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Graduando: entre o ser e o saber, Feira de Santana, v. 10, n. 13, p. 111-122, 2019 ISSN 2236-3335 J OU ISTO OU AQUILO : A INGENUIDADE DO OLHAR INFANTIL E A INSPIRAÇÃO PELO COTIDIANO Thiago Lucius Alvarez Amaral (UFRJ) Licenciatura em Letras: Português-Literaturas [email protected] Submissão: 17/02/2019. Aprovação: 04/10/2019. Resumo : Cecília Meireles (1901 - 1964) é uma das maiores escritoras brasileiras, e também precursora da poesia infantil no país. A autora acreditava que a leitura auxilia no conhecimento do mundo e que, para o pleno desenvolvimento da criança, era necessário escrever especificamente para crianças. Nesse sentido, o objetivo deste artigo é apresentar a vida da escritora e um dos seus livros de poemas infantis mais conhecidos: Ou isto ou aquilo (1977). A metodologia utilizada para alcançar o propósito foi o estudo bibliográfico, com base na obra supracitada de Cecília Meireles e embasada nos estudos de Coelho (2000), Lajolo e Zilberman (1987), Yunes (1976) e Fabrícia Sousa e Geovanize Sousa (2012). Palavras-chave : Literatura infantil. Cecília Meireles. Poesia. Ou isto ou aquilo . Abstract : Cecília Meireles (1901-1964) is one of the largest brazilian writers, and pioneer of poems for childrens in Brazil. The writer believed that the reading suport in world knowledge and that, for the full development of the kids, it was necessary write specifically for them. Therefore, the objective this article is present writer's life and one of his books for childrens most renowned, Ou isto ou aquilo (1977). The methodology used to reach the objective was the bibliographic research, based on the aforementioned book by Cecília Meireles and the studies of

OU ISTO OU AQUILO: A INGENUIDADE DO OLHAR INFANTIL E A ... · Ou isto ou aquilo (1964) assinala a ruptura com a tradição e o início de uma nova fase destinada ao público infanto-juvenil

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G r a d u a n d o : e n t r e o s e r e o s a b e r , F e i r a d e S a n t a n a , v . 1 0 , n . 1 3 , p . 1 1 1 - 1 2 2 , 2 0 1 9

I S S N 2 2 3 6 - 3 3 3 5

J

O U I S TO O U AQU I LO : A I N G E NU I DAD E DO

O LHAR I N FA N T I L E A I N S P I R A ÇÃO P E LO

CO T I D I A NO

T h i a g o L u c i u s A l v a r e z Ama r a l ( U F R J )

L i c e n c i a t u r a em L e t r a s : P o r t u g u ê s - L i t e r a t u r a s

t . l u c i u s @ h o tm a i l . c om

S u bm i s s ã o : 1 7 / 0 2 / 2 0 1 9 .

A p r o v a ç ã o : 0 4 / 1 0 / 2 0 1 9 .

R e s u m o : C e c í l i a M e i r e l e s ( 1 9 0 1 - 1 9 6 4 ) é u m a d a s m a i o r e s

e sc r i t o r a s b r a s i l e i r a s , e t ambém p re c u r s o r a d a p o e s i a i n f a n t i l

n o p a í s . A a u t o r a a c r e d i t a v a q u e a l e i t u r a a u x i l i a n o

conhec imen t o do mundo e que , p a r a o p l e no desenvo l v imen t o

d a c r i a n ç a , e r a n e c e s s á r i o e s c r e v e r e s p e c i f i c am e n t e p a r a

c r i a nças . Nesse sen t i do , o ob j e t i vo des t e a r t i go é ap re sen t a r a

v i da da esc r i t o ra e um dos seus l i v ros de poemas i n f an t i s ma i s

c o nhe c i d o s : O u i s t o o u a q u i l o ( 1 9 7 7 ) . A me t o d o l o g i a u t i l i z a d a

pa r a a l c ança r o p ropós i t o f o i o e s t udo b i b l i o g r á f i c o , c om base

n a o b r a s u p r a c i t a d a d e C e c í l i a M e i r e l e s e e m b a s a d a n o s

e s t u d o s d e C o e l h o ( 2 0 0 0 ) , L a j o l o e Z i l b e rm a n ( 1 9 8 7 ) , Y u n e s

( 1 976 ) e Fab r í c i a Sousa e Geovan i ze Sousa ( 20 1 2 ) .

P a l av r as -chave : L i t e r a t u r a i n f an t i l . Cec í l i a Me i r e l e s . Poe s i a . Ou i s t o ou aqu i l o .

A b s t r a c t : C e c í l i a M e i r e l e s ( 1 9 0 1 - 1 9 6 4 ) i s o n e o f t h e l a r g e s t

b r az i l i a n w r i t e r s , an d p i o nee r o f poems f o r ch i l d r e ns i n B r az i l .

The wr i t e r be l i eved t ha t t he read i n g supo r t i n wor l d know ledge

and t ha t , f o r t he f u l l deve l opmen t o f t he k i ds , i t was necessa ry

w r i t e spec i f i c a l l y f o r t h em . The re f o r e , t he ob j e c t i ve t h i s a r t i c l e

i s p resen t wr i t e r ' s l i f e and one o f h i s book s f o r ch i l d rens mos t

r e nowned , Ou i s t o ou a q u i l o ( 1 977 ) . T he me t h odo l og y u se d t o

r e ac h t he o b j e c t i v e was t he b i b l i o g r ap h i c r e se a r c h , b a sed on

t he a fo remen t i oned book by Cec í l i a Me i r e l e s and t he s t ud i es o f

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G r a d u a n d o : e n t r e o s e r e o s a b e r , F e i r a d e S a n t a n a , v . 1 0 , n . 1 3 , p . 1 1 1 - 1 2 2 , 2 0 1 9 J

C o e l h o ( 2 0 0 0 ) , L a j o l o a n d Z i l b e r m a n ( 1 9 8 7 ) , Y u n e s ( 1 9 7 6 ) ,

Fab r í c i a Sousa and Geovan ize Sousa (20 12 ) .

Keywords : Ch i l d ren ’ s l i t e r a t u re . Cec í l i a Me i r e l e s . Poe t ry . Ou i s t o Ou Aqu i l o . 1 I N T R O D U Ç Ã O

N o me i o d o c am i n h o t i n h a um a p e d r a T i n h a um a p e d r a n o me i o d o c am i n h o

T i n h a um a p e d r a N o me i o d o c am i n h o t i n h a um a p e d r a

C a r l o s D r ummon d d e A nd r a d e

Os ve rsos que compõem a ep í g ra fe des t e t r aba l ho nos

f azem l embra r que a poes i a é , de ce r t o modo , uma fo rma poé t i c a de ve r as co i sas à nossa vo l t a . A t r avés das pa l av ras , s i gnos que exp ressam emoções e sensações adve rsas , o l e i t o r vê o i nv i s í ve l , o que o poe t a l ê como i nd i z í ve l .

Segundo Ne l l y Novaes Coe l ho ( 2000 , p . 22 1 ) , o poe t a t em esse pode r de ve r a l ém do “v i s í ve l ou do apa ren te , pa ra cap ta r a l go que ne le não se mos t ra de imed ia t o , mas que l he é essenc i a l ” . Ta l vez se ja i sso que D rummond t enha v i s t o na t a l ped ra , sob re a qua l i ns i s t e em d i ze r que es tá em seu cam inho . Uma ped ra que , desde os f i ns de 1 924 , poss í ve l época de esc r i t a do poema , es tá abe r t a a i n t e rp re t ações adve rsas pe l os seus l e i t o res .

A p rodução poé t i ca b ras i l e i r a , mesmo que pub l i c ada f o ra do pa í s po r mo t i vo do seu subdesenvo lv imen to t ecno l óg i co em t e rmos de imp ressão e i ncen t i vo à l e i t u ra e à p rodução cu l t u -ra l , é vas t a desde o sécu l o X IX . Da ca r ta de Pe ro Vaz de Cam inha a t é as pub l i cações a t ua i s , o B ras i l t em uma boa gama de ob ras poé t i cas de p r imo r e qua l i d ade , embora não houves -se es t ímu l o e d i f usão das mesmas em todas as camadas soc i -a i s .

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G r a d u a n d o : e n t r e o s e r e o s a b e r , F e i r a d e S a n t a n a , v . 1 0 , n . 1 3 , p . 1 1 1 - 1 2 2 , 2 0 1 9 J

En t re t an to , a p rodução poé t i c a des t i nada às c r i anças sempre f o i um t an to l im i t ada e t endo seu “boom” apenas no sécu l o XX . Nossa cu l t u ra sempre f o i i n f l uenc i ada pe l a poes i a f o l c l ó r i ca , como can t i gas de b r i nca r ou n i na r , mas t i r ando essas , os poemas i n f an t i s , de aco rdo com Coe l ho ( 2000 ) , e ram de na tu reza cu l t a e i nsp i r ação român t i c a . Temos como pa i e pe rcu rso r da p rosa na l i t e r a tu ra i n f an t i l b ras i l e i r a Mon te i r o Loba to , que , com as aven tu ras de Na r i z i nho , Ped r i nho e Em í l i a , co l ocou c r i anças como pe rsonagens p r i nc i pa i s de uma ob ra .

Em meados do sécu lo XX , rompendo com a cu l t u ra da poes i a des t i nada à t r ad i ç ão d i dá t i c a , como fo rma de conse l hos , no rmas e ens i namentos , a l guns poe t as abandona ram essa pedagog i a dos va l o res t r ad i c i ona i s e p roduz i r am não só um mate r i a l poé t i co des t i nado às c r i anças , como t ambém pa ra seu uso em sa l a de au l a .

Um dos seus poe t as ma i o res , p recu rso res dessa a t enção ao púb l i co i n f an t i l , é Cec í l i a Me i r e l e s . Logo , es t e t r aba l ho t em como ob j e t i vo ap resen t a r a v i da da p ro fessora , poe t i sa e au to -ra , f a l e c i da em 1 964 , e ana l i s a r uma de suas ob ras pa ra esse púb l i co : Ou Is t o Ou Aqu i l o ( 1 977 ) .

2 D E S E N V O L V I M E N T O Cec í l i a Me i r e l es , nasc i da em 1 90 1 , f i cou ór f ã dos pa i s

mu i t o cedo e f o i c r i ada pe l a avó ma te rna na cap i t a l do R i o de Jane i r o . Cons i de rada uma das ma i o res poe t i sas do pa í s , fez o Curso No rma l de um renomado i ns t i t u t o da c i dade em 1 9 17 e , com menos de 1 8 anos , j á l e c i onava no ens ino f undamen ta l , na época nomeado como ens i no p r imá r i o .

Dev i do à sua v i vênc i a no mag i s té r i o e p reocupada com as causas educac i ona i s , a au to ra se envo lveu com d i ve rsos p ro j e t os vo l t ados ao púb l i c o i n f an t i l e , ass im , o rgan i zou , em 1 934 , no ba i r r o de Bo ta f ogo , a p r ime i r a B i b l i o t eca I n f an t i l do R i o de Jane i r o . De aco rdo com a p róp r i a , c r i a r a b i b l i o t eca f o i uma necess i dade demandada pe l o púb l i c o i n f an t i l e pa ra seus med i -ado res , pa ra “ [ . . . ] i n s t ru í r em os adu l t os ace rca de suas p re f e -r ênc i as ” (ME IRELES , 1 979 , p . 1 1 1 ) .

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G r a d u a n d o : e n t r e o s e r e o s a b e r , F e i r a d e S a n t a n a , v . 1 0 , n . 1 3 , p . 1 1 1 - 1 2 2 , 2 0 1 9 J

A au to ra f o i uma das ma i o res de fenso ras de um ens i no púb l i co e g ra t u i t o . V i veu a D i t adu ra Vargas f azendo c r í t i c as pe r t i nen t es ao p res i den te e seu gove rno , e de fendeu uma esco l a l a i c a , l i v re das amar ras do ens i no re l i g i oso . Po rém , sua marca na educação f i cou na pa r t i c i pação do “Man i f es t o dos P i one i r os da Esco l a Nova ” , em 1 932 , que de fend i a um ens i no na con t ramão das p rá t i c as pedagóg i cas t i das como t r ad i c i ona i s na época .

A p rodução l i t e r á r i a pa ra c r i anças , en t re os anos de 1 930 e 1 960 , t eve seu p r ime i r o susp i r o no âmb i to da poes i a com a pub l i c ação , no ano de 1 937 , de A Fes t a das Le t r as ( 1 996 ) que , pa ra Coe l ho ( 2000 ) , f o i a ún i ca expe r i ênc i a cons i de rada mode r -na pa ra a época . O tex to , com pa rce r i a de Cec í l i a e Josué de Cas t ro , é um ma te r i a l u t i l i z ado pa ra campanha nac iona l de esc l a rec imen to ace rca da impo r t ânc i a da a l imen t ação i n f an t i l . E , em me i o às suas pub l i c ações adu l t as , Cec í l i a Me i r e l e s pub l i c ava na imp rensa poemas i n f an t i s , os qua i s se r i am i nc l u í dos nos mate r i a i s esco l a res e an to l og i as poé t i c as v i ndou ras .

Pouco depo i s de f o rmada , l ançou , em 1 9 19 , sua p r ime i r a ob ra l i t e r á r i a , um l i v ro de poes i a chamado Espec t ro ( 20 14 ) , des t i nado ao púb l i c o adu l t o . Já pa ra o i n f an t i l , t emos O l h i nhos de Ga to ( 1 983 ) esc r i t o em p rosa ; Os pescado res e suas f i l h as ( 1 992 ) pub l i c ado em 1 969 , com i l u s t r ação de Chr i s E i ch , e O men i no azu l ( 20 13 ) . Deve-se ressa l t a r que os poemas re t i r a dos da ob ra Ou I s t o ou Aqu i l o ( 1 977 ) , a qua l f o i pub l i c ada pe l a pr ime i r a vez em 1 964 , se rão nosso ob je t o de aná l i se a segu i r .

2 . 1 O U I S T O O U A Q U I L O : O L I V R O Após 45 anos do l ançamen to da sua p r ime i r a ob ra pa ra o

púb l i co adu l t o , Cec í l i a l ançou seu l i v ro de poes i a Ou i s t o ou aqu i l o ( 1 977 ) , uma co l e t ânea compos t a po r 56 poemas des t i na -dos ao púb l i co i n f an t i l . O l i v ro , i l u s t r ado po r Mar i a Bonom i na 1 ª ed i ção , i nsp i r a -se no co t i d i ano , dando um o lha r ma i s s imp l es a e l e , e basea -se na i ngenu i dade do o l ha r da c r i ança .

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G r a d u a n d o : e n t r e o s e r e o s a b e r , F e i r a d e S a n t a n a , v . 1 0 , n . 1 3 , p . 1 1 1 - 1 2 2 , 2 0 1 9 J

Ou i s t o o u a q u i l o ( 1 9 6 4 ) a s s i n a l a a r u p t u r a c om a t r a d i ç ã o e o i n í c i o d e um a n o v a f a s e d e s t i n a d a a o p ú b l i c o i n f a n t o - j u v e n i l . A p a r t i r d e s s a p u b l i c a ç ã o , p o d e- s e e n t ã o f a l a r d e um a “ p o e s i a i n f a n t i l ” , n a m ed i d a em q u e o a d j e t i v o a g o r a c o n s a g r a um a p r o d u ç ã o q u e p r i v i l e g i a a v i s ã o d a c r i a n ç a n a c o n t emp l a ç ã o d e m u nd o , b em c omo s u a s n e c e s s i d a d e s e s e u s s o n h o s . ( L I S BOA a p u d SOUSA , F . ; S OUSA , G . , 2 0 1 2 , p . 5 )

Pa ra Coe l ho ( 2000 , p . 245 , g r i f o do au to r ) , a poes i a de

Cec í l i a , ass im como a a r t e em ge ra l , “ [ . . . ] é um j ogo que en r i -quece i n te r i o rmente aque l es que a e l e se en t regam . ” Ass im ,

[ . . . ] o l i v r o [ Ou i s t o o u a q u i l o ] [ . . . ] , e m c u j o s l ú d i c o s p o em a s a a r t e m a i o r d a p o e t a i l u m i n a ( p a r a c r i a n ç a s o u a d u l t o s ) n o v a s m a n e i r a s d e v e r a s c o i s a s m a i s s i m p l e s d o c o t i d i a n o ( j á t ã o c o n h e c i d o ! ) . O u a i n d a d e s c o b r e n o v a s r e l a ç õ e s e n t r e o s s e r e s e a s c o i s a s . (COELHO , 2000 , p . 244 )

Nesse sen t i do , exemp l i f i quemos essas ca rac te r í s t i c as com

c i nco poemas desse l i v ro : “O men i no azu l ” , “A l ua é do Rau l ” , “O co l a r de Caro l i n a ” , “Sonhos da men i na ” e aque l e que dá nome à ob ra : “Ou i s to ou aqu i l o ” .

2 . 2 “ O M E N I N O A Z U L ” No poema “O men i no azu l ” – l ançado depo i s em uma

ed i ção sepa rada , i l u s t r ada po r E lma – obse rva -se o j ogo semân t i co en t re a i de i a do men i no que que r a l guém pa ra b r i nca r , po rém não t em companh i a e não sabe b r i nca r soz i nho com a i de i a do bu r r i nho que se j a bu r r i nho , mas “que sa i ba d i ze r/os nomes dos r i os/das mon tanhas , das á rvo res/ - de t udo o que apa rece r ” (ME IRELES , 1 977 , p . 30 ) . Segundo Fab r í c i a Sousa e Geovan i ze Sousa ( 20 1 2 ) , o nome do poema t r aduz o s i gn i f i c ado do mundo i n f an t i l :

[ . . . ] a s e x p r e s s õ e s d o p o em a “ O m e n i n o a z u l ” , c om o men i n o r eme t e - s e à i n f â n c i a e q u a n t o o t e rm o a z u l r e f e r e - s e a o i n f i n i t o , c om o o c é u e o m a r e i n f i n i t o

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c omo a i m a g i n a ç ã o d e uma c r i a n ç a . D i f e r e n t em en t e d o l i m i t a d o v a l o r d o j o g o p a r a o a d u l t o , p a r a a c r i a n ç a e s s a a t i v i d a d e t em o p a p e l d e p o s s i b i l i t a r a m a n i f e s t a -ç ã o d e s u a f a n t a s i a d e m a n e i r a g r a t u i t a , e x p l o r a n d o s e u s s e n t i m e n t o s ( SOUSA , F . ; S OUSA , G . , 2 0 1 2 , p . 5 ) .

O poema abo rda o mundo i n f an t i l de f o rma l úd i c a po r

me i o de uma l e i t u ra do dese j o de uma c r i ança que gos t a r i a apenas de te r um am igo pa ra b r i nca r . Cec í l i a Me i r e l e s ressa l t a a ques t ão do t r aba l ho i n f an t i l , consequênc i a do a f as t amen to das c r i anças das esco l as , a pa r t i r do t e rmo “bu r r i nho ” , o que pa ra um l e i t o r i ngênuo f az menção ao “am igo an ima l ” que o men i no não t em , mas , em uma l e i t u ra ma i s p ro funda , f i c a c l a r a a menção ao ape l i do daque l es que não t êm conhec imen to . A pa r t i r da i ngenu i dade da c r i ança , Cec í l i a Me i r e l e s t r aba l ha com f i gu ras de l i nguagem tão ens i nadas em sa l a de au l a do ens i no bás i co . 1

2 . 3 “ A L U A É D O R A U L ”

Em “A l ua é do Rau l ” , a au to ra t r aba l ha com o j ogo de

pa l av ras , com a l i t e r ações e r imas i n t e rnas , pe l a l i nguagem i n f an t i l e , a t é ce r to momen to , u t i l i z a o poema como um t r ava -l í ngua :

R a i o d e l u a . L u a r . L u a r d o a r a z u l . R o d a d a l u a . A r o d a r o d a N a t u a r u a R a u l ! ( M E I R E L E S , 1 9 7 7 , p . 1 9 )

Esse poema t r aba l ha com o r i tmo e o l úd i co , que f azem

com que o t ex to , a l ém de encan t a r , seduza o pequeno l e i t o r . I sso po rque a p resença de a l i t e r ações , i s t o é , a repe t i ç ão de

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sons , como pa l av ras que con têm d i t ongos o ra i s dec rescen tes “ l u a ” , “ l u a r ” e as l e t r as R ou L , t o rnam o poema me lód i co , a l ém es t imu l a r a imag i nação do pequeno l e i t o r .

2 . 4 O “ C O L A R D E C A R O L I N A ” Em o “Co l a r de Caro l i n a ” não só as a l i t e r ações , como a

mu l t i p l i c i dade de sen t i dos en t re as pa l av ras cons t i t u i t odo o poema . E l e abo rda o momen to de a l eg r i a de uma men i na , chamada Caro l i n a , com seu co l a r co r de co ra l que a de i xa co rada . São a po l i s sem i a e as a l i t e r ações , p resen tes no poema , que chamam a tenção da c r i ança , p rovocando seus sen t i dos , se j am v i sua i s ou tema is :

F i g u r a 1 : P o em a “C o l a r d e C a r o l i n a ” .

F o n t e : O u i s t o o u a q u i l o ( 1 9 7 7 ) .

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G r a d u a n d o : e n t r e o s e r e o s a b e r , F e i r a d e S a n t a n a , v . 1 0 , n . 1 3 , p . 1 1 1 - 1 2 2 , 2 0 1 9 J

Me i re l e s desc reve no poema o que as c r i anças ma i s

gos t am e nasce ram pa ra f aze r : b r i nca r . Caro l i n a , j un t o com o

seu co l a r , buscam o l úd i co , o b r i nca r , o cor re r pe l as “co l unas

da co l i n a ” . Adema i s , encon t ramos a i nda nesse poema um

con teúdo na r ra t i vo , i s t o é , uma “h i s t ó r i a ” , mesmo que não

t enha i n í c i o , me i o e f im , mas que segue uma l i nea r i dade , que ,

de aco rdo com Coe l ho ( 2000 , p . 223 ) , é um fa t o r impo r t an t e na

poes i a pa ra esses i n fan t es : “A poes i a des t i nada às c r i anças

( ou aos ima tu ros em ge ra l ) deve se r b reve , ve rsos cu r tos ,

r i tmos e r imas que t oquem de imed i a to a sens i b i l i d ade , a cu r i o -

s i dade , i s t o é , que expresse uma s i t uação i n te ressan te . ”

2 . 5 “ S O N H O S D A M E N I N A ”

Embora Ou i s t o ou aqu i l o ( 1 977 ) abo rde o co t i d i ano e a

v i são i ngênua da c r i ança , não que r d i ze r que não t r aba l he com

a p ro fund i dade poé t i c a e de i n t e rp re t ação . Em “Sonhos da

men i na ” obse rvamos como um tema t ão p ro fundo , como os

m is té r i os dos sonhos , pode se r assun to para um poema des t i -

nado ao púb l i c o i n f an t i l :

S o n ho s d a M en i n a

A f l o r c om q u e a m en i n a s o n h a

e s t á n o s o n h o ?

o u n a f r o n h a?

S o n h o

r i s o n h o :

O v e n t o s o z i n h o

n o s e u c a r r i n h o .

D e q u e t am a n ho

s e r i a o r e b an h o ?

A v i z i n h a

a p a n h a

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G r a d u a n d o : e n t r e o s e r e o s a b e r , F e i r a d e S a n t a n a , v . 1 0 , n . 1 3 , p . 1 1 1 - 1 2 2 , 2 0 1 9 J

a s om b r i n h a

d e t e i a d e a r a n h a . . .

N a l u a h á um n i n h o

d e p a s s a r i n h o .

A l u a c om q u e a m en i n a s o n h a

é o l i n h o d o s o n h o

o u a l u a d a f r o n h a ? (M E I R E L E S , 1 9 7 7 , p . 2 0 )

Apesa r da es té t i c a p ro funda na es t ru t u ra do poema ,

Me i r e l e s u t i l i z a um vocabu l á r i o s imp l es pa ra que , na l e i t u ra da

c r i ança , a t emá t i c a se ja ass im i l ada f ac i lmen te po r e l a . A au to ra

man tém o que é ca rac t e r í s t i co em toda a obra : o j ogo de pa l a -

v ras , i s t o é , a pa r t i r da r ima , e l a b r i nca com d i ve rsos e l emen -

tos da na tu reza , como a a ranha , o passa r i nho e o seu n i nho , a

f l o r , a a ranha .

2 . 6 “ O U I S T O O U A Q U I L O ”

O poema “Ou i s t o ou aqu i l o ” t r aba l ha com a i de i a da d i f i -

cu l dade que t emos ao t omar uma dec i são . Mos t ra que , em

s i t uações de ap rend i zagens , devemos esco lhe r , po i s a v i da é

f e i t a de esco l has e devemos sabe r conv ive r com as opos i -

ções .

Ou s e t em c h u v a e n ã o s e t em s o l

o u s e t em s o l e n ã o s e t em c h u v a !

O u s e c a l ç a a l u v a e n ão s e p õ e o a n e l ,

o u s e p õ e o a n e l e n ã o s e c a l ç a a l u v a !

Q u em s o b e n o s a r e s n ã o f i c a n o c h ã o ,

q u em f i c a n o c h ã o n ã o so b e n o s a r e s .

É um a g r a n d e p e n a q u e n ã o s e p o s s a

e s t a r a o me smo t em p o em d o i s l u g a r e s !

( ME I RELES , 1 977 , p . 63 )

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Coe l ho ( 2000 ) sa l i e n ta que o poema t r ansm i t e uma impo r -

t an te l i ç ão de v i da , a pa r t i r desse j ogo poé t i co . E , po r f im , l eva

o l e i t o r a en tende r que , ao esco l he r a l go , de i xamos de usu f ru i r

os bene f í c i os da ou t ra , po rém , mesmo que não sa i bamos qua l

é a opção co r re t a , sabemos qua l esco l he r : “Esse é um dos

seg redos da v i da ( e que a l i t e r a tu ra nos ens i na ) : consegu imos

esco l he r o ma i s ace r tado den t ro das c i r cuns t ânc i as que nos

cabe v i ve r ” (COELHO , 2000 , p . 246 ) , r a t i f i c a a au to ra .

Na ob ra , mu i t os poemas reme tem a mov imen tos , como o

próp r i o “Ou i s t o ou aqu i l o ” , ca rac te r i zando a l i nguagem do j ogo

i n f an t i l . Yunes ( 1 976 ) des t aca que esse poema t r ansm i t e a

sensação do mov imen to de uma gango r ra : “os mov imen tos

l e vam e t r azem , vão e vêm , pa r tem e vo l t am , como as esco -

l h as duv i dosas de um j ogo ‘ i n t r a -mund i ’ j á i n i c i ado ” . O mesmo

e fe i t o oco r re em ou t ros poemas dessa co le t ânea , como , po r

exemp l o , em “As duas ve l h i nhas ” , no qua l o p ro fesso r em sa l a

pode f aze r um j ogo na l e i t u ra de le . Nesse poema , os nomes

das ve l h i nhas são repe t i dos em ve rsos a l t e rnados e em

ordens d i f e ren t es , uma vez “Mar i ana e Mar i na ” e nou t ra

“Mar i na e Mar i ana ” . Ass im , o docen te pode ped i r pa ra a t u rma ,

duran te a l e i t u ra , repe t i r em co ro t a i s ve rsos .

3 C O N S I D E R A Ç Õ E S F I N A I S

To rna-se ev i den te , por t an t o , que Cec í l i a Me i r e l e s , em Ou

i s t o ou aqu i l o ( 1 977 ) , t r aba l ha em cada poema a i n f ânc i a e o

descob r imen to do mundo a t r avés do co t i d i ano . Me i re l e s f o i uma

das p i one i r as em esc reve r poes i a i n f an t i l em t e r ras b ras i l e i r as ,

com sua p reocupação pedagóg i ca , enquan to educado ra e , no

pape l de poe t a , a r t i cu l a a a r t e poé t i c a com a pedagog i a .

A l ém d i sso , a p resença de r imas , a l i t e r ações e l i nea r i dade

nos poemas são marcan tes na ob ra . Esses de t a l hes técn i cos e

de aná l i se dos poemas não se rão obse rvados pe l a c r i ança na

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G r a d u a n d o : e n t r e o s e r e o s a b e r , F e i r a d e S a n t a n a , v . 1 0 , n . 1 3 , p . 1 1 1 - 1 2 2 , 2 0 1 9 J

hora da l e i t u ra e nem pe l o adu l t o que não t enha t a i s conhec i -

mentos , mas nos dá a opo r t un i dade de pe rcebe r o t r a t o poé t i -

co que Cec í l i a Me i r e l e s t i nha com as suas obras , e que merece

o t í t u l o de uma das ma i o res poe t i sas do B ras i l .

R E F E R Ê N C I A S

COELHO , Ne l l y Novaes . L i t e ra t u ra I n f an t i l : Teor i a Aná l i se

D i dá t i ca . São Pau l o : Mode rna , 2000 .

LAJOLO , Mar i sa . Z ILBERMAN , Reg i na . L i t e ra tu ra I n f an t i l

B ras i l e i r a : h i s tó r i as & h i s t ó r i as . 3 . ed . São Pau l o : Ed i t o ra Á t i c a ,

1 987 .

ME IRELES , Cec í l i a ; CASTRO , Josué de . A fes ta das l e t r as . R i o

de Jane i r o : Nova F ron te i r a , 1 996 .

ME IRELES , Cec í l i a . Ou i s t o ou aqu i l o . 2 . ed . R i o de Jane i r o :

Ed i t o ra C iv i l i z ação B ras i l e i r a , 1 977 .

ME IRELES , Cec í l i a . P rob l emas da l i t e r a t u ra i n fan t i l . 3 . ed . São

Pau l o : Summus , 1 979 .

ME IRELES , Cec í l i a . O l h i nhos de Ga to . 3 . ed . São Pau l o : Ed .

Mode rna , 1 983 .

ME IRELES , Cec í l i a . Os pescado res e suas f i l h as . São Pau l o :

G l oba l , 20 12 .

ME IRELES , Cec í l i a . O men i no azu l . São Pau l o : G l oba l , 20 13 .

ME IRELES , Cec í l i a . Espec t ros . São Pau l o : G l oba l , 20 14 .

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G r a d u a n d o : e n t r e o s e r e o s a b e r , F e i r a d e S a n t a n a , v . 1 0 , n . 1 3 , p . 1 1 1 - 1 2 2 , 2 0 1 9 J

SOUSA , Fab r í c i a de Far i as ; SOUSA, Geovan i ze de Fa r i as . O

poema “o men i no azu l ” de Cec í l i a Me i r e l e s na sa l a de au l a . I n :

Fó rum I n te rnac i ona l de Pedagog i a , 4 . , 20 1 2 . Pa rna í ba , Ana i s . . .

R i o Grande do No r t e : F i ped , 20 1 2 . p . 45 -57 .

YUNES , E l i ana Luc i a M . A i n fânc i a na poes i a de Cec í l i a

Me i r e l l es . Rev i s t a Le t ras , Cu r i t i b a , v . 25 , p . 103 - 120 , j u l . 1 976 .

N O T A S

1 I n c l u s i v e a v e r s ã o d o p o em a l a n ç a d a em 2 0 1 3 p a r t i c i p o u d a c am p a n h a

“ L e i a p a r a u m a C r i a n ç a ” d a F u n d a ç ã o I t a ú S o c i a l e B a n c o I t a ú , e m

p r o l d o i n c e n t i v o à l e i t u r a n a i n f â n c i a , q u e d i s t r i b u i u g r a t u i t am e n t e 3 , 6

m i l h õ e s d e e x emp l a r e s a o p ú b l i c o n o a n o d e 2 0 1 7 .