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UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS UNISINOS UNIDADE ACADÊMICA DE EDUCAÇÃO CONTINUADA CURSO DE ESPECIALIZAÇÃO EM EDUCAÇÃO INFANTIL RITA JAQUELINE MORAIS OSSO DE ÁRVORE São Leopoldo 2013

Osso de arvore(1)

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Trabalho de Conclusão de Curso de Especialização apresentado como requisito parcial para a obtenção de título de Especialista em Educação Infantil, pelo Curso de Especialização em Educação Infantil da Universidade do Vale do Rio dos Sinos- UNISINOS Para citar: MORAES, Rita Jaqueline. Osso de árvore. São Leopoldo, 2013. 61 f. Monografia (Especialização em Educação Infantil). Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, 2013.

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UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS – UNISINOS

UNIDADE ACADÊMICA DE EDUCAÇÃO CONTINUADA

CURSO DE ESPECIALIZAÇÃO EM EDUCAÇÃO INFANTIL

RITA JAQUELINE MORAIS

OSSO DE ÁRVORE

São Leopoldo

2013

Rita Jaqueline Morais

OSSO DE ÁRVORE

Trabalho de Conclusão de Curso de

Especialização apresentado como

requisito parcial para a obtenção de

título de Especialista em Educação,

pelo Curso de Especialização em

Educação Infantil da Universidade do

Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS.

Orientador: Dr. LUCIANO BEDIN DA COSTA

São Leopoldo

2013

Rita Jaqueline Morais

OSSO DE ÁRVORE

Trabalho de Conclusão de Curso de

Especialização apresentado como requisito

parcial para a obtenção de título de

Especialista em Educação, pelo Curso de

Especialização em Educação Infantil da

Universidade do Vale do Rio dos Sinos –

UNISINOS

Aprovado em ____/_____/ 2013

BANCA EXAMINADORA

Dr. Luciano Bedin da Costa – Universidade do Vale do Rio dos Sinos -

UNISINOS

Dr. Euclides Redin – Universidade do Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS

AGRADECIMENTOS

A Deus:

Pela vida, pela minha vida, pela vida que me cerca e por toda forma de vida.

Aos meus pais:

Por abrirem e indicarem caminhos, pelos entraves que impulsionam à frente,

pelo aconchego.

Ao meu amado, José Carlos Ames:

Por seres quem és na exata medida, pela parceria, pela paciência, pelo nosso

amor.

Ao Secretário de Educação Beto Carabajal

Por me oportunizar compor sua equipe e desenvolver um trabalho que muito

me realiza.

Às amigas-colegas da Educação Infantil e Ambiental da SMED/NH

Pela parceria, pela amizade, pelas trocas, pelo incentivo, por tudo.

Aos “Pesquisados”:Crianças:

Pela alegria, pela sinceridade, pela simplicidade, por criançarem

embelezando a vida.

Professoras:

Por acreditarem, junto comigo, que as práticas pedagógicas podem ser

melhoradas sempre.

Aos professores do Curso de Especialização em Educação Infantil

Pelas reflexões, pela parceria, por indicarem outros caminhos possíveis.

Às parceiras-amigas da OMEP

Por cantarmos juntas as belezas da infância fortalecendo sonhos e devires.

Ao Pequeno Gigante, meu filho, Francisco Morais Ames:

Pela inspiração poética que trouxe ao crescer dentro de mim junto com esta

pesquisa. Por me dar a maior de todas as razões para desejar um mundo melhor a

todas as crianças.

Achei que os eruditos nas suas altas abstrações se

esqueciam das coisas simples da terra. Foi aí que

encontrei Einstein (ele mesmo – Alberto Einstein). Que me

ensinou esta frase: A imaginação é mais importante do

que o saber. Fiquei alcandorado! E fiz uma brincadeira.

Botei um pouco de inocência na erudição. Deu certo. Meu

olho começou a ver de novo as pobres coisas do chão

mijadas de orvalho. E vi as borboletas. E meditei sobre as

borboletas. Vi que elas dominam o mais leve sem precisar

de ter motor nenhum no corpo. (Essa engenharia de

Deus!) E vi que elas podem pousar nas flores e nas

pedras sem magoar as próprias asas. E vi que o homem

não tem soberania nem pra ser um bentevi. (Manoel de

Barros, 2008, X)

RESUMO

Falar de Educação Ambiental. Não dos problemas ambientais, ou das

batalhas, ou das causas. Nem mesmo das consequências ou da necessidade de

mudança de comportamento a fim de evitar catástrofes. Falar de Educação

Ambiental para crianças ainda pequenas. Falar de alegrias, beleza e encantamento.

Falar de criança, falar de árvore, falar de comer fruta no pé, falar de vida! Falar e

cartografar. Cartografar os primeiros encontros com a natureza, experienciados

pelas crianças das escolas municipais de Educação Infantil de Novo Hamburgo.

Cartografar e acompanhar os processos de composição da subjetividade destes

sujeitos. Refletir e propor caminhos para a Educação Ambiental na Educação Infantil.

Palavras-chave: Educação infantil; educação ambiental; natureza; infância.

A RELATIVIDADE DO CAPIM

Ontem:

Abundante, alto, imponente.

Aconchegante!

Palco de aventuras e descobertas.

Hoje:

Raro, inso, repugnante.

Alergênico!

Motivo de contrariedade e prejuízo.

Ontem:

Toque suave que acorda a sensibilidade.

Afago da natureza.

Influência precisa na constituição do ser!

Hoje:

Pequeno

Mesmo quando atinge o pico máximo de sua estrutura.

Imenso!

Na lembrança prazerosa de quem foi acariciado por ele.

Das cabaninhas de capim

Às salas da academia.

Quem imaginaria um destino assim?

Afetada por essa brincadeira

(de justificar a ânsia de conhecimento pela brincadeira com o capim)

Estremecida pela lembrança

Emoção em tremedeira

Compreendo o desejo de mostrar aos quatro ventos

Na forma silenciosa da poesia

A marca sutil e eterna

Tatuada nessa guerreira da natureza!

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ................................................................................................. 9

TER E SER PÁTIO ......................................................................................... 11

EU QUERIA UMA CASA ASSIM .................................................................... 15

O LOBO! ........................................................................................................ 21

QUEM JOGOU AS LARANJAS NO CHÃO? ................................................. 27

HOJE ESTÁ UM DIA PERFEITO PARA BRINCAR! ...................................... 32

E A GALINHA FUGIU ..................................................................................... 36

...MAS A ONÇA ME PROTEGEU ................................................................... 40

LELO LELO .................................................................................................... 43

OSSO DE ÁRVORE ....................................................................................... 48

UMA “COBA” ................................................................................................. 53

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INTRODUÇÃO

A paixão por dois temas, aparentemente distintos, deu origem a esta

pesquisa. Escolhi a palavra paixão intencionalmente pela origem pathos (do grego),

indicando passagem, passividade, sofrimento, assujeitamento. Impossível passar

pelos temas escolhidos sem ter sido afetada por eles. Porque me afetaram em

algum momento foram escolhidos. Porque segue o desejo de afetar tantos outros

quantos for possível senti necessidade de olhá-los atenta e reflexivamente.

A paixão por dois temas, aparentemente, distintos: Educação Infantil e

Educação Ambiental. O elo de ligação poderia encontrar-se na palavra Educação,

mas após esse estudo, ouso apostar que infância (e Educação Infantil) e natureza (e

Educação Ambiental) estejam ligadas de forma indissociável. Sempre acreditei que a

Educação Infantil precisa ser prazerosa e desafiadora. Da mesma maneira, e com a

mesma intensidade, acredito que é chegada a hora da humanidade optar por uma

ética de maior sensibilidade e cuidado com a vida, tanto nas relações humanas

quanto na sua relação com a natureza.

Minha experiência como educadora no município de Novo Hamburgo me

permitiu unir essas duas paixões num único pátio. Atuo como assessora de

Educação Ambiental dentro da equipe de Educação Infantil da Secretaria Municipal

de Educação e Desporto – SMED, desse município. Nesse lugar, o

acompanhamento do trabalho das 22 escolas de Educação Infantil, por meio do

projeto ‘‘Esverdeamento do pátio escolar”, e da minha atuação como executora do

projeto “Vamos Passear na Floresta: experiências de encontro com a natureza para

a educação infantil” durante o ano letivo de 2012, tornaram-se o campo desta

pesquisa. Enquanto que cartografar as experiências realizadas neste território,

identificando os efeitos delas no processo de construção das subjetividades das

crianças foi meu objetivo principal.

Por um estilo de escrita poético e fabulado, em alguns momentos as cenas

que trago não foram descritas em versão original tal e qual ocorreram, mas também

não foram criadas pela minha imaginação. Foram coletadas durante a investigação e

no processo de escrita, algumas agregadas, misturadas, inclusive quanto ao cenário

– em algumas passagens misturei o que ocorreu no Centro de Educação Ambiental

Ernest Sarlet - CEAES com o que encontrei no pátio da escola. As imagens foram,

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em sua maioria, registradas por mim, mas também foram coletadas no acervo das

escolas e, algumas, inclusive, registradas pelas próprias crianças.

A composição do texto se inspira num mosaico, onde as escritas são

encaixadas com as diversas imagens que narram cenários, descobertas das

crianças, ludicidade, encantamentos e atuação do professor. O cimento-cola que une

as peças deste mosaico é formado pela seleção de autores que trouxeram

importantes reflexões a essas narrativas: Eduardo Passos e Virgínia Kastrup dão

pistas sobre o método da cartografia; Manoel de Barros, Chico Buarque e Arnaldo

Antunes trazem beleza e poesia; Léa Tiriba, Silvino Santin, João-Francisco Duarte

Jr, Roland Barthes, Jorge Larrosa e Felix Guattari defendem o valor da sensibilidade,

da estesia, da experiência e da ludicidade como uma nova ética necessária e

possível. Finalmente, o rejunte que dá o acabamento final a esta obra é a voz das

crianças que, ao expressarem-se livremente, vão trazendo as perguntas e respostas

que delimitam a pesquisa.

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TER E SER PÁTIO

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As cenas narradas pelas imagens acima foram capturadas no pátio das

escolas de Educação Infantil da Rede Municipal de Ensino de Novo Hamburgo –

RME/NH. Elas traduzem uma concepção de infância, de natureza, de escola e,

principalmente, de uma escola que pensa a infância e a natureza como elementos

fundamentais de uma única trama.

As palavras cooperação, curiosidade, tradição, experiência, sentidos, estesia,

afeto, imaginação, imitação, aventura, investigação, introspecção, cultura,

brincadeira e desafio colorem a estampa desta trama. Acrescenta-se a elas uma

palavra chave, que merece destaque, por ser o cenário que reúne tantas

possibilidades: o pátio escolar ou, simplesmente, o pátio.

Para mergulhar com maior profundidade nesta ideia, buscamos em Reis-

Alves a origem da palavra pátio:

Pateo* 1. Recinto lajeado para que dá entrada a porta principal de algumas casas; terreno murado anexo a um edifício; recinto descoberto no interior de um edifício ou rodeado por outros edifícios; vestíbulo.* Do verbo latino: Patēo, ĕs, ui, ēre, v. int. Estar aberto, exposto; estender-se; abrir-se; estar descoberto; manifestar-se; ser evidente . (REIS-ALVES, 2004)

As primeiras palavras referem-se a um espaço físico delimitado por paredes

ou muro, embora sem cobertura. Na sequência, percebe-se que o pátio pode ser

mais do que um espaço físico, podendo caracterizar, inclusive, uma forma de

comportamento, de ser e estar no mundo. E as duas formas são indissociáveis na

trama citada anteriormente. O pátio, enquanto espaço físico, de acordo com suas

dimensões e composição, pode ampliar ou diminuir as possibilidades de relação que

os indivíduos que o frequentam estabelecem com o mundo. Da mesma forma, a

atitude “pateo”, de estar aberto, exposto ao que vier dará maior ou menor significado

às relações estabelecidas neste espaço.

Uma das escolas acompanhadas neste estudo, durante muito tempo manteve

seu pátio coberto, exclusivamente, por brita. As crianças menores, principalmente os

bebês, tinham dificuldade para se deslocar ali sob o risco de se machucarem e,

assim, pela própria constituição do ambiente, as professoras optavam por

permanecer dentro da sala de aula, oportunizando às crianças um contato restrito

com o mundo exterior. Após estudo e reflexão sobre essa questão, a equipe de

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profissionais desta escola optou por substituir a brita por grama. As professoras

surpreenderam-se com as reações dos bebês. Segundo seus relatos, as crianças,

nos primeiros contatos, ficaram encantadas: rolavam, mergulhavam na grama,

faziam toquinhas com seus dedinhos tentando descobrir o que havia ali no meio,

alguns chegaram a provar seu sabor... A alegria proporcionada pela experiência

contagiou a todos que desfrutaram dela.

O acréscimo de um único elemento novo ao pátio possibilitou uma variedade

de sensações e emoções. Mas esse elemento só teve efeito porque veio

acompanhado de uma atitude “pateo”, tanto das crianças quanto das professoras:

das crianças porque se lançaram prazerosamente à experiência e das professoras

porque, com sensibilidade, deram o apoio e a liberdade necessária a este processo

de interação.

Esse exemplo me faz acreditar que quanto mais diversificados forem os

elementos que constituem o pátio, maiores serão as experiências realizadas pelos

sujeitos que com ele contatarem, seja no sentido de conhecer o mundo externo

quanto no conhecimento de si mesmo e da construção de sua subjetividade. Ter um

pátio é fundamental no sentido de ampliar o repertório de conhecimentos: o cheiro

dos jasmins, o colorido das dálias, o sabor das pitangas, a temperatura da geada, a

intensidade do vento, o frescor da chuva, o calor do sol, a melhor terra pra plantar a

couve... Mas ter um pátio não é suficiente. Observei cenas onde o pátio é bastante

diversificado, mas intocável: as crianças não podem interagir, colher, saltar; elas

permanecem como que engessadas num universo de possibilidades, para não se

ferirem ou para não “estragar o gramado”.

Reis-Alves propõe que:

Segundo o verbo latino Patēo, os atos de expor, abrir e descobrir-se se fazem presentes neste espaço. O que é estar aberto; abrir-se? Estas idéias sugerem o conceito de relacionamento. Relacionar-se com os seus semelhantes, com a natureza, com o clima, enfim, várias possibilidades de relacionar-se. Estar exposto; estar descoberto refere-se à acessibilidade, o estar suscetível. Quem está exposto, encontra-se acessível à chuva, ao sol, aos ventos, às pessoas, ao movimento, à inquietude, ao cheio e ao vazio, ou seja, está em uma posição passiva aos acontecimentos. Os verbos manifestar-se e ser evidente, em oposição, mostram-se com uma postura ativa perante o mundo. O indivíduo se faz ser visto e adquire uma razão de ser. (REIS-ALVES, 2004)

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O indivíduo se faz ser visto e adquire uma razão de ser ao descobrir-se.

Como conhecer-se sem conhecer o mundo? Como eleger suas preferências quanto

a aromas, cores, texturas, temperaturas sem contatá-las? Como perceber seus

medos e desafios sem oportunidade para testá-los? Como descobrir-se curioso,

investigativo sem a aventura da investigação? Como saber a importância do silêncio

sem a oportunidade de calar-se para escutar a água, o vento, o amigo? Como

conhecer seu corpo sem a experiência de expor-se? Para conhecer a si próprio, o

sujeito precisa estabelecer o maior número de relações com o que está fora. De

acordo com Costa (2011, p.36), “a própria noção de corpo passaria pela experiência

de um corpo, pois nunca saberemos exatamente o que pode ou o que quer este

corpo sem o experienciarmos na relação com os outros corpos que o entornam”.

Por outra via, buscando aprofundar essa relação da infância com a natureza,

relaciono o conceito “alfabetização ecológica”, apresentado por Fritjof Capra, com o

texto “O Prazer da Leitura” de Rubem Alves, sem perder de vista a ideia de que o

pátio pode ser o lugar legítimo de colocar as paixões (pathos) em movimento. Capra

(2006, p. 14) defende o ensino dos princípios básicos da ecologia e, com eles, um

profundo respeito pela natureza viva por meio de uma abordagem multidisciplinar

baseada na experiência e na participação. Alves (2002) defende que para ensinar a

ler, tão importante quanto ensinar as letras, é mostrar ao alfabetizando as delícias de

um texto. Ele recorda: “Mas me lembro com alegria das aulas de leitura. Na verdade,

não eram aulas. Eram concertos. A professora lia, interpretava o texto, e nós

ouvíamos, extasiados. Ninguém falava. (...) Era prazer puro.” Isso me faz acreditar

que para que um sujeito seja alfabetizado, do ponto do vista dos conceitos

ecológicos, é indispensável que esse processo envolva a paixão. Assim como o

menino que sente prazer puro ao ouvir um texto, acordando o seu desejo de

aprender a ler, é necessário que ele seja afetado prazerosamente, que possa se

misturar aos elementos da natureza, compor-se e compor seu mundo de maneira

prazerosa, para que os conceitos ecológicos ou de sustentabilidade passem a ter

algum significado.

São muitas as possibilidades de saber o mundo. O pátio é uma delas (ou

muitas delas!). Relacionar-se, interagir com seus semelhantes, conhecer a natureza

e conhecer-se. Para isso é preciso estar em espaço aberto, livre de paredes, estar

no pátio. Para isso é preciso estar aberto, exposto, suscetível, ser pateo. Não basta

ter pátio, é preciso ser pateo.

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EU QUERIA UMA CASA ASSIM

Uma das atividades preferidas das crianças durante os passeios no Centro de

Educação Ambiental Ernest Sarlet – CEAES é entrar na árvore. Lá existe uma árvore

conhecida como rosa de maio cujos galhos dobram-se e fecham ao redor do tronco,

formando uma grande toca. Por essa característica, esse espaço convoca a

imaginação e a brincadeira transformando-se em cenário de caçadas, pescarias e

aventuras. Além de brincadeiras de casinha, pega-pega, esconde-esconde, chuva

de folhas e tantas outras. Durante a atividade com uma turma de quatro anos de

idade, Sarah, encantada com tamanha beleza e liberdade, com um sorriso aberto e

muito brilho nos olhos dirige-se pra professora e diz:

- “Profe”, eu queria uma casa assim!

Sarah descobre, com segurança, a casa que deseja: um lugar que lhe permita

experimentar o mundo e ser afetada por ele, um espaço para fruir e descobrir-se. A

casa que lhe permite ser e viver pateo.

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Na tradução desse desejo de Sarah também transpassa meu desejo

profissional (e pessoal), que é o de que todas as crianças pudessem ter acesso a

uma “casa assim”. Desta forma, também justifico este estudo: se quero uma casa

assim, é necessário olhar a casa que tenho e em que território ela está situada. Esse

desejo me provoca a delimitar o território desta pesquisa em minhas vivências,

enquanto educadora, e nos potentes encontros com as infâncias que me rodeiam.

Entretanto, antes de prosseguir, gostaria de apresentar, brevemente, uma

definição sobre território. De acordo com Costa (2009. p. 1)1, “podemos falar em

territórios afetivos, territórios políticos, territórios existenciais, territórios desejantes,

territórios morais, territórios sociais, territórios históricos, territórios criativos,

territórios patológicos e assim por diante”. Segundo o autor, trata-se de uma matéria

“que não é nada estanque, que nada tem de parada e que se caracteriza

exclusivamente por ser relacional, por estabelecer relações entre si e com seu

meio”. Um território é demarcado por linhas: duras, flexíveis e de fuga. Na definição

de Costa:

As linhas duras demarcam identidades, deveres, hábitos, convenções, opiniões cristalizadas, enfim, representam os modos mais seguros de existência. As linhas duras são mantidas por mecanismos de controle e disciplina. Impedem a criação do novo porque o que está em jogo é a manutenção do território. (COSTA, 2009, p.2)

Enquanto que,

As linhas flexíveis são responsáveis pelos pequenos desvios nestes mesmos territórios. (...) As linhas flexíveis produzem pequenas rachaduras nos territórios mais endurecidos, causando pequenas mutações no que já está estabelecido. As mudanças e movimentos causados por estas linhas são, em sua maioria, imperceptíveis – Deleuze chamará estas pequenas variações e mudanças de micropolítica. (COSTA, 2009, p.2)

1Texto para fins pedagógicos, não publicado.

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Finalmente, Costa (2009, p. 2) define a linha de fuga como aquela capaz de

promover rupturas radicais, abrindo o território para novas configurações.

Para prosseguir, considero indispensável iniciar falando da minha participação

nos projetos de Educação Ambiental e Sustentabilidade como assessora pedagógica

da equipe da Educação Infantil na secretaria Municipal de Educação e Desporto –

SMED do município de Novo Hamburgo. Dentre os tantos projetos desenvolvidos

neste espaço, destaco dois deles como referência para este estudo:

''Esverdeamento do pátio escolar nas escolas de educação infantil'' e “Vamos

Passear na Floresta: experiências de encontro com a natureza para a educação

infantil”.

Esses projetos tiveram como base a orientação do parecer CNE/CEB

nº20/2009 sobre a revisão das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação

Infantil ao sinalizar que:

As crianças precisam brincar em pátios, quintais, praças, bosques, jardins, praias e viver experiências de semear, plantar e colher os frutos da terra, permitindo a construção de uma relação de identidade, reverência e respeito para com a natureza. (Parecer CNE/CEB 20/2009. p. 15).

Essa referência traz aspectos importantes, destacando a ludicidade, os

espaços de brincar e conviver, bem como a relação com a natureza, almejados

como elementos indispensáveis na prática cotidiana das escolas de educação

infantil.

O projeto de esverdeamento do pátio escolar consiste em tornar o pátio um

ambiente vivo, agradável e prazeroso, onde a criança possa experimentar o brincar

em sua plenitude, ampliando seu repertório de cheiros, cores, sons, sabores e

temperaturas. Esses espaços foram, na maioria das vezes, cultivados pelas próprias

crianças, juntamente com suas professoras e toda a comunidade escolar. Para que

isso se tornasse viável, foram criados os “Laboratórios Teóricos e Práticos de

Educação Ambiental na Educação Infantil”, onde os professores (um ou mais

representantes por escola) receberam formação teórico-prática para atender a este

propósito.

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O projeto “Vamos Passear na Floresta: experiências de encontro com a

natureza para a educação infantil” teve como fundamento complementar esta ação

da escola, levando as turmas de Educação Infantil da Rede Municipal ao encontro

da natureza, a fim de entrarem em contato com suas belezas, encantamentos e

mistérios numa área destinada a isso no município, o CEAES.

Desta maneira, cartografar, ou seja, acompanhar as experiências realizadas

neste território – o pátio da escola e o CEAES - identificando os efeitos dessas

experiências na construção das subjetividades das crianças envolvidas, tornou-se o

objetivo desta pesquisa. Segundo Barros e Kastrup (2010, p. 58), “quando tem início

uma pesquisa cujo objetivo é a investigação de processos de produção de

subjetividade, já há, na maioria das vezes, um processo em curso”.

A coleta de dados foi realizada por meio de visitas às escolas, nos encontros

de formação com os professores, em conversas com professores e alunos nos

momentos de pátio e durante os passeios realizados no CEAES. Como afirmam

Barros e Kastrup (2010, p. 61), é preciso estar no campo, ser afetada por aquilo que

os afeta. Grande parte dos relatos foram trazidos espontaneamente pelas

professoras, que encantadas pelas falas produzidas pelas crianças, alegravam-se

em partilhá-las, sinalizando o envolvimento com o projeto. Outras escutas foram

realizadas em encontros com as crianças no pátio das escolas. Eu me aproximava e

tentava me inserir na brincadeira, ou elogiava algum elemento novo como a

presença da horta, um canteiro de flores, o plantio de árvores ou a ampliação do

gramado. Numa das escolas, onde pátio passou por uma grande transformação,

enquanto fotografava alguns elementos, um menino da turma de três anos se

aproxima e pergunta:

- Tu viu, profe, que bonito nosso pergolado?

E, em seguida, chama-me na sala e mostra os vasos que acabaram de

confeccionar com garrafa pet e papéis coloridos, dizendo orgulhoso:

- É vaso de cacto (cactos)!

Essas falas indicam que essa criança pertence a esse território de cuidado e

embelezamento que a escola está construindo. (E muito interessante é que as

palavras pergolado e cactos não costumam fazer parte do vocabulário de uma

criança de três anos de idade).

Noutra ocasião, recebi a ligação de uma professora que levara seus alunos

para viver a experiência no CEAES no mês de setembro de 2012. É uma turma

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integrada, com alunos de quatro e cinco anos de idade. Em razão do encerramento

do ano, essa professora realizou uma auto avaliação com as crianças. Na auto

avaliação, deveriam indicar qual o momento mais significativo para eles durante todo

o ano. Grande parte da turma indicou o passeio ao CEAES, através de falas e

desenhos que serão apresentados ao longo do texto. Esse fato indica dois elos

importantes: o elo das crianças com a natureza, por meio da experiência

proporcionada pelo projeto “Vamos Passear na Floresta”, bem como o elo da

professora que, envolvida com os objetivos do projeto, preocupa-se em registrar esta

fala das crianças junto à coordenação do projeto, colaborando com a pesquisa e

ratificando que os objetivos do projeto estão sendo alcançados.

Tanto a fala do menino da escola quanto o telefonema da professora indicam

que estamos cartografando um território com a participação de diferentes segmentos

de uma rede de ensino: alunos, professores e equipe da secretaria de educação.

Para Alvarez e Passos (2010, p. 135), “não se trata, portanto de uma pesquisa sobre

algo, mas uma pesquisa com alguém ou algo. (...) Tal processo coloca o cartógrafo

numa posição de aprendiz”.

De acordo com os mesmos autores,

A maioria dos manuais de metodologia indica a necessidade de penetrar no campo da pesquisa sabendo de antemão o que se pretende buscar. O aprendiz-cartógrafo inicia seu processo de habitação do território com uma receptividade afetiva. Tal receptividade não pode ser confundida com passividade. (...) Aberto a experiência de encontro com o objeto da pesquisa, o aprendiz-cartógrafo é ativo na medida em que se lança em uma prática que vai ganhando consistência com o tempo, marcando o propósito de seguir cultivando algo. (ALVAREZ E PASSOS, 2010, p. 137)

Pela posição de principal articuladora que desempenho nos projetos já

citados, não imaginava que as repostas que procurava chegariam de forma tão

espontânea e despretensiosa, tão despretensiosa que se não estivesse atenta (ou

tensa demais na tentativa de encontrá-las), possivelmente não conseguiria percebê-

las. Esse sentimento pode ser explicado por meio das palavras de Clarice Lispector:

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Tudo errou, e havia a grande poeira das ruas, e quanto mais erravam, mais com aspereza queriam, sem um sorriso. Tudo só porque tinham prestado atenção, só porque não estavam bastante distraídos. Só porque, de súbito exigentes e duros, quiseram ter o que já tinham. Tudo porque quiseram dar um nome; porque quiseram ser, eles que eram. Foram então aprender que, não se estando distraído, o telefone não toca, e é preciso sair de casa para que a carta chegue, e quando o telefone finalmente toca, o deserto da espera já cortou os fios. Tudo, tudo por não estarem mais distraídos. (LISPECTOR, 2007)

E, realmente, algumas respostas não foram percebidas de imediato. Elas

foram registradas e, somente quando incorporadas à escrita, associadas às leituras

ou a outras falas é que foram ganhando significado. Foi como se, ao desistir da

espera indo visitar um amigo, o carteiro deixasse na minha caixa postal a carta tão

ansiosamente esperada. Uma carta que continha não apenas as respostas

desejadas, mas novas e importantes perguntas, que já estavam ali, mas que por não

estar suficientemente distraída, eu não conseguia percebê-las.

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O LOBO!

Antes de iniciarmos as atividades previstas para cada turma em sua visita ao

CEAES, sentávamos à sombra de um majestoso Guapuruvu, onde, além de

geralmente sermos saudados pelo canto de um João-de barro, realizávamos uma

conversa inicial. Nesse momento, eu aproveitava para convocar as experiências de

encontro com a natureza já vivida pelas crianças por intermédio de perguntas:

Marcelo, tem árvore na tua casa? Alice, tu já subiste numa árvore? Mariana, tu

gostas de apanhar amora (ou outra fruta de época que as poderíamos colher)?

Carlos, tem passarinho perto da tua casa? Como eles cantam? Mateus, tu já

visitaste uma floresta? E finalmente:

- O que tem na floresta?

Não importou a idade das crianças, a professora, a escola, o bairro ou

qualquer outro aspecto que pudesse ser analisado, a resposta foi sempre a mesma:

- O LOBO!

Meu objetivo com essa pergunta era conhecer a concepção de floresta

dessas crianças, mas depois de tantos lobos, a pergunta era apenas pra confirmar

que a concepção de uma criança urbana sobre a floresta é de que ela é o território

do lobo, de preferência do lobo mau.

O lobo que representa o perigo do desconhecido (porque de fato nunca

existiram lobos nas florestas brasileiras - temos o lobo-guará, uma espécie bastante

arisca e covarde que habita o cerrado) e que, simbolicamente, pode representar

medos de outros territórios também desconhecidos ou assustadores.

A floresta, na concepção das crianças, é o território do lobo. O aquecimento

global, a perda de biodiversidade, a poluição do ar, do mar, dos rios, sonora e

urbana, o derretimento das calotas polares, as alterações climáticas, os resíduos

urbanos e industriais, o consumismo, a seca, a enchente, os agrotóxicos, a

monocultura, as áreas de desertificação, a globalização e outras catástrofes do

gênero delimitam o foco de atuação da educação ambiental, ou seja, o território da

Educação Ambiental. Juntamente com esses elementos, podemos citar também o

forte apelo do movimento ecológico para a mudança de hábitos e comportamentos

da população em geral, especialmente daqueles que dizem respeito ao

consumismo.

22

Diante disso, aponto a expressão “necessidade de mudança” como um

aspecto de transição entre as linhas desse território: por um lado temos uma

sociedade consumista, em que a criança, como afirma Souza Junior (p. 4), é

compreendida, pelo mercado, como consumidora; em contrapartida, temos os

movimentos ecológicos e de defesa da infância, que vêm propondo de forma

progressiva outra maneira de ser e viver através da redução do consumo. Ou seja,

de uma linha dura que coloca esse tempo da pós-modernidade como sinônimo de

cultura de consumo (LIPOVETSKI, apud SOUZA Jr. p. 3) a um movimento de

flexibilidade que propõe a construção de um novo paradigma de relação do homem

consigo mesmo, com seu semelhante e, consequentemente, com os elementos

naturais, a fim de garantir a sua preservação. Afinal, para que a vida possa se

constituir, é preciso que os territórios mais endurecidos possam ser desmanchados

(COSTA, 2009).

Entretanto, mudanças muitas vezes assustam. Principalmente quando

desestabilizam um modo já tão arraigado de ser. Assim, ousaria dizer que, para uma

grande parte da população, ao traduzir o que representariam essas mudanças de

comportamento propostas pelos ecologistas, elas diriam:

- O LOBO!

Suspeito que o lobo representa o desconforto suscitado por essa convocação

a outro modo de viver. Percebe-se o quanto a população, e aqui foco o olhar nos

professores, ainda nega a Educação Ambiental ou para a Sustentabilidade, bem

como todas as convocações dos movimentos ecológicos. Assim, o território do lobo

migra da floresta para a cidade – cidade-urbana-consumista-devoradora. E a

floresta, representando todos os recursos naturais (muitos em extinção!), de grande

vilã passa ser a maior vítima, juntamente com as crianças, que já não têm mais a

oportunidade de conhecer toda a sua diversidade e os seus encantos.

23

A criança urbana-contemporânea já nasce inserida numa cultura que idealiza

felicidade como uma tarde de compras no shopping center. Para ser protegida da

violência urbana, muitas vezes, passa horas dentro de casa, exposta à programação

televisiva, onde a palavra de ordem é COMPRE! Como se não fosse violento expô-la

ao intenso apelo do consumismo. Como se não fosse violento, num país de imensa

beleza e diversidade ecológica, o ato de negar à criança o contato com essa beleza

do lugar onde ela mora, onde é a sua casa, o seu território. Como se não fosse

24

violento negar à criança uma infância recheada de imaginação e criatividade

favorecidas pelo encontro com os elementos naturais e as experiências ao ar livre.

Irrefletidamente, como se essa fosse a única opção, vamos acolhendo as

imposições do sistema capitalista num processo definido por Guattari:

O capitalismo pós-industrial que, de minha parte, prefiro qualificar como Capitalismo Mundial Integrado (CMI) tende, cada vez mais, a descentrar seus focos de poder das estruturas de produção de bens e de serviços para as estruturas produtoras de signos, de sintaxe e de subjetividade, por intermédio, especialmente, do controle que exerce sobre a mídia, a publicidade, as sondagens etc. (GUATTARI, 1990, p.31)

Acelerando o ingresso das crianças no mundo do capital e privando-as da

experiência de “criançar”, registram-se marcas importantes na subjetividade de uma

sociedade que tem sua atenção capturada para atender os interesses do CMI.

Numa rodada de conversa, constituída por professoras, coordenadoras

pedagógicas e equipe da SMED/NH, com um grupo de estudos sobre bebês, cada

participante foi convidado a trazer um objeto que lembrasse sua primeira infância. As

participantes trouxeram bonecas, roupinhas, fraldas... Algumas trouxeram fotos. Na

hora de apresentar e comentar suas memórias ao grupo, parte dessas profissionais

afirmaram que trouxeram esse objeto por estar relacionado ao tema do encontro,

mas que suas lembranças mais remotas e agradáveis eram, justamente, as

brincadeiras ao ar livre, em contato com a natureza, de onde destaco o relato:

- Eu gostava muito dos brinquedos, eu e meus irmãos. Eu sou a mais velha,

depois vem um irmão e um casal de gêmeos. Então, o meu irmão gostava muito de

jogar pinica e ele me ensinou, claro né!? E na escola, naquela época eu não podia

jogar, imagina se naquela época uma menina iria brincar de jogar pinica na escola?

Então, lá na nossa casa, o que gente fazia muito era isso: pinica, motorista...

Colocávamos duas cadeiras uma atrás da outra, a tampa da panela era a direção do

ônibus... Elementos da natureza, as folhas das árvores eram dinheirinho pra pagar a

passagem (risos). Enfim, subíamos nas árvores, comíamos o fruto da própria árvore

– nunca fez mal! Então domingo, lá na casa da minha mãe, estávamos eu e meus

irmãos, falei deste encontro e disse: eu vou levar pinica!

25

Ainda tivemos relatos sobre coleção de sapinhos (girinos) e tirar lesmas das

cascas.

Experiências totalmente independentes de consumo. Experiências prazerosas

e marcantes para adultos, que mesmo com o passar dos anos e imersos no mundo

do consumo, são lembradas com muita emoção. Marcas que constituem a

subjetividade do sujeito. Marcas de infância e de ludicidade que, com simplicidade e

inteireza de ser, levam-me a acreditar serem importantes rotas de desvio do

capitalismo. Para Santin (2001, p. 15 e 20), “parece cada vez mais unânime que o

lúdico ou o brinquedo, é uma forma de humanizar a humanidade da era industrial”,

pois “o lúdico, sem dúvida, é um desses valores que podem representar um

reencontro do homem consigo mesmo”.

Experiências que, mesmo como marcas bastante sutis, quase ingênuas, se

não forem refletidas e efetivadas intencionalmente, podem interferir (e ferir) no

território capitalista, produzindo uma nova ética, assim como propõe Guattari:

Em todas as escalas individuais e coletivas, naquilo que concerne tanto à vida cotidiana quanto à reinvenção da democracia – no registro do urbanismo, da criação artística, do esporte etc - trata-se, a cada vez, de se debruçar sobre o que poderiam ser os dispositivos de produção de subjetividade, indo no sentido de uma re-singularização individual e/ou coletiva, ao invés de ir no sentido de uma usinagem pela mídia, sinônimo de desolação e desespero. (GUATTARI, 1990, p. 15)

As escolas (instituições) de Educação Infantil, como uma proposta adequada,

podem ser o espaço legítimo desta busca, pois, de acordo com Tiriba:

No universo escolar, as IEI são campos férteis para revoluções moleculares (GUATTARI, 1977) porque se inserem num segmento que ainda não sofreu inteiramente os efeitos da institucionalização escolar. São, portanto, um campo mais flexível, em que são maiores as possibilidades de subversão, transgressão de práticas que sustentam a lógica capitalística. (TIRIBA, s/d. p. 14)

A partir desse olhar, precisamos, escolas e sociedade em geral, de forma

clara e intencional, auxiliar as crianças a realizar processo semelhante ao de

26

Chapeuzinho Amarelo – personagem de Chico Buarque – que superou o medo do

LOBO de forma sensível, poética e bem-humorada:

Aí Chapeuzinho encheu e disse: “Para assim! Agora! Já! Do jeito que você tá!” E o lobo parado assim do jeito que o lobo estava já não era mais um LO-BO. Era um BO-LO. Um bolo de lobo fofo, Tremendo que nem pudim, Com medo da Chapeuzim. Com medo de ser comido Com vela e tudo, inteirim. (BUARQUE, 2011)

27

QUEM JOGOU AS LARANJAS NO CHÃO?

Nesta cena, é possível observar a professora com um grupo de crianças

numa roda de conversa num espaço ao ar livre. Ao desviar o olhar do primeiro plano

podemos observar que, neste espaço onde se encontram, existem muitas laranjas

caídas no chão e é aqui que queremos focar a atenção.

- Por que as laranjas estão no chão?

- Quem fez isso? - Perguntaram as crianças, bastante intrigadas e quase

revoltadas com esse fato.

Para os adultos, especialmente aqueles que tiveram uma infância marcada

pelas brincadeiras de subir em árvore e comer a fruta “do pé”, a resposta seria óbvia:

- As laranjas caíram porque estão maduras demais.

Entretanto, olhando essa cena com maior profundidade percebemos a

denúncia das próprias crianças sobre quanto perderam: perderam a oportunidade de

conhecer o doce/azedo das laranjas, perderam a oportunidade de arranhar a pele ao

colhê-las, perderam a oportunidade de sentir o doce perfume das flores - se

tivessem chegado mais cedo. Perderam de acompanhar as flores se transformando

em fruto, perderam de ver os frutos crescendo, amadurecendo; perderam de

28

conhecer, em seu paladar, o melhor momento de colher as laranjas, perderam a

oportunidade de partilhar com os familiares e amigos o excesso da colheita.

Perderam o exato momento de ser a criança e a laranjeira, como ilustra Manoel de

Barros:

Porque se a gente fala a partir de ser criança, a gente faz comunhão: de um orvalho e sua aranha, de uma tarde e suas garças, de um pássaro e suas árvores. Então eu trago das minhas raízes crianceiras a visão comungante e oblíqua das coisas. Eu sei dizer sem pudor que o escuro me ilumina. É um paradoxo que ajuda a poesia e que eu falo sem pudor. Eu tenho que essa visão oblíqua vem de eu ter sido criança em algum lugar perdido onde havia transfusão da natureza e comunhão com ela. Era o menino e os bichinhos. Era o menino e o sol. O menino e o rio. Era o menino e as árvores. (BARROS, 2003).

A partir disso, observo (e lamento!) que as crianças perderam o direito à

interação com a natureza, empobrecendo a experiência de ser humano na relação e

mistura com o mundo, nesse belo processo de construção de si mesmo.

Se há um consenso entre os teóricos de várias linhas é que o processo de

aprendizagem parte das interações realizadas pelo corpo. Costa (2011,p. 29),

fazendo referência a Nietzsche, aponta que “é com o corpo, e não com o seu

abandono, que se entra na vida e a vida é eminentemente uma experiência do

corpo”.

29

Duarte Jr. afirma que:

O saber sensível, pelo qual se sabe o mundo no modo sensório-perceptivo, foi chamado pelos gregos de aisthesis, ou estesia, em português. Consiste no mais primordial conhecimento, ajustando e equilibrando nossa ação física sobre a realidade por meio de uma harmoniosa e precisa integração de informações levada a cabo pelos nervos, neurônios, músculos, substâncias químicas e correntes elétricas que constituem o corpo humano. Sobre esse saber primeiro (e as emoções a ele associadas), erige-se então todo e qualquer conhecimento outro que se possa reunir sob a denominação de conhecimento inteligível, como as abstrações filosófica, as científicas e mesmo as mais comezinhas e corriqueiras reflexões do dia a dia. (DUARTE JR., 2010, p. 111)

Esse pensamento vai ao encontro de Fernandes, que fazendo referência a

Spinoza, aponta que o sujeito se constitui a medida que o corpo interage,

experimenta.

Quando Spinoza incita — Nós nem sequer sabemos de que é capaz um corpo —, ele está, também, dizendo que é a cada encontro que um corpo aprende suas velocidades e intensidades, individua-se e experimenta as relações que o fortalecem ou o limitam. (FERNANDES, 2012, p.229)

Tiriba, ao comentar o artigo 4º das Diretrizes Curriculares nacionais para a

Educação Infantil/DCNEI, reforça a necessidade de um corpo em interação ao

propor que:

Ao brincar na terra, construir castelos de areia, fantasiar segredos da floresta encantada de seus sonhos, ao imaginar enredos em que se transmutam em animais e vice-versa, as crianças vão construindo sentidos sobre a sociedade e sobre a natureza. (TIRIBA, 2010, p.5)

30

Essa ideia é reforçada por Bill Waterson de forma bem-humorada, com seu

personagem Calvin que, praticamente, transpira a necessidade de liberdade e

interação com os elementos naturais.

www.satirinhas.com/2012/09/sem-controle/

Se o corpo em interação é um corpo livre e imaginativo, acredito na

necessidade de repensarmos os espaços, tempos e materiais (propostas

pedagógicas) das escolas de Educação Infantil. Não podemos ''emparedar'' o corpo

privando-o de conhecer o mundo. De acordo com Tiriba:

A estratégia de emparedamento das crianças está relacionada ao objetivo de produção de corpos dóceis de que o capitalismo necessita. De fato, o processo de estatização da sociedade, que possibilitou as condições de plena instalação do projeto capitalístico, está indissoluvelmente ligado ao caráter disciplinar desta sociedade (Foucault, 1987). Assim, o que podemos concluir é que os desequilíbrios ambientais – evidenciados num plano macropolítico - correspondem, no plano micropolítico, ao aprisionamento das crianças. (TIRIBA, s/d. p. 13).

De que outra forma pode-se desejar defender uma árvore sem sabê-la? De

que outra forma saber uma árvore sem balançar-se em seus galhos e fazê-los

degraus para alcançar o sabor de seus frutos, sem descansar sob sua sombra, sem

sentir seus perfumes?

31

Assim, concordando com Santin (2001, p. 30), ao referir que a brincadeira é a

principal maneira de a criança relacionar-se consigo mesma, com os outros e o meio

ambiente, finalizo este ponto destacando sua importância, que, sem pretensão ou

responsabilidade de cumprir essa função, torna-se alicerce indispensável na

construção da relação criança-natureza e de novas formas de ser e estar no mundo.

32

HOJE ESTÁ UM DIA PERFEITO PARA BRINCAR!

Ao final do passeio numa tarde muito agradável, depois de se pendurar no

cipó, atravessar ponte pênsil, subir na pitangueira, apanhar e comer laranjas, fazer

piquenique, provocar chuva de folhas secas, puxar e ser puxado na casca de

coqueiro, entre tantas outras brincadeiras, Ruan, do mais alto de sua sabedoria –

adquirida aos seus quase três anos de idade – conclui:

- Hoje está um dia perfeito para brincar!

Com essa afirmação, Ruan nos indica um caminho. Se brincar, como afirmam

diversos autores, é algo fundamental da infância e, se essa criança consegue

perceber num espaço amplo, livre e desprovido de brinquedos industrializados,

condições perfeitas para esse brincar, há muito que se considerar nesta fala. O

brincar em si, as condições para o brincar e os efeitos produzidos por ele precisam

ser não apenas considerados, mas potencializados no processo de educação

(também ambiental) para crianças, especialmente, para as ainda bem pequenas.

De acordo com Linn:

33

Por promover uma abertura nas experiências das crianças, permitir sua auto-expressão e oferecer uma oportunidade de formular sentidos para o mundo, brincar é essencial para o bem-estar psicológico infantil. (LINN, 2006, p. 95)

Ao experimentar essa sensação, Ruan identifica condições, talvez nunca

contadas até aquele momento (nem por ele e nem por outras tantas crianças cujo

desenvolvimento tem como único cenário a paisagem urbana), mas extremamente

favoráveis ao seu desenvolvimento, afinal como indica Santin (2001, p. 26) sem

liberdade à criatividade, a criança fica circunscrita às regras do jogo social,

econômico e científico. Para esse autor:

Quem brinca gosta da liberdade de sonhar e de inventar; para isso precisa da liberdade de sua imaginação para manter e superar incertezas, sem destruí-las. Ele quer sentir, viver e fruir a liberdade de criação, cujo único lugar de acontecer, diz Winnicott, é no ato de brincar. (SANTIN, 2001, p. 56)

Essa liberdade para a imaginação, a fantasia e a fruição podem ser reduzidas

de acordo com a condição de brincar que uma criança tenha acesso. Concordo com

Linn (2006, p. 95) ao sinalizar que “uma vez reconhecida a importância do brincar,

faz sentido que brinquedos – as coisas que as crianças brincam – também tenham

importância crucial”. Barthes denuncia o quanto os brinquedos aos quais a criança

tem acesso podem condicionar seu comportamento:

Simplesmente, perante este universo de objetos fiéis e complicados, a criança só pode assumir o papel de proprietário, do utente, e nunca do criador; ela não inventa o mundo, utiliza-o: os adultos preparam-lhe gestos sem aventura, sem espanto e sem alegria. Transformam-na num pequeno proprietário aburguesado que nem se quer tem de inventar os mecanismos da casualidade adulta, pois já lhe são fornecidos prontos: ela só tem de utilizá-los, nunca há nenhum caminho a percorrer. (BARTHES, 2001, p. 41)

No mesmo sentido, o poeta Manoel de Barros, ao rememorar os feitos e as

marcas de sua infância, traz-nos pistas sobre importância, para a criança, de habitar

territórios lúdicos, desprovidos de intencionalidade pedagógica ou comercial:

34

Isto porque a gente foi criada em lugar onde não tinha brinquedo fabricado. Isto porque a gente havia que fabricar os nossos brinquedos: eram boizinhos de osso, bolas de meia, automóveis de lata. Também a gente fazia de conta que sapo é boi de cela e viajava de sapo. Outra era ouvir nas conchas as origens do mundo. Estranhei muito quando mais tarde, precisei morar na cidade. (BARROS, 2003, p. XV)

Para reforçar a influência do brincar, no que diz respeito à capacidade de

imaginação, Linn (2006, p. 93) menciona a trajetória de J. K. Rowling, autora de

Harry Poter, criada em área rural, selvagem e bela, repleta de lendas e relativamente

isolada da cultura de massa, destacando que tal autora conjectura em suas

entrevistas que o ambiente e a falta de coisas pra fazer estimularam sua

imaginação.

Diante de tais considerações, não acredito em proposta de Educação Infantil

que não considere a ludicidade como base. Assim como Santin, aposto nas

interações constituídas a partir do brincar – consigo mesmo, com o outro e com o

meio – e, por isso também, na necessidade de ampliarmos o repertório de espaços e

materiais oferecidos para a brincadeira:

No mundo do brinquedo, para existir é preciso brincar; se não brincar, não existe. É fundamental brincar para nascer e existir. A presença do outro é incorporada, é amada é sentida como prolongamento, como continuidade de uma mesma corporeidade. Inaugura-se uma crescente sensibilidade que inicia por sentir o próprio corpo e sentir os corpos participantes de todos os personagens que se tornam “cidadãos” do país do brinquedo. Daí a importância do tipo de material com que a criança brinca e gosta de brincar. (SANTIN, 2001, p. 58)

Dessa forma, ao pensar os projetos de Educação Ambiental nas escolas de

Educação Infantil em Novo Hamburgo, que tem em vista a ampliação e qualificação

dos espaços habitados por essas crianças, constato que estamos interferindo não

apenas nas práticas de Educação Ambiental, mas na educação como um todo, bem

como na infância e nas possibilidades de criançar. Se a presença do outro só é

incorporada, amada, sentida como parte de sua própria corporeidade a partir do

brincar e, se para cuidar é preciso amar, é necessário oportunizar à criança que

brinque livremente na natureza, ainda que esta relação somente seja percebida anos

35

mais tarde, na vida adulta. Manoel de Barros anuncia esse processo com toda sua

poesia:

Acho que o quintal onde a gente brincou é maior do que a cidade. A gente só descobre isso depois de grande. A gente descobre que o tamanho das coisas há que ser medido pela intimidade que temos com as coisas. Há de ser como acontece com o amor. Assim as pedrinhas do nosso quintal são sempre maiores do que as outras pedras do mundo. Justo pelo motivo da intimidade. (BARROS, 2003, p. XIV)

Brincar: talvez esteja aí uma rota de fuga para romper com a dinâmica de

aceleração imposta pelo sistema capitalista. Brincarmos mais com a vida, viver cada

momento com mais leveza, colocando em primeiro plano a saúde pessoal (integral),

aprofundando as relações com o próximo e preservando os recursos naturais. Santin

(2001, p. 20) afirma que “o lúdico, sem dúvida, é um desses valores que podem

representar um reencontro do homem consigo mesmo” e, fazendo referência à obra

“A Educação Estética do Homem” de Friedrich Schiller, cita que o impulso lúdico fez

nascer o homem.

Em outras palavras, Redin confirma esta direção:

Há outro aspecto importante na brincadeira para o desenvolvimento infantil: a conquista da autonomia. Podendo a criança criar seu mundo fictício, estabelecer suas regras, projetar sua ação, ela está livre dos autoritarismos da situação real, fazendo um exercício de tomada de decisões que, posteriormente, comporão sua identidade política como cidadão. (REDIN, 2007)

Caminho semelhante é indicado pelo poeta Thiago de Mello (1965): “Porque

é do amor e da infância que o mundo tem precisão”. Parodiando a versão original,

proponho: o homem lúdico: é disso que o mundo tem precisão!

36

E A GALINHA FUGIU

37

No dia seguinte ao passeio de sua turma, a professora retoma com as

crianças o que realizaram e o que mais gostaram de fazer. Lucas, narra sua

brincadeira:

- Eu gostei de fazer ninho de galinha. Eu fiz um ninho grande perto da árvore.

E o ovo era o sabão. E a galinha fugiu.

E galinha fugiu, libertou-se, ganhou o mundo. Assim foi com a sensibilidade e

a fruição, que também ganharam mundo, potencializadas pelas brincadeiras ao ar

livre e com elementos naturais. Lucas e seus amigos permaneceram por grande

tempo imersos nessa brincadeira da galinha. Sua imaginação foi tão real que,

observando-os brincar, quase que podíamos visualizar a galinha fujona, fato que

possivelmente não conseguimos visualizar com brinquedos estruturados. Santin

(2001, p. 55) afirma que utilizando somente artefatos industrializados a criança “vai

para o trabalho, para a guerra, para a escola; entra em todos os lugares da vida

adulta, não consegue mais entrar nos mundos de sua imaginação lúdica”. Para esse

autor:

O corpo dos elementos que entram na criação do mundo lúdico são importantes. Segundo Walter Benjamin, os materiais naturais são os ideais, porque eles mantêm o tato, isto é, a sensibilidade, deixando-se moldar, transmitem intimidade e familiaridade. O ar, a água, o tempo, o espaço são vividos pelo prazer de senti-los, e não como elementos a serem superados e vencidos. Os materiais plásticos são de origem química, perderam a poesia, o encanto, a sensibilidade, facilmente acabam se transformando em utensílios. (SANTIN, 2001, p.58)

Barthes enriquece essa ideia falando sobre a sensibilidade que é mantida

acesa em contato com os elementos naturais:

Um signo espantoso é o desaparecimento da madeira, matéria, no entanto, ideal pela sua firmeza e brandura, pelo calor natural do seu contato, a madeira elimina, qualquer que seja a forma que sustente, o golpe de ângulos demasiado vivos, e o frio químico do metal: quando a criança a manipula, ou bate com ela onde quer que seja a madeira não vibra e não range, produz um som simultaneamente surdo e nítido; é um substância familiar e poética, que deixa criança permanecer numa continuidade de tato com a árvore, mesa, o soalho. (BARTHES, 2001, p. 42)

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E a galinha fugiu, libertou-se. Ela que já estava acostumada com sua vidinha

de galinheiro; de repente, se viu livre para ir ao encontro do mundo. Assim foi com a

imaginação: fora das quatro paredes pode ir muito mais longe, fugiu, libertou-se.

Com um repertório maior de espaços, materiais e experiências ampliam-se também

as possibilidades de criação e imaginação:

Quanto mais rica a experiência da pessoa mais material está disponível para a imaginação dela. Eis porque a imaginação da criança é mais pobre que a do adulto, o que se explica pela maior pobreza de sua experiência. (VIGOTSKI, 2009, p. 22).

E a galinha fugiu, libertou-se. Ela que já estava acostumada com sua vidinha

de galinheiro, de repente, se descobriu águia (BOFF,1997). Fora das quatro paredes,

na rua, o sujeito amplia suas possibilidades de construção de si mesmo, pois tem

maiores possibilidades de conhecer-se a si mesmo ao outro, o mundo:

A rua dá o que a casa muitas vezes nem avista. Que quer dizer sair? Que implica esse verbo, mediante o que indica a ação de abrir uma porta e passar do interior ao exterior, ganhar a rua, deixar atrás a casa? A rua, mais do que a casa, é cortada pelo extemporâneo, pelas multiplicidades, pelas tribos que perambulam por ela. (...) Cada um tem recursos próprios para distinguir o seu bando, mas talvez alcançar o máximo dessa conduta exige que se vá à rua para passear, arriscar-se, tropeçar, ver, apreçar. E continuar aprendendo na rua o que nem o lar nem a escola ensinariam jamais. Seja no espaço físico, seja no pensamento, há de se levar o pensamento para passear. (FERNANDES, 2012, p. 228)

Aquele que leva seu pensamento para passear e conhece a si mesmo tem

menos chances de se submeter ao que lhe é “ingenuamente” proposto (ou

imposto?) entre paredes.

Esse pensamento é refletido na ação de um menino que, ao receber a

câmera fotográfica para registrar aquilo que lhe soa mais interessante na sua escola,

captura várias cenas do pátio, dos amigos, da professora. Mas captura também o

39

lado de fora do pátio, revelando a sua necessidade de ir além-muro.

A explicação de Fernandes para esta imagem, embora não tenha sido

inspirada pela própria imagem, embora a autora nem saiba da existência dela, nos

ajuda a perceber essa necessidade de olhar além para conhecer-se:

O menino olha por entre os buracos do muro de uma casa. Será a casa de seu amigo? O menino não sabe. Fica ali olhando, observando. E o que se vê através das frestas do muro? O longínquo, o distante. É outrem que se vê ao longe, outrem que seduz, chama, provoca. O muro é a marca física de que há outrem, um corpo que está para lá, que não é de casa, da família, papai e mamãe. O muro serve de apoio para a mão que busca encosto. (FERNANDES, 2012, p.22)

Mas e a galinha? Fugiu, libertou-se. Ela que já estava acostumada com sua

vidinha de galinheiro, de repente, pulou o muro, ganhou as alturas e se descobriu

uma linda e poderosa águia, rainha dos céus, de si mesma e dos seus

pensamentos.

40

...MAS A ONÇA ME PROTEGEU

O imaginário é o outro aspecto que pode ser destacado ao longo das trilhas

realizadas no CEAES. A fim de alimentá-lo e de construir o personagem (professor

guia nas trilhas) adotei uma bengala que tinha esculpida uma cabeça de onça – a

onça mágica. Inicialmente, não sabia bem como utilizá-la. Tinha em mente a função

de um cajado ou, simplesmente, de uma alegoria. Sem planejar, num ato muito mais

intuitivo do que previamente programado, fiz uma brincadeira que permaneceu em

todos os grupos e, a cada reencontro com as crianças, nas suas escolas, elas

sempre perguntavam:

- “Profe” cadê a onça?

Como a onça é o maior mamífero das florestas brasileiras, apresentei-a às

crianças dizendo que ela era a protetora da floresta e de todos os amigos da

floresta. Para garantir proteção, a onça sempre abriria a trilha e seguiria à frente

avisando aos seres da floresta que estavam chegando amigos, assim nenhum mal

poderia acontecer durante o passeio; quem passasse à frente perderia a proteção.

41

Além disso, criamos um ritual de fortalecimento do ''campo de força da onça'' (essa

expressão foi definida assim por uma das crianças). Cada vez que a onça perdesse

sua força eu faria o grito de chamada:

- Olha a onçaaa!!

Eles deveriam se aproximar, vindo rapidamente de onde estivessem, emitindo

forças pra onça através de um gesto com as mãos e imitando o seu rugido com um

poderoso “huaaauu”.

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O medo foi um dos elementos presentes nas trilhas. Não tive intenção de

provocá-lo, embora soubesse que ele poderia aparecer. Assim como também não

imaginei que a onça ganharia essa dimensão de elemento de proteção e segurança,

quase um talismã. Porém, encontrei explicação em Santin (2001, p. 56) que, embora

se referindo ao contexto do treinamento esportivo, acredito aplicar-se também a esta

situação. O autor nos fala sobre a necessidade de manter aceso “o risco, a incerteza

e a aleatoriedade do brinquedo, estímulos e condições da liberdade de criar quando

se brinca. Só é possível manter a liberdade da magia lúdica quando a incerteza se

mantém viva e desafiadora”. A trilha, por todo seu potencial já descrito nos capítulos

anteriores, oferecia grande prazer, mas também oferecia essa pitada de medo, de

incerteza: e se aparecesse uma cobra? E se encontrássemos o lobo? E se alguém

se machucasse? E se eu não tivesse equilíbrio para atravessar a ponte que

balança? Tudo isso pode ser superado porque, de acordo com a explicação de

quem chegou ao final da trilha são e salvo: - A onça me cuidou!

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LELO LELO

Era uma tarde muito agradável, o frio do inverno já havia cedido espaço para

os primeiros raios de primavera, o céu estava azul e o cheiro doce de pitanga se

espalhava pelo ar. As crianças aventuravam-se em suas primeiras tentativas de

desafiar a gravidade escalando as árvores, pequenas ou grandes, em busca de

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frutos, desafios e alegrias. Os mais habilidosos faziam referência aos menos

experientes e assim interagindo - entre eles e com o meio - iam conhecendo o

mundo e a si mesmos. De repente, alguém desponta rapidamente e alcança o galho

mais alto de todos. É alguém muito habilidoso, além da técnica para subir em

árvores, tem equilíbrio, segurança e o melhor de tudo, a malícia, para, ao chegar ao

topo, olhar pra baixo e provocar:

- Lelo lelo, lelo leo, lelo lelo.

As crianças, que talvez nem imaginassem poder subir tão alto, ficam

ouriçadas e, na ânsia de imitar o amigo, buscam recursos e forças para subir

também. As professoras precisaram reforçar a atenção, as cordas e tudo mais que

pudesse ser degrau para essa aventura, pois a provocação teve efeito imediato. Ao

subir na árvore, para muito além do prazer de criançar, a professora Fabiani ensina

através de sua experiência o que é “saber” uma árvore. Ao mesmo tempo, torna-se o

parceiro experiente que ajuda a ver o mundo ou, como indica Fernandes, é o amigo

que abre as portas para outras possibilidades:

Um amigo é sempre outrem que indica mundos possíveis e impregna o universo de possibilidades. Vem de um espaço-tempo distinto, produz perceptos, afectos, e introduz o signo do não percebido naquilo que é percebido. Caso não houvesse outrem, um campo de forças incomparável seria inconcebível. Os signos que outrem exprime afectam e fazem variar algo no corpo do amigo, propiciando um aumento de potência. (FERNANDES, 2012, p.224)

Um aumento de potência: eis aí, possivelmente, uma das mais desafiadoras

tarefas do professor. Mas para isso, acredito que ele precisa cultivar em si mesmo a

fonte da ludicidade, o que nem sempre é percebido como algo essencial para o

adulto - especialmente para aquele que trabalha com a criança. Santin nos diz que o

adulto da sociedade industrial não consegue mais ter acesso ao mundo lúdico:

Aí comecei a olhar ao meu redor e vi o quanto é difícil voltar a brincar. E procurei identificar as resistências ao lúdico para tentar transformar uma mentalidade geral adversa. A palavra pode ser um ponto de partida, mas é preciso chegar à prática, isto, é, brincar. (SANTIN, 2001, p. 16)

45

O adulto precisa brincar: subir em árvores, rolar na grama, soltar pipa, tomar

banho de mangueira, jogar dominó, dançar, tocar algum instrumento musical,

brincar. Sim, brincar! Embora o brincar seja uma das marcas principais da infância,

ele também deve fazer parte da vida adulta. Percebo que, como regra:

Para o adulto tudo aquilo que se faz deve ter uma razão, deve significar alguma coisa. Para a criança o brinquedo tem valor em si mesmo. Ele não tem uma motivação externa. Brincar é brincar, e não fazer alguma coisa. A gente faz isto ou aquilo, desta ou daquela maneira, simplesmente porque sim. (SANTIN, 2001, p. 46)

Não estou afirmando com isto que todo professor, a exemplo da professora

Fabiani – no auge de sua juventude e vitalidade – precisa subir na árvore, mas sim

que deva manter acesa em si a chama da ludicidade. Feliz do adulto que consegue

conservar a infância em si, dando espaço à alegria, ao encantamento e ao assombro

e, a partir disto, provocar o desejo da criança, ensiná-la a ver, despertar nela a gana

de estar viva, ajudá-la a contatar a sede de conhecer a si mesma, o outro, a

natureza, o mundo.

Para que isso seja possível, acredito que:

Derrubar as paredes é uma condição para que possamos refazer elos de proximidade com o mundo natural e consideração pelos desejos do corpo. Em conseqüência, as propostas pedagógicas e de formação de educadores precisam orientar-se por objetivos de contemplação e reverência à natureza, assim como de respeito pelas vontades do corpo, justo o que, nos humanos, é também natureza. (TIRIBA, s/d. p.17)

No mesmo sentido, encontramos apoio no artigo 15 § 2º das Diretrizes

Curriculares Nacionais para a Educação Ambiental, ao indicar que:

O planejamento dos currículos deve considerar os níveis dos cursos, as idades e especificidades das fases, etapas, modalidades e da diversidade sociocultural dos estudantes, bem como de suas comunidades de vida, dos biomas e dos territórios em que se situam as instituições educacionais. (CNE/CP resolução 02/2012)

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Assim, se o respeito à idade e à especificidade das fases em que a criança se

encontra são considerados e, tendo a compreensão de que respeitar as

especificidades da infância significa respeitar a necessidade de brincar e conhecer o

mundo através de todos os sentidos, a Educação Ambiental na Educação Infantil

deve se preocupar menos com a transmissão de conceitos abstratos, embora

ecologicamente corretos, e muito mais com o encontro da criança com a natureza,

proporcionado, através de momentos lúdicos, desafiadores e prazerosos, em que a

própria criança vai desenvolver bases para a compreensão – inclusive afetiva - da

necessidade de atitudes ecologicamente mais apropriadas. Somente a partir do

saber uma árvore a criança compreenderá de fato a necessidade de preservá-la,

para si mesma e para as gerações futuras.

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E quanto ao professor de Educação Infantil/Ambiental:

- Para aquele que tem conhecimento técnico e teórico: lelo!

- Para aquele que tem conhecimento técnico, teórico e mantém a ludicidade

viva em si: lelo lelo!

Um lelo sozinho não vira brincadeira, já lelo lelo...

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OSSO DE ÁRVORE

Ao longo da trilha, com uma turma de crianças de quatro anos, elas

descobrem uma porção de ossos depositados entre os galhos de um maricá

centenário. Enquanto recolhia as cordas, usadas como apoio numa subida, e nos

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preparávamos para seguir em frente, tento prestar atenção ao momento

investigativo-filosófico-poético que as crianças travaram espontaneamente:

- Olha é osso... e que grande!

- Deve ser de dinossauro.

- Não, não pode ser de dinossauro.

- É sim! Esse osso é muito grande, só pode ser de dinossauro.

- Não, os dinossauros já morreram... foi quando caiu um meteoro e isso faz

muuuiiito tempo...

- Será que não é osso de cachorro? Vai ver que ele escondeu ali pra ninguém

pegar.

As crianças pegam os ossos, analisam, cheiram, testam sua “dureza”. A

discussão continua:

- Já sei: esses ossos são dos urubus, eles comeram a carne do bicho, mas

guardaram os ossos pra comer depois.

Algumas crianças acham que essa é uma boa possibilidade, mas outros têm

outras apostas. Um menino cogita a possibilidade de serem ossos de vaca, outro

disse que eram parecidos com os ossos do porco que seu avô matou na chácara.

Foi quando uma das crianças que observava em silêncio conclui:

- Cara, isso é osso de árvore! Olha bem – apontando para o alto da copa -

como tu “acha” que elas param assim, de pé?

Com tanta convicção, encerra-se a discussão.

Poderia ter sido apenas uma cena da Educação Ambiental: além da aventura

proporcionada para se chegar até ali, o professor poderia ter dado uma aula sobre a

função ecológica do maricá ou da mata ciliar, cuja explicação os alunos, provável e

infelizmente, esqueceriam antes mesmo de sair da mata. Muito mais do que isto, a

cena convocou saberes prévios, capacidade de diálogo, espírito investigativo,

liberdade para devaneios, espaço para dúvida e para conclusões científicas dentro

da lógica e dos saberes prévios das crianças... Uma atividade que proporcionou “um

verdadeiro desenvolvimento da sensibilidade, que precisa ser estimulada por

experiências sensíveis (que envolvam os cinco sentidos) e não apenas discursos

teóricos” (DUARTE JR., 2010, p.30).

Destaco a potência gerada por uma atividade como essa. Quando em sala de

aula, numa atividade dirigida, o professor consegue convocar diálogos tão ricos

como este? As crianças têm muito mais a oferecer em espaços ao ar livre, em

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contato com a natureza e com as infinitas possibilidades de conhecer o mundo. É

como se, fechada entre quatro paredes, sua capacidade de interação também

ficasse restrita aos limites do espaço fechado. Tiriba, ao defender o

“desemparedamento” das crianças aponta que:

Trata-se, então, de considerar as intervenções criativas das crianças, seus interesses presentes, pois é possível definir o que se ensina, mas jamais o que se aprende. Assim, as vivências ao ar livre, os passeios no entorno podem ser entendidos como possibilitadores de aprendizagens de corpo inteiro, em que são incluídas a atenção curiosa, a contemplação, as sensações, as emoções, as alegrias! São aprendizagens que se realizam aqui e agora, não servem apenas para confirmar o que foi trabalhado de forma sistemática, antes ou depois. (TIRIBA, s/d. p. 10)

Momentos como esse, que se passaram durante a trilha, e também outros

citados até aqui (exploração da grama pelos bebês, do pátio das laranjeiras, das

brincadeiras ao ar livre...) podem engendrar a transformação do sujeito que se deixa

transpassar, afetar por esses momentos, fenômeno que, de acordo com Larrosa,

podemos chamar de experiência:

A experiência é o que me passa. Não o que faço, mas o que me passa. A experiência não se faz, mas se padece. A experiência, portanto, não é intencional, não depende de minhas intenções, de minha vontade, não depende de que eu queira fazer (ou padecer) uma experiência. A experiência não está ao lado da ação, ou da prática, ou da técnica, mas do lado da paixão. Por isso a experiência é atenção, escuta, abertura, disponibilidade, sensibilidade, vulnerabilidade, ex/posição. (LARROSA, 2011, p.22)

Assim, acredito que a experiência, quando compreendida com paixão, como

algo que transpassa afetando/transformando, está no mesmo patamar do “ser

pateo”. E, assim como o “ser pateo” pressupõe um pátio que o favoreça, a

experiência que humaniza o sujeito também precisa ser favorecida. Redin aponta

essa necessidade ao defender o valor da experiência estética:

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A falta de espaço para a experiência estética no cotidiano das sociedades modernas tem gerado o sujeito anestesiado, inexpressivo, uniforme, conformado e com dificuldade de deixar ser atingido ou atravessado pela experiência. O sujeito pobre de experiência (experiência que é muito mais do que o experimento), aquele que caracteriza a ciência moderna, a racionalidade técnica que somente quantifica, busca competências em nome de conhecimentos supostamente universais e objetivos, que acabam silenciando a experiência e anulando a subjetividade que a acompanha, torna-se pobre em humanismo e em história. (REDIN, 2010, p. 245)

Ao entrar no campo da experiência estética, muitas vezes compreendida

como um campo apenas da arte e desejando apontá-la como indispensável nas

práticas da Educação Ambiental, busco na mesma autora a ideia de que a ética e

estética devem caminhar juntas:

A estética, antes de tudo, não pode ser descolada da ética. Qualquer ato humano, para ser estético, precisa estar sedimentado em princípios que valorizem a vida, o humano. (...) Nesse sentido, falo de ética/estética pela impossibilidade de separar essas perspectivas em qualquer ação humana, principalmente na educação e, mais especificamente, na educação de crianças pequenas. (REDIN, 2010, p.240)

Diante desse apontamento, questiono como e porque falar de aspectos

técnicos ou ainda sobre problemas ambientais para crianças pequenas quando elas

ainda não foram expostas e, consequentemente, afetadas pela beleza do mundo. A

criança contemporânea, especialmente aquela que nasce no ambiente urbano, tem,

infelizmente, possibilidades muito restritas de viver a natureza. Na maioria das

vezes, essa criança tem mais oportunidade de convivência com os problemas e

catástrofes ambientais do que com a natureza em sua plenitude e beleza. Porém:

Se a sociedade de nossos dias trabalha célebre no sentido da anestesia geral, de modo que nos quedemos insensíveis em face da brutalidade de um mundo regido mais e mais pela competição predadora e a ela nos dediquemos com afinco, nosso papel de educadores consiste em contrapor a tal estado de coisas o encantamento com as mais singelas maravilhas de que dispomos em torno a nós, refinando a sensibilidade fundamental de que nosso

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corpo é dotado. É preciso alcançar o sentido dos sentidos. (DUARTE JR., 2010, p. 31)

O cuidado tão falado nas escolas de Educação Infantil deve aparecer também

na forma que o adulto apresenta o mundo para uma criança, auxiliando-a a ver com

todos os sentidos e para além dos sentidos. De acordo com Saló e Barbuy:

O adulto tem uma tarefa importante com a criança: tonar possível o assombro valorizando o irreversível de cada vivência. Mantê-la alerta para notar o oportuno de cada etapa. Se não se mantém vigente a atitude de permanente assombro, não se poderá ver o extraordinário no mais corrente e a grande sabedoria do mais simples e cotidiano. (SALÓ e BARBUY, 1977, p. 17).

Acordar a sensibilidade, manter o encantamento, tornar possível o assombro,

possibilitar travessias, afetar, incendiar a paixão:

- Cara, esse é o osso que mantém a árvore da Educação Ambiental/Infantil de

pé!

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UMA “COBA”

O relato da fala de uma criança de dois anos, fundamentado nas experiências

que vivenciou na sua escola, e citado por Cornelius, Schaefer e Morais nos faz

acreditar que estamos na direção certa:

Essa fala foi narrada pela mãe desta criança à professora e iniciou quando a mãe pergunta como o filho gostaria de presentear a professora pela passagem do seu dia e, para tal pergunta, teve uma resposta surpreendente:

- Uma “coba”! (referindo-se a uma minhoca). A mãe diz: -Uma minhoca? Mas isso a professora não vai gostar. - Vai gostar sim! - Eu não iria gostar de ganhar uma minhoca.

Seguem os dois nessa discussão, quando depois de imaginar tantas coisas a mãe pergunta:

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- Mas porque tu achas que a professora vai gostar de ganhar uma minhoca?

Ao que ele responde: - Porque a “pofi” vai colocar na plantinha, a plantinha vai dar flores e ela vai ficar feliz.

Essa criança, apesar de tão pouca idade, mas embasada em sua própria

experiência consegue propor uma rota de fuga ao capitalismo: ela diz não ao

consumismo ao mesmo tempo em que diz sim à vida, ao cuidado, à amorosidade e

à beleza.

Primeiramente destaco o lugar onde esta criança teve oportunidade de viver

esta experiência: a escola de Educação Infantil. Mas não qualquer escola, uma

escola com uma proposta pedagógica que tem intencionalidade clara, definida e cujo

Projeto Político Pedagógico traz em seu registro:

Vivemos num tempo em que a velocidade das mudanças tecnológicas, o convite ao consumismo e as exigências do mercado de trabalho influenciam diretamente nos modos de vida das pessoas. A pressa e o corre-corre acabam sendo características do cotidiano, as quais incorporamos em nosso dia a dia sem percebermos outras possibilidades de vida que podemos optar. Atentas a estas questões e entendendo que o tempo da vida orgânica, histórica, estética, espiritual é outro - constitui-se e é constituído pela beleza e profundidade do percurso - sentimos necessidade de estabelecer em nossa escola concepções que garantam os direitos da infância onde o convívio com a natureza, a ludicidade e as interações entre crianças, crianças e adultos, crianças e o ambiente possibilitem a sustentabilidade do ser e uma nova forma de viver no mundo. Nos referimos a opção de oferecer um espaço onde o cuidado, a reflexão, a sensibilidade e o brincar sejam constantes rumo a garantia de uma infância saudável e prazerosa. (...) A materialização dessa proposta em nossa escola aparece na possibilidade que a criança tem de experimentar, mexer, olhar, cheirar, tocar e se sujar (com a terra, barro, areia, água,...), sentir/perceber (formas, texturas,...), refletir, associar e extravasar sua curiosidade. Para isso, todos os espaços da escola são explorados, mas principalmente o pátio, o qual proporciona múltiplas vivências significativas. (PPP EMEI PICA-PAU AMARELO, 2012)

Uma escola que, de acordo com o que escreve e pratica, está aparelhando

as crianças para outra ética. A ética que caminha junto com a estética e que por

valorizar a sensibilidade e a beleza, ensina, como define o poeta Manoel de Barros,

a gostar das coisas desimportantes:

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Dou respeito às coisas desimportantes E aos seres desimportantes. Prezo insetos mais que aviões. Prezo a velocidade das tartarugas mais que a dos mísseis. Tenho em mim esse atraso de nascença. Eu fui aparelhado Pra gostar de passarinhos. Tenho abundância de ser feliz por isso. (BARROS, 2003, p.IX)

Uma escola que tem consciência de sua importância, que olha para o

movimento capitalista, reconhece seu poder e sua força, mas que não está passiva,

pois, ao adotar em sua rotina a prática de manejo de uma composteira, onde a

criança tem a oportunidade de ser “afetada” por “uma coba”, ela não apenas deseja,

mas oportuniza que a criança tenha padrões estéticos mais sensíveis do que este

mencionado por Redin (2007): “A nós adultos, cheios de preocupações e

responsabilidades, pode tudo isso parecer perda de tempo – especialmente quando

os homens do norte nos disseram ‘tempo é dinheiro’”.

Em segundo lugar, esta criança, ao propor o cultivo de flores no lugar do

consumismo, indica uma importante linha de flexibilidade ao capitalismo. Na sua

sabedoria de dois anos de idade ela dá início ao que propõe Guattari:

Novas prática sociais, novas práticas estéticas, novas práticas de si na relação com o outro, com o estrangeiro, como o estranho: todo um programa que parecerá bem distante das urgências do momento! E, no entanto, é exatamente na articulação: da subjetividade em estado nascente, do socius em estado mutante, do meio ambiente no ponto em que pode ser reinventado, que estará em jogo a saída das crises maiores de nossa época. (GUATTARI, 1990, p. 55)

Obviamente não quero responsabilizar a escola, especialmente a escola de

Educação Infantil, como o único lugar responsável pela transformação da sociedade,

mas quero destacar sua importância e reafirmar que ela não pode se eximir deste

papel, pois como orienta Redin:

Os atravessamentos simbólicos, maneiras de ver, sentir, agir no mundo das crianças, por mais que passem por uma cultura que se

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engendra e se produz na sociedade, a partir do mundo dos adultos, podem ser potencializados a partir das próprias crianças. Sabemos que a escola para a infância é marcada por diversos atravessamentos simbólicos, que em vez de repetir modelos poderia oferecer às crianças novos lugares, insistindo no novo, no afastamento dos clichês, engendrando outros olhares prenhes de estesia. (REDIN, 2010, p. 247)

Desejo, que cansados da anestesia gerada pelo capitalismo, anestesia que

nos torna insensíveis não apenas ao belo, mas também às diferentes formas de

violência ao ser humano e ao meio ambiente, possamos, progressivamente,

absorver uma ética-estética contemplando as três ecologias propostas por Guattari

(1990): a do meio ambiente, a das relações sociais e a da subjetividade humana.

Uma ética-estética traduzida de forma singular na poesia de Arnaldo Antunes:

Sujar o pé de areia pra depois lavar na água Lavar o pé na água pra depois sujar de areia Esperar o vaga-lume piscar outra vez Ouvir a onda mais distante por trás da onda mais próxima Sujar o pé de areia pra depois lavar na água Respirar Sentir o sabor do que comer Caminhar Se chover, tomar chuva Não esperar nada acontecer Ser gentil com qualquer pessoa Sujar o pé de areia pra depois lavar na água Lavar o pé na água pra depois sujar de areia Esperar o vaga-lume piscar outra vez Ouvir a onda mais distante por trás da onda mais próxima Respirar Sentir o sabor do que comer Caminhar Se chover, tomar chuva Ter saudade no final da tarde Para quando escurecer, esquecer Ao se deitar para dormir, dormir Dormir. (ARNALDO ANTUNES)

E para finalizar, pergunto-me: um passeio na floresta tem este poder de

interferir na subjetividade a ponto de transformar a sociedade? Qual a importância

das experiências de encontro com a natureza para as crianças? Prefiro silenciar e

dar voz às crianças para que elas mesmas respondam:

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