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Luís de Camões Análise da Obra Ivan Prado Teixeira OS LUSÍADAS OS LUSÍADAS ANGLO VESTIBULARES 5 Retrato emblemático de Luís Vaz de Camões INES DE CASTRO Comentário Forma Literária Como todo poeta clássico, antes de escrever, Ca- mões estudava o efeito que pretendia provocar nos leitores. Dentre os efeitos almejados no episódio de Inês de Castro, talvez os mais relevantes sejam os de piedade e terror. Por isso, o poeta escolheu com- por algo próximo do epicédio ou elegia, modalida- de clássica de poema em que se lamenta a morte de pessoa querida. Conforme os clássicos, elegia é to- do poema que pode ser resumido pela expressão ai de mim!. Nesse sentido, o episódio do Gigante Ada- mastor aproxima-se também do poema elegíaco, uma das principais modalidades da expressão lírica na tradição clássica, pois boa parte de sua narrativa confunde-se com um lamento. Os leitores do epicédio de Inês de Castro, o qual não perde a organicidade de episódio de um poema maior, se compadecem das tristezas de Inês, porque todos sabem que ela se uniu ao príncipe D. Pedro por causa do amor e em busca da felicidade. Mas foi surpreendida pela dor, pela ira, pelo abandono e, finalmente, pela morte. Isso tudo provoca piedade e terror. A piedade confunde-se com a compaixão; o terror decorre do medo, pois ninguém está livre de contratempos semelhantes aos de Inês. Tanto a pie- dade quanto o terror são paixões, a que os clássicos também chamavam afetos. Ao lado da piedade e do terror, associados ao destino de Inês e de Pedro, Camões explora afetos paralelos, como a indigna- ção e o ódio, associados a D. Afonso IV e a seus con- selheiros. De fato, conforme os cálculos do poeta, o leitor deveria sentir misericórdia pelos amantes e indignação pelas pessoas que inviabilizaram a con- tinuidade do amor entre eles. Todavia, a indignação não recai diretamente sobre o rei, poupado pelo poeta, que soube desviar a indignação do leitor uni- camente para os conselheiros, visto que o soberano se compadeceu do destino da nora, pois, “movido das palavras que o magoam”, quis perdoar Inês. Só não o conseguiu por estar sujeito às leis do Estado. Logo, o próprio rei acaba por receber a simpatia do leitor, sendo visto também como uma espécie de vítima de suas obrigações de soberano.

OsLusiadas

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Luís de Camões

Análise da Obra

Ivan Prado Teixeira

OS LUSÍADASOS LUSÍADAS

ANGLO VESTIBULARES 5

Retrato emblemático de Luís Vaz de Camões

INES DE CASTROComentárioForma Literária

Como todo poeta clássico, antes de escrever, Ca-mões estudava o efeito que pretendia provocar nos

leitores. Dentre os efeitos almejados no episódio deInês de Castro, talvez os mais relevantes sejam osde piedade e terror. Por isso, o poeta escolheu com-por algo próximo do epicédio ou elegia, modalida-de clássica de poema em que se lamenta a morte depessoa querida. Conforme os clássicos, elegia é to-do poema que pode ser resumido pela expressão aide mim!. Nesse sentido, o episódio do Gigante Ada-mastor aproxima-se também do poema elegíaco,uma das principais modalidades da expressão líricana tradição clássica, pois boa parte de sua narrativaconfunde-se com um lamento.

Os leitores do epicédio de Inês de Castro, o qualnão perde a organicidade de episódio de um poemamaior, se compadecem das tristezas de Inês, porquetodos sabem que ela se uniu ao príncipe D. Pedropor causa do amor e em busca da felicidade. Masfoi surpreendida pela dor, pela ira, pelo abandono e,finalmente, pela morte. Isso tudo provoca piedade eterror. A piedade confunde-se com a compaixão; oterror decorre do medo, pois ninguém está livre decontratempos semelhantes aos de Inês. Tanto a pie-dade quanto o terror são paixões, a que os clássicostambém chamavam afetos. Ao lado da piedade e doterror, associados ao destino de Inês e de Pedro,Camões explora afetos paralelos, como a indigna-ção e o ódio, associados a D. Afonso IV e a seus con-selheiros. De fato, conforme os cálculos do poeta, oleitor deveria sentir misericórdia pelos amantes eindignação pelas pessoas que inviabilizaram a con-tinuidade do amor entre eles. Todavia, a indignaçãonão recai diretamente sobre o rei, poupado pelopoeta, que soube desviar a indignação do leitor uni-camente para os conselheiros, visto que o soberanose compadeceu do destino da nora, pois, “movidodas palavras que o magoam”, quis perdoar Inês. Sónão o conseguiu por estar sujeito às leis do Estado.Logo, o próprio rei acaba por receber a simpatia doleitor, sendo visto também como uma espécie devítima de suas obrigações de soberano.

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Fundamento HistóricoO episódio de Inês de Castro pertence ao resumo

poético do reinado de D. Afonso IV, que se inicia naestrofe 98 e vai até a estrofe 135 do canto terceirode Os Lusíadas. O reinado de Afonso IV foi marca-do por duas grandes guerras e por uma tragédia fa-miliar. A tragédia decorre da morte imposta pelorei à própria nora, Inês de Castro, cuja infelicidadeé recriada no episódio camoniano.

Primeira Edição de Os Lusíadas

A guerra mais importante do reinado de Afon-so IV passou para a história com o nome de Batalhado Salado, descrita com detalhes por Camões nasestrofes 107-117 de Os Lusíadas. Deu-se entre umaaliança cristã da Península Ibérica e uma coligaçãoárabe, organizada com o propósito de invadir econquistar as terras cristãs, as quais já haviam sidodominadas alguns séculos antes. A Batalha do Sa-lado desferiu-se no dia 28 de outubro de 1340, noscampos de Tarifa, cidade da Andaluzia, no Estreitode Gibraltar, às margens do rio Salado. De um ladoestavam Afonso XI, de Castela, e Afonso IV, de Por-tugal; de outro, Halibocem Miralmolim, rei de Mar-rocos, e Abenhamet, rei de Granada. Os primeirosrepresentavam as forças cristãs da Península Ibéri-ca; os segundos, as forças islâmicas da África, sem-pre prontas para dominar o território cristão. O exér-cito muçulmano era infinitamente maior que o cris-tão. Mesmo assim, os cristão venceram. Em rigor, oataque árabe dirigiu-se contra Castela, cuja destrui-ção era iminente, em virtude da força do invasor. Porisso, o rei castelhano não se acanhou em pedir apoioao sogro português, cristão como ele. Note-se queD. Maria, filha de Afonso IV de Portugal era casada

com Afonso XI de Castela. Portugal sempre esteveem guerra contra Castela, mas ambos os países seuniam toda vez que o perigo árabe se aproximava.

Depois da Batalha do Salado é que se deu a tra-gédia de Inês de Castro, ainda no reinado de Afon-so IV. O episódio foi recriado por Camões nas es-trofes 118-135 do canto terceiro de Os Lusíadas.

A História de InêsVeja-se em resumo o perfil dessa tragédia. Den-

tre as damas que D. Constança trouxera consigo pa-ra a corte portuguesa, uma se chamava Inês de Cas-tro, tão notável pela beleza quanto pela origem. Eradescendente, por via bastarda, de Sancho IV, rei deCastela. O infante D. Pedro apaixonou-se perdida-mente por Inês, montou palácio para ela em Coim-bra e lá passou a desfrutar as horas mais felizes desua juventude. Nesse palácio é que foram criados ostrês filhos que o príncipe teve com ela: D. João, D. Di-nis e Dona Brites. Após a morte da rainha Constan-ça, diz a história que D. Pedro se casou secretamentecom Inês, tendo por testemunha pessoas que maistarde ocupariam cargos importantes em seu reinado.Quanto mais crescia o amor do casal, tanto mais in-quietos ficavam alguns membros da nobreza lusita-na. De fato, em pouco tempo, criou-se um partidodesfavorável ao crescimento do poder de Inês de Cas-tro. Temia-se que, morto Afonso IV, o príncipe her-deiro a elevasse à condição de rainha de Portugal.Esse temor era tanto maior quanto mais se fundava ahipótese de que, quando subisse ao trono, Inês pas-sasse a favorecer as pessoas de sua família, perten-cente à nobreza galega, em desfavor da fidalguia lu-sitana. Diante disso, tornava-se cada vez mais consis-tente o partido favorável à morte da amada do prín-cipe D. Pedro. Os nobres que mais se destacaramno processo de sua morte foram: Pero Coelho, Dio-go Lopes Pacheco e Álvaro Gonçalves. Segundo o re-lato camoniano, o rei teria recusado a idéia do assas-sinato, mas acabou consentindo, por causa da insis-tência dos conselheiros. Inês foi sacrificada no Mos-teiro de Santa Clara, em Coimbra, em 1355.

Logo depois que o príncipe D. Pedro tomou co-nhecimento do assassinato da esposa, que teria sidodegolada com o consentimento do próprio sogro,estabeleceu-se uma guerra civil em Portugal. O prín-cipe buscou apoio em dois irmãos de Inês, D. Álvaroe D. Fernando de Castro, iniciando imediatamente ashostilidades contra o pai. Os desentendimentos dura-ram cerca de seis meses, até que o próprio rei se viuobrigado a pedir as pazes com o filho. D. Afonso IVmorreu em 1357 e, nesse mesmo ano, o príncipe Pe-dro tornou-se o oitavo rei de Portugal. Uma de suasprimeiras atitudes como monarca foi vingar-se dosconselheiros do pai, então foragidos em terras caste-lhanas. Para poder apanhá-los, entrou em acordocom o rei de Castela, também chamado Pedro. Dostrês, conseguiu capturar dois: Pero Coelho e Diogo

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Lopes Pacheco, aos quais mandou retirar o coraçãoem praça pública, em espetáculo que atraiu enormemultidão.

Idealização da morte de Inês de Castro a partir do episódio camoniano.

Interferência de AmorCamões não inclui em seus versos tantos por-

menores políticos. Limita-se ao esboço geral da his-tória, sublinhando a paixão dos amantes, a proibi-ção do Estado e a vingança do amante contrariado.Dá como causa essencial da tragédia a “força crua”do Amor, afeto humano personificado na divindadegrega e romana Eros / Cupido e por isso alegorica-mente grafado com inicial maiúscula, conforme sepode ver pela estrofe 119 do canto terceiro, a se-gunda do episódio e uma das mais célebres de todoo poema de Camões:

Tu, só tu, puro Amor, com força crua, Que os corações humanos tanto obriga, Deste causa à molesta morte sua, Como se fora pérfida inimiga. Se dizem, fero Amor, que a sede tua Nem com lágrimas tristes se mitiga, É porque queres, áspero e tirano, Tuas aras banhar em sangue humano.

Pelo pensamento da estrofe, esse deus não secontenta com o tributo das lágrimas dos amantes,pois exige deles o próprio sangue. Aí, fica claro quea Camões não interessa explorar as razões políticasdo assassinato de Inês, preferindo apresentá-la co-mo vítima do Amor.

Retomando o episódio de Camões: após a mortede Inês, D. Pedro ordenou que seu corpo fosse trans-ladado de Coimbra para o Mosteiro de Alcobaça emLisboa, em pomposa procissão. Antes do sepulta-mento, teria coroado o cadáver de Inês, exigindo quea nobreza lhe beijasse a mão e a aclamasse rainhade Portugal. Essa é a versão idealizada do final deInês, que fundamenta o desfecho do episódio de Ca-mões. Todavia, o discurso histórico limita-se a afir-mar que houve apenas o sepultamento de Inês co-mo rainha, o que enfim se acha documentado pelaescultura do sepulcro, em cuja tampa, ornada cominúmeros detalhes em baixo-relevo, se vê ainda hojea figura angelical de Inês com a coroa de rainha.Trata-se de uma das mais elaboradas peças da es-cultura gótica em Portugal. D. Pedro I teve o cuidadode mandar executar um túmulo igual para si, com opropósito de que fosse sepultado ao lado de Inês, oque de fato ocorreu em 1367. Em seguida, ascendeuD. Fernando, o último rei da dinastia de Borgonha,pois sua filha Beatriz não teve acesso ao trono, emvirtude da Revolução de Avis, levada a efeito em 1385pelo príncipe D. João, o Mestre de Avis. Este era ou-tro filho bastardo de D. Pedro I, com uma nobre cha-mada Teresa Lourenço. O reinado de D. Fernando ea Revolução de Avis, com a famosa Batalha de Alju-barrota, vêm narrados no canto quarto de Os Lusía-das, em seqüência ao resumo da história de Portugalfeito por Vasco da Gama ao Rei de Melinde.

Estrutura Mista: Modo Apostróficoe Modo Narrativo

Do ponto de vista literário, o episódio de Inês deCastro não possui estrutura narrativa linear, como sepercebe, por exemplo, na estória do Gigante Ada-mastor. Ao contrário, é constituído pela alternânciaentre a narrativa em terceira pessoa e o tom apostró-fico em segunda pessoa. A primeira estrofe do episó-dio (III, 118) reveste-se de um tom narrativo bem ca-racterizado, em que uma voz impessoal apresenta osacontecimentos linearmente. A segunda, configura-se como apóstrofe do narrador (Vasco da Gama) aoAmor, alegorizado em Cupido ou Eros, conforme seviu acima. A terceira e a quarta estrofes convertem-se em apóstrofes do mesmo narrador à Inês, figuradaem sua juventude pelos campos de Coimbra, junto aorio Mondego, conversando com as flores e molhandoos campos com as lágrimas que vertia por saudadesde Pedro, sempre distante de seus olhos. Vivia ocupa-do com os negócios do reino em Lisboa, embora ja-mais a esquecesse também. A estrofe 122 do cantoterceiro, a quinta do episódio, retoma o modo narra-tivo linear e retrata Pedro debatendo-se entre a ne-cessidade, visto que Constança morrera jovem, deescolher outra esposa e o amor por Inês, com quemjá se casara secretamente. A estrofe seguinte inicia-seconforme o modelo narrativo da anterior, mas termi-na em apóstrofe contra Afonso IV: tão heróico na lu-

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ta contra os árabes quanto covarde com a indefesamulher do filho.

Daí para frente, o episódio prossegue oscilandoentre o modo narrativo linear em terceira pessoa e otom de apóstrofe (em segunda pessoa), até incluir umtraço de teatro, em que se idealiza a fala de Inês dian-te do sogro, momentos antes do sacrifício da morte.Este é o momento mais consagrado do episódio:apoiada no sentimento (afeto) de comiseração, aamante procura comover o sogro, tocando, na verda-de, o leitor, que, a esta altura, encontra-se completa-mente envolvido pelos afetos encarnados na heroína.

A fala de Inês a Afonso IV apresenta o seguinteargumento: se a história mítica dos povos demonstraque as feras sabem respeitar os humanos (pois Rô-mulo e Remo foram criados por uma loba; e Nino,por uma pomba), poupe minha vida e exila-me nosdesertos gelados da Sibéria ou nos desertos quen-tes da África, para ver se, entre feras, eu encontro oapoio necessário para criar meus filhos. Se minhainocência não te comove, comova-te ao menos a pie-dade dos órfãos que deixarei.

O que é Apóstrofe?A esta altura, convém saber com clareza em que

consiste uma apóstrofe literária. Trata-se de um vo-cativo grandioso, de um chamamento elevado, cujopropósito é comover o leitor, como se percebe naestrofe em causa:

Bem puderas, ó Sol, da vista destes, Teus raios apartar aquele dia, Como da seva mesa de Tiestes, Quando os filhos por mão de Atreu comia!Vós, ó côncavos vales, que pudestesA voz extrema ouvir da boca fria, O nome do seu Pedro, que lhe ouvistes, Por muito grande espaço repetistes!

A apóstrofe consiste no desvio da seqüência nar-rativa e no apelo a elementos alheios ao que se vinhaapresentando. Trata-se de uma quebra no rumo dodiscurso, espécie de digressão. Ao se dirigir, nestaestrofe, a elementos insensíveis às paixões huma-nas, o poeta amplifica a dor causada pela morte deInês, demonstrando que até os elementos insensí-veis a sentiram. A primeira foge da estória de Inês ecompara o horror de sua morte com a dos filhos deTiestes. A segunda procura incluir os vales ao pathosde sua morte, fazendo-os divulgá-la com um grito co-lossal a todo o reino da natureza. Seria mais espera-do que as apóstrofes se dirigissem a pessoas ou aqualquer espécie de animal capaz de sofrer como ohomem. Todavia, a apóstrofe, por tradição, torna-semais emocionante quando envolve elementos inani-mados. No caso específico desta, ao promover aprosopopéia ou personificação, o poeta inclui o sole os vales na esfera semântica de sua estória, com opropósito de amplificar ainda mais os amores de

Inês, fazendo com que o próprio céu e a terra (o cos-mos, a natureza) partilhem de sua dor.

Revisando o que ficou dito neste tópico: quanto àcomposição, o episódio de Inês de Castro baseia-sena alternância entre o modo narrativo linear e asapóstrofes do narrador. Essas interrupções possuema função de comentar a história, sugerindo ao leitoro juízo adequado sobre ela. Na tragédia grega, o co-ro era responsável pelos comentários à ação do es-petáculo. Por isso, pode-se dizer que as apóstrofesdo narrador deste episódio guardam semelhançascom o coro da tragédia grega, pois também comen-tam e interpretam os incidentes contidos na peça.Observe-se ainda que o narrador propriamente ditodo texto de Camões é Vasco da Gama, que vem con-tando a história de Portugal ao Rei de Melinde, des-de o início do canto terceiro do poema e a terminarásomente no final do canto quinto.

Tradição LiteráriaProfundamente arraigada às tradições populares,

a estória de Inês de Castro é o tema lírico de maiorrepercussão na literatura portuguesa, com alguns re-flexos também no Brasil. O primeiro poeta a abordarpoeticamente o assunto foi Garcia de Resende, emsuas “Trovas à Morte de Inês de Castro”, publicadasno Cancioneiro Geral, em 1516. Depois, surge a tra-gédia Castro, de Antônio Ferreira, editada pela pri-meira vez em 1587, em seus Poemas Lusitanos. Em-bora publicada depois de Os Lusíadas, é provável queCamões conhecesse essa tragédia, pois foi escrita eencenada bem antes da publicação de seu poema. Ca-mões aproxima-se mais da visão de Garcia de Resen-de, pois nele Inês também é apresentada como vítimada inexorabilidade do amor, enquanto que em Antô-nio Ferreira sua morte se dá por razões de Estado.

Em outros períodos, há inúmeras retomadas doassunto na literatura portuguesa. No Brasil, a maiorrepercussão da tópica acha-se numa paródia do epi-sódio camoniano, de autoria do poeta alagoano dasegunda fase do Modernismo Jorge de Lima: trata-se do canto nono (“Permanência de Inês”) de seulongo poema épico-lírico Invenção de Orfeu (1952),em que o poeta preserva o esquema estrófico da oi-tava-rima camoniana, em brilhante malabarismo defeição experimental e surrealista. Não se entendaaqui o vocábulo paródia no sentido de sátira ou desimples recriação irônica. Trata-se, antes, de home-nagem à imortalidade do mito consolidado pela artede Camões. Nesse caso, paródia possui o sentido decanto paralelo, pois se trata de variação em torno domesmo tema, em que o poeta clássico é revisitado emestilo modernista. A leitura do texto de Jorge de Li-ma deixa clara a admiração deste com relação ao tex-to original. Como toda paródia, esta deve ser enten-dida como uma variante de intertextualidade, umaespécie de diálogo textual entre autores de geraçõese propostas diferentes.

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Episódio de Inês de CastroTEXTO

118Passada esta tão próspera vitória1, Tornado Afonso à lusitana terra, A se lograr da paz com tanta glória,Quanta soube ganhar na dura guerra,O caso triste e dino da memória2, Que do sepulcro os homens desenterra3, Aconteceu da mísera e mesquinha4, Que despois de ser morta foi rainha5.

119Tu, só tu, puro Amor, com força crua6,Que os corações humanos tanto obriga7, Deste causa8 à molesta9 morte sua, Como se fora10 pérfida11 inimiga. Se dizem, fero12 Amor, que a sede tuaNem com lágrimas tristes se mitiga13, É porque queres, áspero14 e tirano, Tuas aras15 banhar em sangue humano.

120Estavas, linda Inês, posta em sossego16, De teus anos colhendo doce fruito17,Naquele engano da alma, ledo e cego18, Que a fortuna19 não deixa durar muito;

Nos saudosos campos do Mondego20, De teus fermosos olhos nunca enxuito21, Aos montes ensinando e às ervinhasO nome que no peito escrito tinhas22.

121Do teu Príncipe ali te respondiam23

As lembranças, que na alma lhe moravam, Que sempre ante seus24 olhos te traziam,Quando dos teus25 fermosos se apartavam;De noite, em doces sonhos que mentiam26, De dia, em pensamentos que voavam27;E quanto28 enfim cuidava29 e quanto viaEram tudo memórias30 de alegria.

122De outras belas senhoras e princesasOs desejados tálamos enjeita31, Que32 tudo enfim, tu, puro amor, desprezas33, Quando um gesto34 suave te sujeita35. Vendo estas namoradas estranhezas36, O velho pai sisudo37, que respeita38

O murmurar do povo39 e a fantesia40

Do filho, que casar-se não queria,

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1 Alusão à Batalha do Salado, que se deu no dia 28 de outubrode 1340. A batalha deu-se em Tarifa, cidade da Andaluzia, noEstreito de Gibraltar, às margens do rio Salado. Logo depoisdesta vitória contra os árabes, tendo Afonso IV retornado aPortugal, deu-se o caso de Inês de Castro, que o poeta vaicontar, em tom de lástima e revolta.

2 Dino da memória: digno de fama, que deve ser preservadopela memória, mediante a poesia.

3 A fama desenterra os homens do sepulcro, isto é, dá-lhesimortalidade.

4 Mísera e mesquinha: pobre e infeliz. 5 Que foi coroada como rainha depois de morta. 6 A estrofe anterior revestia-se do modo narrativo. Esta inicia-

se por uma apóstrofe, dirigida ao Amor, entendido como en-tidade divina da mitologia greco-latina: Eros, Cupido. Aquelareferia-se a uma terceira pessoa (a batalha, o caso de Inês);esta apela a uma segunda pessoa (Amor). Força crua: forçacruel, dura, rígida. Esta apóstrofe possui caráter dissertativo,pois fala da natureza abstrata do sentimento amoroso.

7 Subjuga.8 Motivo, origem. 9 Funesta, triste, lutuosa, dolorosa, aflitiva. 10 Fosse.11 Traiçoeira.12 Feroz.13 Abranda, alivia.14 Cruel. 15 Altares.16 Posta em sossego: vivendo tranqüilamente. Esta estrofe ini-

cia-se também por uma apóstrofe: agora, dirigida a Inês. Tra-ta-se de uma apóstrofe com propriedades narrativas, pois,por meio dela apresenta-se a situação inicial do episódio.

17 Doce fruto de teus anos: o prazer da juventude.18 Engano da alma, ledo e cego: enlevo alegre, envolvimento fe-

liz, mas cego, porque não percebia a desgraça que viria. Aseqüência alude a Cupido (Amor), sempre feliz e cego.

19 Destino.

20 Rio que corta Coimbra, onde morava Inês. 21 Enxuto. O verso afirma que Inês chorava de saudades de Pe-

dro. Chorava tanto, que inundava os campos do Mondego. 22 Inês trazia o nome de Pedro escrito no coração. Suspirava

tanto o nome do namorado, que as ervas e os montes o esta-vam aprendendo. Hipérbole e prosopopéia.

23 Prossegue a apóstrofe dirigida a Inês. 24 Do Príncipe.25 De Inês. 26 Doces sonhos que mentiam: alegres sonhos mentirosos.27 Pensamentos que voavam: Pensamentos fugazes.28 Tudo quanto. 29 Pensava, imaginava. 30 Recordações dos momentos vividos ao lado do Príncipe.31 Os dois primeiros versos desta estrofe revestem-se de tom

narrativo, referindo-se ao Príncipe D. Pedro. No terceiro, res-surge a apóstrofe, que domina também o quarto verso, nova-mente dirigida ao Amor. A ordem direta destes versos é: [opríncipe] enjeita os desejados tálamos de outras belas senho-ras e princesas. Isto é: após a morte de D. Constança de Cas-tela, foram oferecidas várias hipóteses de casamento ao In-fante D. Pedro. Ele recusou todas, pois estava casado secreta-mente com D. Inês de Castro. Desejados tálamos: leitos cobi-çados. Metonímia: as damas e princesas é que são cobiçadas.

32 Porque.33 Nova apóstrofe dirigida ao Amor. 34 Rosto, semblante. 35 Domina. 36 Retoma-se o modo narrativo em terceira pessoa. O texto refe-

re-se, agora, a D. Afonso IV: o velho pai sisudo (do verso se-guinte), que é sujeito do verbo ver, com que se inicia o perío-do. Namoradas estranhezas: extravagâncias amorosas.

37 Prudente, sério, carrancudo. Propriedade típica de um reimedieval.

38 Leva em conta, considera. Afonso IV leva em conta o murmu-rar do povo e a fantasia do filho. Respeitar não possui, aqui, osentido usual de ter respeito.

39 Murmurar do povo: comentários adversos ao comportamen-to do príncipe.

40 Fantasia, capricho, vontade irracional. Pela perspectiva do Es-tado e da opinião popular, o desejo do príncipe de não se casarcom uma das damas escolhidas pela Corte era inconseqüente.

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Tirar Inês ao mundo determina41, Por lhe tirar o filho, que tem preso42, Crendo co sangue só da morte indina43

Matar do firme amor o fogo aceso. Que furor consentiu que a espada fina44, Que pôde sustentar o grande pesoDo furor45 mauro46, fosse alevantadaContra ua fraca dama47 delicada?

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Traziam-na os horríficos algozes48

Ante o Rei, já movido a piedade;Mas o povo49, com falsas e ferozesRazões50, à morte crua o persuade.Ela, com tristes e piedosas vozes, Saídas só da mágoa e saudadeDo seu Príncipe e filhos, que deixava, Que mais que a própria morte a magoava51,

125

Pera52 o céu cristalino alevantando53

Com lágrimas os olhos piadosos54,(Os olhos, porque as mãos lhe estava atando Um dos duros ministros rigorosos),E despois nos meninos atentando, Que tão queridos tinha e tão mimosos55, Cuja orfindade56 como mãe temia, Pera o avô cruel57 assi58 dizia:

126“Se já nas brutas feras, cuja mente59

Natura60 fez cruel de nascimento, E nas aves agrestes61, que somente Nas rapinas aéreas62 têm o intento, Com pequenas crianças viu a gente63

Terem tão piadoso sentimento,Como co’ a mãe de Nino64 já mostraramE co’os irmãos que Roma edificaram65;

127Ó tu, que tens de humano o gesto e o peito66

(Se de humano é matar uma donzela67

Fraca e sem força68, só por ter sujeito69

O coração a quem soube vencê-la70),A estas criancinhas tem respeito71, Pois o não tens à morte escura dela72;Mova-te a piadade sua e minha73,Pois te não move a culpa que não tinha74.

128E se, vencendo a maura resistência75

A morte sabes76 dar com fogo e ferro,

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41 Continua nesta estrofe o período da anterior, mantendo-se,portanto, o tom narrativo em terceira pessoa. A ordem diretadeste verso é: determina tirar Inês ao mundo. Isto é: Afonso IVmanda tirar Inês do mundo; manda matá-la.

42 Associado ao anterior, este verso apresenta trocadilho: tirarInês ao mundo, por (porque) ela lhe tirou o filho, tendo-opreso (ele tornou-se prisioneiro do amor dela).

43 Indigna. 44 Inicia-se aqui nova apóstrofe, alusiva a Afonso IV, que soube

vencer os mouros na Batalha do Salado, mas se mostra co-varde contra Inês.

45 Fúria guerreira, coragem bélica.46 Mouro, árabe, islâmico, muçulmano.47 Inês de Castro.48 Carrascos. Retoma-se aqui o tom narrativo em terceira pes-

soa: os carrascos trouxeram Inês diante do Rei, que já semostrava comovido e inclinado a livrar a nora da morte.

49 Os ministros, que pretendiam sustentar a vontade do povo.50 Motivos. 51 A dor da perda dos filhos e do marido a magoava mais do

que a idéia da própria morte.52 Para.53 Erguendo.54 Piedosos, que inspiram compaixão.55 A quem tinha amor e mimos. Mimosos equivale a bem educa-

dos.56 Orfandade.57 D. Afonso IV, pai do Príncipe D. Pedro.58 Assim.

59 Esta estrofe e as três seguintes apresentam a fala de Inês aoRei Afonso IV, em discurso direto, como num teatro. Mente:instinto.

60 Natureza. 61 Selvagens, não domésticas. 62 Rapinas aéreas têm o intento : [as aves agrestes] que só têm o

intento nas rapinas aéreas. Intento: atenção, propósito, dese-jo. Rapina: ato ou efeito de rapinar; roubo violento; aqui, equi-vale a coisas que as aves roubam. Aérea: ao ar livre, aquiloque está exposto às aves de rapina.

63 Ordem direta do verso: a gente viu com pequenas crianças. Agente viu: viu-se, foi visto.

64 A mãe de Nino é Semíramis, lendária rainha da Assíria. Foiabandonada numa floresta para aí morrer, mas foi salva porpombas, que a alimentaram.

65 Ordem direta: irmãos que edificaram Roma. Alusão a Rômuloe Remo, lendários fundadores de Roma, em 753 a. C. Expos-tos às margens do rio Tibre para morrerem, Rômulo e Remoteriam sido alimentados por uma loba.

66 O gesto e o peito: o rosto e o coração. 67 Inês de Castro. A personagem trata-se em terceira pessoa.

Donzela está empregado no sentido de jovem da corte, mem-bro da nobreza.

68 Fraca e sem força: expressão pleonástica, pois fraca já impli-ca ausência de força.

69 Rendido, dominado, no sentido amoroso.70 A quem soube vencê-la: a perífrase refere-se ao Príncipe D. Pe-

dro, que foi vencido pelo amor de Inês, mas que também a ven-ceu. O amor de ambos foi recíproco.

71 A estas criancinhas tem respeito: Atende tu a estas criancinhas.Tenha-as tu em consideração.

72 Pois o não tens à morte escura dela: Pois não tens respeito (con-sideração) pela morte escura dela (= de Inês). Escura: triste.

73 Mova-te a piadade sua e minha: tomara que piedade de meus fi-lhos e a minha própria te movam (comovam). Piadade: piedade,compaixão.

74 Pois te não move a culpa que não tinha: pois o fato de eu não terculpa não te comove.

75 Maura resistência: a pertinácia dos árabes. Alusão ao desem-penho de Afonso IV na Batalha do Salado.

76 Segunda pessoa do presente do indicativo.

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Sabe77 também dar vida com clemênciaA quem pera perdê-la não fez erro.Mas, se to assi merece esta inocência78,Põem-me em perpétuo e mísero desterro, Na Cítia79 fria ou lá na Líbia80 ardente, Onde em lágrimas viva eternamente.

129Põe-me onde se use toda a feridade81, Antre82 leões e tigres; e verei Se neles achar posso a piadadeQue antre peitos humanos83 não achei.Ali, co amor intrínseco84 e vontade85

Naquele por quem mouro86, criarei Estas relíquias suas87 que aqui viste88, Que refrigério89 sejam da mãe triste.”

130Queria perdoar-lhe o Rei benino90, Movido das palavras que o magoam91, Mas o pertinaz povo92 e seu destino93

(Que desta sorte o quis94) lhe não perdoam. Arrancam das espadas de aço fino Os que por bom tal feito ali apregoam. Contra ua dama, ó peitos carniceiros, Feros95 vos amostrais e cavaleiros?!96

131Qual contra a linda moça Policena97, Consolação extrema da mãe velha98, Porque a sombra de Aquiles a condena, Co ferro o duro Pirro se aparelha99;Mas ela, os olhos com que o ar serena(Bem como paciente e mansa ovelha)Na mísera mãe postos, que endoudece, Ao duro sacrifício se oferece:

132Tais contra Inês os brutos matadores, No colo de alabastro100, que sustinhaAs obras com que Amor matou de amoresAquele que despois a fez rainha101,As espadas banhando102 e as brancas flores103

Que ela dos olhos seus regadas tinha104, Se encarniçavam105, férvidos106 e irosos107, No futuro castigo não cuidosos108.

133Bem puderas, ó Sol, da vista destes109, Teus raios apartar110 aquele dia, Como da seva mesa111 de Tiestes, Quando os filhos por mão de Atreu comia!

ANGLO VESTIBULARES 11

77 Segunda pessoa do imperativo afirmativo. Dir-se-ia hoje:saiba (você).

78 Mas, se to assi merece esta inocência: Mas se esta inocência as-sim to merece. To merece: merece isso, o fato de o rei poderdar vida com clemência. Inocência: Inês e os filhos.

79 Nome antigo com que se designavam as regiões polares donorte da Europa e da Ásia.

80 Nome antigo com que se designava o norte da África, entãoimaginado como lugar inóspito e habitado por animais ferozes.

81 Ferocidade, atributo de feras. 82 Entre. 83 Peitos humanos: corações humanos, seres humanos. 84 Interno, íntimo, profundo.85 Benquerença, desejo. 86 Morro. Inês afirma que, mesmo no exílio, jamais esquecerá

aquele por quem morre: Pedro.87 Estas relíquias suas: estas relíquias dele, do Príncipe D. Pedro.

Alusão aos filhos de Inês com D. Pedro. 88 Esta forma verbal faz crer que os filhos estiveram presentes

no começo da cena. Depois, teriam sido retirados.89 Consolo. 90 Benigno, bondoso.91 Movido das palavras que o magoam: comovido pelas palavras

que o tocaram profundamente. 92 Pertinaz povo: povo obcecado, convicto. Alusão ao firme pro-

pósito dos conselheiros do rei.93 Seu destino: destino de Inês. A sorte dela estava determinada

pela má fortuna. Aqui, as razões políticas fundem-se com o fa-talismo poético.

94 Que desta sorte o quis: (o destino dela) que assim determinousua sorte, seu fado, sua sina.

95 Ferozes. Condição de animais selvagens.96 Os dois últimos versos da oitava introduzem forte apóstrofe

contra os que apregoavam tal morte por boa. Alusão contraos conselheiros do rei, aqui chamados de carniceiros, isto é,animais que vivem de carniça, como os urubus e os chacais.Cavaleiros: este vocábulo está empregado em sentido irônico,pois um verdadeiro cavaleiro dos tempos heróicos jamais ata-caria uma dama, antes se empenharia em defendê-la.

97 Inicia-se nesta estrofe uma comparação que se estende até o fi-nal da próxima: assim como Pirro assassinou a inocente Police-na, Inês também foi inocentemente imolada pelos terríveis car-rascos de Afonso IV. Policena era filha de Príamo e Hécuba, reisde Tróia. Durante uma trégua, Aquiles, herói grego que lutavacontra Tróia, apaixonou-se por Policena. Numa cilada, Páris, ir-mão de Policena, matou Aquiles com um tiro de flecha no calca-nhar, único ponto vulnerável do herói. Depois de morto, Aquilesexigiu que seu filho Pirro matasse Policena, para que ela oacompanhasse no mundo das sombras. Em atendimento à som-bra do pai, Pirro, sob o pretexto de visita, conduz Policena aotúmulo de Aquiles e, aí, a assassina cruelmente.

98 Hécuba, mulher de Príamo. 99 Prepara-se, arma-se com espada (duro ferro).100 No colo de alabastro: no colo tão branco quanto alabastro. Ala-

bastro: espécie de mármore.101 Que sustinha / As obras com que Amor matou de amores / Aquele

que despois a fez rainha: a beleza do colo (parte do corpo que en-volve o pescoço e os seios) de Inês é que susteve os atrativos comque Amor matou Pedro de amores. Há nessa imagem insinua-ções de erotismo sensual.

102 As espadas banhando: penetrando as espadas (no colo de ala-bastro).

103 E as brancas flores: e (também banhando de sangue) os seios tãobrancos quanto flores brancas. Nova insinuação erótica.

104 Inês regava as brancas flores dos seios com as lágrimas de tris-teza derramadas por Pedro.

105 Comportavam-se como carniceiros, como animais que vivem decarniça.

106 Agitados pelo desejo de matar.107 Irados, agitados pela ira. 108 Não cuidosos: não cuidadosos do futuro castigo; sem pensar na

futura vingança do príncipe que se tornaria rei.109 Inicia-se aqui apóstrofe dirigida ao Sol, que, diante da atrocida-

de do assassinato de Inês, deveria se recusar a iluminar a terranaquele dia, tal como já fizera ao ver que Atreu obrigou o irmãoTiestes a comer a carne dos próprios filhos. Ver comentários naintrodução ao episódio de Inês de Castro.

110 Separar, desviar. 111 Seva mesa: cruel banquete, atroz refeição.

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Vós, ó côncavos vales112, que pudestesA voz extrema ouvir da boca fria113, O nome do seu Pedro, que lhe ouvistes, Por muito grande espaço repetistes!114

134Assi como a bonina115, que cortada Antes do tempo foi, cândida e bela, Sendo das116 mãos lascivas117 maltratadaDa menina que a trouxe na capela118, O cheiro traz perdido e a cor murchada119:Tal120 está, morta, a pálida donzela121, Secas do rosto as rosas e perdidaA branca e viva cor co’a doce vida122.

135As filhas do Mondego123 a morte escura124

Longo tempo chorando memoraram125,E, por memória eterna, em fonte pura

As lágrimas choradas transformaram126. O nome lhe puseram, que inda dura127, “Dos amores de Inês”, que ali passaram128. Vede que fresca fonte rega as flores, Que lágrimas são a água; e o nome, Amores!129

EXERCÍCIOS1. A história afirma que a morte de Inês de Castro foi

ocasionada por razões políticas. Responda:a) Na reconstrução poética de Camões, os motivos da

morte de Inês teriam sido “razões de Estado”?Justifique.

b) Aponte a estrofe em que você se apoiou para res-ponder a pergunta anterior.

2. O mito dos amores de Inês possui muita força na sen-sibilidade portuguesa. Responda:a) Quais são as duas grandes recriações literárias

desse mito anteriores à de Camões?b) De qual delas Camões mais se aproxima? Justifi-

que.

3. Do ponto de vista da exposição da matéria, o episó-dio de Inês de Castro mistura o modo impessoal danarrativa em terceira pessoa com o tom exclamativoem segunda pessoa. Observe a estrofe 123 do episó-dio e responda:

Tirar Inês ao mundo determina, Por lhe tirar o filho, que tem preso, Crendo co sangue só da morte indinaMatar do firme amor o fogo aceso. Que furor consentiu que a espada fina, Que pôde sustentar o grande pesoDo furor mauro, fosse alevantadaContra ua fraca dama delicada?

a) Mediante qual figura de retórica se manifesta otom exclamativo?

b) Na estrofe em destaque ocorre a mistura de mo-dos de narrar? Justifique com observações ex-traídas do texto.

4. Leia a estrofe 119 do episódio:

Tu, só tu, puro Amor, com força crua,Que os corações humanos tanto obriga, Deste causa à molesta morte sua, Como se fora pérfida inimiga. Se dizem, fero Amor, que a sede tuaNem com lágrimas tristes se mitiga,

12 LITERATURA • Fuvest 2003

112 Inicia-se nova apóstrofe, dirigida aos vales de Coimbra, quepresenciaram a morte de Inês. Ver comentário na introduçãoao episódio de Inês de Castro.

113 Os vales ouviram a extrema voz (o último grito: Peeedrooo!)proferido pela boca fria (pela proximidade da morte) de Inês.

114 Os vales, tendo ouvido o nome de Pedro da boca fria de Inês,repetiram-no durante longo espaço de tempo e por larga ex-tensão geográfica.

115 Inicia-se comparação, que domina toda a estrofe: assim co-mo uma flor silvestre (bonina) murcha e morre ao ser cortadapor mão travessa de menina, dessa maneira murcharam asrosas do rosto de Inês, logo após a ação dos carrascos. Vercomentário na introdução ao episódio de Inês de Castro.

116 Pelas. 117 Lascivo não está empregado aqui no sentido corrente de sen-

sual, mas no de brincalhão, travesso. 118 Grinalda. 119 A flor traz o cheiro perdido e a cor murchada: morre.120 Este tal prende ao assi, do início da estrofe: assim como a

bonina, tal está Inês. 121 Jovem da corte. No mesmo sentido em que o vocábulo foi

usado na estrofe 127. Ver nota 67.122 Estes dois versos, belíssimos, jogam com a palidez do rosto

de Inês, depois de morta. Rosas dos rostos são as faces; agoraestão secas, pois a morte lhes tirou a brancura e a vivacidade:a branca e viva cor.

123 Ninfas do Mondego, rio que corta Coimbra, cidade em quemorava Inês. Na poesia clássica quinhentista, era comum ospoetas, imitando a Antigüidade com relação aos oceanos,imaginarem ninfas em seus rios particulares. No início de OsLusíadas, Camões fala em Tágides, ninfas do Tejo, rio de Lis-boa. Trata-se de alegoria. Aqui, as filhas do Mondego podemtambém representar as damas de Coimbra, que teriam la-mentado a morte da companheira, em choro contínuo.

124 Violenta, triste, horrorosa, lamentável. 125 Trouxeram na lembrança, em contínuo choro. Homenagea-

ram com lágrimas.126 Para perpétua memória dos amores de Inês e Pedro, as filhas

do Mondego transformaram as próprias lágrimas numa fonte,que ainda existe em Coimbra. Ver comentário na introduçãoao episódio de Inês de Castro. Trata-se de uma metamorfose,no sentido clássico de narrativa que alegoriza uma transfor-mação. Ovídio, poeta contemporâneo a Cristo e ao Impe-rador Otávio Augusto, escreveu um conjunto de fábulas de-dicadas a transformações importantes na mitologia latina,chamado As Metamorfoses. Evidentemente, as lágrimas quegeraram a fonte não são exclusivas das filhas do Mondego,mas também de Inês e de Pedro. A metamorfose literária (mí-tica) depende da hipérbole e da alegoria.

127 Inês foi morta em 7 de janeiro de 1355. Os Lusíadas foram pu-blicados em 1572. O texto afirma que, no tempo da redação daestrofe, ainda existia a Fonte dos Amores. Ainda hoje pode servista em Coimbra. Trata-se de lugar turístico muito visitado.

128 Entenda-se: dos amores de Inês e de Pedro, que ali se passa-ram (que ali transcorreram), numa quinta de Coimbra.

129 Os versos finais do episódio abandonam o clima da tragédia efiguram um diálogo com os leitores, convocando-os a obser-varem a Fonte dos Amores, como se ela estivesse em nossafrente. O poeta ressalta, uma vez mais, que a origem dela sãolágrimas e amores, apesar do aspecto sereno e agradável. Tra-ta-se de uma alegoria da idéia de que a beleza decorre do sofri-mento.

Page 9: OsLusiadas

É porque queres, áspero e tirano, Tuas aras banhar em sangue humano.

Considerando os pressupostos teóricos da questãoanterior, assinale a melhor alternativa sobre esta fa-mosa estrofe:a) Digressão emotiva, em que o narrador sintetiza

toda a tragédia de Inês mediante apóstrofe contraD. Afonso IV, chamado de “áspero e tirano”.

b) Passagem narrativa em terceira pessoa, em que onarrador relata com impessoalidade o modo comque Amor mata suas vítimas.

c) Passagem em que se observa a mistura da narrati-va impessoal em terceira pessoa com o modo pes-soal de primeira, mediante apóstrofe contra acrueldade do Amor.

d) Digressão emotiva, em que o narrador dirige im-petuosa apóstrofe contra a crueldade do amor,que tiraniza até a morte suas vítimas.

e) Apóstrofe dirigida ao Amor, por força de quem orei D. Afonso IV se viu obrigado a assassinar Inês,embora suas razões objetivas fossem de ordempolítica.

5. Leia a estrofe 121 do episódio:

Do teu Príncipe ali te respondiam As lembranças que na alma lhe moravam, Que sempre ante seus olhos te traziam,Quando dos teus fermosos se apartavam; De noite, em doces sonhos que mentiam,De dia, em pensamentos que voavam;E quanto, enfim, cuidava e quanto viaEram tudo memórias de alegria.

A melhor ordem direta para os quatro primeiros ver-sos, com adaptações:a) Ali (nos Campos do Mondego), as lembranças que

moravam na alma de teu príncipe te respondiam(encontravam eco em ti), lembranças (recorda-ções) que sempre te traziam ante os olhos dele,quando estes olhos se apartavam dos teus olhosfermosos.

b) Ali (nos Campos do Mondego), as lembranças (re-cordações) de teu príncipe, que moravam em tuaalma, sempre te traziam ante os olhos dele, quan-do estes se apartavam dos teus olhos fermosos.

c) Ali (nos Campos do Mondego), os teus fermososolhos se apartavam dos olhos dele quando as lem-branças que moravam na alma dele sempre tetraziam ante os olhos dele.

d) Ali (nos Campos do Mondego), as lembranças deteu príncipe te respondiam (encontravam eco emti), lembranças (recordações) que sempre se apar-tavam de ti quando os teus fermosos olhos te tra-ziam ante os dele.

e) Ali (nos Campos do Mondego), te respondiam aslembranças de teu príncipe, as quais moravam naalma dele, quando os olhos dele se apartavam detuas lembranças (recordações), trazendo (para per-to) teus olhos fermosos.

6. Leia a primeira estrofe do canto nono do poema épi-co-surrealista Invenção de Orfeu:

Estavas, linda Inês, nunca em sossego

E por isso voltaste neste poema,Louca, virgem Inês, engano cego, Ó multípara Inês, sutil e extrema, Ilha e mareta funda, raso pego, Inês desconstruída mas eurema, Chamada Inês de muitos nomes, antes, Depois, como de agora, hojes distantes.

Assinale a alternativa correta sobre a autoria destetexto e sobre suas relações com a estrofe 120 doepisódio camoniano:

a) Escrita pelo modernista Murilo Mendes, da pri-meira geração, trata-se de paródia, pois satiriza ouniverso clássico de Camões.

b) Escrita pelo modernista Jorge de Lima, da segun-da geração, trata-se de paródia, pois satiriza o uni-verso clássico de Camões.

c) Escrita pelo modernista Jorge de Lima, da segun-da geração, trata-se de paródia, pois recria em es-tilo modernista a eternidade do mito consolidadopor Camões.

d) Escrita pelo modernista Carlos Drummond deAndrade, da segunda geração, trata-se de paró-dia, pois recria em estilo modernista a eternidadedo mito consolidado por Camões.

e) Escrita pelo modernista Jorge de Lima, da segundageração, trata-se de paródia, pois satiriza a eterni-dade do mito consolidado por Camões.

O Velho do Restelo

O VELHO DO RESTELOComentárioSituação Histórica

Restelo é o nome da praia de onde, no dia 8 de

ANGLO VESTIBULARES 13

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julho de 1497, partiram as caravelas de Vasco da Ga-ma em busca do perigoso e desconhecido caminhomarítimo para a Índia. Mais especificamente, as ca-ravelas partiram do Templo dos Reis de Belém, cons-truído pelo Infante D. Henrique às margens do RioTejo, no mesmo local em que depois se construiu oimponente Mosteiro dos Jerônimos. Antes dessa via-gem, só era possível chegar ao Extremo Oriente peloMar Mediterrâneo e pelas terras do Oriente Médio.Mas a rota mediterrânea era essencialmente medie-val, com vantagens parciais para os países ibéricos.Por isso, convinha a Portugal evitar a tradição e ins-taurar um novo caminho, mais compatível com o es-pírito do Renascimento, dominado pela idéia de aven-tura, de conhecimento e de lucros espantosos. Surgiudaí a iniciativa de D. Manuel, o Venturoso, em nomede quem Vasco da Gama se entrega ao Mar Tenebro-so, expressão com que o Infante D. Henrique batiza-ra o mistério e o sonho que dominaram toda sua vi-da. Esse mesmo mistério assanhava todo o povo por-tuguês, que via nas viagens solução para inúmerosproblemas do país. Apesar do entusiasmo geral, adúvida e o medo misturavam-se com a coragem ecom a ousadia. Tratava-se, enfim, de experiência iné-dita na história do homem.

A pequena armada que realizou essa grande via-gem era composta pelas seguintes naus: S. Gabriel,de Vasco da Gama; S. Rafael, de Paulo da Gama; eBérrio, de Nicolau Coelho; sem contar uma quarta,responsável pelo transporte de alimentos. Uma dasprincipais fontes históricas da expedição é o diáriode navegação de Álvaro Velho, escrivão da armada.Todavia, para recompor poeticamente a aventura,Camões se inspirou sobretudo na Primeira Décadada Ásia (1552), de João de Barros, o maior historiadordo Renascimento português, de quem o poeta her-daria o tom apologético e o espírito triunfalista, com-patíveis ambos com o gênero épico. Outra fonte im-portante para a reconstrução poética da viagem foia História do Descobrimento e Conquista da Índia pe-los Portugueses (1551), de Fernão Lopes de Casta-nheda.

Ficção do EpisódioEm rigor, o episódio do Velho do Restelo é um

fragmento da seqüência conhecida como a Partidadas Naus, em que se narra o embarque oficial dos na-vegantes, antecedido de procissão solene e despedi-das espontâneas. A Partida das Naus inicia-se naestrofe 84 e termina na estrofe 93 do canto quarto.Na estância seguinte, entra em cena o Velho do Res-telo, que nada mais é do que uma dentre as inúme-ras pessoas que se amontoaram na praia para se des-pedir dos navegantes. Havia mães, esposas, filhas,crianças, meninos e velhos. Simbolizando o espíritode resignação do eterno amor feminino, despedem-se primeiro duas mulheres: uma mãe e uma esposa,que sofrem com a ausência antecipada dos entes que-

ridos. Simbolizam, portanto, os sentimentos íntimosdas famílias dos navegantes, o aspecto emocional dopovo português. Criam a atmosfera de anseio e inse-gurança popular diante dos perigos da viagem. Re-presentam a voz do sentimento, saída dos movimen-tos espontâneos do coração feminino. Os velhos e osmeninos, já enfraquecidos pela idade ou ainda fracospor não ter idade, limitam-se a seguir a procissão dosnavegantes. As próprias montanhas se emocionam,enquanto a areia da praia se inunda com as lágrimasdos parentes. Vasco da Gama, fingindo indiferençadiante de tamanha emoção, entrega-se estoicamen-te à missão de desvendar os mares.

Quando as naus já se encontravam no Atlântico,surge um grito vindo da praia: é o Velho do Restelo,homem rude do povo, que não consegue se calardiante da imprudência da viagem. Não podia concor-dar com aquilo. A aventura não encontrava outra jus-tificativa senão o desejo de mando e a ambição deglória. O país não se achava suficientemente fortale-cido para que os homens em condições de defendê-loo deixassem à mercê do inimigo espanhol ou do inva-sor árabe. A vaidade do rei confundia-se com a vaida-de comum de todos os mortais, sempre enganadospela ilusão de progresso e de inteligência. Teria sidomelhor o homem jamais ter inventado a caravela doque expor todo um povo a viagem tão arriscada!

Em termos extremamente simplificados, este é oconteúdo do protesto do Velho do Restelo. O episó-dio todo consiste num só grito desesperado contraos idealizadores da expedição. O velho não concor-dava com a viagem, por entendê-la desnecessária àsegurança do povo. Era contrário à expansão geo-gráfica, porque julgava que a estabilidade deveriadecorrer do fortalecimento interno, e não do comér-cio exterior. Sua fala impetuosa começa na estrofe 94do canto quarto e encerra o mesmo canto, na estrofe104. Antes dele, falam duas mulheres: uma mãe (90)e uma esposa (91).

Na famosa estrofe 94, apresenta-se a figura doVelho, que é caracterizado tanto física quanto moral-mente. Essa estrofe possui função proemial, de aber-tura, no episódio, pois põe à frente do leitor a figurainteira do velho, de quem dependem as próximas dezestâncias. Trata-se de um tipo muito vivo de descri-ção, a que os teóricos da antigüidade chamavam hi-potipose, demonstração ou evidência, que consisteem descrever tão vivamente o que se pretende, queparece que se dá a ver aquilo de que se fala. Em ou-tros termos, a hipotipose produz uma representaçãotão impressionante das coisas, que acaba gerando asensação de que elas estão diante dos olhos do leitor:

Mas um velho, de aspeito venerando, Que ficava nas praias entre a gente, Postos em nós os olhos, meneandoTrês vezes a cabeça descontente,A voz pesada um pouco alevantando,

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Que nós no mar ouvimos claramente, Cum saber só de experiências feito,Tais palavras tirou do experto peito.

Justamente célebre, essa estrofe apresenta inú-meras ressonâncias da literatura clássica, dentre asquais se deve destacar a tópica da sabedoria práticaassociada à velhice, expressa pelo verso lapidar, ja-mais esquecido por quem uma vez o ouve: cum sabersó de experiências feito. É também clássica a adoçãodo número três para enumerar os meneios de cabe-ça da personagem. Oriundos da Eneida de Virgílio,os movimentos ternários encontram eco também emO Uraguay, de Basílio da Gama, onde se lêem os se-guintes versos (canto segundo, vv. 350-351):

...Quis três vezesLevantar-se do chão: caiu três vezes.

Também no epílogo de O Guarani, de José deAlencar, ocorre a clássica imagem dos movimentosternários, no momento crucial da trama, quandoPeri definitivamente encontra saída para o impasseque ameaçava a vida de Ceci:

Três vezes os seus músculos de aço, estorcen-do-se, inclinaram a haste robusta; e três vezes o seucorpo vergou, cedendo à retração violenta da árvo-re, que voltava ao lugar que a natureza lhe haviamarcado.

No poema “O Mostrengo”, de Fernando Pessoa,transcrito no presente volume na análise do episódiodo Gigante Adamastor, reaparece três vezes a ima-gem da enumeração ternária, quando se trata de in-sinuar a hesitação de Bartolomeu Dias diante domostrengo pessoano que, à maneira de Adamastor,também simboliza os perigos do mar desconhecido:

À roda da nau voou três vezes, Voou três vezes a chiar

Sentido do EpisódioNa época da expansão mercantilista, entre os sé-

culos XV e XVI, havia duas correntes de opinião emPortugal: uma, voltada para os valores medievais,mais preocupada com a agricultura e com os princí-pios da velha nobreza fundiária; outra, voltada para arenovação do perfil econômico do país, mais preocu-pada com o comércio e com os princípios flutuantesda burguesia em ascensão. O Velho do Restelo repre-senta a primeira corrente. Por isso, sua posição é aus-tera e essencialista. Pretende manter a tradição, sempartilhar do relativismo dos novos tempos. Vê no pro-gresso um perigo à própria inocência do homem, va-lor máximo para a obtenção da felicidade e da segu-rança do povo. Contrário ao espírito de rebeldia e deinvenção representado pelo mito de Prometeu, o Ve-lho do Restelo acredita na obediência cega aos eleva-dos princípios da honra e de Deus, os quais devempermanecer acima de qualquer discussão. Por isso,censura a ambição, o comércio, o progresso e a guer-

ra. A ambição transferiu o homem da Idade de Ouro,dominada pela paz, para a Idade de Ferro, movidapela guerra. Esta mesma ambição é que leva o povoportuguês ao Oriente.

Escreve Rebelo Gonçalves, autor das célebresDissertações Camonianas, acerca da atmosfera con-trária à expansão iniciada pelo Infante D. Henrique:

São bem conhecidas, por exemplo, as oposiçõesfeitas à política marroquina pelo senhor de Barce-los, em carta a D. João I, e pelo Infante D. Pedro,que via nos sonhos do irmão [o Infante D. Henri-que] a troca de “uma boa capa por um mau cape-lo”. Do mesmo modo, sabemos que foram ve-ementes as oposições à busca de terras atlânticas,tão veementes, que podiam estar ainda vivas namemória dos homens do século XVI e ser repro-duzidas por João de Barros sob esta forma ex-pressiva:“Certamente nós nam sabemos que opiniã foyesta do infante, nem que fructo elle espera desteseu descobrimento, senam perdiçam de quantagente vay em os navios, pera ficárem muytosórfãos & viúvas no reyno, alem da despesa desuas fazendas, pois o perigo & o gasto ambosestam manifestos & o proveito tam incérto, co-mo todos sabémos.”Os Lusíadas são um hino de louvor ao imperia-

lismo português. De resto, como construção épica, opoema tinha de exaltar a guerra, a coragem, a aven-tura, o imprevisível e a ousadia da viagem. E isso é oque se percebe em todo o poema. Logo, o Velho doRestelo representa uma oposição ao ideário centralda epopéia. Nesse sentido, pode-se admiti-lo comopersonagem alegórica, porque encarnaria uma dascorrentes de opinião existentes na época em quetranscorre a ação do poema. O Velho seria, assim,uma dentre as muitas vozes de que se compõe a fic-ção do texto.

O ensaísta Antônio José Saraiva, um dos maismodernos estudiosos de Camões, não aceita essainterpretação. Segundo ele, as idéias do Velho doRestelo não se harmonizam com o todo da epopéiacamoniana. Representariam uma flagrante contra-dição entre o louvor da expansão para o Oriente(idéia artificialmente assumida por Camões enquan-to poeta oficial da corte) e a censura do progresso eda expansão para o Oriente (idéia assumida por Ca-mões enquanto humanista que não se identificacom o tema do próprio poema, pois julgava que a ex-pansão deveria limitar-se ao norte da África, regiãodominada pelos muçulmanos). Pela perspectiva doensaísta português, longe de representar aspectonegativo no poema, essa incongruência dinamiza apoesia do texto, atribuindo-lhe mais vivacidade es-tética. Segundo ele, quem fala através do Velho doRestelo é o próprio Camões, que inventou a persona-gem para incorporar ao poema alguns juízos moraisda cultura humanística, que critica os acontecimentos

ANGLO VESTIBULARES 15

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por uma perspectiva metafísica, julgando a históriade fora dos acontecimentos.

A fala do Velho do Restelo pode ainda ser vistacomo manifestação do princípio geral de comentá-rio alternativo aos incidentes da ação do poema. Al-go mais ou menos assim: os portugueses partem,então o poeta deve oferecer uma reflexão crítica so-bre a partida, podendo se posicionar contrária oufavoravelmente a ela. Se se admitir esse princípio,defendido por diversos intérpretes, dentre os quaisse conta o historiador português Jorge Borges deMacedo, pode-se afirmar que Camões se apropriade um procedimento consagrado pela tragédia gre-ga, cujo coro possui a função de comentar e inter-pretar os incidentes da ação em curso. Assim comoo coro da tragédia produzia comentários filosóficos,éticos, morais e políticos sobre a trama apresentadano palco, o Velho do Restelo estaria criticando a via-gem de Vasco da Gama (expansão portuguesa parao Oriente), no exato momento em que o poeta a re-constrói como parte de sua ficção. Tais comentáriosmisturam princípios metafísicos com razões políticas:dirigem-se tanto ao rei D. Manuel quanto à humani-dade.

Sendo manifestação de um princípio geral deconstrução poética, não se deve esquecer que esse ti-po de comentário ocorre em todos os finais de cantosde Os Lusíadas. Trata-se do procedimento retóricodenominado epifonema, que é o arremate edificantee sentencioso que se dá a um trecho literário. Tal co-mo se observa com a fala do Velho do Restelo, todoepifonema é exclamativo. Veja-se um exemplo: no fi-nal do primeiro canto do poema, estando os portu-gueses prestes a cair numa traição na Ilha de Mom-baça, o poeta interrompe a narrativa para concluira unidade com as seguintes exclamações reflexivas,que lembram as considerações do Velho do Restelo:

105O recado que trazem é de amigo, Mas debaixo o veneno vem coberto, Que os pensamentos eram de inimigos, Segundo foi o engano descoberto.Oh! Grandes e gravíssimos perigos, Oh! Caminho de vida nunca certo,Que aonde a gente põe sua esperança Tenha a vida tão pouca segurança!

106No mar, tanta tormenta e tanto dano, Tantas vezes a morte apercebida;Na terra, tanta guerra, tanto engano, Tanta necessidade aborrecida!Onde pode acolher-se um fraco humano, Onde terá segura a curta vida, Que não se arme e se indigne o Céu serenoContra um bicho da terra tão pequeno!

Logo, como quer que se interprete o sentido his-

tórico e político do episódio do Velho do Restelo, nãose pode esquecer que se trata de um epifonema, pois,além de arrematar um canto do poema, reveste-se denatureza reflexiva, moralizante e metafísica, caracte-rísticas típicas desse procedimento retórico comumàs epopéias clássicas.

Forma LiteráriaDo ponto de vista formal, a fala do Velho do Res-

telo possui pontos de contato com a ode clássica. En-tre os gregos antigos, ode é uma espécie de hino oucanção em louvor das divindades, dos heróis e dosatletas. No mundo romano, essa forma consagrou-se com as Odes de Horácio (65-8 a.C.). A partir daí,a ode passou a ser um poema de exaltação das vir-tudes dos grandes modelos de ação política, confun-dindo-se com o encômio, cuja função era divulgaros exemplos que poderiam ser tomados como pa-drão de virtude civil. Nesse sentido, tornaram-se típi-cos os poemas horacianos dedicados a Otávio Au-gusto e a seu ministro Mecenas. Mas, ainda em Horá-cio, a ode atinge a forma de reflexão pessimista sobrea vaidade e os descuidos humanos. Nesses casos, ascomposições aproximam-se da censura e do juízomoralista, contendo uma advertência de caráter me-tafísico. Esse é o sentido em que a fala do Velho doRestelo partilha da natureza da ode clássica. Aliás, asemelhança possui razão prática, pois as estrofes 102,103 e 104 do episódio camoniano inspiram-se dire-tamente na Ode III do livro I das Odes de Horácio,cujos passos correspondentes assumem a seguinteconfiguração na tradução de José Agostinho deMacedo (1806):

1Tinha por certo circundado o peito De triplicado bronze e ferro aqueleQue ao truculento mar lançou primeiro Frágil, ligeira nau, sem ter receioDa crua guerra dos opostos ventosNem das Híades tristesOu fúria insana do raivoso Noto, Do Adriático mar déspota horrendo.

2Que gênero de morte pôde aqueleTemer que a secos olhos viu nadandoPor entre as vagas túmidas os Monstros?Que viu sem medo Acroceráunias Rochas?Debalde, Deus da Terra o Mar separa,O Mar insociável,Se as sacrílegas naus transpõem sem pejoOs já prescritos términos vedados!

3Dos transes todos sofredor teimoso, Corre por eles o Mortal aos crimes, E Prometeu sacrílego no Mundo O fogo introduziu, roubado aos Astros:De Males um tropel desceu com ele,

16 LITERATURA • Fuvest 2003

Page 13: OsLusiadas

Males não vistos dantes:Se era tardo até ali o extremo golpe, Então foi pronta em nos ferir a Morte.

4Dédalo então, co’as inconcessas asasAos míseros Mortais, girou nos ares:Então com força insólita do InfernoValente Alcides despedaça as portas.Nada é difícil aos Humanos! LoucosContra os Céus se conjuramE não consentem que deponha JoveDas mãos iradas furibundos raios.

O Velho do ResteloTEXTO

90Qual1 vai dizendo: — Ó filho, a quem eu tinha Só pera refrigério2 e doce amparoDesta cansada já velhice minha, Que em choro acabará, penoso e amaro3, Porque me deixas, mísera e mesquinha4?Porque de mi te vais, ó filho caro, A fazer o funéreo enterramento5

Onde sejas de peixes mantimento?

91Qual em cabelo6: — Ó doce e amado esposo,Sem quem não quis Amor que viver possa7, Porque is8 aventurar ao mar iroso9

Essa vida que é minha e não é vossa10?Como, por um caminho duvidoso11,

Vos esquece12 a afeição tão doce nossa?Nosso amor, nosso vão contentamento13, Quereis que com as velas leve o vento14?

92Nestas15 e outras palavras que diziam,De amor e de piedosa humanidade16, Os velhos e os meninos os seguiam,Em quem menos esforço põe a idade17. Os montes de mais perto respondiam,Quase movidos de alta piedade18;A branca areia as lágrimas banhavam,Que em multidão com elas se igualavam19.

93Nós outros20, sem a vista alevantarmos21

Nem a mãe, nem a esposa, neste estado, Por nos não magoarmos22 ou mudarmosDo propósito firme começado, Determinei23 de assi nos embarcarmos

ANGLO VESTIBULARES 17

1 Qual: uma das mães que estavam na praia. A estrofe 89 men-ciona que havia mães, esposas e irmãs na praia. Este qual for-ma paralelismo com o qual que abre a estrofe seguinte. Am-bos equivalem à seguinte expressão: um diz assim, outro dizassado; fulano diz isso, beltrano diz aquilo.

2 Refrigério: consolação.3 Penoso e amaro: doloroso e amargo. A mãe queixa-se de que,

com a partida do filho, ela terá uma velhice desamparada. 4 Mísera e mesquinha: pobre e infeliz. Camões adota esse mesmo

par de adjetivos (epítetos) para caracterizar Inês de Castro, nosétimo verso da estrofe 118 do canto terceiro de Os Lusíadas.

5 Porque de mi te vais, ó filho caro,/a fazer o funéreo enterramen-to/onde sejas de peixes mantimento?: por que razão te sepa-ras de mim, ó filho querido, se com isso vais fazer o teu fúnebre(triste) sepultamento, transformando-te em alimento de peixes?

6 Qual em cabelo: uma outra das mulheres na praia, cuja cabe-ça estava descoberta, dizia. Na época, as mulheres não saíamsem toca. Todavia, esta esposa, tomada de desgosto pela par-tida do marido, saiu despenteada. A repetição do mesmo vo-cábulo no início de estrofes diferentes chama-se epanáfora,variante de anáfora.

7 Sem quem não quis Amor que viver possa: esposo, sem cujacompanhia Cupido não permitiu que eu pudesse viver.

8 Is: vais. 9 Aventurar ao mar iroso: arriscar no mar tempestuoso.10 Que é minha e não é vossa: ainda apaixonada, essa esposa jul-

ga que deve haver reciprocidade no amor. Assim como ela nãose pertence, a vida do marido também não é só dele.

11 Caminho duvidoso: o mar desconhecido e traiçoeiro. Essamulher e a anterior simbolizam a opinião corrente sobre osperigos do mar tenebroso.

12 Vos esquece: torna-se esquecida. A esposa queixa-se de que omarido, em nome da aventura do mar, se esqueça da afeiçãoque havia entre eles.

13 Vão contentamento: alegria passageira, transitória, imaginá-ria, porque o marido a abandona.

14 Quereis que com as velas leve o vento: quereis que o vento le-ve, com as velas da nau, nosso amor e nossa efêmera alegria? Aesposa teme que a viagem apague o amor do marido por ela.

15 Nestas: com estas. 16 Piedosa humanidade: de pios, dolorosos sentimentos humanos. 17 Os velhos e os meninos os seguiam, / em quem menos esforço

põe a idade: à medida que as mulheres se opunham ao em-barque, os velhos e os meninos, nos quais a idade põe menospoder de resistência, acompanhavam docilmente os nave-gantes. Os velhos e os meninos consentiam no embarque, se-guindo os navegantes na procissão, com os olhos.

18 Estes dois versos contêm uma prosopopéia hiperbólica, poisafirmam que até as montanhas choraram com a partida dosnavegantes. É muito freqüente esse tipo de prosopopéia emOs Lusíadas. Ocorre também nas estrofes 133 e 135 do episó-dio de Inês de Castro.

19 A branca areia as lágrimas banhavam / que em multidão em elasse igualavam: as lágrimas banhavam a branca areia, igualando--se com elas em quantidade. Hipérbole. Tanto Fernão Lopes deCastanheda quanto João de Barros insistem no choro da popu-lação portuguesa no momento da partida das naus. Diz Casta-nheda que a maior parte da população “chorava com piedadedos que iam embarcar”. João de Barros escreve que aquela“praia era de lágrimas pera os que vão e terra de prazer aosque vem.”

20 Nós outros: nós, os navegantes. 21 Sem a vista alevantarmos nem a mãe, nem a esposa, neste es-

tado: sem levantarmos a vista, nem para a mãe, nem para aesposa, neste doloroso estado.

22 Por nos não magoarmos: para não nos emocionarmos. Paraevitar a emoção, Vasco da Gama determina que os marinheirosfinjam indiferença, demonstrando firme convicção da neces-sidade de partir.

23 Determinei: observe que o período inicia-se por sujeito em ter-ceira pessoa do plural (nós outros). A esta altura, o enunciador,emocionado pelo contexto, perde a noção gramatical da frasee muda seu rumo sintático, reiniciando-a com sujeito em pri-meira pessoa do singular. Trata-se de anacoluto, dispositivosintático que confere oralidade à frase. Determinei de assi nosembarcarmos: determinei que nos embarcássemos assim.

Page 14: OsLusiadas

Sem o despedimento costumado24;Que, posto que é de amor usança boa,A quem se aparta ou fica, mais magoa25.

94Mas um velho de aspeito26 venerando27, Que ficava nas praias, antre a gente28, Postos em nós os olhos, meneando29

Três vezes a cabeça, descontente30, A voz pesada31 um pouco alevantando, Que nós no mar ouvimos claramente, Cum saber só de experiências feito32, Tais palavras tirou do experto peito33:

95— Ó glória de mandar34! Ó vã cobiçaDesta vaidade a quem chamamos fama35!Ó fraudulento gosto36, que se atiça37

C’ua aura38 popular que honra39 se chama!Que castigo tamanho40 e que justiçaFazes no peito vão41 que muito te ama!Que mortes, que perigos, que tormentas, Que crueldades neles42 exprimentas!

96Dura inquietação d’ alma e da vida43, Fonte44 de desamparos e adultérios,Sagaz consumidora conhecidaDe fazendas, de reinos e de impérios45!Chamam-te ilustre, chamam-te subida46, Sendo dina de infames vitupérios47;Chamam-te Fama e Glória soberana, Nomes com quem se o povo néscio engana48!

97A que novos desastres determinasDe49 levar estes Reinos e esta gente?50

Que perigos, que mortes lhe51 destinas,Debaixo dalgum nome preminente52?Que promessas de reinos e de minasDe ouro, que53 lhe farás tão facilmente?Que famas lhe prometerás? que histórias?Que triunfos? que palmas? que vitórias54?

98Mas, ó tu, geração55 daquele insano56, Cujo pecado e desobediência57

Não somente do Reino soberano58

18 LITERATURA • Fuvest 2003

24 Sem o despedimento costumado: sem as despedidas usuais.25 Que, posto que é de amor usança boa, / a quem se aparta ou fi-

ca, mais magoa: pois, embora a despedida usual (abraços,beijos) seja um bom costume amoroso, se praticada, causamais dor tanto em quem parte quanto em quem fica. Por essarazão, Vasco da Gama impediu que os navegantes abraças-sem ou beijassem os entes queridos na despedida.

26 Aspeito: aspecto, aparência. 27 Venerando: venerável, respeitoso. 28 Entre a gente: no meio do povo. Ao colocar o velho no meio do

povo, o poeta insinua que ele representa a opinião popular so-bre as navegações.

29 Meneando: forma do verbo menear: mover a cabeça em sinalde reprovação.

30 Descontente: descontentemente.31 Voz pesada: voz morosa, carregada, própria de pessoa idosa.32 Experiências feito: na época de Camões, valorizava-se o saber

experimental, mas nesse caso o saber empírico caracteriza oestrato social do velho, cuja cultura não atinge as abstraçõesconceituais.

33 Experto peito: peito experiente. O fato de as palavras saíremdo peito indica que o velho falava com o coração, com con-vicção e veemência.

34 Ó prazer de dominar!35 Ó vazio e vaidoso desejo de fama! 36 Ó enganoso prazer. 37 Excita-se, aumenta.38 Prestígio.39 Honra está empregado no sentido de culto da aparência e da

ambição.40 Que castigo tamanho: que enorme castigo. Observe neste e no

verso anterior as seguintes perífrases: fazer castigo = castigar;fazer justiça = punir.

41 Peito vão: homens de peito vazio, homens de coração fútil,homens ambiciosos.

42 Nos homens de peito ambicioso.

43 A glória de mandar é motivo de tormentosa (dura) inquie-tação espiritual (alma) e física (vida).

44 A glória de mandar é fonte (origem) de abandono das famí-lias e de adultérios das esposas.

45 A glória de mandar é entendida como perspicaz (sagaz) dila-pidadora de fortunas (fazendas) e de nações.

46 Sublime. 47 Castigos, críticas, sátiras. 48 Ordem direta do verso: nomes (Fama e Glória) com quem (os

quais) o povo néscio (ignorante) se engana.49 Pela sintaxe atual esta partícula é desnecessária. Basta unir os

dois verbos em questão: determinas levar. 50 O sujeito do período é tu, ligado ao vocativo Glória de mandar

(= ambição de mando). 51 Lhe: refere-se a peito vão da estrofe 95, que equivale a co-

ração ambicioso dessa gente que embarca rumo à Índia (Vas-co da Gama e seus tripulantes, a mando de D. Manuel).

52 Preminente: proeminente, pomposo, com aparência de im-portante. Na estrofe 99, a ambição aparece com a nobilitantedesignação de esforço e valentia.

53 Partícula com função expletiva. Pode ser eliminada para a com-preensão literal.

54 Verso constituído por sinonímia, isto é, por uma seqüência determos sinônimos.

55 Geração: descendência, descendentes. Toda a apóstrofe desta edas duas estrofes seguintes dirige-se à humanidade em geral ea D. Manuel em especial, pois este é o rei português em nomede quem Vasco da Gama empreende a indesejável expedição.

56 Aquele insano: Adão, o primeiro homem a ser vítima da ambi-ção. Insano: louco.

57 Pecado e desobediência é sujeito de te pôs. O verbo está no sin-gular porque concorda com a idéia, que é singular: pecado dedesobediência. Na passagem, ocorre a figura hendíadis, queconsiste na divisão de algo unitário. O mesmo ocorre com o pri-meiro verso de Os Lusíadas: as armas e os barões assinalados,correspondente a os barões armados ilustres.

58 Reino soberano: Paraíso bíblico, Éden, de onde Adão foi ex-pulso.

Page 15: OsLusiadas

Te pôs neste desterro e triste ausência59, Mas inda doutro estado mais que humano60, Da quieta e simples inocência61,Idade de ouro62, tanto te privou,Que na de ferro e de armas63 te deitou64:

99Já que nesta gostosa vaidadeTanto enlevas a leve fantesia65, Já que à bruta crueza e feridade66

Puseste nome67 esforço68 e valentia, Já que69 prezas70 em tanta quantidade71

O desprezo72 da vida, que devia

De ser sempre estimada, pois que já Temeu tanto perdê-la quem a dá73:

100

Não tens junto contigo o Ismaelita74,Com quem sempre terás guerras sobejas75?Não segue ele do Arábio a lei maldita76, Se tu pola77 de Cristo só pelejas78?Não tem79 cidades mil, terra infinita, Se terras e riquezas mais desejas?Não é ele80 por armas esforçado81, Se queres por vitórias ser louvado?

101

Deixas82 criar às portas o inimigo83,Por ires84 buscar outro de tão longe, Por quem85 se despovoe o reino antigo86, Se enfraqueça e se vá deitando a longe87!Buscas o incerto e incógnito perigo88, Por que a fama te exalte e te lisonje89,

ANGLO VESTIBULARES 19

59 Desterro e triste ausência: o mundo concreto dos mortais, lugarde sofrimento, por oposição ao Paraíso celestial de onde o ho-mem foi expulso. Neste mundo, o homem é desterrado do Pa-raíso, cuja ausência ele sofre para sempre. Trata-se de hendía-dis, pois desterro e ausência contém uma só idéia, a de perdados privilégios da inocência do Paraíso. Perdida a inocência, ohomem tornou-se vítima da ambição, que o impulsiona a em-presas vãs, como a expedição de Vasco da Gama.

60 Alusão à Idade de Ouro, explicitada no sétimo verso destaestrofe.

61 Caracterização da Idade de Ouro, referida no verso seguinte. 62 A Idade de Ouro figura na mitologia greco-romana como os

tempos primitivos da humanidade, em que dominavam a paze a inocência entre os homens. Corresponde ao reinado de Sa-turno no Lácio: destronado por seu filho Júpiter, aquele deusfora reduzido à condição de simples mortal e, no Lácio, ini-ciou os selvagens na vida regulada por leis justas e iguali-tárias. Mais tarde, o homem foi gradativamente decaindo,passando pela Idade de Prata, pela Idade de Bronze até cairna de Ferro, referida no verso seguinte.

63 Ferro e armas: Na Idade de Ferro, o homem, levado pela am-bição, inventou a arma e a guerra. A omissão do vocábuloidade antes de ferro constitui-se num zeugma. O vocábulo ar-mas está empregado no sentido de guerra (metonímia). Pelaperspectiva do Velho do Restelo, a expedição de Vasco daGama decorre da perda da inocência e da aquisição da vai-dade.

64 Lançou. Pelo sentido da estrofe, o homem foi, sucessivamen-te, retirado do Paraíso e da Idade de Ouro para ser lançadona Idade de Ferro, em que conheceu a ambição, a guerra e asviagens, como a que está sendo iniciada por Vasco da Gama.

65 A primeira coisa digna de nota nestes dois versos é a eufonia,decorrente da paronomásia existente entre os vocábulos en-levas a leve. Além disso, nestes e nos outros vocábulos, nota-se sugestiva repetição alternante das vogais a, e (assonância).Gostosa vaidade: irresponsável ambição. Enlevar a leve fanta-sia: extasiar a leviana, insensata imaginação.

66 Bruta crueza e feridade: seqüência pleonástica com o propósi-to de ressaltar aspectos irracionais da civilização. Bruta: gros-seira. Crueza: crueldade. Feridade: ferocidade.

67 Puseste nome: nomeaste. Perífrase. 68 Coragem, bravura. 69 Toda esta estrofe funda-se em hipóteses concessivas, expres-

sas pela tripla reiteração da locução conjuntiva já que. Por ou-tro lado, a repetição da mesma locução no início de versosdiferentes configura uma anáfora.

70 Valorizas. 71 Em tanta quantidade: demasiadamente.72 Observe nova paronomásia entres os termos antitéticos: pre-

zas / desprezo.

73 Quem a dá: Cristo, aquele que dá a vida. O final da estrofeafirma que até Cristo temeu perder a vida: alusão ao sofri-mento moral de Cristo no Horto das Oliveiras, ao pressentir aprópria morte; nessa ocasião, teria suado sangue e pedido aDeus que afastasse dele a morte (Pai, afasta de mim este cáli-ce). Pelo pensamento da estrofe, a expedição de Vasco da Ga-ma contraria a essência do homem, que deve temer os peri-gos, e não afrontá-los desvairadamente, só por causa da gló-ria (vaidade) de mandar.

74 Ismaelita: mouro, muçulmano. Uso do singular pelo plural.Metonímia. Ordem direta do verso: não tens o Ismaelita juntocontigo? Junto contigo: ao lado, como vizinho (na ocasião, osárabes habitavam o sul da Espanha e o Norte da África).

75 Guerras sobejas: muitas guerras, numerosas guerras. 76 Do Arábio a lei maldita: a lei maldita de Maomé. Em todo o

percurso de Os Lusíadas, os árabes são identificados comoaliados do demônio, porque, enfim, um dos objetivos destaepopéia é exaltar a expansão do Cristianismo, entendido so-bretudo como seita superior ao Islamismo.

77 Pela. 78 Lutas. Ordem direta do verso: Se tu só pelejas pela (lei) de

Cristo? Tanto neste como no verso anterior, aplica-se lei nosentido de religião.

79 O sujeito deste verbo é Ismaelita. Entenda-se: Já que tu, D. Ma-nuel, queres cidades e terras, por que não te contentas em al-cançá-las dos árabes, que as tem em quantidade aqui na vizi-nhança?

80 O Ismaelita.81 Por armas esforçado: valente, destemido na guerra. 82 Deixas (tu, ó glória de mandar): o povo português deixa. Alu-

são a D. Manuel, em nome de quem se faz a viagem. 83 Os árabes. 84 Por ires: para ires. 85 Por causa do qual. 86 Reino antigo: Portugal. 87 Se vá deitando a longe: vai-se perdendo. 88 Os perigos desconhecidos dos mares. Ao usar perigo por

perigos, o poeta lança mão da metonímia, no caso o singularpelo plural.

89 Lisonjeie.

Page 16: OsLusiadas

Chamando-te senhor, com larga cópia90, Da Índia, Pérsia, Arábia e de Etiópia!

102Oh! Maldito o primeiro que no mundoNas ondas vela pôs em seco lenho91!Dino da eterna pena do Profundo92, Se é justa a justa93 Lei que sigo e tenho!Nunca juízo94 algum, alto e profundo, Nem cítara95 sonora ou vivo engenho96

Te dê por isso97 fama nem memória, Mas contigo98 se acabe o nome e glória!

103

Trouxe o filho de Jápeto99 do céuO fogo que ajuntou ao peito humano, Fogo que o mundo em armas acendeu,100

Em mortes, em desonras: grande engano101!Quanto melhor nos fora102, Prometeu,E quanto pera o mundo menos dano, Que a tua estátua ilustre103 não tivera104

Fogo de altos desejos que a movera105!

104

Não cometera o moço miserando106

O carro alto do pai, nem o ar vazio107

O grande arquitector c’o filho108, dandoUm, nome ao mar109; e o outro, fama ao rio110. Nenhum cometimento alto e nefando111, Por fogo, ferro, água, calma e frio, Deixa intentado112 a humana geração113!Mísera sorte! Estranha condição!114

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90 Com grande abundância. Alusão ao enorme título de D. Ma-nuel, o Venturoso, que acumulava todos os epítetos do versoseguinte: Senhor da Índia, da Pérsia, Arábia e Etiópia.

91 A estranha ordem dos vocábulos destes dois versos forma sín-quise: inversão violenta dos termos da oração. Ordem direta:Oh! Maldito o primeiro (homem) que pôs vela em lenho seconas ondas (do mar). Trata-se de uma apóstrofe contra a inven-ção do navio, causador de desgraças. Antes do elementos ex-pressos na frase, deve-se supor um verbo ou expressão volitiva:eu quero, eu desejo que seja maldito, tomara que seja maldi-to, oxalá seja maldito. Seco lenho: madeira seca do navio.

92 Inferno. A embarcação dos oceanos é coisa do diabo.

93 Se é justa a justa lei que sigo e tenho: se é certa a santa reli-gião em que acredito. Notável jogo vocabular. Em Os Lusía-das o vocábulo lei quase sempre possui o sentido de religião,doutrina, fé.

94 Nunca juízo algum, alto e profundo: nenhum elevado e pers-picaz entendimento (de poeta).

95 Instrumento musical associado à poesia. No caso, a própriapoesia: metonímia.

96 Capacidade conceptiva em poesia, inspiração. O vocábuloaparece na segunda estrofe de Os Lusíadas, no célebre verso:se a tanto me ajudar o engenho e arte.

97 Te dê por isso: te dê por esse motivo (= pela invenção da nave-gação). O inventor da navegação não deverá ser louvado(perpetuado) pela poesia.

98 O Velho deseja que a glória do inventor da navegação não so-breviva ao próprio nome. Sua glória deveria acabar quandoele morresse. Nome e glória: fama. Uma só idéia com dois no-mes: hendíadis. ver notas 57 e 59.

99 Filho de Jápeto: Prometeu, um dos Titãs que se revoltaramcontra o domínio de Júpiter. Tendo feito uma estátua de bar-ro, Prometeu roubou o fogo dos deuses para animar sua cria-ção. Como castigo, Júpiter ordenou que Vulcano, o ferreirodos deuses, o amarrasse no Cáucaso, onde os abutres lhe co-miam o fígado, que renascia e era de novo comido. Prometeué o símbolo da civilização, da indústria, da sabedoria e do de-sejo humano. Por isso, nesta estrofe, o Velho do Restelo ex-clama que teria sido melhor que ele não tivesse animado suaestátua de barro, isto é, que não lhe tivesse insuflado o impul-so da vontade e da criação.

100 Ordem direta do verso: Fogo que acendeu o mundo em ar-mas. Sentido: fogo (da ambição) que levou o mundo a valo-rizar com entusiasmo a guerra, provocando mortes e deson-ras (no verso seguinte).

101 Pela perspectiva do Velho, dar o fogo da sabedoria ao homemfoi equívoco de Prometeu, pois desencadeou a ambição, a “gló-ria de mandar”, donde derivam as guerras e as perdições.

102 Quanto melhor nos fora: quanto melhor teria sido à espéciehumana.

103 Estátua ilustre: o homem.

104 Tivesse.

105 Movesse (= inspirasse, motivasse, impulsionasse para a vai-dade).

106 Moço miserando: Faetonte, filho de Apolo (= Hélios, o Sol).Sem saber governar a carruagem de fogo, o jovem Faetonteatreveu-se a dirigi-la e provocou incêndio de algumas regiõesda terra (África). O carro de Faetonte foi precipitado no rioPado, famoso por esse acidente. O sentido da aplicação damitologia é que o fogo da ambição provoca desastres e des-governos nos homens, a exemplo dos deuses.

107 O ar vazio: o vácuo, as alturas, o céu. Na abertura do notávelpoema épico O Uraguay (1769), Basílio da Gama apropria-seda expressão ar vazio: e vai ver de mais perto no ar vazio / oespaço azul, onde não chega o raio.

108 Arquiteto, no sentido de pessoa engenhosa e dada a inventos.Trata-se de Dédalo, lendário inventor da mitologia grega.Querendo voar, bolou uma engenhoca com cera e penas deaves, que lhe possibilitou voar. Todavia, seu filho Ícaro, surdoàs observações do pai, aproximou-se demais do sol, cujocalor dissolveu a cera e ele foi precipitado no Mar Egeu, tam-bém conhecido por Mar Icário.

109 Mar: mar Icário ou Egeu.

110 Rio: rio Pado ou Pó, na Itália.

111 Cometimento alto e nefando: empresa, empreendimento dig-no de louvor ou digno de censura. Alto: elevado, sublime. Ne-fando: abominável.

112 Intentado: intacto, não tentado.

113 Humana geração: o homem, a humanidade. Movido pela am-bição, o homem não deixa de tentar nenhum empreendimen-to, quer seja por meio do fogo (indústria, inventos) e do ferro(armas, guerra); quer seja na água (mares), na calma (regiõesquentes) e no frio (regiões frias).

114 Epifonema contra a condição humana em geral e contra asituação específica de Portugal, cuja viagem ao Oriente, moti-vada pela ambição, trará mais prejuízos que vantagens. Epi-fonema é uma frase exclamativa com que se arremata umanarrativa, uma descrição ou uma dissertação. Mísera sorte:destino digno de dó. Estranha condição: situação extraor-dinária, paradoxal, pois a maior força do homem (a razão) étambém sua maior fraqueza.

Page 17: OsLusiadas

EXERCÍCIOSReleia os quatro primeiros versos da estrofe 102:

Oh! Maldito o primeiro que, no mundo, Nas ondas vela pôs em seco lenho!Dino da eterna pena do Profundo, Se é justa a justa lei que sigo e tenho.

7. Sabe-se que uma parte da fala do Velho do Restelopossui aspecto político e histórico; outra parte possuiaspecto metafísico e moralizante. Responda:a) Estes versos possuem natureza história ou meta-

física?b) Justifique a resposta anterior.

8. Ainda quanto aos versos transcritos, responda:

a) Qual o significado referencial dos termos vela eseco lenho?

b) Qual o processo figurado adotado nesses termospara a criação de sentido?

9. Quanto aos mesmos versos, responda:

a) Em que sentido se pode dizer que sintetizam aidéia central da fala do Velho do Restelo?

b) O que o poeta quer dizer com o verso final da se-qüência?

10. Entre a interjeição inicial da estrofe e o adjetivo se-guinte há elipse. Aproximadamente, os termos omiti-dos são:a) Dizem que é (maldito).b) É improvável que seja (maldito).c) Quero, desejo que seja (maldito).d) Lamento que deva ser (maldito).e) Deus quer que seja (maldito).

11. Os dois primeiros versos do trecho em destaque es-tão em ordem inversa. Observa-se neles a espéciemais radical de inversão conhecida na língua portu-guesa. Trata-se de:a) Hipérbato.b) Anástrofe.c) Anáfora.d) Sínquise.e) Anacoluto.

12. A ordem direta mais adequada para esses dois ver-sos seria:a) Oh! No primeiro mundo o maldito que pôs vela

nas ondas em seco lenho.b) Oh! O primeiro maldito que no mundo pôs vela

em lenho seco nas ondas. c) Oh! Maldito o primeiro que nas ondas pôs vela em

seco lenho no mundo. d) Oh! Maldito no mundo o primeiro que pôs vela

nas ondas em seco lenho.e) Oh! Maldito o primeiro que no mundo pôs vela

em lenho seco nas ondas.

13. O primeiro que nas ondas vela pôs em seco lenho éperífrase para:a) Prometeu.b) D. Manuel.c) O inventor do navio.d) O descobridor do caminho marítimo para a Índia.e) Ulisses.

14. Pela lógica do episódio, a resposta da questão anteriorsó não se liga a: a) D. Manuel.b) Dédalo.c) Prometeu.d) Vasco da Gama.e) Cristo.

15. Leia o seguinte trecho da Primeira Década da Ásia, dohistoriador quinhentista português João de Barros,para responder ao que se pede:No qual acto foi tanta a lágrima de todos, que neste diatomou aquela praia posse das muitas que nela se der-ramaram na partida das armadas, que cada ano vão aestas partes que Vasco da Gama ia descobrir, de ondecom razão lhe podemos chamar praia de lágrimas pe-ra os que vão e terra de prazer aos que vêm. E quandoveio ao desfraldar das velas, que os mareantes, se-gundo seu uso, deram aquele alegre princípio de cami-nho, dizendo — boa viagem! — tôdolos que estavampostos na vista deles com uma piedosa humanidadedobraram estas lágrimas e começaram de os enco-mendar a Deus e lançar juízos, segundo o que cadaum sentia da partida.Sabe-se que a Primeira Década da Ásia é a principalfonte histórica para a reconstrução da viagem de Vas-co da Gama contida em Os Lusíadas. De modo maisespecífico, a passagem de João de Barros em des-taque deve ter dado origem à seguinte oitava do epi-sódio do Velho do Restelo:a) 102b) 92c) 94d) 95e) 96

16. Observe três fragmentos interligados pela tradição: es-trofe extraída da Ode III do Livro I das Odes de Horá-cio; estrofe da Ode VI do Livro I dos Poemas Lusitanos,de Antônio Ferreira, contemporâneo de Camões; qua-tro primeiros versos da estrofe 102 de Os Lusíadas:

Texto ITinha por certo circundado o peito De triplicado bronze e ferro aqueleQue ao truculento mar lançou primeiro Frágil, ligeira nau, sem ter receioDa crua guerra dos opostos ventosNem das Híades tristesOu fúria insana do raivoso Noto, Do Adriático mar déspota horrendo.

Texto IIQuem cometeu primeiro Ao bravo mar num fraco pau a vida, De duro enzinho ou tresdobrado ferro Tinha o peito, ou ligeiro Juízo, ou sua alma lhe era aborrecida, Digno de morte cruel no seu mesmo erro.

Texto IIIOh! Maldito o primeiro que, no mundo, Nas ondas vela pôs em seco lenho!Dino da eterna pena do Profundo, Se é justa a justa lei que sigo e tenho.

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Page 18: OsLusiadas

A leitura atenta revela semelhança entre os três textos.A melhor observação crítica sobre essa semelhançaencontra-se na alternativa:a) Os clássicos quinhentistas apropriaram-se de tópi-

cas consagradas pela tradição antiga: o mito de quea ambição desterrou o homem da Idade de Ouro éuma dessas tópicas.

b) Os clássicos quinhentistas reinventam o passado,aplicando seus ensinamentos de forma inovadoraem contextos diferentes.

c) Os clássicos quinhentistas não valorizavam a imagi-nação, por isso empregaram seu engenho na imi-tação da antigüidade: o que se observa pela apro-priação da tópica do elogio ao progresso.

d) Os clássicos quinhentistas emulavam com a anti-güidade, procurando nela as origens dos males doséculo XVI: daí a censura à invenção do navio.

e) Ao censurar a ambição como causa da perda dainocência da Idade de Ouro, os quinhentistas evi-denciam seu apreço pelo cristianismo, deixandoclaro que a mitologia para eles não passava de or-namento literário.

17. (FUVEST-2002/2ª fase)

Responda às seguintes questões sobre Os Lusíadas,de Camões:a) Identifique o narrador do episódio no qual está

inserida a fala do Velho do Restelo.b) Compare, resumidamente, os principais valores

que esse narrador representa, no conjunto de OsLusíadas, aos valores defendidos pelo Velho doRestelo, em sua fala.

RESPOSTAS1. a) Na visão mítica que Camões oferece da tragédia de

Inês, a morte da amante não se deve a razões deEstado, e sim a razões metafísicas. O poeta consi-dera que o amor é entidade autônoma que, paraviver, tem de produzir vítimas.

b) A idéia de que o amor é entidade feroz que vive desangue humano encontra-se na estrofe 119 doepisódio, uma das mais célebres de Os Lusíadas.

2. a) “Trovas à Morte de D. Inês de Castro”, de Garcia deResende, publicadas em 1516 no Cancioneiro Ge-ral; e a tragédia Castro, de Antônio Ferreira, edi-tada em 1589, mas encenada na década de 50 doséculo XVI.

b) Camões aproxima-se mais da visão de Garcia deResende, que também dá o Amor como motivo damorte de Inês. Antônio Ferreira, mais preso à ver-dade histórica, apresenta razões de Estado para amorte dela.

3. a) Apóstrofe, espécie grandiosa de vocativo. b) Os quatro primeiros versos da estrofe seguem o

padrão impessoal da narrativa em terceira pessoa.Os quatro últimos adotam o tom exclamativo daapóstrofe, interrompendo o fluxo narrativo pormeio de uma invectiva contra o rei D. Afonso IV.

4. D

5. A

6. C

7. a) Possuem natureza metafísica.b) Não se dirigem a um fato concreto e de existência

comprovada. Censuram, de maneira geral, a idéiade progresso, por meio da vaga noção de que tu-do começou com a invenção do navio. Em rigor,trata-se de uma censura moral à inquietação hu-mana, ao desejo de sabedoria e de mudança.

8. a) Navio.b) Metonímia: designam o objeto por meio do mate-

rial de que é feito.

9. a) Porque censuram de maneira geral e abstrata aidéia de navegação como fonte de infelicidadepara o homem.

b) O verso final alude ao fato de que os verdadeiroscristãos não deviam se entregar à ambição da na-vegação. Pela doutrina de Cristo, o inventor donavio deveria ir para o inferno.

10. C

11. D

12. E

13. C

14. E

15. B

16. A

17. a) O narrador do episódio em questão é Vasco da Ga-

ma, o herói do poema, que, em dada altura da fábula,assume a função de personagem-narrador.

A fala do Velho do Restelo integra uma unidadenarrativa maior em Os Lusíadas, que ocupa os cantosIII, IV e V. Nela, Vasco da Gama conta ao rei de Melin-de toda a história de Portugal, desde as origens do po-vo lusitano até a viagem de descoberta do caminhomarítimo para as Índias, levada a efeito pelo herói dopoema.

A fala do Velho do Restelo, por sua vez, é o desfe-cho do episódio conhecido como Partida das Naus, emque Vasco da Gama narra como deixou a Torre deBelém, porto do rio Tejo em Lisboa. No relato de suapartida, o capitão da armada rememora a despedida,cujo clima é de lamento e incerteza.

Dentre as pessoas que se manifestaram verbal-mente na despedida, Vasco da Gama ficou particular-mente sensibilizado pelo discurso do Velho, a ponto de oreconstituir com unidade retórico-discursiva ao rei deMelinde. b) Vasco da Gama representa o ideal expansionista doImpério Lusitano, que implica a dilatação da fé cristã edo comércio ocidental. Como herói do poema, encarnaas convicções da persona épica, isto é, do narrador prin-cipal da epopéia, que, como manifestação do gêneroépico, exalta o assunto da narrativa. Mais precisamente,Vasco da Gama encarna o projeto político da Dinastia deAvis, que, adepta das novidades do Renascimento, apli-ca as conquistas da ciência à difusão do comércio.

22 LITERATURA • Fuvest 2003

Page 19: OsLusiadas

O Velho do Restelo, como personagem alegórica, repre-senta o ponto de vista contrário à expansão do Império Lu-sitano, por considerá-la resultado do desejo de poder pelopoder. O Velho pode ser entendido, também, como mani-festação do ideal da Dinastia de Borgonha, que se fundavana ordem feudal e a conseqüente preferência pela econo-mia agrária em desfavor do mercantilismo ascendente.

BIBLIOGRAFIACAMÕES, Luís de. Os Lusíadas. Reprodução paralela de duas edições

de 1572 [fac-símile]. Comissão da Academia das Ciências deLisboa para a Edição Crítica de Os Lusíadas. Lisboa, ImprensaNacional — Casa da Moeda, 1982.

CIDADE, Hernani. Luís de Camões: O Épico. Lisboa, Livraria Bertrand,1968.

GONÇALVES, Rebelo. Dissertações Camonianas. São Paulo, Compa-nhia Editora Nacional, 1937.

LENCASTRE, Francisco Sales de. Os Lusíadas. Edição anotada paraleitura popular. Livraria Clássica Editora, 1927.

RAMOS, Emanuel Paulo. Os Lusíadas. Organização, prefácio e notas.Porto, Porto Editora, 1987.

SARAIVA, Antônio José. Os Lusíadas. Organização, prefácio e notas.Porto, Figueirinhas, 1978.

Luís de Camões. Estudo e Antologia. Lisboa, Publicações Europa-América, 1972.

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