. Alípio, em sua primeira viagem de trem, fugindo como um

medroso, sentido Jequié a Nazaré, chegava à estação de Baixão, um pobre lugarejo com

algumas casas, uma estaçãozinha, duas ou três pessoas, empregadas da ferrovia e apenas

alguns passageiros.

A representação da região e do cotidiano sobressai quando o romancista conta que o

canto do galo era referência para marcar o início do dia; quando fala da relação de amizade,

respeito e condição social das personagens, para não quebrar a regra do silêncio no interior do

trem, em horários determinados; quando se refere aos produtos que eram comprados e

vendidos e ao movimento de pessoas na localidade. Foi nesta estação que entrou um

passageiro e sentou-se bem próximo de Alípio, desenvolvendo o seguinte diálogo:

— Boa noite. Ou é bom dia, nem sei.

Alípio respondeu ―boa noite‖ e o aleijado falou alto:

— Bom dia. É bom dia. Depois que o galo canta já é bom dia.

— Se é bom dia a gente já pode se divertir.

Dizendo esta frase meio descabida, o homem retirou, de um saco, uma sanfona de

duplo teclado e, sem cerimônia, começou a tocar.

O dia clareava, rapidamente, enquanto o sanfoneiro, risonho, orgulhoso da sua

habilidade, tornava-se o centro de atenção. Alguém gritou-lhe:

— Aí Patrocínio.

O sanfoneiro ergueu os olhos, interrompeu a música, levantou-se e foi abraçar o

amigo, numa efusão exagerada, influência da viagem.

— Eu sabia que era você, compadre. Quanto tempo heim! Família vai bem?

— Todos bem, graças a Deus. Mas toca, que o pessoal está esperando. Toca uma

mazurca.

Patrocínio voltou a tocar. O trem subia, aos poucos, para o friozinho da serra.

Caatingas estaria logo ali. Onde, das janelas, se poderia comprar cuscuz de tapioca,

café com leite... Era o café da manhã. Em cinco minutos (AEE, p. 29 - 30).

No período de existência da EFN, saindo de Jequié, o trem passava pelo lugarejo

chamado Baixão, depois Caatingas (atual entrocamento de Jaguaquara) e, 10 km mais adiante,

a cidade de Jaguaquara. Percorria todo o Vale do Jequiriçá até alcançar o Recôncavo Sul

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45

Baiano. Agora, entre o conhecimento sobre o plantio da mandioca, a personagem do Aleijado

e do sanfoneiro Patrocínio e descrição de vales e serras, planícies e montanhas, casas

humildes, o comércio, enfim, o cotidiano dos passageiros, o narrador nos informa sobre o café

da manhã. Assim que o trem parava numa estação e os passageiros colocavam os rostos nas

janelas, crianças, homens e mulheres, corriam, se agitavam do lado de fora, com seus

tabuleiros de comida, oferecendo requeijão, banana cozida e frita, mingau, arroz doce e café

com leite. Além dos alimentos consumidos, obtém-se conhecimento, também, das pssoas que

viajavam no trem de Nazaré. Na primeira classe, gente bem vestida, fazendeiros de guarda-pó

branco e boina escura, para se protegerem da poeira, enquanto na segunda, gente mais

humilde enfrentava a sujeira que o pó brilhante de malacacheta, jogava para dentro dos

vagões, endurecendo os cabelos oleados de brilhantina e irritando os olhos, muitos deles já

chorosos das despedidas. ―Alípio recostou-se, fechando os olhos, ouviu o apito do chefe da

estação, o apito do trem, o barulho das rodas iniciando o movimento leve, mais rápido, mais

rápido, subindo para Jaguaquara. E para o mundo‖ (AEE, p. 31).

O narrador de As estradas da esperança nos fala também sobre o trem de passageiros,

conhecido como o ―horário‖, das dificuldades em encontrar água no povoado de Lagoa

Queimada, da preocupação e saudade de Alípio por ter abandonado Rosa e da surra que esta

levara quando seu pai descobriu a gravidez. A personagem Rosa, além de ser abandonada,

perdeu o apoio da família e restava apenas a alternativa de alugar uma casa na Rua do

Maracujá (Jequié), para criar o seu filho, pois o amor de Alípio havia desaparecido. ―E

quando todos o diziam um canalha, ela, no íntimo, o defendia. Fugira, abandonara-a,

desprezara-a, mas ainda era o seu homem. Seu sentimento era confuso. Nem sabia o que

pensar. Mas ainda o amava‖ (AEE, p. 35).

Alternando informações do cotidiano com histórias relacionadas a temas variados

(relações familiares, informações sobre o colégio Taylor Egídio, diálogos do aleijado com

Alípio, o barulho do trem, o som da sanfona de Patrocínio, loucura, sabedoria, política,

religião, fé), o narrador apresenta a estação da cidade de Jaguaquara. Nesta, nota-se que o

movimento de pessoas era maior que na anterior, porque o maquinista olhou para trás e viu

que dezenas de pessoas se acotovelavam, corriam, abraçavam-se e se despediam. Uns

chegavam, outros partiam. Um grupo de estudantes entrou correndo, desceu pela outra porta,

cumprimentou alguém conhecido e reuniu-se ao grupinho fardado de cáqui, cabelo aparado,

falando alto, gesticulando. Foi aí, então, que entraram os dois soldados e o louco. Porém,

mesmo com a presença das autoridades, as pessoas se sentiram amedrontadas ao viajar junto

com um louco, que se dizia prefeito de Jaguaquara e mandava prender e matar quem ele

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46

quisesse. Com base neste diálogo, subentende-se que os passageiros ficaram irritados e só

através de remédios conseguiram controlar aquele homem, que, antes de enlouquecer, havia

sido um bom trabalhador.

O aleijado perguntou se estava indo para a Bahia. O soldado sorriu, pensou um

pouco e respondeu, meio constrangido, em voz baixa.

— Vai até Rio Fundo. Prá ver se Zé Felício dá jeito.

Zé Felício era curandeiro. Patrocínio resolveu opinar:

— Pura bobagem. É perder tempo. Devia ir era mesmo para a Bahia, para o

hospício.

Um velho, que se mantivera calado até aquele momento, resolveu contestar:

— O senhor vai me desculpar, mas eu aposto que ele volta de Rio Fundo curado. Já

vi mais de um caso. O senhor já viu Zé Felício trabalhar?

Patrocínio não gostava de discutir. Achava que aquele negócio de curanderismo era

bobagem, mas não ia se meter a esclarecer ninguém:

— Deus ajude. É o que eu desejo... (E E, p. 37 – 38).

A obra As estradas da esperança possibilita uma viagem histórica na EFN, na

medida em que apresenta os diálogos das personagens, envolvendo a carência da medicina, as

práticas culturais relacionadas à fé, enfim, a vida no interior do trem. Talvez, pelo baixo

número de médicos e hospitais nas pequenas cidades do interior da Bahia, pela ausência de

recursos e os costumes da época, as pessoas mais humildes depositavam maior credibilidade

no ―curador‖ do que no médico. Contudo, havia os que acreditavam, os que duvidavam e os

que tinham vergonha de recorrer ao curandeirismo. Quando questionado pelo aleijado sobre o

destino do louco, ―o soldado sorriu, pensou um pouco e respondeu, meio constrangido, em

voz baixa: vai até Rio Fundo. Prá ver se Zé Felício dá jeito‖.

Ao passar a estação de Jaguaquara, a narrativa de Santa Inez nos leva a Itaquara, onde

―O trem quebrou oportunamente‖, para esperar o Coronel Astério que ia viajar e ainda não

havia chegado. Por isso, muitos passageiros desembarcaram, deixando os seus lugares

―marcados‖ por paletós, malas, embrulhos e pedindo ao vizinho: ―Me faça favor de tomar

conta do meu lugar enquanto eu vou tomar um cafezinho‖ (AEE, p. 41).

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47

52 Estação Ferroviária de Itaquara (Vale do Jequiriçá)

A fotografia da Estação Ferroviária da cidade de Itaquara é apenas um traço minúsculo

da região percorrida pelo trem de Nazaré, mas possibilita leituras e interpretações sobre o

número de pessoas que supostamente chegavam, saíam ou estavam esperando o transporte;

quem eram os viajantes, a forma como estavam vestidos e até mesmo a ansiedade com o

horário. No plano objetivo pode ser visto o tamanho da estação, com o nome grafado na

parede, os trilhos, os passageiros, a mala de viagem e uma relação do registro fotográfico com

o narrativo, a EFN, nomeada por Santa Inez de As estradas da esperança.

Na estação da cidade de Itaquara localiza-se uma personagem, que, apesar de utilizar o

mesmo trem, viajaria em outra classe com a família: o Coronel Astério. Fazendeiro rico e

político de prestígio, segundo o narrador, tinha o poder de atrasar a viagem em alguns

minutos. Santa Inez apresenta em sua obra muitas histórias das viagens no trem,

reinventando-as. Talvez não seja possível encontrar semelhantes informações sobre esta

estação em outras fontes históricas.

Infere-se da narrativa de Santa Inez que quando o trem parava na estação as pessoas

compravam frutas, lanchavam e formava-se um comércio diversificado. Ele conta que havia

52

Fotografia que representa a Estação Ferroviária de Itaquara. Época da ferrovia. In: JESUS, Elenildo Café de.

Mudança na paisagem física e social associados à ferrovia: Estrada de Ferro de Nazaré no Vale do Jequiriçá,

Bahia. Dissertação de Mestrado, UESC, 2008. p. 69.

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48

os mendigos, uma procissão de miseráveis, cegos, velhos, mulheres com ―rencadas‖ de filhos

ou grávidas, justificando com isto a necessidade de esmolas. A personagem ―o aleijado‖ se

revoltava com aquela desonestidade, argumentando que dois ou três precisavam, mas o resto

era tudo gente sã e até gente rica, pedindo sem precisão. A polícia não percebia aquela

desonestidade, mas naquela confusão e velhacaria, Itaquara era uma festa. Havia gente

falando alto, numa expressividade artificial, gente acertando negócios, deixando recados,

reconhecendo velhos amigos e prometendo visitas recíprocas. Os namoros surgiam, em cada

vagão, em cada janela, em cada sombra de árvore. Mocinhas sorrindo acanhadas, ou rapazes

curtidos de sol, chapéu levantado na testa e o nível de aparência dividindo os mundos: ―Os

mais bem vestidos em frente às primeiras classes, os outros namorando as passageiras das

segundas, fora da sombra da estação...‖ (AEE, p. 42).

A feira, os alimentos comercializados, os objetos usados para descascar as frutas

(facas de jagunço), os indivíduos (crianças, mendigos, cegos, aleijados, velhos, mulheres

grávidas, etc.), a forma como os rapazes e as moças estavam vestidos, os namoros em frente

às primeiras e segundas classes, tudo isso está relacionado ao cotidiano da EFN. Ao

mencionar O Coronel e sua grandeza maior, o narrador informa que este chegou à estação

de Itaquara com a mulher, a filha, a empregada e o rapaz que trazia o burro que carregava as

malas com as roupas para a permanência na Capital. De acordo com o romancista, Dona

Carolina, esposa do Coronel Astério, estava doente e consultar-se-ia com os médicos de

Salvador. Seu estado de saúde era instável: talvez fosse hospitalizada ou operada; poderia

voltar sã ou morrer por lá. Em relação ao meio de transporte, fica explícito que o burro era o

principal meio de condução para levar objetos e produtos agrícolas das fazendas até a estação.

Além disso, transportava o que chegava de trem, da estação para as casas (na zona urbana ou

rural) localizadas nas proximidades da ferrovia.

3.2 Ferrovia, coronelismo e cidades

Outro tema relacionado à parada do trem na estação de Itaquara é o coronelismo. O

poder do coronel é evidenciado quando sua filha Lininha descobre que tem um sanfoneiro

viajando e tocando na segunda classe. Como a família da ―grandeza maior‖ viajava na

primeira classe, ela pede ao seu pai que traga o tocador para este vagão. Porém, o Coronel

justifica que não pode porque a passagem do tocador é de segunda. A filha insistiu, sentou-se

no braço da poltrona do pai, passou-lhe o braço pelo pescoço, sorriu, agiu com astúcia e este

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49

não resistiu. Levantou-se e foi até o vagão onde Patrocínio conversava com um dos soldados.

Pediu licença e dirigiu-se ao sanfoneiro:

— Bom dia,

— Bom dia, coronel.

— Seu Patrocínio, eu vim aqui meio sem jeito prá lhe fazer um pedido.

— Peça, coronel.

— É que minha filha ouviu falar no senhor, e ela queria ouvir o senhor tocar. Ela...

O senhor sabe como é moça.

E dividindo a culpa:

— Eu também gosto. Acho que todo mundo gosta.

— Pois não, coronel. Vou com muito gosto.

Levantou-se, mas parou, pensando. O coronel antecipou-se:

— Não se preocupe. Eu falo com o chefe.

Meio acanhado, meio vaidoso, Patrocínio sorriu, o aleijado piscou-lhe o olho e a

sanfona foi promovida à primeira classe e, o que era mais importante, aos ouvidos

delicados do anjo cor-de-rosa (AEE, p. 47- 48).

Ao satisfazer o desejo da filha do coronel, o sanfoneiro também se promoveu e se

apaixonou por ela. Logo depois da estação de Itaquara e Lagoa Queimada estava a estação da

cidade de Santa Inês, local em que o poder e riqueza do coronel sobressaiu quando o chefe do

trem entrou na classe para conferir o bilhete de passagem e ignorou a presença do sanfoneiro

no vagão. Nota-se que o poder do fiscal se equiparou ao do coronel, que propôs pagar a

diferença no valor da passagem do tocador, já que fora a seu convite que ele se colocou ali.

Porém, o cobrador do trem responde:

— Deixe isso prá lá, coronel.

O coronel Astério ficou em dúvida se devia insistir ou se seria melhor dar algum

dinheiro, por fora, ao chefe. Mas ficou com medo de ser recusado. Optou pela

fórmula mais cômoda.

— então, muito obrigado.

Três idéias diferentes marcavam o episódio. Do ponto de vista do coronel a razão era

simples: Sou rico, sou respeitado, sou adulado.

Do ponto de vista do chefe do trem a idéia era: Sou chefe. Aqui quem manda sou eu.

Não é uma migalha de dinheiro que compra a minha vontade.

Patrocínio pensava! Minha música é tão boa que eu posso viajar de graça onde

quiser.

Na segunda classe o aleijado dizia a Alípio: acho que o chefe não vai cobrar nada do

coronel. É bom ser rico, prá ser chaleirado (AEE, p.52).

A cidade de Santa Inês aparece no romance como a terra dos umbus e licuris,

composta por uma vegetação, clima e relevo semelhantes aos das cidades de Itaquara,

Jaguaquara e Jequié. Ao se referir à parada do trem na estação desta cidade, o narrador conta

que o movimento era grande e havia gente desembarcando correndo, gente mercando, aos

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50

gritos, seus produtos, meninos vendendo ―rosários‖ de licuri, grandes quantidades de umbus

nos tabuleiros: ―Imbu, imbu doce. Dois tostões a caneca‖. À medida que o trem corta a região

semi-árida, os passageiros observavam os burros amarrados, as cabras pastando, algumas

crianças brincando, rostos nas janelas, as casinhas de palha das pontas de rua, os campos onde

floresciam de branco as juremas e, na beira dos riachos, as ingazeiras. ―E na paisagem

cinzento-parda os pontos verdes marcados pelos umbuzeiros, como uma nota de esperança na

paisagem agreste‖ (AEE, p. 54).

53 Antiga Rua do Pontal da cidade de Santa Inês (Vale do Jequiriçá)

As características da região e, especificamente, das cidades servidas pelo trem de

Nazaré, estão relacionadas aos produtos (frutos), que eram vendidos e cultivados, bem como,

à criação de animais (cabras, gados) e à paisagem agreste. A fotografia da Rua do Pontal da

cidade de Santa Inês não apresenta o trem, uma estação movimentada ou uma pessoa que

sirva para associar à personagem do coronel, descrito por Santa Inez. Mas são notáveis as

árvores podadas (talvez, o motivo que seduziu o fotógrafo), com sombras, denunciando o dia

e o sol, um grupo de no máximo dez pessoas, a casa e os trilhos da estrada.

No traçado da ferrovia e no direcionamento da narrativa de Santa Inez, que acompanha

o trem de Jequié a Nazaré, depois da cidade de Santa Inês está localizada Ubaíra e o narrador

descreve a personagem do Coronel Marcionílio, fazendeiro temido, conhecido pelos seus

53

Fotografia que representa a antiga Rua do Pontal da cidade de Santa Inês, na época da ferrovia. Arquivo

particular – Ely Marques. In: JESUS, Elenildo. Op. Cit. p. 64.

Page 51: Oscar Santana dos Santos

51

crimes e por promover o julgamento de pessoas. É uma referência rápida e curta a esta

personagem, específica da cidade local, externa à viagem do trem e não ocupa mais de quatro

linhas da obra. Porém, os diálogos que envolvem a personagem do Coronel Astério, que

―pegou o trem‖ na estação da cidade de Itaquara, seguem até Nazaré. São coronéis diferentes:

Marcionílio, talvez seja fruto de uma memória que representa o auge do coronelismo no

Brasil — severo, temido, autoritário, ligado a político importante da capital, uma espécie de

fazendeiro, delegado e político, que detinha e controlava o poder em algumas cidades do

interior da Bahia, especificamente na primeira República. Astério, por outro lado, representa o

coronel brando, simples, equiparado ao maquinista e ao fiscal do trem. A sua influência de

poder encontrava-se em sintonia com a decadência da ferrovia, necessitando de consolo de

outras personagens humildes.

Se em As estradas da esperança, Marcionílio é apenas uma personagem criada por

Santa Inez, em Capítulos da história de Jequié, Marcionílio Sousa, à frente dos seus cabras,

chegou a cercar a cidade de Santa Inês, retirando os trilhos da Estrada de Ferro Nazaré, depois

de enfrentar a volante policial chefiada por Mota Coelho.54

O motivo que o levou a tomar tal

atitude, foi os desagrados políticos provocados pelo Governador da Bahia, Antônio Ferrão

Moniz do Aragão, eleito para o quadriênio 1916-1920. Aragão era um homem autoritário,

descendente da antiga nobreza lusitana e entrou em choque com as oligarquias e os coronéis

do sertão, criando atritos com os correligionários do próprio José Joaquim Seabra, que o

fizera sucessor, após ter governado o estado de 1912-1916.

Conforme Araújo, não foram poucas vezes que a força pública foi chamada para

manter, a ferro e a fogo, a autoridade de Antônio Moniz. Com isso, sua popularidade foi

desgastada, perdeu o apoio dos coronéis e o respaldo do comércio, dificultando a volta de

Seabra, que parecia tranqüila, ao governo do estado. A comunidade comercial e financeira de

Salvador, sem perda de tempo, se aglutinou em torno do nome do juiz federal Paulo Martins

Fontes, lançado candidato à sucessão estadual (1920-1924). Rui Barbosa que fora derrotado

na eleição presidencial por Epitácio Pessoa, querendo se vingar de J.J. Seabra, que chefiara na

Bahia a campanha do seu oponente, apoiou a candidatura de Paulo Fontes. Outros políticos

seguiram-lhe o exemplo, o mesmo acontecendo com a maior parte dos clãs sertanejos, no afã

de recuperar o espaço perdido. Portanto, acrescenta Araújo:

O pleito foi renhido. Os resultados finais não coincidiram, e tanto os partidários de

Seabra quanto os de Paulo Fontes se consideraram vitoriosos. Em tais casos,

54

ARAÚJO, 1997, p. 157.

Page 52: Oscar Santana dos Santos

52

segundo a Legislação em vigor, caberia ao Legislativo, onde Seabra dispunha de

maioria, dar a palavra final. Sabedores disso, Horácio de Matos, que contava com

mais de 2.600 homens armados, Castelo Branco, Douca Medrado, Marcionílio

Sousa e outros oligarcas que dispunham, juntos, de cerca de 4.000 jagunços,

planejaram um ataque à capital, onde a força pública tinha apenas um efetivo de

2.500 soldados mal equipados. Seria uma repetição do que ocorrera no Ceará,

tempos atrás, quando Pe. Cícero com seus comandados marchou sobre Fortaleza,

depondo o governador.55

Seabra foi salvo pela intervenção federal na Bahia, determinada por Epitácio Pessoa.

Foi reconhecido pelo Legislativo, mas perdeu o domínio no interior. Os coronéis, em troca do

acordo firmado com Epitácio, puderam continuar com os seus ―exércitos particulares‖ e

objetivaram a revogação do dispositivo da lei de 11 de agosto de 1915, que assegurava ao

governador a prerrogativa de nomear os intendentes, os quais voltaram a ser eleitos pelo povo,

embora com mandato de dois anos. Esta alteração aconteceu em maio de 1920, pois a

Reforma Eleitoral de 1915, havia sido imposta pelo próprio Seabra, que nos últimos meses do

seu governo (1912-1916), nomeou, nada menos de 135 intendentes para um total de 141

prefeituras existentes.56

Em Mad Maria, J.J. Seabra também é citado como político de grande influência nas

relações políticas da Bahia e do Brasil. É uma personagem caracterizada como Ministro da

Justiça e Negócios Interiores, no governo do presidente Rodrigues Alves e de Viação e Obras

Públicas, no do Marechal Hermes. Ele é um homem rico, de temperamento forte, destemido e

autoritário por sua formação ligada à terra, embora já pertencesse a uma geração de citadinos

senhores de engenho, que conheciam mais facilmente o sabor de um vinho que o odor

adocicado do mel fervendo nos grandes tachos.

O coronelismo exercia uma influência significativa, desde o controle político nos

pequenos municípios, até o comando da política nacional. A obra As estradas da esperança

não apresenta datas relacionadas aos ―coronéis‖ criados por Santa Inez e não trata desse

período; é apenas uma reminiscência histórica do romancista. Mas, esse modelo político

influenciou nas decisões políticas, econômicas e sociais do Vale do Jequiriçá. Quando a Vila

de Jequiriçá emancipou-se de Ubaíra, em 1891, segundo Aníbal José de Andrade, o primeiro

Intendente do município foi o Dr. Francisco Martinho das Chagas e o primeiro Presidente do

Conselho e pioneiro da emancipação política foi o Coronel Vicente das Chagas de Jesus.57

É

interessante notar que ambos possuíam o sobrenome Chagas e eram da mesma família. Nestes

55

ARAÚJO, 1997, p. 156 – 157. 56

Ibidem, p. 161. 57

ANDRADE, Aníbal José de. Meu relato sobre a vida política do Município de Jequiriçá. 2º ano Ginasial –

Ginásio Clemente Caldas. Nazaré, 06 de setembro de 1941. p. 6.

Page 53: Oscar Santana dos Santos

53

municípios, os cargos políticos eram exercidos pelos parentes do coronel, amigos, ou

afilhados políticos, o que gerava conflitos na disputa do poder local, quando havia rivalidade

entre os coronéis. Em 1926, quando foi instalado o município de Mutuípe, o primeiro

intendente foi o Dr. Bartolomeu Chaves, médico, figura de grande influência na emancipação

política da cidade.58

O distrito de Mutum foi desmembrado da cidade de Jequiriçá, que tinha

como intendente, o Coronel Vicente das Chagas, que havia se promovido, politicamente, nos

anos anteriores, quando Jequiriçá desligou-se de Ubaíra.

O coronel era freqüentemente dono de terras (senhor de engenho ou fazendeiro); o

componente dominante da classe dirigente do Brasil agrário. Porém membros de outras

classes sociais, tais como comerciantes, advogados, médicos, burocratas, professores,

industriais e até mesmo padres tinham o posto de coronel da guarda.59

Portanto, quando, em

As estradas da esperança, Santa Inez se refere à passagem do trem pela estação de Areia

(Ubaíra), nota-se que a sua memória evidencia uma recordação do coronelismo. ―Era

comarca. Tinha fórum e juiz. Tinha médico — Dr. André — famoso em todo o sudoeste. Suas

ruas ainda sentiam os passos e o prestígio do Padre Galvão, político famoso; do Coronel

Marcionílio, fazendeiro temido...‖ (AEE, p. 54).

Ao analisar os escritos literários, históricos e memorialísticos sobre as cidades que

eram servidas pela EFN, notou-se uma relação entre ferrovia e coronelismo. Em Capítulos da

história de Jequié, Araújo relata que durante a chamada Revolução de 1930, o município

contava com um número reduzido de policiais e ficou à mercê de dois grupos de Jagunços: o

de Tranquilino — que apoiava o governo Washington Luís em âmbito federal e Vital Soares

na esfera estadual —, e o de Silvino do Curral Novo — favorável aos revolucionários. O

primeiro grupo, no dia 24 de outubro, obrigou a administração local do Banco do Brasil a

encaminhar um telegrama à Superior Administração na capital, informando sobre as ameaças

dos jagunços, a falta de segurança para a cidade e a agência, especificamente ao gerente, que

havia sido procurado à noite, em sua casa, por homens suspeitos. Não satisfeito com os

resultados do primeiro telegrama, no dia seguinte, o mesmo grupo de jagunços invadiu a

estação ferroviária, motivando a expedição de um segundo telegrama, dirigido ao governador

58

REBOUÇAS, 1992, p. 40. 59

Cf. PANG, Eul-Soo. Coronelismo e Oligarquia – 1889-1943. São Paulo. Civilização Brasileira, 1979. p. 26.

Sobre este mesmo tema é interessante ver também os estudos de: LEAL, Victo Nunes. Coronelismo, Enxada e

Voto. São Paulo, Nova Fronteira. 1997; FAORO, Raimundo. Os Donos do Poder. Formação do Patronato

Político Brasileiro. Vol. 2. 8.ª ed. São Paulo, Globo. 1989.

Page 54: Oscar Santana dos Santos

54

do Estado: ―Cidade infestada por jagunços; famílias em pânico; acho-me refugiado. Apelo

Vossa Excelência providenciar urgente garantia a população em sobressalto‖.60

Na mesma noite daquele dia chegou a Jequié a notícia da vitória dos revolucionários e

o povo ganhou as ruas em passeata acompanhada de discursos, banda de música e pipocar de

foguetes. Tranquilino e seus comandados, derrotados, deixaram Jequié levando dois

caminhões, transportando mais de cem jagunços. Porém, com a chegada das tropas policiais,

sob o comando do coronel João Facó, houve perseguição, que resultou na prisão do grupo.

Em poder dos jagunços de Tranquilino foram encontradas 1.800 armas e munição para 72.000

tiros.61

Além de Jequié, o coronelismo também exerceu influência na cidade de Jaguaquara.

Lígio Farias informa que em 1913, após enfrentar árduas lutas políticas, o coronel Guilherme

Silva conseguiu a passagem da Estrada de Ferro de Nazaré pela sede do povoado, impedindo

que a estação fosse construída na Casca. ―Ele já amava demais esta terra que o recebeu, que o

projetou politicamente em todo o sudoeste baiano, por isso não admitia a passagem da estrada

de ferro por fora do povoado‖.62

Na obra As estradas da esperança, nota-se a influência do mandonismo no Vale do

Jequiriçá, quando Santa Inez se refere à passagem do trem pela estação da cidade de Itaquara.

―O trem ficou meia hora parado, porque o Coronel Astério, fazendeiro rico e político de

prestígio ia viajar com a família, e ainda não havia chegado‖ (AEE, p. 41).

Na obra Jaguaquara, Ítalo Rabêlo do Amaral informa que o coronel Guilherme

Martins do Eirado e Silva era proprietário da Fazenda ―Toca da Onça‖ e fundou a cidade,

traçando as ruas com vinte e trinta metros de largura, orientando a construção das casas para

que não fossem feitas fora do alinhamento, nos terrenos de sua propriedade. Segundo Amaral,

além de ser o primeiro intendente do município, o coronel fez muito pela cidade. ―Ele lutou

pela criação do Distrito da Paz, Agência do Correio, pela criação de escolas públicas

estaduais, mudança do nome de Toca da Onça para Jaguaquara e elevação de Jaguaquara à

categoria de Vila e Município‖.63

O coronel Guilherme Silva nasceu em Póvoa de Varzim, em Portugal, em 26 de maio

de 1873. Em 11 de janeiro de 1886, ainda adolescente, partiu de Lisboa e embarcou para a

Bahia no paquete inglês ―La Plata‖, da Mala Real Inglesa. Desembarcou na Penha (Salvador),

60

ARAÚJO, 1997, p. 169 -170. 61

Ibidem, p. 170. 62

FARIAS, 2005, p. 17. 63

AMARAL, Ítalo Rabêlo do. Jaguaquara: Dados Históricos; Intendentes e Prefeitos. Salvador, Bahia, 2008, p.

23-24.

Page 55: Oscar Santana dos Santos

55

em 26 de janeiro desse mesmo ano, onde permaneceu até 1890, empregado na firma de Felipe

Nery Valle Souto e João Baptista Lima. Em 1890 transferiu-se para Nova-Laje e no ano

seguinte fixou-se em Areia, até 1896, quando se mudou para a fazenda ―Toca da Onça‖.

Casou-se com D. Maria Luzia de Souza e Silva, com quem teve dez filhos. Faleceu na cidade

de Jaguaquara, em 31 de maio de 1952.64

Conforme os escritos de Amaral, este coronel fez as

seguintes doações: terreno para construção da igreja e casa paroquial, terreno para a

construção do Colégio Luzia Silva, doação de uma área de seis mil e quinhentos metros

quadrados para o Ginásio Pio XII e doação dos terrenos do Cemitério e do mercado

Municipal. Para o Governo do Estado, doou a faixa de terra para a construção da EFN e do

Hospital da cidade.

O Jornal Local ―A luz‖, de 12 de dezembro de 1920, publicou o resultado do

Recenseamento de Jaguaquara, que era de 18.000 habitantes. A cidade conseguiu a sua

emancipação política, desmembrando-se de Areia, em 1921. Dois fatores contribuíram com

essa taxa populacional alta, principalmente, se compararmos aos demais povoados, distritos e

municípios do Vale do Jequiriçá na época. O primeiro seria o prestígio de ser ponta de trilhos

até 1927, quando a ferrovia alcança Jequié. O segundo está relacionado com a chegada das

primeiras famílias de italianos e portugueses, a partir de 1915, que resultou no incentivo da

agropecuária, estabelecimento de casas comerciais de compra e venda, por atacado e varejo,

dos produtos agrícolas (café, fumo, mandioca e cereais), gêneros alimentícios, tecidos,

calçados, chapéus e artigos de armarinho.

Ainda é possível colocar em evidência um terceiro fator constatado nos escritos de

Amaral, referente aos anos de 1920 e 1930, ao relatar que em Jaguaquara, passavam,

diariamente, centenas de retirantes. Alguns, sem condições de continuar a caminhada,

deixavam-se ficar definitivamente nesta cidade. Crianças e velhos esqueléticos, devido à

fome, à desidratação e à diarréia, permaneciam o tempo de se restabelecerem, a tratar-se com

chá da entrecasca do araçá, voltando a pôr o pé na estrada.65

Esta memória pode ser conciliada

com a de Santa Inez, em As estradas da esperança, porque ele também se refere a um alto

número de mendigos e miseráveis nos arredores das estações da EFN (AEE, p. 42).

Foi possível notar uma relação entre ferrovia, coronelismo e cidades, porque os

municípios servidos pela EFN surgiram e cresceram em função dos trilhos, principalmente no

período em que o poder dos coronéis teve grande visibilidade (Primeira República). É neste

período que a estrada está sendo construída no Vale do Jequiriçá. A existência de uma estação

64

AMARAL, 2008, p. 23. 65

Ibidem, p. 28.

Page 56: Oscar Santana dos Santos

56

ferroviária num povoado ou distrito associado à produção agrícola e ao tempo que ficara

como ―ponta de trilhos‖ favorecia o comércio, crescimento populacional e a emancipação

política.

3.3 Areia (Ubaíra): cidade mais antiga do Vale do Jequiriçá

66 Antiga Estação Ferroviária de Ubaíra

A região do Vale do Jequiriçá era ocupada por tribos indígenas, e seu povoamento só

se efetivou após 1790, quando João Gonçalves da Costa foi encarregado de combater os

índios que habitavam próximos às margens do rio Jequiriçá. O município de Ubaíra é um dos

mais antigos do Vale e o seu território compreendia toda área onde hoje estão os municípios

de Jaguaquara, Itaquara, Santa Inês, Jequiriçá e Mutuípe. Fica localizado a 270 km da capital

(Salvador) e foi desmembrado da Vila de Valença por resolução Provincial de 1833, com o

nome de Vila de Jequiriçá. O primeiro intendente foi o Coronel Silvério Pinheiro de Matos,

que tomou posse em 1889. A sede foi elevada à categoria de cidade em 1891, com a

denominação de Areia, alterada para Ubaíra, em 1943.67

66

Fotografia que representa a Estação Ferroviária de Ubaíra. Fonte: Livro dos Municípios da Bahia. In: JESUS,

Elenildo, 2008, p. 55. 67

Informações obtidas através do Guia Cultural da Bahia. Recôncavo. Salvador: Secretaria da Cultura e

Turismo, 1997; Diagnóstico de Municípios Vale do Jequiriçá. Edição SEBRAE. Salvador, Março de 1995. p. 29;

Site http://pt.wikipedia.org/wiki/Ubaíra. Acesso em 21 de jul. de 2010.

Page 57: Oscar Santana dos Santos

57

A ―viagem‖ pela obra As estradas da esperança permitiu perceber que o trem deixava

para trás o semi-árido e adentrava uma região mais verde, com maior volume de água. Quem

passa por Santa Inês percebe que o rio Jequiriçá é apenas um riacho, já Areia é caracterizada

pelo autor como uma cidade de ―progresso‖, principalmente, se comparada a outras cidades

do Vale, tais como Itaquara, Santa Inês, Jequiriçá, Mutuípe e Laje. Entre a cidade de Santa

Inês e Ubaíra havia as pequenas estações de Volta do Rio e de Jenipapo. A paisagem mudava

pouco a pouco, as árvores apareciam com maior freqüência e as terras ficavam mais verdes.

―O riozinho que acompanhava a ferrovia tomava ares de importância e se dava ao luxo de

formar aguadas, pequenos lagos e represas e até alguma corredeira‖ (AEE, p. 55).

À medida que o trem se afasta de Jequié, Jaguaquara, Itaquara e Santa Inês, percebe-se

que a partir de Ubaíra, Jequiriçá, Mutuípe, Laje e até Nazaré, a região ganha nova

caracterização e ampliação dos produtos agrícolas cultivados. Ao enfatizar a parada do trem

na estação de Barra do Jaguaritu (entre Jequiriçá e Mutuípe), Santa Inez informa que o Rio

Jequiriçá recebia uma porção de pequenos afluentes, que vinham das matas chuvosas e

sombrias, composta por terras de mandioca e de cacau, terras de onça e de caititu, terras de

farinha boa e de gente melhor ainda. O autor sinaliza que Barra do Jaguaritu era uma fazenda,

um rio, uma parada de trem — quando havia trem. ―Hoje, Barra é uma saudade. Como é

saudade a alegria, o progresso, a esperança daquelas cidades onde o trem era uma festa. Trem

de gado, trem de carga, trem de passageiros, trem político...‖ (AEE, p. 62).

Hoje, Barra é a curva, é o campo de futebol, é a divisa limite entre as cidades de

Mutuípe e Jequiriçá e poucos conhecem o segundo nome (Jaguaritu). A rodovia criou outra

referência — curva da Barra, local conhecido pelo alto índice de acidentes de trânsito. Ao se

referir a esta estação, Santa Inez apresenta muitas histórias referentes ao nível de escolaridade

do prefeito, à proximidade do rural com o urbano, às necessidades do povo e à campanha

política do governador do estado.

Page 58: Oscar Santana dos Santos

58

68 Estação Ferroviária de Barra

A fotografia da Estação Ferroviária de Barra é posterior ao funcionamento da ferrovia

e apresenta uma pequena casa, com aspecto velho e desativado; outros meios de transportes

como o cavalo, a bicicleta, o automóvel (o fusca); o surgimento das rodovias; aspecto da

paisagem geográfica e o elemento que a coloca em movimento — as pessoas. Não foi

possível identificar se o autor dessa foto quis registrar a passagem de algum político em

campanha pelas cidades do Vale, uma inauguração, comemoração ou festa. Todavia, nota-se

que os traços da ferrovia foram substituídos pela estrada de rodagem.

Conforme relata o romance, em Jaguaritu, um dia, parou um trem, carros novos,

enfeitados, trazendo o Governador do Estado em campanha política. Como o prefeito de

Jaguaritu não havia sido informado da chegada do trem, acreditou que se tratava de alguma

brincadeira dos seus opositores, de modo que, quando o trem chegou — e ficaria no máximo

20 minutos, pois havia outras cidades a visitar —, o prefeito estava na roça. Mesmo trajando

botas enlameadas, roupa velha e com a barba por fazer, foi ao encontro do Governador e sua

comitiva. Entretanto, ao chegar, diante da magnitude da beleza daquele trem, mulheres de

chapéu, homens de cravo à lapela, sentiu-se acanhado e procurou desaparecer no grupo que se

formou na pequena estação. Neste momento, na alfaiataria ao lado, um moço fazia a prova

final do terno do casamento e, como estava bem vestido, resolveu ir ver o Governador. Pela

68

Fotografia que representa restos da Estação Ferroviária de Barra. In: JESUS, Elenildo. Op. Cit. p. 51.

Page 59: Oscar Santana dos Santos

59

aparência destacada foi tomado por Prefeito. E o Governador, risonho, abraçou-o

efusivamente, e formou-se o seguinte diálogo absurdo, um pensando em administração

política e o outro em casamento:

— Meus parabéns! Estou vendo que o senhor é um homem que sabe ver as coisas

que interessam. Como vai a terra? O que o Sr. Está precisando?

— Ah, doutor. Eu preciso de muita coisa. Mas a terra, se não fosse a formiga, ia

bem.

— Eu sei, eu sei, vou mandar um agrônomo resolver este caso de formiga. Mas me

diga como vai a Prefeitura.

—Prá falar a verdade, não vai bem. Dizem que o Prefeito não faz nada.

— E o senhor, o que está fazendo para mostrar que isto é uma calúnia?

— Eu não faço nada porque eu acho que é verdade mesmo.

— Por que?

— Porque é um coitado, analfabeto, ignorante, que não sabe nem pedir as coisas que

precisa.

O Governador olhou para o Secretário, olhos umidecidos e comentou:

— Esta simplicidade, esta pureza, esta franqueza me comove. Anote para falar

comigo sobre benefícios para Jaguaritu.

E voltando-se para o pseudo Prefeito.

— O que o Sr. Deseja receber do Governo do Estado?

— Se o Sr. Puder, eu tenho muita vontade de ganhar um rádio.

— Um rádio?

— É. Notícias dos preços, políticas...

O trem apitou, o Governador abraçou-o, comovido, o moço de terno novo, os

presentes bateram palmas.

E Jaguaritu, durante algum tempo recebeu verbas, vantagens e até um aparelho de

rádio que ficou instalado no salão principal da Prefeitura (AEE, p. 63-64)

Neste diálogo envolvendo o noivo (falso prefeito) e o Governador, Santa Inez constrói

uma pilhéria, apresenta o perfil do prefeito (um coitado, analfabeto, ignorante), as promessas

políticas e um pedido do eleitor — um rádio. Parece um pedido simples, mas muito

significativo para a pessoa (o noivo) e também para a época, porque possibilitava saber as

notícias dos preços e da política.

Logo depois da estação de Jaguaritu estava Mutuípe, cidade caracterizada por Santa

Inez como produtora de farinha, café, cacau, laranja, fumo e os festejos culturais: o Carnaval,

o São João e a festa de São Roque, o padroeiro da cidade. O trem ―morreu‖, mas a festa de

São Roque continua, com caminhadas pelas ruas da cidade, todos os anos, organizada por

homens e mulheres religiosos, ligados à Igreja Católica. A passagem de Alípio era para Santo

Antônio de Jesus, mas ele troca com o aleijado e resolve ficar em Mutuípe, seu novo destino.

Em torno do diálogo que envolve essas duas personagens está explícito o conhecimento de

Santa Inez sobre a cidade de Mutuípe, principalmente, quando se refere às serras, ao rio

correndo manso no meio da cidade, a pracinha enfeitada de flamboyants e ao obelisco da

fundação apontando para o céu. (AEE, p. 64).

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60

69 Praça Dr. Bartolomeu Chaves — Inauguração da 2a Estação Ferroviária de Mutuípe.

O Jornal O paládio, edição do mês de dezembro do ano de 1946, destaca como notícia

principal ―Um dia de glórias para Mutuípe‖, exaltando a inauguração da nova Estação

Ferroviária da cidade. Ressalta ainda, que ―O majestoso edifício da nova Estação Ferroviária‖

foi a concretização de um sonho dos mutuipenses, que se delineou desde o processo da

emancipação político-administrativa, conquistada em 1926. O Jornal O Mutuípe, edição de

janeiro de 1946, já noticiava a planta da fachada interna desta mesma estação, enfatizando que

o prefeito Rodolfo Rebouças, desde o início de sua gestão, vinha trabalhando em prol dessa

realização, só obtendo, porém, pleno e decisivo apoio por parte do Interventor Renato Aleixo.

As informações desses dois jornais nos ajudam a ler e interpretar o conteúdo da fotografia

acima, porque, além de revelar a ―satisfação‖ dos políticos com a inauguração da nova

estação, informa que, no dia 18 de dezembro de 1946, a partida do trem especial da vizinha

cidade de Laje conduzia as altas autoridades, que chegariam a Mutuípe. A visita do Exmº Sr.

69

Praça Dr. Bartolomeu Chaves. Fotografia que representa a inauguração da 2a Estação Ferroviária de Mutuípe,

em 1946. Acervo Particular: Osvaldo Nascimento. In: JESUS, 2008, p. 49.

Page 61: Oscar Santana dos Santos

61

Interventor Federal do Estado, na época, General Cândido Caldas e sua comitiva foi

recepcionada pelo Prefeito Rodolfo Rebouças, outras autoridades, as escolas e uma

incalculável multidão.70

Com base na narrativa de Santa Inez, o trem deixou Mutuípe, onde Alípio ficou

pensando em Rosa, passou, sem parar, por Canal Torto e entrou em Laje por um extenso

pontilhão que cortava o rio (este pontilhão ainda existe para a passagem de pedestres). O

aleijado conversava, agora, com um velho e falava de remédios, de curandeiros, do

sobrenatural, de milagres e, quando questionado sobre a ausência de suas pernas, se havia sido

desde o nascimento ou doença, explicou:

— Foi o trem de Montes Claros. Eu era menino. Prá isso aqui não há remédio.

O velho, sem ter o que comentar, falou:

— É. Deve ser triste.

— Pois eu vou lhe dizer uma coisa. Deus me deu este castigo, mas me deu um

consolo muito grande, que é a coragem que eu tenho. E o senhor pode crer que eu

vivo melhor do que muito vagabundo que tem por aí que tem as duas pernas.

O aleijado falava como se fizesse um discurso político. O velho sentiu-se ofendido

com a frase final:

— Mas o senhor vive da caridade.

— Vivo. Mas não roubo nem tomo nada de ninguém. Se eu peço e me dão, o senhor

acha errado? O senhor já pensou em quanto parasita vive por aí, que não faz nada e

vive bem, e ainda se acha bom? Pense bem, mesmo sem pedir esmola, quem não

trabalha, que não produz nada, também vive da caridade. E é pior do que aleijado,

porque pode trabalhar e não trabalha.

O velho ficou pensativo. O aleijado tinha razão (AEE, p. 67-68).

Esta viagem histórica e literária na região percorrida pelo trem de Nazaré, que ora está

relacionada aos aspectos geofísicos, ora aos aspectos culturais e a ambos os aspectos ao

mesmo tempo, nos informa que depois da estação da cidade de Mutuípe estava a cidade de

Laje. Ao se referir à parada do trem nesta cidade, o romance menciona a existência de

alambiques — que ficavam à margem da ferrovia —, a presença de gente descalça, chapéu de

palha na cabeça, gente humilde, vinda de Terra Preta e de Serra Grande, do Capim e do Canto

Escuro, da Torre e de Terra Caída, do Bom Jardim e do Parafuso, do Ribeirão e da Jubeba, de

Sete Voltas e do Cariri... Lugarejos que, como Laje, também viviam do trem. ―Que lhes

garantia um dia e uma hora para irem, e um dia e uma hora para voltarem. O trem era uma

certeza, e a certeza dá tranqüilidade...‖ (AEE, p. 68).

No traçado da estrada e da narrativa de Santa Inez, sentido Jequié a Nazaré, depois da

estação de Laje vem Engenheiro Pontes e, em seguida, São Miguel das Matas. Dalí, o trem

70

Informações obtidas através do Jornal O Paládio de Santo Antônio de Jesus, 18 de dezembro de 1946. Bahia,

ano 46, nº 2.225; Jornal O Mutuípe, edição de janeiro de 1946. Ano II. nº 2.

Page 62: Oscar Santana dos Santos

62

partia para Amargosa, passando por Corta-Mão. O autor desenha a região, dizendo muito do

seu conhecimento acerca da EFN. Refere-se à importância do povoado de Corta-Mão, ao

comércio, ao sertão e às matas de Valença, à saudade do tempo da ferrovia e a um tempo, que

possibilita refletir a forma como as mulheres eram tratadas pelos homens. Isso é notável no

diálogo que envolve as personagens o coronel Astério, o sanfoneiro Patrocínio e Lininha.

[...] — Tempo bom aquele, Coronel.

Lininha resolveu interferir:

— Bom nada, seu Patrocínio. Uma pobreza terrível e uma ignorância ainda maior.

Naquele tempo uma moça era tratada como uma escrava, prisioneira. Se fosse

naquele tempo eu não poderia estar aqui conversando com o senhor.

Foi então que Patrocínio percebeu que aquele tempo era, realmente, o tempo pior

que poderia existir. Emendou-se:

— Bom nada! A gente fala por falar, mas aquele tempo... aquele tempo... sei lá!

Bom é hoje.

O sorriso de Lininha iluminou o vagão, que partia menos rápido do que o coração do

sanfoneiro (AEE, p. 69).

Quando Santa Inez se refere à cidade de São Miguel e Amargosa, notam-se as

reflexões sobre os aspectos históricos das cidades, o comércio, os habitantes e suas

respectivas profissões, a forma como o trem viajava e o tipo de cultivo agrícola que havia às

margens da ferrovia. Segundo o autor, Amargosa se chamava Nossa Senhora do Bom

Conselho, mas mudaram o nome e um frade amaldiçoou a cidade, porque tiraram o nome da

Santa. Porém, tinha padre, doutor, juiz, colégio e não havia nada amargando. O romancista

conta algumas piadas por intermédio de suas personagens, dizendo que a cidade ―é o único

lugar do mundo onde o rio corre prá cima, seu Leite é o negro mais negro que já vi e até as

laranjas que os meninos vendem, eles dizem laranja doce de Amargosa‖ (AEE, p.70).

A região, o cotidiano, o econômico, o político, o social e o cultural aparecem

misturados na narrativa de Santa Inez. Ele indica que o trem permitia as conversas entre os

passageiros, cortava pastagens, roças de fumo, plantações de mandioca, passava pela estação

de Varzedo, deixava para trás o conjunto de municípios do Vale do Jequiriçá e descia para o

litoral, para o nascente, em direção a Santo Antônio de Jesus e Nazaré.

Page 63: Oscar Santana dos Santos

63

3.4 Santo Antônio de Jesus e Nazaré (Recôncavo Sul): janela do litoral

De Varzedo (sentido Jequié a Nazaré), o trem partia para Santo Antônio de Jesus,

caracterizada por Santa Inez como cidade das angélicas, das palmeiras imperiais, dos

horizontes abertos, planos, arenosos, salpicados de casinhas pobres, de roupas estendidas nos

varais improvisados, de crianças brincando às margens da estrada, que se pontilhavam de

branco, dos pequenos jardins de perfumadas angélicas, que serviam para o enfeite das igrejas

e o buquê tradicional das noivas. O trem havia deixado para trás os alambiques de Ponto

Sampaio, de Santana, com suas malhadas, seus canaviais e seus riachinhos correndo sobre

pedras. Ao chegar à cidade das palmeiras, ―o trem parou, e pela importância da cidade ficaria

parado mais tempo do que nas outras estações...‖ (AEE, p.75).

Carletto assinala que na abertura dessa estrada, em 1880, quando foi inaugurado o

trecho Nazaré - Santo Antônio, o município foi ponta de trilhos durante dez anos. Por isso, em

pouco tempo a cidade se tornou um dos principais centros comerciais da redondeza.71

Outro aspecto que pode ter influenciado o crescimento e a prosperidade de Santo

Antônio de Jesus, sobressaindo-se mais que outras cidades do Vale, foi o fato de ter sido

beneficiada com a estrada de ferro por mais tempo que outras cidades da região, tanto na

inauguração, quanto no momento de desativação. Sem falar que a cidade foi logo

contemplada com as estradas de rodagem e depois, com a BR-101. ―Em 1930, foi construída a

estrada de rodagem de Nazaré a Santo Antônio de Jesus, praticamente margeando a via férrea.

O sistema rodoviário passaria a substituir gradativamente a ferrovia‖.72

A sua localização

geográfica também influenciou — proximidade a Nazaré e Salvador —, e, também, por ser

ponto de passagem dos habitantes de municípios vizinhos.

Logo depois de Santo Antônio localizava-se Taitinga, também conhecida como Rio

Fundo (Muniz Ferreira), onde o curandeiro Zé Felício era a esperança para realizar milagres e

curar as pessoas. Nota-se que boa parte dos passageiros — pessoas simples e humildes, com

problemas de saúde —, desembarcou nesta estação: o louco, uma velha com a filha doente e

quase todos os passageiros dos vagões de segunda classe.

Quando Santa Inez narra a chegada do trem em Taitinga, infere-se que tanto nesta

estação quanto na cidade de Nazaré, as práticas culturais relacionadas ao curandeirismo eram

freqüentes. Porém, muitas pessoas não gostavam de revelar que se consultavam com o

―curador‖ por diversos motivos: não informar que estava doente, evitar as críticas das pessoas

71

CARLETTO, 1979, p. 59. 72

ZORZO, 2001, p. 202.

Page 64: Oscar Santana dos Santos

64

que viam aquela atividade inferior à medicina e por influência do processo histórico de

perseguição à cultura da população pobre, sem acesso à saúde e à educação. Percebe-se

também a existência de pessoas que duvidavam da eficácia do ―curador‖.

EM RIO FUNDO A ESPERANÇA É ZÉ FELÍCIO

[...] Tem gente que acredita, tem gente que não acredita. Eu acredito. Já vi milagre.

O senhor veja, uma moça forte dessas, só tem dezessete anos, e com uma coisa

dessas...

O passageiro perguntou:

— Tem o que dona?

A moça interrompeu a velha. Quase gritando, envergonhada:

— Cala a boca, mãe.

A velha se irritava:

— Cala a boca por que? Doença qualquer um tem. Ta aí prá todo mundo. Mas tu vai

sarar, se Deus quiser. Seu Zé Felício vai te curar. Tu vai ver. Tu volta boa. Pode crer

em Deus.

A moça empurrava a velha para a saída, para longe dos passageiros curiosos.

— Vamos embora. O trem só pára um instante.

Também os soldados e o louco se aproximaram da saída. Parecia que todos os

vagões da segunda classe despejavam ali a sua carga de mazelas e esperanças. Todos

em busca do milagre que fluía das mãos de Zé Felício, dos seus tambores, do seu

incenso, das suas preces, do seu conhecimento daquelas almas aparentemente tão

simples, mas, no fundo, tão complexas (AEE, p. 75).

Nazaré se aproximava. Alípio ficou em Mutuípe, o aleijado em Santo Antônio, o

louco, os soldados e a senhora com a filha doente, ficaram em Rio Fundo. O sanfoneiro

Patrocínio, que se apaixonara pela filha do coronel ficaria em Nazaré, hospedado no Hotel

Colombo. Com base na narrativa de Santa Inez, o trem cortava planícies, cada vez mais,

sentindo a presença do mar, a influência dos rios lentos, do litoral, passando Onha e chegando

a Nazaré, escrita com ―th‖ (Nazareth) na parede da estação, as ruas estreitas, quase um túnel

por onde o trem passava entre acenos, rostos sorridentes e olhares ansiosos. O narrador se

refere aos velhos sobrados e ao rio Jaguaripe, informando que este era lamacento, mal

cheiroso e humilde, no momento de vazante, e sereno, na hora de maré alta.

Ao se referir à estação de Nazaré, Santa Inez nos informa sobre o prolongamento da

ferrovia até São Roque; sobre os pequenos navios da Navegação Baiana (o Mascote, o

Paraguassu, o Valença), que levava os passageiros do trem até Salvador; sobre o povo da

cidade; o artesanato; a culinária; as lutas patrióticas; a influência africana; o surgimento das

rodovias; a tristeza das cidades com ―a morte do trem‖, enfim, que a cidade fora, durante

muito tempo, o começo e o fim da ferrovia. Com sua forma de narrar e envolver o leitor, ele

refletiu a desativação e um possível retorno da ferrovia. (AEE, p. 83-84).

Page 65: Oscar Santana dos Santos

65

Muitas das informações históricas que se encontram na documentação de arquivo e

nos livros de memórias fazem conexão com a narrativa de Santa Inez. O traçado da estrada, a

utilidade da ferrovia, a decadência, o surgimento das rodovias, a crítica à indústria

automobilística e ao petróleo. Em relação à região pode-se dizer que ela é mapeada de forma

histórica e poética, com referência às cidades, que eram servidas pelo trem, bem como ao

comércio, feira, produtos agrícolas cultivados e comercializados, os habitantes, a hidrografia

(abundância ou escassez de água), o clima (o sol e calor de Jequié), a vegetação (parte semi-

árida, matas, pastagens), enfim, morros, planícies, solo arenoso e a forma como a estrada foi

desativada. Neste capítulo, o discurso literário, com o auxílio de algumas fotografias, permitiu

reconstruir a linha do trem de Nazaré, problematizando o cotidiano da ferrovia a partir dos

diálogos das personagens no interior do trem.

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66

4. A MORTE DO TREM: A DESATIVAÇÃO DA ESTRADA DE FERRO

NAZARÉ

4.1 O “choro” de um narrador

Em As estradas da esperança Santa Inez considerou que a EFN era um ser vivo e seria

crime desativá-la. Não eram apenas os trilhos, os dormentes, os pontilhões, estações, os trens

e os vagões, que estavam sendo paralisados, mas um conjunto de cidades que viviam à sua

margem. O narrador ―chora‖ como se tivesse perdido um ente querido, argumentando que

―uma ferrovia é a economia, a saúde, a esperança e até o amor, o destino, a felicidade e a

morte (AEE, p. 125).

Se, por um lado, a construção da EFN, no início do século XX, na região do Vale do

Jequiriçá e sua extensão até Jequié representaram avanço comercial e populacional, por outro,

a sua desativação a partir de 1960, culminando com sua extinção em 1971, trouxe

dificuldades econômicas, principalmente para os moradores da Região do Vale.73

O ―choro‖ do narrador e de moradores de cidades como Amargosa, São Miguel, Laje,

Mutuípe, Jequiriçá, Ubaíra, Santa Inês, Itaquara e Jaguaquara justifica-se porque, na época,

esses municípios não foram contemplados com as rodovias. A política rodoviária só foi

efetivada imediatamente para ligar cidades maiores e mais importantes economicamente. A

partir de 1964, a ferrovia funcionava apenas no trecho compreendido entre São Roque do

Paraguaçu e Santo Antônio de Jesus, numa extensão de 64 km.

Notam-se as dificuldades com a ausência do trem, no Vale do Jequiriçá, quando o

narrador se refere à personagem do sanfoneiro Patrocínio, que se apaixonou pela filha do

Coronel (Lininha) e ficou hospedado na cidade de Nazaré até ela retornar de Salvador. Porém,

quando o sanfoneiro comprou a passagem, com a data marcada para o possível encontro com

sua paixão, no trem, nem reparou que só poderia seguir até Ubaíra, onde começava a

desativação da estrada. De acordo com a narrativa de Santa Inez, Patrocínio não sabia que o

Coronel Astério e a família nunca mais viajariam naquele trem, porque sua fazenda ficava no

município de Itaquara. Iriam de navio até Ilhéus e, de lá, de ônibus até Jequié (cidades

maiores, contempladas com as rodovias), depois de carro e a cavalo até o destino final (AEE,

p. 86).

73

Segundo dados do IBGE, o êxodo rural do Vale foi o maior da Bahia em 1960. Ver Diagnóstico de Municípios

Vale do Jiquiriçá. Edição SEBRAE. Salvador, março de 1995. p. 29.

Page 67: Oscar Santana dos Santos

67

O trem era um espaço móvel que permitia o reencontro das pessoas, favorecendo laços

de amor, amizade, o comércio, o emprego (para quem tocava e cantava, como era o caso do

sanfoneiro), o pedido de esmola (o aleijado), enfim, era parte da vida de quem o usava. Por

isso, em seu discurso literário, Santa Inez não aceita o fim da estrada e argumenta que um dia

o trem voltaria e o povo compreenderia ―que alguns hectares de eucaliptos plantados à

margem das ferrovias resolvem o problema do trem, que não polui, não provoca acidentes,

não dá enfarte‖ (AEE, p. 84). Ele se posiciona contra o advento do automóvel e favorável às

linhas férreas.

Suas lágrimas podem ser evidenciadas quando narra que o trem era o principal meio

de transporte que alimentava aquelas pequenas e ―doces‖ cidades do sudoeste baiano. Movido

a lenha e água, arrastava cinco a seis vagões, levava e trazia gente, notícias e esperança. Por

isso, o fim da estrada contribuiu com a migração dos jovens para Salvador, para São Paulo e

Rio de Janeiro, ―deixando pobreza, solidão e saudades nas cidadezinhas poéticas e no coração

dos velhos, que não tinham mais para onde ir, nem o que fazer, nem o que ver e nem mesmo o

que falar‖ (AEE p. 30).

É notável na narrativa de Santa Inez, que no período de existência da ferrovia, Ubaíra

era apontada como uma cidade importante, mas com ―a morte do trem‖ sofreu

despovoamento e estagnou seu crescimento. ―Foi uma das grandes vítimas da morte do trem.

Deficitário ou não, primitivo ou não, quem matou aquela ferrovia contribuiu — e continua

contribuindo — para o despovoamento do sudoeste baiano‖ (AEE, p. 55). Segundo o

romancista, a juventude que vivia às margens da EFN, ao migrar para os grandes centros

urbanos brasileiros, ocasionou, principalmente, o crescimento da marginalidade miserável e

mal adaptada da periferia de Salvador, de São Paulo e do Rio de Janeiro.

Ao mesmo tempo em que lamenta o fim da ferrovia, o narrador revela um trem lento,

fora do horário, enguiçando na estrada. ―O trem estava atrasado. Pequenas demoras, pequenos

enguiços, improvisaram em Areia o almoço que seria em São Miguel, cinco ou seis estações à

frente‖ (A EE, p. 57).

Após a passagem do trem por Jaguaquara, Itaquara, Santa Inês, Areia (Ubaíra), a

estação de Jaguaritu (entre Jequiriçá e Mutuípe), o narrador, através do diálogo de dois

viajantes, lamenta, indica os motivos e a forma como a ferrovia foi desativada:

— Estão falando que o trem vai acabar. Você já ouviu falar?

— Já. Isso é bom mesmo.

— Você acha?

— Acho. Trem velho, sujo, só vive fora do horário, nem água não tem...

— E de que modo este povo vai viajar?

Page 68: Oscar Santana dos Santos

68

O outro falou, brincando.

— A pé. Gente pobre viaja a pé.

O viajante se revoltava:

— Mas é um crime. Estas cidades todas vivem do trem. Bem ou mal, é

por este trem que toda esta região tem contato com o mundo. Será que

vão mesmo...

— Vão, sim. Daqui a um mês ou dois o trem só vem até Laje. Eles fazem

assim. Depois só até São Miguel. Depois só até Santo Antônio. Depois

acaba. Fica só na saudade. Mas a rodagem já está aí.

— Aí aonde? E quem tem dinheiro para comprar carro, comprar

caminhão? Quem sabe dirigir? E os pobres, como vão viajar?

— Pobre não viaja. Se entoca... (A E E, p. 65-66).

Com a desativação da EFN, a economia do Vale do Jequiriçá entrou em declínio por

não poder escoar sua produção através da ferrovia, que ligava o porto fluvial de Nazaré (a

partir de 1940, o de São Roque) até Jequié. Outro fator que está implícito na citação acima é

que as estradas de rodagens não foram construídas imediatamente para interligar os

municípios vizinhos. Quando a ferrovia foi desativada, a partir de 1960 e 1970, Santo Antônio

de Jesus e Jequié foram cidades contempladas, respectivamente pelas BRs 101 e 116. Já as

cidades de Nazaré, Aratuípe, Muniz Ferreira e também as outras cidades do Vale tiveram

pouca produção agrícola e ficaram mal comunicadas com a rede rodoviária regional, sofrendo

decréscimos populacionais e/ou registrando um crescimento não significativo.

A importância da EFN torna-se evidente nos argumentos do narrador quando ele

afirma que ―estas cidades todas vivem do trem. Bem ou mal, é por este trem que toda esta

região tem contato com o mundo‖ (AEE, p. 65). Mesmo com todos os problemas que a

ferrovia apresentava: ―trem velho, sujo, viajando fora do horário‖, esse meio de transporte

continuava sendo útil, principalmente para as pessoas que não tinham como viajar. Ou seja,

―quem tinha dinheiro para comprar carro, comprar caminhão? Quem sabia dirigir?‖.

A obra As Estradas da Esperança nos faz ―viajar‖ na história da estrada de ferro,

seguindo a localização geográfica das cidades que fazem parte da região do Vale do

Jequiriçá.74

Ao explicar em sua narrativa que a estrada foi desativada aos poucos, o narrador

―derrama suas lágrimas, chorando a morte do trem‖:

Laje estava doente. Morria aos poucos. Mas, no momento em que se tornou terminal

ferroviário, tornou-se importante, seu comércio cresceu, vinha gente de vários

lugares para tomar, ali, o trem. Era a melhora que antecede a morte. A chama da

vela que se alteia no momento em que se extingue.

Laje iria morrer. Mas, por enquanto, apresentava um aspecto de renovação, de

renascimento. O prenúncio irônico da agonia, da decadência.

74

Depois de Mutuípe, o autor apresenta a cidade de Laje, em seguida, São Miguel, Amargosa e nos faz alcançar

o recôncavo baiano: Santo Antônio e Nazaré.

Page 69: Oscar Santana dos Santos

69

Era de Laje que o trem saía, ainda madrugada, devagar e barulhento, como um

animal gigantesco ainda mal acordado (AEE, p. 125-126).

Na citação acima está explícita a denúncia de Santa Inez contra a desativação da

ferrovia e é notável também o crescimento do comércio de Laje, quando se torna terminal

ferroviário. Ou seja, de acordo com a narrativa, o trem só vinha até Laje, por isso ―vinha gente

de vários lugares para tomar, ali, o trem‖. Portanto, os trechos dessa estrada de Laje até Jequié

(Mutuípe, Jequiriçá, Ubaíra, Santa Inês, Itaquara e Jaguaquara) já tinham sido desativados e

os moradores dessa região, que haviam se acostumado com o trem, encontravam dificuldades

para viajar, comunicar-se com o mundo e comercializar, principalmente, os produtos

agrícolas.

É visível na obra a riqueza de informações e reflexões do autor sobre a EFN, que

representava a ―vida‖ para as cidades do sudoeste baiano, sendo que a sua desativação

representou a ―morte‖, ou seja, uma agonia com ―choros‖ dos moradores destas cidades, que

estavam acostumados com esse meio de transporte. Além de mencionar a tristeza e o

―urbanicídio‖ das cidades, causadas pela morte do trem, a obra revela a existência de pessoas

que trabalhavam na ferrovia, vendendo passagens, tocando o sino da estação e sinalizando o

momento da chegada e da partida do trem (A E E, p. 29). 75

O fim da estrada de ferro foi melancólico e o narrador lamenta a desativação da

ferrovia onde as velhas locomotivas, umas a óleo, outras a lenha, numeradas, marcavam de

fumaça e de barulho todo o percurso do trem, de Nazaré a Jequié; enfeitavam a noite,

riscando-a com clarões de farol, levando e trazendo carga, gente e animais. O autor chora e

denuncia a morte do trem, levando a compreender que as velhas locomotivas ―morreram sem

glória, devagarinho, despedaçadas, estraçalhadas, um cano arrancado, uma torneira quebrada,

um sino roubado, um pedaço de metal vendido irregularmente...‖ (AEE, p. 84). Com isso, a

população ficou isolada, sofrendo com a forma de retirada dos trilhos (por trecho), restando

apenas saudades daquela paisagem compostas por caatingas, riachos, fazendas, despedidas, a

alegria das estações e o comércio.

Em muitas cidades do interior, construídas às bordas dos trilhos, a população se

dispersou lentamente depois do fim do transporte ferroviário e do processo de concentração

populacional nos grandes centros urbanos, a partir da década de 1970.76

Santa Inez também

75

De acordo com o romancista, ―urbanicídio‖ significa atraso (morte) do desenvolvimento das cidades do

sudoeste baiano e do Vale do Jequiriçá, que dependiam da EFN. 76

PAULA, Dilma Andrade de. Fim de linha: a extinção de ramais da Estrada de Ferro Leopoldina, 1955-1974.

Tese de doutorado – Dep. De História da Universidade Federal Fluminense. Niterói, 2000, p. 74.

Page 70: Oscar Santana dos Santos

70

foi um desses jovens que fugiram para as grandes capitais, deixando para trás a família e

saudades dos pequenos municípios da região do Vale do Jequiriçá e do Recôncavo Baiano.

4.2 Ferrovia e rodovia: sai o trem, entra o caminhão

A situação crítica que domina a EFN, em 1945 reflete uma crise generalizada no

transporte ferroviário no Brasil. O governo brasileiro, a partir daquele momento passou a

investir nas rodovias. Quando o narrador enfatiza A decisão do aleijado, que se encontra em

Santo Antônio de Jesus, necessitando retornar para Jequié, cujo trecho da estrada havia sido

desativado (em maio de 1964), nota-se que a alternativa de transporte neste momento

histórico é o caminhão. Além das dificuldades com o percurso (Santo Antônio de Jesus –

Ilhéus – Itabuna e poucos caminhões para Jequié), o aleijado passava a enfrentar também o

problema da falta de experiência com a rodovia, ou seja, as viagens de caminhão. Como Santo

Antônio de Jesus tinha sido contemplada com a BR-101 e ainda havia o trem — estava

crescendo e se desenvolvendo, a esperança do aleijado estava depositada na possibilidade de

estruturar a sua vida e a de sua família nesta cidade. ―Talvez conseguisse uma casinha no

Andaiá, ou em São Benedito‖ (AEE, p. 95). Ficou subentendido, na narrativa de Santa Inez,

que estes eram bairros habitados por pessoas pobres e humildes, na época. Porém, mesmo

conseguindo a casa, como buscaria a família em Jequié?

Ao se referir à erradicação de ramais ferroviários, no Brasil, Dilma Andrade de Paula,

em sua tese Fim de linha explica que este foi um processo político, institucional, jurídico,

técnico e estratégico, que envolveu a constituição de Grupos de Trabalho formados por

consultores estrangeiros, diretores do DNEF (Departamento Nacional de Estrada de Ferro),

DNER (Departamento Nacional de Estrada de Rodagens), RFFSA (Rede Ferroviária Federal

Sociedade Anônima), Ministério do Planejamento e representantes das Forças Armadas, que

programavam e selecionavam, não só os ramais a erradicar, mas também a construção de

rodovias substitutivas. Foi necessária a elaboração de leis e decretos, que garantiam verbas e

disciplinavam o programa. Não bastava retirar as linhas, precisava-se criar a cultura do ―anti-

ferroviarismo‖. Literalmente, significava erradicar, termo originado do latim erradicare, que

significa desarraigar; arrancar pela raiz, geralmente empregado para o ato de exterminar

pragas da agricultura. Para desarraigar, foi preciso produzir e cultivar o discurso do

deficitário, do antieconômico, do empreguismo das ferrovias, do seu atraso tecnológico

crônico em contraponto ao progresso, que chegava pela via rodoviária. Nesse sentido, a

Page 71: Oscar Santana dos Santos

71

civilização do automóvel ganhava espaço, legitimidade e força política, enquanto o transporte

ferroviário estrangulava-se.77

A narrativa de As estradas da esperança sugere as lamentações da população com o

fim da estrada, principalmente quando se refere à estação de Lagoa Queimada, povoado

localizado entre a cidade de Santa Inês e Itaquara. O romancista conta que Lagoa Queimada

se transformou em Lagoa Morta e estava mais triste, mais abandonada, mais isolada, na

solidão do mundo. O trem, que agitava o marasmo, com a sua presença certa e segura, já não

chegava até ali. Morria em Ubaíra, pois ―aquele marca-passo do coração da cidadezinha fora

trocado por alguns caminhões irregulares, que cortavam a pracinha como feras estranhas,

buzinando, ameaçando atropelar as cabras, os cães, as galinhas‖ (AEE, p. 97).

Nota-se que ―a morte do trem‖ interferiu na feira, no hábito de vestir-se bem, calçar-se

e ir à estação; no transporte de alunos da região, para o referencial Colégio Taylor Egídio da

cidade de Jaguaquara; e no cultivo agrícola das pequenas e grandes propriedades em torno da

EFN, pois muitas pessoas se mudaram para cidades maiores. As estradas da esperança revela

que a desativação da linha férrea, por trecho, foi muito desconfortável porque as crianças

ficavam andando pelos restos dos trilhos e os adultos comentavam a volta do trem:

— Ouvi dizer que mês que vem ele está aí de novo.

— É. Disseram que o prefeito de Jequié já falou com o Governador.

— Onde já se viu isso? Vai acabar é com o Colégio de Jaguaquara.

Na própria conversa percebia-se a esperança e a descrença. Dona Severina era mais

pragmática:

— Isso aqui, sem o trem, é como defunto. Só vai piorar. Eu gosto daqui, mas não

fico.

— E para onde a senhora vai Dona Sé?

— Prá qualquer lugar. Isso aqui ficou muito triste. Acho que vou prá Valença. Já fui

lá. É uma cidade bonita, grande, tem fábrica de tecidos, tem muito peixe...

Téia ouvia-a encantada.

— Me leve, quando a senhora for.

— Olha que eu levo. Se teu pai deixar, eu te levo. (AEE, p. 98).

O trecho da ferrovia que ligava o Vale do Jequiriçá a Jequié foi o primeiro a ser

desativado. Sem o trem, muitas pessoas iam tentar a sobrevivência em outros municípios

como Valença, Santo Antônio de Jesus, Salvador e até mesmo São Paulo. Em As estradas da

esperança, as personagens Téia e Dona Sé, abandonaram suas casas e migraram de Lagoa

Queimada para Jequié, na cabina de um caminhão (AEE, p. 98 - 99).

Com a morte do trem, as cidades do Vale do Jequiriçá ficaram desvinculadas

comercialmente e perderam seu elo, porque o caminhão, além de ser um transporte diferente,

77

PAULA, 2000, p. 189 – 190.

Page 72: Oscar Santana dos Santos

72

ainda era escasso. Com o fortalecimento do transporte rodoviário, incrementa-se a saída do

transporte ferroviário. De acordo com Paula, ―quem persistia na utilização dos precários trens

era a população de baixa renda, tanto no transporte suburbano quanto no do interior‖.78

Na

forma de pensar dessa autora, esse dado favoreceu o golpe final nas ferrovias, porque era

preciso força política/econômica para fazer frente aos interesses multinacionais, que estavam

associados aos nacionais, corporificados no Estado brasileiro. Somando-se a isso a idéia do

moderno, representado pelo automóvel.

Na narrativa de Santa Inez, especificamente, o diálogo da substituição do trem pelo

caminhão, fica evidente as dificuldades que os ricos e, principalmente, os pobres enfrentaram

com a desativação da ferrovia. A obra As estradas da esperança possibilita pensar na

conciliação da rodovia com a ferrovia. Numa breve reflexão sobre a retirada dos trilhos no

Brasil, nota-se que as estradas de ferro foram construídas para transportar as riquezas

existentes ao longo das linhas (produtos agrícolas, cargas diversas, minérios, entre outros).

Poucas ferrovias se preocuparam com o transporte de passageiros, porque no caso da EFN, o

lucro desta estrada não era resultante deste tipo de transporte.

Os responsáveis pelos transportes na Bahia não estavam preocupados em articular

ferrovia e rodovia. O objetivo era a substituição de um sistema de transporte pelo outro. A

ampliação da rede de vias terrestres e do parque de automóveis, caminhões e ônibus, no

interior do estado, notadamente após a década de 1930, alterou profundamente o papel da

EFN. O trem, o único meio mecânico de locomoção disponível, durante décadas, passou a ser

considerado um sistema enrijecido e pouco operativo, com demoras intoleráveis de 60 e até

90 dias para a entrega de mercadorias.

Em seu estudo, Zorzo informa que no ano de 1934, a relação entre a lotação utilizada e

a oferecida pelos trens da empresa era de menos da metade, ou seja 49%. Em 1935, ao ser

entregue a BA-2, de Ipiaú até Itabuna e ao porto de Ilhéus, o cacau da região da mata passou a

ser transportado pela rodovia para esse porto, a fim de se dirigir a Salvador. O tráfego

descendente Jequié a Nazaré perdeu enormemente seu volume de cargas. No tempo do

transporte de cargas por tração animal, a ferrovia concentrava muito mais a produção

regional. As 10.065 toneladas de cacau, transportadas pelo trem de Nazaré, em 1938,

baixaram para 304 toneladas em 1954. As 18.536 toneladas de café, transportadas em 1937,

reduziram-se a 1.380 toneladas em 1952. A conclusão da rodovia Rio-Bahia (BR-116), na

década de 1950, também enfraqueceu as possibilidades da EFN.79

78

PAULA, 2000, p. 249. 79

ZORZO, 2001, p. 242-243.

Page 73: Oscar Santana dos Santos

73

Deduz-se das informações acima que o transporte de mercadorias era mais importante

e lucrativo que o de passageiros, porque quando há redução no volume de cargas

transportadas pelo trem, a ferrovia passa a ser desativada. Infere-se também que parte da

produção passou a ser escoada pelas rodovias.

Em As estradas da esperança, o narrador revela sua preferência pelo trem,

desqualificando as viagens de caminhão, argumentando sobre o perigo e o desconforto que

este meio de transporte causava com os tombos, balanços e as dificuldades dos passageiros

para subirem até a carroceria. O seu posicionamento de apreço à ferrovia pode ser

evidenciado no retorno de Alípio para Jequié.

4.3 O retorno de Alípio para Jequié

Alípio foi uma das personagens que enfrentou dificuldades com a desativação da

estrada, para retornar para Jequié e também para os braços da sua amada (Rosa). Ele

―trabalhava como diarista na Prefeitura de Mutuípe, trocando lâmpadas queimadas, fincando

postes, abrindo e fechando a água da usina‖ (AEE, p. 96). Quando pensou em regressar à

família, o trem só o levaria até Ubaíra e, daí até Jaguaquara, logo, deveria aventurar-se num

caminhão ou num jipe para seguir viagem. Como as cidades do Vale do Jequiriçá não eram

contempladas pela BR-101, nem pela BR-116, restando apenas as deficientes estradas de

rodagens, subentende-se que o número de jipes e caminhões disponíveis era menor que nas

rodovias federais.

Ao narrar a viagem de Alípio, de Ubaíra até Jaguaquara Santa Inez registra que o

caminhão era uma solução para se aproximar de Jequié e que na carroceria deste meio de

transporte já havia algumas pessoas, entre elas, mulheres e crianças:

E o caminhão seguiu, sacolejando, trepidando, parecendo ter as rodas quadradas.

Uma velha começou a rezar, em voz alta, enquanto se ouvia, em contra-ponto, o

choro amedrontado de uma criança. Alípio afundou o chapéu na cabeça, para que o

vento não o levasse, e ficou pensando na diferença que havia entre a viagem de trem

e aquela tortura de sol quente, de saltos e de perigo que era o caminhão (AEE, p. 97).

Com a desativação da ferrovia, a cidade de Jequié foi contemplada pela BR-116

(rodovia também chamada de Rio-Bahia) e continuou crescendo. Com Santo Antônio de

Jesus não foi diferente, porque havia o transporte rodoviário (ligando-a diretamente com Feira

de Santana) e o trem, mesmo em situação precária, ainda fazia o percurso São Roque do

Page 74: Oscar Santana dos Santos

74

Paraguaçú – Santo Antônio de Jesus. Entretanto, as cidades do Vale do Jequiriçá enfrentavam

sérios problemas com transportes. Ao se referir à decadência da EFN e a desarticulação da

rede urbana, Zorzo considera que São Miguel transformou-se num município isolado e

decadente e decresceu em números populacionais. A desativação do ramal ferroviário de

Amargosa, no início da década de 1960, aliada ao declínio do seu principal cultivo, o do café,

correspondeu a incontestável perda populacional. ―Ubaíra e a zona adjacente do Vale do

Jequiriçá também sofreram muito com a decadência da ferrovia, juntamente com Santa

Inês‖.80

A narrativa referente ao retorno da personagem Alípio para Jequié evidencia as

dificuldades da população com a ausência do trem no Vale do Jequiriçá.

DE JAGUAQUARA A JEQUIÉ

O caminhão despejou a sua pobre carga de gente e pacotes e sacolas e malas na

praça de Jaguaquara. Alípio estava ali, com fome, desorientado. Teve vontade de

perguntar para que lado ficava Jequié, e andar até morrer. Mas ficou com vergonha,

acanhado.

— O senhor sabe de alguém que vai prá Jequié?

— Ali na oficina tem um moço que leva o pessoal. Ele tem um jipe.

Alípio foi até a oficina:

— É daqui que sai um jipe prá Jequié?

— Não. Daqui sai um jipe prá qualquer lugar. O senhor contrata a viagem, e eu levo

o senhor até onde o senhor quiser.

Alípio não gostou do discurso. Não gostava de ser tratado como criança.

Se o desgraçado do jipe ia para qualquer lugar, é claro que iria até Jequié. Não

gostou da cara do sujeito.

— E por quanto o senhor me leva até Jequié?

— O senhor vai sozinho?

Era uma pergunta idiota. Alípio chegou a pensar que era brincadeira do outro. Como

iria sozinho, se não sabia dirigir? E mesmo que soubesse, o outro iria entregar-lhe o

jipe?

— Como, sozinho? O senhor não vai dirigindo?

Foi a vez do outro sorrir:

— O senhor sabe quanto custa uma viagem daqui até Jequié?

— Não.

— Pois é por isto que eu estou perguntando se o senhor vai sozinho. Eu costumo

levar cinco ou seis. Já levei oito. Quando é muita gente a despesa fica dividida.

Porque eu tenho que cobrar ida e volta, porque não sei se vou achar passageiros para

voltar. Entendeu agora?

Alípio teve vontade de dar-lhe um soco. Mas estava aprendendo a conviver com o

mundo.

— Se eu for sozinho, quanto o senhor cobra?

O outro não respondeu. Examinou-lhe a roupa, a bagagem — aquela malinha azul,

de madeira — e disse:

— É melhor o senhor esperar. Daqui a dois ou três dias eu já juntei gente bastante

para uma carga.

Ficaram conversando mais um pouco e Alípio ficou sabendo que, mesmo dividindo

por cinco, a sua passagem iria custar vinte vezes mais do que se fosse de trem. E se

80

ZORZO, 2001, p. 235.

Page 75: Oscar Santana dos Santos

75

ele fosse sozinho chegaria pedindo esmola, porque todo dinheiro que trazia não dava

para aquela viagem.

— Quer dizer, que o senhor acha que só vai daqui a três dias?

— É. Mas não posso garantir. Se tiver passageiros... (AEE, p. 99-100).

O trem sai da história entra o caminhão e o jipe, mas Alípio não tinha dinheiro para

pagar a despesa com a passagem e viajar sozinho. Esperar mais passageiros demoraria mais

dois ou três dias, mesmo assim a passagem custaria bem mais do que se fosse de trem. O que

fazer diante de tal situação? O trem estava velho, atrasava, mas todos os dias fazia o percurso

Nazaré a Jequié e vice-versa. A partir da dificuldade desta personagem, pode-se imaginar o

sofrimento de toda população do Vale com transporte, principalmente, nas décadas de 1960-

70, que a estrada estava sendo desativada e o número de automóveis ainda era baixo. Se o

lombo dos animais era a opção para transportar a produção agrícola, das fazendas nos

arredores da ferrovia até as estações, agora, juntamente com o caminhão e o jipe, servia

também para transportar as pessoas do meio rural para as cidades e de uma cidade para outra.

O trem tinha sido ―enterrado‖, mas os dormentes levariam Alípio até Jéquié, porque, hoje,

pela rodovia (que foi construída seguindo os trilhos do trem), a distância entre estas duas

cidades é aproximadamente de 60 km.

UM A UM, OS DORMENTES SÃO CONTADOS

[...] Jequié não estava longe. Se aquele trem lento vinha tão rápido, ele poderia ir a

pé. Por que não? Sabia andar, não era aleijado; a mala estava leve. A noite vinha

chegando. Melhor, ainda, porque ninguém iria rir dele.

Comprou alguma coisa para comer, comprou um facão novo, já que ia viajar

sozinho e à noite, e esperou a escuridão. Mas não esperou muito, que estava com

pressa. Pouco se importava que risse dele, com aquela mala ridícula, como criança,

contando os velhos dormentes, que prendiam os trilhos: um, dois, três, quatro, cinco,

seis... O fundo das casas, o fundo da igreja, do templo batista, das ruas da Muritiba,

Casca, o começo da ladeira... As luzes do ginásio parecia que alguém cantava, talvez

estivessem em festa.

Os dormentes tinham uma distância uniforme que lhe obrigava as passadas. Talvez,

por isto, estivesse cansado. E aquele diabo de mala, como pesava! Nunca imaginou

que uma malinha daquelas pesasse tanto. Antes tivesse mesmo esperado. O homem

do jipe estava com a razão. A distância era enorme. As mãos doendo na alça da

mala, o melhor é levá-la ao ombro ou, como as negras, na cabeça, um, dois, três,

quatro, o ginásio ainda está ali, essa estrada dá voltas...

A noite fresca leva Alípio estrada afora. No céu, profundo e aveludado, luzem

mundos de estrelas. O caminho de são Tiago, estrada de luz sem trilhos, sem

dormentes, lança uma claridade suave sobre os passos do viajante. Ah, se o trem

passasse por aqui! Café com pão, bolacha não, café com pão, bolacha não...

Piiiiiiiii...

A primeira luz da manhã encontrou-o cansado, sedento, faminto, contando

dormentes em direção a Jequié: um, dois, três, quatro, cinco... (A E E, p.100-101).

Page 76: Oscar Santana dos Santos

76

Além da personagem Alípio, outras personagens da narrativa de Santa Inez estão

chegando a Jequié (Dona Sé e Téia). A estrada fora desativada por trechos, perdendo espaço

para as rodovias, porque no pensamento e interesse das autoridades políticas brasileiras,

naquele momento, o automóvel representava o moderno e o trem estava ultrapassado.

Entretanto, no processo de substituição da ferrovia pela rodovia, o Vale do Jequiriçá,

composto por cidades distantes umas das outras, aproximadamente, entre 10 e 20 km, foi

muito prejudicado com a ausência do trem, porque não era contemplado, nem com a BR-101,

nem com a 116. Restavam as estradas de rodagens e os deslocamentos mais extensos, em

lombos de animais, para os produtores agrícolas. Havia estações da ferrovia não só nas

cidades, mas em localidades rurais — povoados como Barra (entre Mutuípe e Jequiriçá);

Jenipapo (entre Ubaíra e Santa Inês) e Lagoa Queimada (entre Santa Inês e Itaquara). Como a

cidade de Jaguaquara está localizada a mais ou menos 10 km da BR-116, o povoado aí

existente se transformou num grande distrito, cujo nome é ―Entrocamento de Jaguaquara‖, por

influência da rodovia. Este distrito tem uma população igual ou maior que a da cidade de

Jequiriçá, ou da de Santa Inês, ou Itaquara. Outra cidade que ganhou um ―entrocamento‖ foi

Laje, por estar localizada a 15 Km da BR-101. Já as cidades de Mutuípe, Jequiriçá, Ubaíra,

Santa Inês e Itaquara, que são mais afastadas destas duas BRs, tiveram crescimento

populacional baixo, se comparado com a população que havia na década de 1970. Cada um

destes municípios, ainda hoje, tem população inferior a 30.000 habitantes.

O surgimento das rodovias foi fator influenciador do crescimento populacional de

alguns municípios (Santo Antônio de Jesus e Jequié). Porém, outros fatores como a

localização e o comércio com cidades vizinhas podem explicar porque algumas cresceram,

outras não e algumas perderam população, no período de convivência da ferrovia e a rodovia

(1950 – 1970). Santo Antônio de Jesus, Capela do Padre Mateus, na época em que pertencia a

Nazaré, foi ponta de trilhos por 10 anos (1880-1890), no início da construção da ferrovia. Foi

beneficiada também, no período de desativação da estrada, porque usou o trem por mais

tempo que as outras cidades do Vale do Jequiriçá. Quando Nazaré deixou de ser ponto de

partida para se tornar apenas ponto de passagem do trem, a partir de 1940, com a inauguração

do porto de São Roque, perdeu importância comercial e teve baixo crescimento populacional.

Na medida em que as cidades servidas pelo trem passaram a escoar parte de sua produção

pelas rodovias e a manter vínculo comercial com outras cidades (com Vitória da Conquista,

Ilhéus, Itabuna, Feira de Santana), a EFN entrou em crise e Nazaré das Farinhas teve seu

comércio prejudicado.

Page 77: Oscar Santana dos Santos

77

Jequié, que era o fim de linha da estrada, não sofreu muito com ―a morte do trem‖,

porque ganhou a rodovia e ampliou seu contato com cidades maiores como Vitória da

Conquista, por exemplo. Portanto, a desativação da EFN no Vale do Jequiriçá obrigou cidades

como Santa Inês, Itaquara e Jaguaquara a intensificarem seus contatos com Jequié e a usar a

BR-116. Já as cidades de Jequiriçá, Mutuípe, Laje, Amargosa e São Miguel, passaram a usar a

BR-101, favorecendo o comércio com Santo Antônio de Jesus.

4.4 “Doenças” que causaram “a morte do trem de Nazaré”

Em As estradas da esperança, o romancista considera que a ferrovia era uma porta

para o mundo e a decisão do governo em desativá-la nada tinha de democrática, mas o povo

tão ignorante não fez nenhuma manifestação para impedir ―o direito divino dos que decidem‖

(AEE, p.135). Ou seja, ―a morte do trem‖ teria sido uma decisão autoritária dos governantes,

que não dependiam daquele meio de transporte e nunca havia utilizado aquele serviço. É

válido lembrar que em pleno regime militar as pessoas não tinham espaços para reclamar e se

posicionar contra a desativação da EFN.

Em seu estudo Douradense: a agonia de uma ferrovia, Ivanil Nunes analisou a

desativação desta ferrovia paulista, argumentando sobre o ―fim da era ferroviária‖. Nunes

sinalizou, que após a crise de 1929, teria ocorrido a decadência do complexo cafeeiro,

esgotando-se, por conseqüência, o modelo de transportes baseado na ferrovia. A partir de

1940, no Brasil, foi feita a opção pelo ―rodoviarismo‖ e a partir de 1960 se iniciou uma

verdadeira operação de desmonte do sistema ferroviário paulista.81

No terceiro capítulo dessa obra, intitulado de ―A retirada dos trilhos‖, Nunes

considerou o ano de 1961 como marco de substituição das ferrovias por estradas de rodagens.

Em sua argumentação, além de citar a publicação do Decreto-Lei número 2.698, de

27/12/1955, que dentre outras providências, estabelecia a substituição de ferrovias,

reconhecidamente deficitárias, por rodovias, este autor pontua um conjunto de fatores que

favoreceram o crescimento rodoviário, asfixiando as ferrovias e provocando a retirada de

ramais, considerados ―antieconômicos‖. Entre estes fatores, estariam o caminhão, o ônibus e

automóveis, como os concorrentes das ferrovias, apoiados, tanto pela vantagem comparativa

em determinados percursos (comparação do tempo, velocidade e custo da viagem, por

81

NUNES, Ivanil. Douradense: a agonia de uma ferrovia. São Paulo: Annablume; FAPESP, 2005. p. 18. Livro

originado da dissertação de Mestrado em Economia, UNESP, Araraquara, 2002.

Page 78: Oscar Santana dos Santos

78

exemplo), quanto pela infra-estrutura montada pelo setor público para o beneficio desses

novos elementos.82

Ainda que o processo de desativação da Douradense tenha sido semelhante ao da EFN,

não se pode pensar que a retirada dos trilhos no Brasil aconteceu de forma homogênea. Isso

dependia muito da importância da ferrovia e dos interesses dos governos (estadual e federal,

em parceria com os administradores privados). Paulo Roberto Cimo Queiroz problematizou o

debate acerca da retirada dos trilhos, fazendo-nos pensar se naquele momento (1950-1970), o

Brasil tinha ou não condição de modernizar sua rede ferroviária. Ele considerou que o triunfo

das rodovias teria sido obtido graças a um verdadeiro complô, envolvendo, numa vasta trama

de corrupção, os governos e as grandes empresas petrolíferas e automobilísticas (todas

estrangeiras) — complô pelo qual se teriam deliberadamente deixado as ferrovias à míngua de

recursos, os quais, em contrapartida, haveriam sido generosamente fornecidos ao setor

rodoviário.83

Ao analisar os principais fatores que conduziram à retirada das linhas da Douradense,

Nunes assinala o aumento da despesa de custeio, principalmente a partir de 1918; queda do

número de passageiros transportados já na década de 1920 (em 1925); redução na tonelagem

transportada de café a partir de 1939; redução da receita com as crises conjunturais (1ª e 2ª

Guerras Mundiais, intercaladas pela Crise de 1929), causando déficits crescentes à

Companhia, os quais a impossibilitaram de cumprir seus compromissos financeiros. Portanto,

a operação desmonte nas linhas da Douradense é entendida por esse autor como uma

―agonia‖, devido ao seu processo relativamente lento de desativações parciais em função do

asfaltamento das estradas. Em decorrência disso, houve a substituição das Jardineiras pelos

ônibus e aumento do número de caminhões na região (Douradense), que provocaram ao longo

do tempo a perda da concorrência dos trechos restantes da ferrovia.84

O processo de desativação da EFN, de certa forma, foi muito parecido com o da

Douradense, em comparação aos trechos da estrada, que eram desativados de forma a causar

uma ―agonia‖ na população do conjunto de cidades servidas pelo trem de Nazaré. Em 1963, o

tráfego da estrada já não era realizado em toda sua extensão. O trecho Santa Inês – Jequié

havia sido interrompido, assim como o ramal de Amargosa. Continuava em funcionamento o

trecho São Roque – Santa Inês, numa extensão de 189 km.

82

NUNES, 2005, p. 156. 83

QUEIROZ, Paulo Roberto Cimo. Notas sobre a experiência das ferrovias no Brasil. História Econômica &

História de Empresas. 1991, p. 91. 84

NUNES, 2005, p.185 – 186.

Page 79: Oscar Santana dos Santos

79

Porém, ―a morte do trem de Nazaré‖ foi causada por ―doenças‖ específicas. Além da

concorrência rodoviária, queda da produção agrícola e desgaste da ferrovia, aconteceram

algumas enchentes (em 1947, 1952 e 1960), que causaram grandes estragos e prejuízos à

EFN, destruindo estações, pontes e interferindo no tráfego. Em As estradas da esperança, ao

se referir à passagem do trem pela estação de Laje, Santa Inez informa que a cidade se

chamava Nova Laje, porque todo ano a enchente levava as casas, que eram muito próximas ao

rio e o povo tinha que reconstruí-la.85

Em 1964, foi supresso o tráfego de Santo Antônio de

Jesus a Jequié, em caráter definitivo, funcionando apenas, de modo precário, o trecho São

Roque do Paraguaçu – Santo Antônio, numa extensão de 64 km.86

O início da ligação da EFN, em 1957, entre Santo Antônio de Jesus e Cruz das Almas

tinha o objetivo de integrar o trem de Nazaré à Via Férrea Federal Leste Brasileiro (VFFLB),

para diminuir a dependência com a navegação marítima no intercambio com Salvador, pois o

porto de São Roque encontrava-se carente de instalações adequadas, guindastes e armazéns. O

cais estava sob ameaça de possíveis desabamentos e não sendo feitos os reparos ficou

comprometido o transporte das mercadorias.

Com a desativação de trechos da estrada e o trem perdendo espaço para as rodovias,

foi cancelada a ligação entre a EFN e a VFFLB (Santo Antônio de Jesus e Cruz das Almas).

No ano de 1965, ocorreu o desmoronamento parcial do cais do porto de São Roque, tornando

a situação insustentável, contribuindo para o fechamento do último trecho em tráfego (Santo

Antônio a Nazaré), em 1971. Neste mesmo ano de liquidação da EFN, foram iniciadas as

operações Ferry Boat entre Salvador e a Ilha de Itaparica, ligando esta ao continente, na parte

de Nazaré, pela ponte do Funil.87

No capítulo 137, O direito divino dos que decidem, Santa Inez retoma o discurso

sobre a utilidade do trem de Nazaré para o conjunto de cidades servidas pela ferrovia. Além

disso, sobressai nos argumentos do autor que ―a morte do trem‖ foi uma decisão do governo,

sem se preocupar com a população ou tomar medidas para salvar a ferrovia. A obsolescência

da EFN, incapaz de competir com o transporte rodoviário, associada à ausência de uma

política que integrasse ferrovia, rodovia e navegação resultaram no enrijecimento e crise do

sistema ferroviário baiano.

85

As enchentes mais comentadas, ainda hoje, pela população do Vale do Jequiriçá, são a de 1914 e de 1960, que

destruíram casas da cidade de Laje e outras cidades do Vale: Mutuípe, Jequiriçá e Ubaíra. Nos relatórios e Plano

de Reequipamento da EFN, referentes aos exercícios de 1947, 1952 e 1960 constam enchentes nos rios Jequiriçá

e Jaguaripe, que causaram sérios prejuízos à estrada. 86

Relatório da EFN, referente ao exercício de 1964, p. 1 e 2. 87

Ver CARLETTO, 1979, p. 231.

Page 80: Oscar Santana dos Santos

80

Conforme o estudo de Carletto, a situação de crescente abandono do parque

ferroviário brasileiro só tomaria uma dimensão nova a partir de 1973, com a crise

internacional do petróleo. O Brasil, que vinha sendo um país francamente rodoviário, com

uma média de 80% do seu transporte de carga feito por rodovia, viu-se obrigado a repensar a

sua política de transporte. Isso porque a inauguração de rodovias de custo elevado e

manutenção cara, ao lado da crescente desarticulação de ramais ferroviários, passou a

despertar críticas cada vez mais freqüentes.88

Em As estradas da esperança, Santa Inez sinaliza que um dia o trem voltará. Não se

trata de ficar chorando e sofrendo com a desativação das ferrovias no Brasil, ou adotar uma

postura favorável ou cruciante para as rodovias, mas pensar a integração desses meios de

transportes de forma a contribuir com o desenvolvimento do país. Na análise da narrativa de

Santa Inez, além de notar a saudade e apego ao trem, vê-se também que este estava sujo,

velho e ―doente‖, trafegando para a morte. Percebe-se, ainda, a substituição deste pelo

caminhão e o jipe. No diálogo do aleijado com a personagem Franz, obtêm-se as seguintes

informações:

[...] Se ainda tivesse o trem eu ia ver você todo mês. Mas agora...

— Mas agora tem esse Jipe brabo. Se você não se importar de viajar junto desse cão

feio.

— Eu vou gostar muito de ir lá. Se não for trabalho...

— Não é. Eu estou sempre por aqui, por causa dos meus negócios. E a fazenda é

quase caminho.

O trem ainda existia. Mas era um pouco como o próprio aleijado: Toda uma

grandeza de possibilidade contida dentro de uma limitação imposta. O aleijado

mesmo comentava:

— Esse trem é igual a mim. Ele, que me cortou as pernas, agora tem os trilhos — as

pernas dele — cortadas. É um trem aleijado (AEE, p.141 - 142).

A associação do personagem aleijado com o trem, que estava com o tráfego limitado,

restando apenas os trilhos de Santo Antônio de Jesus a Jequié e funcionando precariamente,

de São Roque do Paraguaçu a Santo Antônio, indicava o caminho para a morte e restava

somente a esperança. Era uma esperança depositada na possibilidade de estruturar a vida,

aguardando, quem sabe um dia, o seu retorno. A presença dos trilhos, nos trechos desativados,

ao mesmo tempo em que significava o fim, a saudade e a dor, representava também a

existência de um trem que podia ser reativado. É possível imaginar o sofrimento da

população, necessitando daquele meio de transporte, vendo os trilhos e sabendo da morte.

Talvez, alguém (um prefeito das cidades servidas pelo trem, um engenheiro, o governador)

88

CARLETTO, 1979, p. 261 – 262.

Page 81: Oscar Santana dos Santos

81

tomasse uma atitude para evitar a desativação e revitalizar aquele trem aleijado. Com

entusiasmo e paixão, o aleijado, que agora morava em Santo Antônio de Jesus, contou sua

vida, falou do trem e escreveu uma carta com ―A mensagem de esperança‖ para um amigo

que morava em Jequié:

Agora, todo dinheirinho que ganho, vou comprando terras. Porque eu sei que mais

dia menos dia, o trem vai voltar. Às vezes, eu até ouço o apito dele, quando estou

cortando sola, bordando as caronas das selas.

Eu acho que quem tiver juízo vai comprar umas terrinhas e plantar eucalipto. Vai

reflorestar. E, de quebra, plantar cajueiros, mangueiras, jaqueiras, que se a gente não

aproveitar, os passarinhos aproveitam.

O trem, agora, não vai mais até Laje. Aquela parte, que é uma pena, vai morrer,

como as outras morreram. Mas um dia o trem voltará.

Talvez já não seja para mim. Mas meus filhos viajarão, como eu viajei, conversando

com a gente, comprando copos de mingau, rolete de cana... (AEE, p.145 - 146).

Quando aparece na narrativa de Santa Inez a alternativa do reflorestamento às margens

da ferrovia, imagina-se o desmatamento e subentende-se que o combustível utilizado pelo

trem de Nazaré era outro fator de preocupação dos administradores da estrada. ―Eu acho que

quem tiver juízo vai comprar umas terrinhas e plantar eucalipto. Vai reflorestar‖ (AEE, p.

145). Em 1947 são adquiridos os terrenos das fazendas ―Bela Floresta 1ª‖, ―Bela Floresta 2ª‖

e do sítio ―Boa Vista‖, situados entre os km 107 e 109 da linha tronco, no município de São

Miguel das Matas, com o objetivo de construir o Horto Florestal da EFN. A aquisição destas

propriedades, de animais e de ferramentas atingiu a soma de Cr$ 200.000,00 (duzentos mil

cruzeiros) e era uma aspiração preconizada desde 1935, para suprir a estrada, que já

enfrentava a crise de combustível e dormentes.89

As matas próximas à ferrovia estavam devastadas, porque se fazia o uso da lenha

como combustível e também na confecção dos dormentes. Segundo Carletto, ―além de

escassa, a lenha já era extraída a mais de 8 léguas de distância da linha. No inverno, o seu

transporte, quando não cessava, tornava-se caro e dificílimo‖.90

Josemir Camilo de Melo, referindo-se ao fracasso das Ferrovias Inglesas no Nordeste,

argumentou que o combustível importado foi um dos fatores que influenciaram a baixa

rentabilidade no tráfego, dificultando o reembolso da taxa de garantia de 7% de juros. Melo

explicou:

89

Relatório da EFN, referente ao exercício de 1947. Ver p. 6; 13; 14 e 20. 90

CARLETTO, 1979, p. 214.

Page 82: Oscar Santana dos Santos

82

O transporte de combustível da Europa para o Brasil encarecia manter ferrovias nos

trópicos, porque envolvia riscos e seguros altos. As próprias retortas de carvão para

fabricar a hulha vinham também da Inglaterra. No final do século XIX, a importação

deste combustível caiu em 20% e as ferrovias se adaptaram para usar lenha,

começando aí, uma grande devastação do meio ambiente.91

A constituição do Horto Florestal da EFN seria uma iniciativa louvável, se o trem de

Nazaré necessitasse, naquele momento, apenas de dormentes e do combustível — a lenha.

Mas, os investimentos para restaurar e reequipar a ferrovia foram deslocados para as rodovias,

estacionando o trem na história.

Entre as ―doenças‖ que ocasionaram ―a morte do trem de Nazaré‖, estão a proibição

da exportação do café de terreiro, cultivado por pequenos agricultores do Vale; a crise que

esse produto vivenciou a partir de 1930; o péssimo estado de conservação da ferrovia; a

concorrência das rodovias, com a introdução do automóvel; a despesa maior que a receita, em

decorrência da queda no transporte de cargas; o combustível utilizado – a dificuldade de

encontrar lenha nas proximidades da ferrovia; as indenizações, resultantes dos acidentes, pois

o trem já estava ―velho e sujo, vivendo fora do horário‖; as enchentes de 1947, 1952 e 1960,

nos rios Jaguaripe e Jequiriçá, que causaram prejuízos à estrada; enfim, as políticas de

transportes no cenário nacional, que influenciaram no fechamento dessa ferrovia.

A partir da Segunda Guerra Mundial, no Brasil, na Europa e no mundo, o trem não

representava mais o moderno e o automóvel era o transporte da vez. Porém, As estradas da

esperança evidencia o apreço de Santa Inez por este meio de transporte. É explícito o seu

desejo e esperança na ―ressurreição‖ da ferrovia, a partir da criação da personagem ―o

aleijado‖: ―Mas um dia o trem voltará. Talvez já não seja para mim. Mas meus filhos viajarão,

como eu viajei, conversando com a gente, comprando copos de mingau, rolete de cana...‖

(AEE, p. 146). Infere-se que o romancista enfatiza o retorno da linha férrea e ao mesmo tempo

sugere que o trem foi desativado porque estava com dificuldade de se locomover. A retirada

dos trilhos foi comparada à ausência das pernas da personagem o aleijado, sugerindo que a

falta dos membros ao corpo era como aquele meio de transporte para a população,

especificamente, a do Vale do Jequiriçá.

91

MELO, 2007, p. 160.

Page 83: Oscar Santana dos Santos

83

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A obra As estradas da esperança pode ser caracterizada como o romance da Estrada

de Ferro Nazaré, porque é a ferrovia que aparece em primeiro plano. Porém, também pode ser

classificado como o romance do cotidiano rural; do cultivo da mandioca; da saudade do trem

no Vale do Jequiriçá; das cidades baianas (além das que eram conectadas pela EFN, são

citadas também Ilhéus, Itabuna, Vitória da Conquista, Brumado, Caculé e Condéuba);

memorialístico, porque Santa Inez cria e reproduz seus enredos (a maioria deles), com base

em sua experiência de vida na Bahia. Mesmo tendo morado no Rio de Janeiro e em São

Paulo, é de cidades como Jequié, Jaguaquara, Itaquara, Santa Inês, Ubaíra, Jequiriçá,

Mutuípe, Laje, São Miguel das Matas, Amargosa, Varzedo, Santo Antônio de Jesus e Nazaré,

que ele relembrou e localizou suas personagens.

O trem funciona como um espaço móvel para a composição de sua narrativa. A Bahia

como um espaço que necessitava ser lembrado, descrito, quem sabe, conhecido pelos amigos

de São Paulo ou por intelectuais, que debateram o tema ferrovia entre os anos de 1970 e 1982,

quando publicou sua obra. Talvez, nada disso o tenha influenciado a produzir o romance As

estradas da esperança e o motivo pode ter sido diversão, prazer e a vontade de ser escritor.

Com apenas duas obras, Santa Inez contou e cantou a sua terra, sua gente, principalmente,

Serra Grande (onde nasceu e cresceu) representada por Serra do meio, primeiro romance

publicado, em 1980.

Esse escritor de dois livros contribuiu para articular uma discussão envolvendo ficção,

representação, história, memória, cotidiano e ferrovia. O objetivo não foi dissertar esses

conceitos teoricamente, mas localizá-los na obra As estradas da esperança, com o auxílio das

outras fontes citadas: os livros de memórias, os outros textos literários de Santa Inez, algumas

fotografias, alguns jornais e os relatórios da EFN.

Os trabalhos acadêmicos sobre ferrovia na Bahia e no Brasil, mencionados nesta

dissertação, também contribuíram para a descrição e entendimento dos problemas da

pesquisa: a representação do cotidiano, da região e da desativação da linha férrea. Tanto o

romance quanto os livros de memórias representaram um discurso de modernidade, progresso,

utilidade e saudade, referente ao trem. As fotografias, os jornais e relatórios sobre a EFN

foram de fundamental importância para situar o recorte temporal (1960-1971), porque a fonte

literária é rica em descrições cotidianas, mas não oferece datas, oscilando no tempo.

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84

As Estradas da Esperança serviu para abordar questões que outras fontes não

permitiriam e para levar a entender que os discursos históricos e literários constroem uma

idéia de realidade e nos ajuda a refletir sobre o ofício do historiador. Na literatura, os

romancistas têm liberdade para criar personagens e inventar os fatos, além disso, é um

discurso que dispõe de maior habilidade para seduzir o leitor e não se compromete

diretamente com a veracidade. O pesquisador da história depende do arquivo, deve fazer as

citações dos mais variados tipos de fontes usadas na pesquisa, caracterizar seu objeto, situá-lo

no tempo e no espaço e apresentar uma escrita atraente.

Ao longo da análise do romance As estradas da esperança, o objetivo foi

problematizar o cotidiano, a região e a desativação da EFN, com base na trajetória das

personagens e nos papéis desenvolvidos, como se fossem pessoas vivas. Muitas vezes estas

personagens são reproduzidas de situações reais e ajudam a interpretar a vida do criador. As

informações sobre a vida de Santa Inez — ano e onde nasceu, estudou, morou, em que

trabalhou, o que leu, publicou — serviram para classificar sua obra como romance

memorialístico, por suas vivências na EFN (as viagens no trem), a região (o uso dos nomes

reais das cidades) e o tempo que retratou.

O título da dissertação é ―Uma viagem histórica pelas estradas da esperança‖ e não ―a‖

viagem, porque muitas outras viagens podem ser feitas, alcançando novas temáticas e

problemáticas. Porém, o que foi observado, foi escrito com o objetivo de evidenciar que a

obra As estradas da esperança serviu para representar aspectos históricos e memorialísticos

da EFN.

Se Mad Maria é uma tentativa de reconstrução da história da ferrovia Madeira –

Mamoré, sugerindo temáticas e questionamentos, referentes ao meio ambiente amazônico,

saúde, corrupção, prostituição, a política nacional no início do século XX, o cotidiano dos

trabalhadores, o surgimento da cidade de Porto Velho, em função do trem e uma crítica à

modernidade e ao capitalismo, As estradas da esperança representa a memória de Santa Inez.

Suas lembranças sobre os modos de viver, os aspectos da economia local e regional, o

surgimento, crescimento e desarticulação de um conjunto de cidades baianas, tudo isso,

atrelado à Estrada de Ferro Nazaré. Este estudo chega às considerações finais, sinalizando a

possibilidade de ampliação da historiografia sobre a implantação e desativação de linhas

férreas na Bahia e no Brasil, a partir de discursos literários.

Page 85: Oscar Santana dos Santos

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______. A família é um arquipélago ou Os Santa Inês da Bahia, arquivo da família, texto

datilografado, mas não publicado (47p).

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Mensagem apresentada à A.G.L. pelo Dr. Luiz Vianna, Governador da Bahia, em 07 de abril

de 1900. Bahia, Typ. do Correio de Noticias, 1900.

Mensagem apresentada à Assembléia Geral Legislativa pelo Dr. Severino Vieira, Governador

do Estado, em 11 de abril de 1901. Bahia, typ. e Enc. do Diário da Bahia, 1901.

Mensagem apresentada à Assembléia Geral Legislativa do Estado da Bahia, na abertura da 1ª

sessão ordinária da décima Legislatura pelo Dr. João Ferreira de Araujo Pinho, Governador

do Estado. Bahia, Oficina da Empresa à Bahia, 1911.

Mensagem apresentada à Assembléia Geral Legislativa do Estado da Bahia, na abertura da 2ª

sessão ordinária da 11ª Legislatura pelo Dr. J. J. Seabra, Governador do Estado. Bahia,

Secção de Obras da Revista do Brasil, 1912

Mensagem de despedida lida perante a Assembléia Legislativa, em sessão extraordinária de

27 de janeiro de 1951, pelo Dr, Otávio Mangabeira, Governador do Estado. Imprensa Oficial,

1951.

Page 87: Oscar Santana dos Santos

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Mensagem apresentada à Assembléia Legislativa, pelo governador do Estado Luiz Regis

Pacheco Pereira, em 07 de abril de 1952. Salvador, Imprensa Oficial, 1952.

Relatórios da EFN, referentes aos exercícios de (1947, 1960, 1963, 1964).

Relatório apresentado à Assembléia Legislativa da Bahia pelo Sr. Barão de São Lourenço,

Presidente da Província, em 1º de março de 1871. Bahia, Typ. de J. G. Tourinho, 1871.

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Cópia do livro: SANTA INEZ, Antônio Leal de. As Estradas da Esperança. São Paulo: Clube

do Livro, 1982. 146 p.

____. A família é um arquipélago ou Os Santa Inês da Bahia. Texto datilografado, mas não

publicado (47p).

2. Vânia Maria Santa Inez

Livro: SANTA INEZ, Antônio Leal de. Serra do meio. São Paulo: Edições Melhoramentos,

1980. 115p.

_____. Contos de amor e ternura. Texto datilografado, encadernado, mas não publicado.

(78p).

3. Professora Joselita Vilasboas

Livros: BAHIA. Diagnóstico de Municípios Vale do Jiquiriçá. Edição SEBRAE. Salvador,

Março de 1995. 125p.

Mutuípe: um Município em Marcha. Mensagem apresentada à Câmara Municipal de Mutuípe,

na solenidade de instalação, realizada em 07 de abril de 1954, relativa ao exercício de 1953.

Bahia – Brasil. 49p.

Almanaque Jequiriçá, ano 1, Nº 1, 2003. 28p.

JORNAIS

Page 88: Oscar Santana dos Santos

88

O paládio de 1946, nº 2.225; 1951, nº 2.379

O Mutuípe de 1946, nº 2.

FONTES ORAIS

Depoimento de Antônio Rosiery Bulhões de Santa Inês; sobrinho do autor, Sociólogo e

funcionário público (Fórum), que reside em Mutuípe – BA. Entrevista concedida em

12/05/2009.

Depoimento de Miguel Santa Inês, irmão do autor, nascido em 06/10/1932, residente na

Fazenda Cariri, Mutuípe – BA, agricultor, 77 anos. Entrevista concedida em setembro de

2009.

Depoimento de Vânia Maria Moura de Santa Inez, Psicóloga, filha de Antônio Leal de Santa

Inez, nascida em 06/05/1956, que concedeu a entrevista em 12/12/2009, no seu apartamento,

em Salvador – Bahia.

LIVROS, ARTIGOS, DISSERTAÇÕES E TESES

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1830 – 1900. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; São Paulo: FAPESP, 1999.

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1967.

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Page 93: Oscar Santana dos Santos

93

ANEXO

I. MAPA DO VALE DO JEQUIRIÇÁ – DIVISÃO TERRITORIAL (Cidades do Vale

que eram servidas pela ferrovia: Jaguaquara, Itaquara, Santa Inês, Ubaíra, Jequiriçá,

Mutuípe, Laje, Amargosa e São Miguel).

SEPLAN – Secretaria do Planejamento do Estado da Bahia (Disponível em:

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