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Outros Críticos (ed. 10)

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10ª edição da revista Outros Críticos. Adquira a versão impressa em: http://outroscriticos.com/loja/ Faça o download em www.outroscriticos.com

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Entrelugares: notas críticas sobre o pós-mangue (2012)

PASSAGENS PERFORMANCES PROCESSOS(2015)

Ed. 1 # cenas musicaisjaneiro/2014

Ed. 2 # o valor da músicamarço/2014

Ed. 3 # paisagem sonoramaio/2014

outroscriticos.com

Ed. 4 # artes integradasagosto/2014

Ed. 5 # o improviso como forma outubro/2014

Ed. 6 # estética e políticadezembro/2014

Ed. 7 # ruínas e culturajunho/2015

Ed. 8 # corpo, gênero e descolcamentos agosto/2015

no mínimo era isso (2013)

Revista

Revista

Livro

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Sobrevivendo ao suicídio coletivo extasiante. É inútil. Tudo desaba.

A canção depois do fim da música, da crítica, da arte, da própria canção, do mundo.

Os negros, a memória. Os negros, o esquecimento.A história, transistória.

O arquivo, o documento, a mão que cata a memória (do lixo).

Suturas, narrativas, corpos, carnes, imagens.A linha tensionada.

Caminhos, descaminhos.

Olinda, Moscouzinho, Capibaribe, Aurora, Pátio, Parque.Cidades gráficas, Cinemas de rua.

A música de rua, a música política.As marchas macias, os bailes soltos.

Nosso coração é uma cloaca.Jamais fugirás de teu próprio coração.

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Bernardo OliveiraCrítico musical e editor do blog Matéria: música e adjacências.

Bruno VitorinoCompositor, baixista e colunista do blog Variações para 4.

Débora NascimentoJornalista, é repórter da Revista Continente.

Fernando AthaydeMúsico e jornalista.

Fred CoelhoEnsaísta, escritor e professor da PUC (RJ).

Gabriel AlbuquerqueEstudante de Jornalismo e integrante do grupo de pesquisa LAMA (UFPE).

Kiko DinucciMúsico e cineasta. Faz parte dos grupos Metá Metá e Passo Torto.

Rafael de QueirozMestre em Comunicação pela UFPE e repórter da MI (Música Independente).

hiSTóriA, MeMóriA e eSqueCiMeNTOEDIçãO 10 - BIMEsTRAL, DEZEMBRO DE 2015

Esta revista é uma iniciativa do projeto de crítica cultural Outros Críticos, e foi realizada com incentivo do FUNCULTURA (Governo do Estado de Pernambuco).

impressão gráfica:CEPE (Companhia Editora de Pernambuco).

iSSN: 2318-9177informações ou sugestões:[email protected]

Carlos Gomes Edição

Fernanda Maia Projeto gráfico

Gilvan Barreto Artista convidado e foto de capa

Marina suassuna (DRT 5556/PE) Jornalista responsável

Carlos Gomes e Marina suassuna Textos e mediação do debate

Adquira mais edições da revista em www.loja.outroscriticos.com

Ed. 9

corpo, gênero e deslocamentosruínas e cultura o artista veste máscaras

Ed. 7 Ed. 8

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5 artistaconvidado

6 artigo

24 opinião

40 entrevista

artigo 48

resenhas

54 artigo

Elza soares

Juçara Marçal e Cadu Tenório

Renata Rosa

Negro Leo

por Rafael de Queiroz

por Fernando Athayde

por Bruno Vitorino

por Gabriel Albuquerque

caminhos da polifonia contemporânea

por Kiko Dinuccinão existe amanhã pra mimpor Carlos Gomes

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por Débora Nascimento

por Bernardo Oliveira e Fred Coelho

por Marina Suassuna

Gilvan Barreto

Transistória, Transistor:as máquinas e as musas

O continuum cultural da África

siba

Eva DuarteFabiana MoraesAndré Dib

Joana VelozoPaulo Cunha

comH.d. Mabuse

Lula Marcondes

Por uma memória do documentário musical brasileiro

Participação de

BOTECOBOTECOCrítiCa de

Foto: Camila van der Linden

Foto: José de Holanda/Divulgação

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[email protected]/camilavanderlindenfotografiia

flickr.com/camilavanderlinden

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artistaconvidado

Gilvan barreto é pernambucano e mora no rio há dez anos. Seu trabalho foca em questões

políticas, sociais e na relação do homem com a natureza. Sua fotografia é influenciada pelo cinema, música e literatura.

em 2014, venceu o Prêmio Brasil de Fotografia, Prêmio Marc Ferrez (Funarte), Prêmio Conrado Wessel de Arte e fez parte

do rumos itaú Cultural com o projeto orquestra brasileira de Fotografia. Publicou os livros Sobremarinhos (2015), o livro

do Sol (2013), Moscouzinho (2012) e mais recentemente o livro-cd orquestra pernambucana de Fotografia (2015), com a participação de músicos e fotógrafos. Nesta edição, contamos

com as obras de Barreto presentes, principalmente, na exposição Suturas, apresentada neste ano em Pernambuco e

rio de Janeiro. A mostra conta com "fotografias, fotocolagens e desenhos que sugerem rupturas e tentativas de reconstrução.

Corpos, imagens e memórias remontados, reunidos por costuras manuais". Segundo o fotógrafo, “há uma linha

vermelha que, simbolicamente, busca a cura. São fotografias e colagens que simbolizam um procedimento cirúrgico bruto. uma anatomia irregular, assimétrica, possível”. Portanto, são

com essas imagens que procuramos refletir sobre as noções de história, memória e esquecimento que incidem sobre os textos

e debates presentes nesta edição da revista Outros Críticos.

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TRANSISTÓRIA, TRANSISTOR:

Por iniciativa de Mário de Andrade, então diretor do Departamento de Cultura da cidade de São Paulo, a Missão de Pesquisas Folclóricas percorreu o Norte e o Nordeste do Brasil durante o ano de 1938. Em busca de registros de manifestações culturais, particularmente de dança e música, trouxeram na bagagem gravações em áudio e imagens dos estados de Pernambuco, Paraíba, Maranhão, Pará e Minas Gerais. Entre os registros mais interessantes, é possível citar o caso dos “carregadores de piano” do Recife, grupos comcerca de oito homens que trabalhavam no porto e carre-gavam os pianos que chegavam da Europa para as casas particulares. No caminho, cantavam para ritmar o passo, entoando temas motivacionais com títulos como “Vamos nessa meus amigos”, “O coati tá no pau” e “Meu barco é veleiro”. O fenômeno é análogo aos vissungos e aos work songs norte-americanos, mas destaca-se pelo modo singular com que os cantores jogam com dinâmicas de pergunta-e-resposta, semelhantes ao coco de roda.

Música-acontecimento devido ao registro flagrante, mas também música-empoeirada, coberta por uma fina camada de ambiências e ruídos, captada por um antigo gravador MR6 DE, microfones e amplificadores, em sua maioria produzidos pela empresa norte-americana Presto Recording Corporation. Muitas perguntas surgem então: essa música pode ser considerada independentemente do fenômeno e do registro, “gênero” ou “estilo”? Desde o momento em que foi registrada, ela não permanece atrelada, não só ao momento, como também às condições técnicas e experien-ciais do seu registro — incluindo o contexto e a presença do gravador e dos técnicos? A prática do registro participa da afirmação do fenômeno no tempo presente, uma vez que permite, com suas lentes, que ele chegue até nós? Chia-dos e desequilíbrios passam a fazer parte do fenômeno ou se resumem a um efeito colateral inconveniente? Capta o acontecimento de forma absoluta ou possibilita seus des-dobramentos virtuais a cada nova audição? É possível ainda

Por Bernardo Oliveira e Fred Coelho

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1 Texto revisado e ampliado, publicado originalmente no blogue e catálogo do Festival Novas Frequências.

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AS MÁQUINAS E AS MUSAS

detectar relações de causalidade entre o fonograma impres-so e o próprio acontecimento?

A canção no Brasil desempenha um papel central na pro-dução de subjetividades e nos modos de narrar a história. A música brasileira é concebida e desenvolvida à luz da can-ção e seus desdobramentos práticos — a festa, o carnaval, o ato social, as mensagens subliminares, a conversa da malan-dragem, a estratificação social, o amor, a flor e o espinho. A história da canção oferece um eixo para nossas narrativas de origem e para nossas narrativas trágicas. Ela manifesta uma certa concepção de evolução (“a linha evolutiva”), demarca os períodos de ouro e de crise (a Era do Rádio, a Era da Bossa, a Era dos Festivais), e, finalmente, compartilhando seu espaço com outras modalidades sonoras, a canção se torna indício de uma suposta decadência, anunciada através de diagnósticos apocalípticos (“o fim da canção”, “o fim da cultura”). Decerto, não se trata de decadência, muito menos de involução, mas talvez de uma indisposição metodológica, um modo específico de se perceber os fenômenos sócio-sonoros.

Imaginem que a história da música brasileira não come-çou com a beleza sublime da canção popular. Que, virando tudo de cabeça pra baixo, não foram suas vozes que viraram musas. Imaginem que essa história começa quando alguém grava essa canção para que ela possa ser reproduzida para todos. Uma história que privilegia a técnica da gravação, o fenômeno maquínico da música — a captação do som — tornando-se uma espécie de centro gravitacional das nar-rativas sobre a canção e sobre a música brasileira em geral. Nessa contra factualidade, temos momentos importantes, quiçá origens fundadoras. Podemos escolher, como marco zero dessa história da máquina na música, a chegada ao Brasil de Frederico Figner, um tcheco que, após um período em Nova Iorque, desembarca em Belém do Pará no longín-quo ano de 1891. Figner traz ao país a novidade inventada por Thomas Edison: um aparelho que já estava bem próxi-

Por Bernardo Oliveira e Fred Coelho

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mo do que viria a ser o fonógrafo. Ro-dou boa parte do país, principalmente no Norte e no Nordeste, registrando as vozes das pessoas e as fazendo ouvi-las em reprodução mecânica pela primeira vez. Ao chegar ao Rio de Janeiro, capital da recém-fundada República, ansiosa de tecnologia e modernidade, ele abre sua famosa Casa Edison, na rua Uruguaiana. Logo depois, com o advento das “bola-chas” (discos de cera), Figner mudou sua tecnologia e ampliou os planos. Tornou-se o responsável por importar novas máquinas, equipamentos de gravação e reprodução, abrindo um estúdio e uma nova loja na rua do Ouvidor. A partir de então, em 1902, passou a lançar os primeiros discos brasileiros (e o selo Odeon). Baiano, cantor popular do período, gravou “Isto é bom”, e a canção popular deu o seu primeiro passo para dominartodas as narrativas sobre a música brasileira.

O conjunto da composição cancio-nal contemporânea impõe ao crítico a adoção de outras perspectivas de abordagem e compreensão do que aquelas disponíveis até então. Os modelos musicais com os quais se trabalha a história da música no Brasil excluem uma pesquisa de modos téc-nicos, pesquisa de timbres (fontes so-noras) e de alturas (frequências), para se concentrar na poesia, na tríade melodia-harmonia-ritmo e, eventual-mente, na questão da performance. Diante da multiplicação de tendências que se desdobram para além das fronteiras nacionais, percebe-se ime-diatamente a impossibilidade de uma sistematização mais rígida, orientada por critérios habituais, como os que balizam a pesquisa musical no Brasil: o formalismo (música como expressãoda forma), o essencialismo (música como expressão de uma essência), a história antiquária (o folclore), a

história monumental (a bossa nova, a jovem guarda, o tropicalismo), a manutenção da “identidade cultural” (e dos valores identitários), isto é, a relação da cultura com a dimensão do popular e do nacional.

Sobre a canção, pode-se detectar duas abordagens da canção: uma culturalista (o Wisnik de O Som e o Sentido); a outra formal ou verbivoco-literária (Tatit, Zumthor, “performan-ce”, “vocalidade” dicção). Em ambos os casos o que se exprime no ato da performance é a dicção do compo-sitor, produção intermediária entre a essência formal (a forma cancional) e a expressão efetiva da performance. Isto é, a expressão da performance é efeito de uma causa, a forma da canção, a forma da interpretação. A canção brasileira está presa a uma causalidade formalista, que encontra sua possibilidade de existência como efeito de uma essência.

As categorias elaboradas por Luiz Tatit não se tornaram obsoletas, mas sua eficácia na análise cancional pode vir a reivindicar a introdução de outros elementos. A canção contemporâ-nea não se resume a uma resultante inscrita em um sistema de coorde-nadas bidimensional, formado única e exclusivamente sobre a tessitura (altura) e o andamento (duração). Hoje, talvez seja preciso encarar que a canção se faz também na performan-ce, na instrumentação, nos modos de apresentação e gravação, valorizando também a intensidade (volume) e o timbre (fonte sonora), não como ade-reços, mas como elementos constitu-tivos. Isso porque, adequadas sobre a canção como hábito e epicentro da cultura nacional, as noções de forma e conteúdo, como formas apriorísticas da análise musical, se inscreveram imediatamente no corpus cancional brasileiro, permitindo isolar a canção da performance. Porém, para alguns

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compositores do século XX e XXI, a essência formal não pode ser exposta sem que se traga a experiência e a performance para o epicentro consti-tuinte da canção: é através da aparên-cia e da transparência que boa parte desses autores irão se exprimir. Se faz necessário pensar a canção em con-formidade com a escolha da instru-mentação e a performance, buscando não só identificar as escolhas timbrís-ticas na interpretação vocal, como também nas opções instrumentais, nos arranjos e no modo da apresenta-ção. A inclusão do ruído, das longas durações, a valorização da ambiência, inscrevem outras dinâmicas expressi-vas no corpo cancional brasileiro. A canção se torna um objeto integrado não mais a um “acompanhamento” ou a uma “linha evolutiva”, mas adap-ta-se a múltiplas ecologias sonoras.

Neste contexto, qual seria o estatuto das pesquisas conectadas à manipulação de alturas e timbres, de invenções técnicas e ambiências? Será que o único elemento na músi-ca brasileira é a canção consonante,

as dissonâncias administráveis, os instrumentais como acompanhamento e a gravação limitada ao registro do momento? Ou a percepção de certas práticas e procedimentos afirmam uma história apócrifa: a história do som na música brasileira? É por este caminho que pretendemos ventilar a hipótese de uma determinada histó-ria da música no Brasil, uma história experimental sobre uma forma expe-rimental de se conceber e produzir música, ressaltando as pesquisas, o jogo de erro-e-acerto e os modos de criar sons presentes em toda música. História, portanto, elaborada a partir de práticas e questões acerca do som e seus desdobramentos técnicos, tecnológicos e inventivos.

Se a nossa história fosse tam-bém a do Som como referência, e não somente a da voz e da canção, saberíamos tudo sobre Fred Figner. Saberíamos provavelmente o nome do técnico da gravação da música interpretada por Baiano. Teríamos certamente um relato heróico desse momento de precariedade e supera-

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ção na primeira gravação brasileira. Um relato com o mesmo heroísmo contido nas festas de Copacabana e Ipanema, o mito de fundação da Bos-sa Nova; ou na história sobre o dia em que João Gilberto bateu na porta dos Novos Baianos em um apartamen-to na rua Conde de Irajá. Sabemos, porém, que isso não ocorre. Ninguém sabe o nome do nossos primeiros téc-nicos, raramente sabemos seus nomes ao longo do tempo. Quem operava as máquinas, não estava ao lado de quem usufruía do seu funcionamento — isto é, os cantores e instrumentistas que eram gravados.

Jacob do Bandolim, por exemplo, era fascinado pela tecnologia e se inteirava constantemente do universo de equipamentos e efeitos, chegando a utilizar-se de fotografias e microfil-mes para facilitar a transcrição e ar-mazenamento de partituras. Em 1959, durante as gravações de uma série de faixas para a Rádio MEC (relançado em1996 com o título Choros, valsas, tangos e polcas), Jacob toca um ins-trumento que ele próprio inventou, o Vibraplex, espécie de guitarra elétrica que explorava as reverberações de um violão tenor. Com isso, evidencia-va uma pesquisa por outras formas de tocar, de compor e de “timbrar” instrumentos do choro.

Outros tópicos dessa história do som seriam constituídos por um estu-do acerca das relações entre técnica, registro e invenção, tanto nas expedi-ções organizadas por Mário de Andra-de nos anos 30, como na caixa Música do Brasil, organizada na primeira década do século XXI por Hermano Vianna e Beto Vilares. Seria preciso também lançar luz sobre as escolas de música dos anos 60, coordenadas por grandes experimentadores — entre elas a UNB, com Claudio Santoro, Rogério e Régis Duprat, Damiano Cozzela e Décio Pignatari e a UFBA,

com Hans-Joachim Koellreutter e Er-nst Widmer; resgatar as experiências com frequências e silêncio de Walter Smetak; prestar atenção ao “Hertzé” e demais instrumentos inventados por Tom Zé; estudar a tamba, o chocalho d’água e outros instrumentos inventa-dos por Pedro Sorongo; João Gilberto como noise musician; não esquecer a voz e o violão de Nelson Cavaqui-nho, que ainda aguardam um estudo aprofundado devido a sua extrema originalidade; reconhecer os achados timbrísticos do Grupo Fundo de Quin-tal e dos sambistas do Cacique de Ramos; não ignorar o modo peculiar com que o funk carioca faz uso dos equipamentos de produção, desde os sintetizadores e drum machines dos 80 aos MPCs e softwares da atualida-de. Longa e variada, a lista de tópicos a serem levantados por uma história do som na música brasileira atravessa todo o século XX.

Não se trata de negar em abso-luto a canção popular, muito menos de criar uma espécie de divisão entre consumidores de música “brasileira” e “musica gringa”. O que está em jogo é justamente a possibilidade de outras bases sonoras ampliarem o vo-cabulário dessa música local e, princi-palmente, tornarem-se parte ativa de uma massa crítica sobre nossa história musical. Os resultados práticos, aliás, estão cada vez mais no prato do dia, como os trabalhos recentes de canto-res e cantoras que, mesmo aliados ao viés pop da canção brasileira, incorpo-ram o ruído e o grave, a dissonância e a máquina como elementos vitais e autorais em suas criações.

Se a história é o registro teste-munhal do passado em suas varia-das formas, métodos e expressões, evocamos aqui uma “transistória”, constituída por observações acerca do movimento e dos materiais invisíveis. Não os deuses, nem os mitos, nem as

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musas, nem as crenças e valores, mas as forças do silício, da termodinâmica e do eletro-magnetismo, as forças do acetato, do som, do rádio, da imagem, do pixel. Nem uma fenomenologia (pois não operamos com “sujeitos” autônomos e monódicos), nem uma nova semiótica (pois o signo está inserido no devir do mundo, e não o oposto). Algo ainda mais problemático do que uma “história do tempo presente”. Uma “transistória” é uma história do transistor como meio de comunicar o incomunicável — não porque é inefável, mas porque é pura potência transdutiva e inocência aleatória. Uma transistória é uma história do vir-a-ser, das forças, das ondas, das energias, nos quais estamos inseridos, e das relações de poder e temporalidades que elas geram. Tempos multilineares, multidirecionais. O tempo das subjetividades, das escutas particulares, da abertura para a inter-pretação e para deixar-se afetar por algo além (e ao lado) da canção assobiável.

O que se evoca, portanto, é uma “transistória” da música no Brasil que não separe o “folclore” de música urbana, que descarte categorias pautadas na produção dos grandes consensos, que não minimize a expressão sonora como dado fundamental da apresentação, que evitaria desprezar formas de gravação, efeitos, experiências e demais possibilidades associadas ao som. Uma história que considere o problema da canção em paridade com o “acompanhamento” (o arranjo), com a pesquisa de timbre e altura, com as condições sonoras, com a criatividade dos técnicos. Em suma: liberar agenciamentos sufocados ou nao ex-plicitados, recompor as redes da música e do som no Brasil. Essa transistória não elegeria estratos exclusivos de invenção (o modernismo, a bossa, o tropicalismo), reconhecendo a invenção em todas as matérias sonoras desenvolvidas em âmbito nacional e entre as fronteiras reais e imaginárias. Quem sabe assim, em um futuro não muito distante, novas gerações considerem Figner e os pioneiros da grava-ção no Brasil tão importantes quantos as vozes eternas de nossos cantores. oc

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Pouco antes de o show começar, Chas Chandler saiu da plateia e foi até a beira do palco para falar reservadamente com Eric Clapton. Perguntou se o guitarrista poderia convidar um músico norte-americano novato, seu fã, que estava por ali, para fazer uma participação na performance que o Cream faria, dali a poucos instantes, na Polytechnic School of London. O bandleader concordou. No meio da apresentação, como combinado com o ex-baixista do The Animals, convocou o jovem visitante para uma jamsession de “Killing Floor”. Apenas o tempo de plugar o instrumento se-parou Jimi Hendrix da reação efusiva da plateia e da constatação de Eric Clapton: havia irrompido do nada alguém para ocupar o seu posto de Deus da Guitarra.

Quarenta e cinco anos depois da morte de Hendrix, podemos contar em poucos dedos os guitarristas negros em bandas de rock, ou mesmo os negros em bandas de rock ou até espectadores negros na plateia de um show de rock. Apesar de terem sido determinantes para o surgimento do estilo musical, vêm perdendo o protagonismo nesse gênero, assim como em outros.

Do início, desbravado por nomes como Bo Diddley, Fats Domino, Chuck Berry, Little Richard, o rock não demorou a passar às mãos dos brancos, a partir da chegada de artistas como Buddy Holly, Jerry Lee Lewis, Carl Per-kins, Bill Haley e, mais notada e notavelmente, Elvis Presley. O advento do Rei do Rock serviu para atenuar o preconceito contra o gênero de origem negra. No entanto, funcionou como porta de entrada para a apropriação do mesmo pelos brancos.

A invasão britânica, na década seguinte, só veio reforçar o “branquea-mento” do gênero musical. Capitaneado pelos Beatles, o levante de bandas do Reino Unido destrinchou o mercado americano para uma infinidade de

por Débora Nascimento

O continuum cultural da

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artistas e grupos que viria a seguir.Durante a ida aos EUA, os Rolling Stones, que

carregavam uma escancarada bagagem de blues americano, ficaram horrorizados ao descobrir que muitos dos nomes venerados por eles, a exemplo de Muddy Waters, cuja “Rollin’ Stone” inspirou o nome da banda, eram desconhecidos, em sua própria terra, pela maioria dos jornalistas e apre-sentadores de TV.

Nos anos 1960, os artistas negros que des-pontavam na música pop estavam mais ligados a outro gênero, a soul music. Nessa década, a gravadora Tamla Motown, fundada em 1959 e voltada apenas para cantores negros, chegava ao seu ápice.

A Motown tinha o intuito de ser uma máquina de fabricar hits, pegando talentos brutos, genuí-nos e os transformando em produtos prontos para ingressar no mercado – dominado por brancos, tanto na parte artística quanto na empresarial. A gravadora funcionava como um mecanismo completo, oferecendo ao seu cast, além de com-posições com potencial de virarem hits, aulas de coreografia, etiqueta e estilo, banho de loja e de salão de beleza.

A empresa acabou desempenhando uma importante função de aplacar o preconceito contra os negros nos Estados Unidos, ao lançar alguns dos artistas mais queridos da América, como as Supremes, Marvin Gaye e Jackson 5. No entanto, foi acusada de tentar “embranquecer” seus contratados para serem aceitos, em pleno contexto em que os negros americanos sofriam ataques seríssimos motivados por preconceito racial e promoviam campanhas de fortalecimento da autoestima, como “Black Power” e “Black is Beautiful”.

Nesses mesmos anos 1960, em que o rock já estava dominado pelos brancos, Jimi Hendrix apareceu, roubando o posto de Eric Clapton e ostentando uma cabeleira black. Curiosamente, o líder do mais incomum power trio da época (formado por ele e dois ruivos ingleses) resolveu adotar o penteado mais por inspiração em Bob Dylan do que por autoafirmação da raça.

A cena black americana ressoou no Brasil com mais evidência em dois estados, Rio de Janeiro e Bahia. No primeiro, inspirou a criação do mo-vimento Black Rio e, no segundo, fortaleceu a

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formação de blocos afro que estourariam na mídia nos anos 1990, como Ilê Aiyê, Ara Ketu, Muzenza e Olodum.

O Olodum ajudou a projetar a “africanidade” da Bahia para o mundo, quando Paul Simon de-cidiu gravar com o grupo, em 1990, a faixa “The Obvious Child”, do disco Rhythms of the Saints (1990). Anos antes, o compositor havia ido à Áfri-ca do Sul para realizar o álbum Graceland (1986). O interesse do artista pelo continente africano surgiu depois que ouviu uma fita com músicas daquele país. O impacto daquelas canções foi tão forte que ele resolveu estabelecer contato com os músicos de lá. Desrespeitou o embargo cultural e comercial da ONU (devido ao Apartheid) e con-cebeu o disco, que chegou a ser apontado como uma tentativa de “roubo” do “som africano”, ape-sar de Simon ter creditado as parcerias.

Vencedor do Grammy e recorde de vendas, Graceland ajudou a chamar a atenção para a música e o continente africano. Paralelamente, o termo world music passava a vigorar no mercado fonográfico, embora como “gênero” servisse mais para abarcar o que fosse considerado exótico aos ouvidos do “mercado oficial da música”.

Dez anos depois, o Olodum ganharia novo foco, desta vez com a gravação de “They don`t care about us”, de Michael Jackson. Vale lem-brar que, no início dos anos 1980, o cantor havia inserido o trecho de “Soul Makossa” (1972), do camaronês Manu Dibango, em “Wanna be startin’ somethin”, faixa de abertura do álbum Thriller (1982). Se a ideia partiu de Michael ou do produ-tor Quincy Jones, não se sabe, mas o certo é que uma pontinha da Mãe África estava registrada ali, no disco mais vendido da história, o maior triunfo comercial da indústria fonográfica norte-america-na.

Em 1996, Michael desembarcava em Salvador para a gravação do clipe dirigido por Spike Lee, marcando a cidade para sempre. Até hoje, a capi-tal baiana lembra o memorável evento que, para alguns, foi o contato com o cantor mais famoso do mundo, o Rei do Pop, mas, se olharmos com mais foco, também firmou o encontro entre mem-bros de nações africanas espalhadas pela Améri-ca: Spike, Michael e os músicos do Olodum.

Embranquecido pela maquiagem, para dis-farçar o vitiligo, com nariz afilado por cirurgias e

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usando uma peruca de fios lisos, Michael, possi-velmente negando seu passado e antepassados, pisava cheio de dedos no solo brasileiro que mais se orgulhava de sua cor e de sua origem.

A influência da África na Bahia se vê desde o samba de roda, as cantigas da capoeira e Dorival Caymmi – estruturador do que hoje chamamos Música Popular Brasileira. De lá surgiu uma varia-da gama de músicos que comprovam a vitória da biologia da miscigenação: João Gilberto, Caeta-no Veloso, Gilberto Gil, Tom Zé, Maria Bethânia, Gal Costa, Moraes Moreira, Pepeu Gomes, Baby Consuelo, Raul Seixas. Dessa terra, partiu a Tia Ciata, que, uma vez no Rio de Janeiro, abriu sua casa para rodas de músicos que fizeram surgir o samba.

Nos anos 1990, a eclosão de sucessos advin-dos de grupos baianos, sob o arcabouço da “axé music”, trouxe uma massificação e rapidamente um desgaste da imagem desses artistas. “Música baiana” virou praticamente um termo pejorativo. Daniela Mercury, que conseguiu vencer o precon-ceito em sua própria terra, por ser branca, domi-nou as paradas de sucessos do país, mas logo se tornou alvo de críticas na imprensa especializada. O mesmo aconteceu com as cantoras que segui-ram seus passos, mais notadamente Ivete Sanga-lo. Advindos dos trios elétricos, esses nomes vêm se distanciando dos gêneros afro e investindo numa MPB sem força criativa.

A própria Música Popular Brasileira vem fican-do cada vez mais branca. Ao que parece, nela foi criada uma espécie de casa grande e senzala. Hoje, boa parte dos músicos negros que despon-tam no país são vinculados ao samba ou ao rap, gêneros ainda estigmatizados. Atualmente, o tipo de música que faz mais sucesso no país é domina-da por brancos, o famigerado “sertanejo univer-sitário”, subgênero nascido a partir da célula do forró – de origem negra, no nordeste do país.

Os negros, que nunca ocuparam os altos cargos da cadeia produtiva dessa arte, sempre comandada por homens brancos, o que pode explicar muita coisa desse próprio mercado, agora se veem possivelmente numa ameaça maior, ao sofrerem um sutil ou não tão sutil assim apartheid cultural – e não estamos nem falando da presença ainda ínfima em setores como a da música erudi-ta; mas, sim, da falta de oportunidade das classes

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menos favorecidas para a formação, o consumo e a produção de uma cultura mais diversificada.

A diáspora africana, que trouxe sofrimentos profundos e seculares à população negra, ser-viu não somente para enriquecer os países que se valeram do trabalho escravo para crescerem economicamente, mas enriqueceu culturalmente o mundo. Contabilizar essa herança (harmonias, gêneros, instrumentos, temáticas, formas de cantar, dançar...) em sua totalidade é uma tare-fa praticamente impossível. No entanto, não se pode – nunca – esquecer a dívida que se tem com os negros pela construção do universo musical do qual dispomos.

Nas últimas décadas, foram poucos os nomes que chegaram ao lado de cá, tais como Youssou N’Dour (Senegal), Cesaria Evora (Cabo Verde), Oliver Mtukudzi (Zimbábue), Angélique Kidjo (Benin), Fela Kuti (Nigéria), Emmanuel Jal (Sudão), Ladysmith Black Mambazo, Miriam Makeba e Vusi Mahlalesa (África do Sul). Mas isso tende a mudar, com o interesse renovado pelo continente e as atuais facilidades tecnológicas. Os artistas que antes encontravam dificuldades para ingressar no mercado internacional, regido pela indústria fonográfica norte-americana, hoje encontram, ao menos, na internet um veículo efetivo para divul-gar seus trabalhos.

Gradativamente, essa influência vem sendo reforçada, a exemplo de bandas como Vampire Weekend e Tune-Yards, que exibem essa carga musical, e dos mais recentes álbuns de Siba e Alessandra Leão, que trazem influências da música congolesa. Principal atração do Coquetel Molotov deste ano, Emicida apresentou o show do último disco, Sobre crianças, quadris, pesadelos e lições de casa, realizado a partir de uma viagem à Africa.

De Sinhô, Pixinguinha, Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro, Caymmi, Cartola, Miles Davis, Duke Ellington, Billie Holliday, Ella Fitzgerald, Moacir Santos, Baden Powell, Bob Marley, Peter Tosh, James Brown, Aretha Franklin, Gilberto Gil, Jorge Ben, Pinduca, Roberto Silva, Mestre Salu, Mestre Vieira a Jimi Hendrix, a África é um inquebrantável continuum cultural, fincado no sangue e na alma de incontáveis descendentes ao redor do planeta. oc

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Tidos como pioneiros na documentação cinematográfica de universos musicais, os diretores D.A Pennebaker e Michael Wadleigh fornecem retratos autênticos da contracultura americana por meio de seus respectivos documentários Monterey Pop (1968) e Woodstock: 3 days of peace & music (1970). O fato desses realizadores terem tes-temunhado ao vivo, com suas câmeras, dois dos maiores eventos da geração paz e amor, numa conjuntura política e social de inconfor-mismo e contestação em que a música pop e os festivais ocupavam um importante lugar na produção de pensamento e ativismo dos jovens, fez de seus filmes, por si só, documentos históricos. Através deles, inúmeras gerações tiveram acesso a esse período da história e puderam desfrutar, de alguma maneira, daquilo que não vivenciaram. E como construir, num documentário, o efeito de verossimilhança de uma realidade que não se pode mais captar por estar datada?

No ensaio “História, documentário e exclusão social”, o cineasta e historiador Sávio Tarso Pereira da Silva afirma que a matéria-prima do cinema documentário é o imponderável. Nesse sentido, ele cha-ma atenção para a necessidade dos cineastas de criar novos modos de representação para se adequar à realidade móvel e dinâmica. “A história do século 20 não poderia ser escrita sem levar em conta a introdução de novas fontes de pesquisa e a ampliação das noções de recortes temporais", atesta. Desse modo, ao recontar uma história que não pode mais ser mais registrada pela câmera, os documenta-

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ristas buscam articular, na montagem fílmica, documentos e versões daquela realidade que sejam capazes de transmitir a aura da época. É aí que reside um dos grandes potenciais do documentário enquan-to gênero cinematográfico portador de memória na atualidade: a capacidade de produzir um discurso histórico articulado em docu-mentos e materiais de arquivos.

Vejamos o documentário Tropicália, de Marcelo Machado, lança-do em 2012. A narrativa parte de um instante bastante preciso: no dia 4 de agosto de 1969, Gilberto Gil e Caetano Veloso, então exila-dos pela ditadura militar brasileira há menos de um mês, participam de uma apresentação no teatro Villaret, em Lisboa, para o programa Zip Zip, onde decretam o fim do Tropicalismo enquanto movimento. O diretor leu sobre a apresentação nas cartas que Caetano escrevia para o jornal O Pasquim e procurou a Rede de Televisão Portuguesa para adquirir o arquivo. "Logo que vi a sequência, pensei que ela devia abrir o filme. Haviam vários aspectos que me encantavam ali. Era um retrato do exílio, com a cara e o jeito que o Caetano e o Gil estavam naquele momento, o que acentuava a curva dramática que eu pretendia construir. Além disso, era um material inédito, desco-nhecido e potente por isso também", justifica.

Para documentar o grande marco cultural que foi a Tropicália, Marcelo Machado estabeleceu dois recortes específicos: o primeiro é que teriam voz apenas os artistas do movimento, e não especialis-

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tas. O segundo é que os materiais de arquivo teriam que ser datados dos anos de 1967, 68 e 69. Sendo assim, foram consultados diversos acervos públicos e privados, entre eles o da TV Record, da Cinemateca Brasileira, do MAM do Rio, da Rádio e Televisão Portuguesa e do INA França, além de vários fotógrafos que trabalharam em veículos da época. Acervos pessoais também foram contatados, entre eles o do diretor Silvio Darin, de onde saíram entrevistas com Hélio Oiticica e Glauber Rocha, utilizadas por Macha-do para ilustrar o que era produzido no cinema e nas artes plásticas, e o do inglês Murray Lerner, que continha as imagens inéditas do festival da Ilha de Wight, em 1970, na Inglaterra, onde se apresentaram Caetano e Gil.

Um aspecto interessante do documentário de Machado é que os arquivos funcionam não apenas para contextualizar a época, mas principal-mente como recurso narrativo. "Até para os depoimentos dos artistas usei o material de arquivo como gancho. Fazia sessões em sala escura com uma tela grande e eles reagindo ao material coletado. Ou seja, o filme é documento feito com documentos", define. Machado se certificou de que os entrevistados desconheciam boa parte do material coletado, coisas que fizeram e que nunca tinham visto e que, certamente, teriam uma reação emocional ao tomar conhecimento. No lugar de colocá-los falando para a câmera, registrou a reação de cada um em áudio e utilizou como voz off. São esse depoimentos atuais, mais espontâneos do que direcionados, que conduzem a narrativa.

Responsável pela pesquisa de imagens para Tropicália, Eloá Chouzal trabalha na área há mais de 20 anos e afirma que passar horas imersa em arquivos do passado é sinônimo

de momentos intensos: "Descobrir imagens escondidas é fazer uma espécie de arqueologia, buscando em vários locais e acervos aquilo que caiu no abandono, quase à míngua em algum recôndito. Nós, pesquisadores, salvamos essas imagens do desapa-recimento. Isso é apaixonante. Mui-tas vezes, quando estou em ilhas de edição assistindo filmes em moviolas, eu choro de emoção, pois a imagem de arquivo, acompanhada da música, tem este poder de transportar a gente para épocas diferentes".

Outro documentário recente do qual Eloá participou foi Dominguinhos (2014), de Mariana Aydar, Duani e Eduardo Nazarian. Segundo a pes-quisadora, o documentário teve um processo longo de descoberta de seu conceito, sendo refeito muitas vezes até chegar no formato final. A coleta de arquivos envolveu dezenas de acervos, tanto no Brasil como no exterior. Entre as imagens resgatadas por Eloá, está um fonograma bastante emblemático, encontrado no acervo da TV Cultura, em que Dominguinhos toca junto com Hermeto Pascoal, am-bos improvisando com uma naturali-dade e desenvoltura capaz de deixar milhões de espectadores de queixo caído. Para completar, Hermeto co-menta: “Quem toca, toca com quem sabe. Quem não sabe, de fato, tem de ensaiar. Chega Dominguinhos, toca com a gente e a gente faz o som. A gente toca sem ensaiar, a gente toca até sem saber”. Para Eloá, a importân-cia de utilizar a imagem está no fato de juntar dois gênios representantes da nossa cultura mais profunda que é a do sertão e, além de tudo, dois mestres autodidatas. "Além disso, a música rola naturalmente, como o pró-prio Hermeto diz, ela sai de dentro, vem de fora, perpassa tudo, não tem entrave, flui", analisa.

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“Descobrir imagens escondidas é fazer uma espécie de arqueologia,

buscando em vários locais e acervos aquilo que caiu no abandono”

Eloá Chouzal

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“Quando se articula o documento enquanto memória, quebra esse lastro mais caricato sobre o que é passado. Deixa as coisas mais palpáveis”Hilton Lacerda

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"Quando se articula o documento enquanto memória, quebra esse lastro mais caricato sobre o que é passado. Deixa as coisas mais palpáveis", acredita Hilton Lacerda. Ele é responsável pelo roteiro de Cartola - música para os olhos (2006), documentário de Lírio Ferreira cuja pesquisa de arquivos, bastante rica e diversificada, durou oito anos. Entre as imagens de naturezas distintas utilizadas na montagem estão entrevistas antigas de Cartola, cenas de shows, depoimen-tos de amigos e pesquisadores, arquivos de televisão, pedaços de filmes antigos, trechos de programas de rádio, fotogra-fias, entre outros.

De acordo com Hilton, a ideia era contar a história do Brasil através da biografia de Cartola enquanto artista negro num contexto de cultura popular urbana. Para isso, a escolha dos arquivos na hora da edição foi pautada muito mais pela capacidade de atender às necessidades de uma narrativa lúdica e sensorial, ao invés de objetiva. Uma das estratégias, segundo Hilton, foi articular os arquivos de maneira a "corromper", positivamente falando, o seu sentido original. Por exemplo: para ilustrar o caso de Cartola sendo flagrado no quarto pelo marido de sua amante, os dois diretores pernambucanos usaram o trecho de uma antiga chanchada de Oscarito, no qual uma situação idêntica é encenada pelo comediante. Assim, os documentos de arquivos ajudaram os diretores a encon-trar maneiras criativas de contextualizar as diferentes fases da vida do sambista. "Durante o filme, restauramos pouco material, pois queríamos que o defeito estivesse aparente para legitimar essa memória brasileira", aponta Hilton.

A mesma ideia foi adotada por Mar-celo Machado em Tropicália. De acordo com o diretor, a equipe do filme buscou aceitar a deficiência do material como um aspecto da linguagem, o que ajuda-va a construir a sensação de época. Por outro lado, a imprecisão decorrente da

má conservação desses arquivos trouxe algumas dificuldades de manipulação, estimulando o diretor a buscar soluções criativas para lidar com essas imagens. Ele conta que a maioria das soluções surgiu da possibilidade de manter o de-partamento de arte trabalhando paralelo à edição. A partir desse trabalho conjun-to, decidiram intervir nas imagens com animações, colorizações e sobreposições, resultando numa plasticidade visual bastante atraente. Em várias passagens, é colocado um band-aid para indicar que a imagem carece de preservação. "A sequência das fitas adesivas na sequência da Gal [Costa] cantando Divino Maravi-lhoso é meu maior comentário sobre isso. A deficiência do material me ajudou a comentar o descuido com nossa memó-ria audiovisual".

Para Eloá, as marcas do tempo são típicas dos arquivos brasileiros, que sofrem com a falta de investimento do poder público na manutenção e restau-ração. "A Cinemateca Brasileira, nossa principal instituição voltada à preserva-ção de filmes, está quase fechada, sem gente para trabalhar", observa. "As imagens da nossa cultura guardadas em acervos americanos e franceses estão em perfeito estado, porque eles têm mais tradição de respeito à memória, sabem sua importância e isso se reflete no trato e na preservação de filmes, sons e fotos." Para Hilton Lacerda, é quase um luxo acessar a nossa memória documentada. "O acesso aos arquivos hoje no Brasil é muito difícil porque a maior parte deles pertence a instituições privadas. Por isso, quando a gente consegue trazer à tona essas memórias através de um documen-tário, isso acorda as pessoas. A utilização de arquivos na realização de um docu-mentário, além de trazer cores e viés que são muito próprios de determinados per-sonagens e momentos históricos, é ainda mais importante num país como o Brasil, que tem a memória fragmentada". oc

DOCUMENTO: ENTRE O DESGASTE E A PRESERVAÇÃO

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Nesta seção contamos com textos sobre a memóra afetiva dos autores sobre suas experiências em espaços culturais que hoje estão abandonados,

em ruínas, indefinidamente em reformas, ou que simplesmente não existem mais. A partir destes

depoimentos, firmamos uma memória ante o esquecimento desses diferentes lugares.

EvA DuArtE

FAbiANA MorAEs

Artesã, contadora de histórias e jornalista.

Jornalista e escritora.

se as cidades das nossas memórias têm estrelinhas de diferentes cores marcando acontecimentos afetivos, estéticos, profissionais, o Pátio de são Pedro (recife, PE) é a maior constelação da galáxia das minhas lembranças. outrora, fonte de tantas felicidades, conquistas e aprendizagens, hoje, é só tristeza e abandono. Descaso, cupins. A falta de vontade política da Prefeitura do recife vem degradando e fechando uma a uma as portas de equipamentos pioneiros e importantes - o Centro de Formação em Artes visuais, o Centro de Design do recife, o MAMAM no Pátio ... -, ao mesmo tempo em que o calendário de eventos se apaga: terça Negra, sPA das Artes, semana de Fotografia, revela Design. r.i.P. Pátio de são Pedro.

MisPE. A rua da Aurora não era alvo de especulação. Eu subia aquelas escadas de madeira para ver filmes depois de sair da universidade. A tela à frente e as janelas abertas atrás da gente, o rio passando, as luzes, os ônibus. sensação de fazer parte da cidade, de vivenciá-la, estar perto. Murnau, Polanski, Godard, todos ali, juntos conosco, enquanto o Capibaribe enchia com as marés.

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ANDré Dib

JoANA vElozo

Integrante do Movimento #CineRuaPE

Ilustradora e artesã.

Cheguei ao recife em 1997, a tempo de frequentar o Cine veneza, no centro do recife. Do alto, no balcão, o primeiro filme que vi nele foi Baile Perfumado. A fantasmagoria de luzes e sombras instáveis, o som ecoando naquela sala imensa e semivazia, me remeteram às primeiras sessões da minha vida. recentemente, em caminhada promovida pelo #CineruaPE, entrei pela primeira vez na cabine de projeção, que permanece intacta por ser "inútil" ao atual empreendimento. Em um dos cantos, no meio da sujeira, encontrei pedaços de película e panfletos com a programação dos anos 1980. Foi como acessar o compartimento secreto de uma pirâmide, com objetos de outra civilização. se o prédio do veneza fosse uma cabeça, seriam estas as suas memórias: Fragmentos deteriorados, prontos para serem varridos pelo esquecimento, não fossem encontradas pelo esforço exploratório.

Minha memória afetiva mais forte certamente é com o teatro do Parque. Foi lá onde vi minha irmã dançar pela primeira vez, em um espetáculo intitulado Pássaros, da Compassos Cia de Dança, com uma trilha sonora que me teletransporta para aquela noite instantaneamente. E mais os festivais de cinema (acredito que a primeira edição tenha sido lá...), peças, shows, eventos diversos. Atravessar o hall de entrada, encontrar os amigos, esperar alguém e fazer de conta que não estava me olhando nos espelhos, sentar no piso superior, comprar lanche no jardim e ficar por ali depois dos eventos... os romances, os filmes. Minhas memórias naquele espaço se misturam. infância, adolescência, os vinte e poucos anos... o teatro do Parque certamente é uma pecinha colorida e vibrante desse mosaico doido das minhas memórias recifenses. Me pergunto se algum dia voltarei a vê-lo pelo lado de dentro...

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PAulo CuNhAé professor do Bacharelado de Cinema & Audiovisual da UFPE.

A década de 1970 ainda distribuía suas doses paradoxais e generosas de festa e de dor quando as salas de cinema que frequentávamos no recife começaram a fechar. éramos como um desfile de cabelos longos e jeans e, de repente... bye, bye Art Palácio... bye, bye trianon... bye, bye Moderno. Eram todos cinemas de rua, – salas que davam para as calçadas e não para os corredores anódinos dos shopping centers. Aos poucos, mas sistematicamente, o deserto de telas se instalou.

Minha geração sempre procurou explicar esse processo a partir de múltiplos fatores: a televisão invadira todas as salas, com sua programação cada vez mais nacional, implantando em muita gente a vergonha do nosso próprio sotaque (é nesse período que repórteres locais de tv começavam a pronunciar “Ôlinda” como se fossem cariocas suburbanos...); as ruas estavam cada vez mais inseguras à noite, os serralheiros ganhavam fortunas colocando grades em portas e janelas, e ninguém mais queria andar dois quarteirões até o cinema do bairro; mesmo no centro da cidade, as lojas mais sofisticadas partiam para a zona sul, e dentistas e alfaiates fechavam consultórios e ateliês. Quase dava para escutar o verso de Maiakovski reverberando na Avenida Conde da boa vista: “tudo desaba!”

Nesse tempo, nem dava para culpar o neopentecostalismo ou a estética Miami da nossa construção civil. os templos e as torres imensas vieram muito mais tarde. Ali, naquela quadra, os cinemas de rua fechavam e ficavam assim, simplesmente fechados. tal circunstância permitiu que ivan Cordeiro realizasse um dos mais belos curtas do Movimento super-8 do recife: Censura Livre, de 1980, que mostra um melancólico Carlitos (interpretado por Ângelo lima) vagando pelas ruínas recentes do cinema rivoli, que funcionou em Casa Amarela.

Era mesmo assim: passávamos na rua, víamos a antiga sala quase intacta, dava para olhar pelas grades ou pelas frestas das janelas, às vezes até as poltronas continuavam nos lugares, apenas não havia mais projeções, nem filas para comprar ingressos, nem gente conversando sobre algum filme.

o Coliseu desapareceu desse jeito. Era uma sala adorável: grande (cabia uns 800

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espectadores? ou minha lembrança exagera?), com um telhado de zinco que permitia que ouvíssemos os pingos de uma chuva mais forte (não tínhamos nos transformado todos em técnicos da Dolby capazes de perceber, como hoje, um zumbido de meio decibel numa caixa de som desregulada...), uma antessala simples onde as pessoas flanavam antes e depois das sessões (atenção: vocês não vão acreditar, mas trata-se do tempo em que comprar um ingresso permitia ver o filme quantas vezes se quisesse, entrando e saindo da sala para fumar um cigarro ou para esperar alguém que chegaria meia hora depois de você).

o Coliseu era um “cinema de arte”. A empresa severiano ribeiro, que monopolizava a exibição no recife, se desinteressara daquela sala que ficava na frente da vila dos Comerciários, zona Norte do recife, e de suas casinhas duplex todas idênticas. Em vez de fechá-la, permitiu que Celso Marconi (crítico do Jornal do Commercio) e Fernando spencer (do Diario de Pernambuco) programassem lá os filmes que desejassem. E foi um deslumbre (mas um deslumbre sem glamour): de que outra forma veríamos naqueles anos malucos Teorema, de Pier Paolo Pasolini, numa tela grande?

Mas era mais do que filmes. sempre é mais do que filmes. o Coliseu era, para o espectador que morava em Parnamirim, poder ir até lá de bicicleta; por assiduidade, era conhecer o bilheteiro que não ligava para sua carteira de estudante de 14 anos e deixava você entrar num filme com censura (e não indicação etária) de 18 anos; era sair do filme e dar de cara com ivson (do tamarineira village), sentado no meio fio e solando um violão velho. o Coliseu nos fez amigos de pessoas que só viríamos a conhecer anos depois - se vocês me entendem. Por exemplo: Jomard Muniz de britto foi meu amigo do Coliseu mas eu só o conheci (de nome, de falar com ele) muito mais tarde. Alexandre Figueiroa também.

Quando o Coliseu fechou, virou nada. Ficou um tempo ali, fechado simplesmente. Depois tornou-se uma loja de móveis, eu acho, ou um atacadão, um mercado, sei lá. há pouco, encontrou o destino perverso de uma cidade estúpida: está sendo transformado numa torre estúpida, onde viverão pessoas estúpidas, incapazes de lembrar de como a criada de Teorema levitou e, milagrosamente, pairou sobre nós, mortais. oc

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BOTECOBOTECO

Foto: Camila van der Linden

CrítiCa de

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Carlos: Pensando no conceito que a gen-te traz pra revista, de história, memória e esquecimento, e na trajetória de vocês, assim como no texto que Lula Marcondes escreveu para o Outros Críticos, sobre o tratamento que os maracatus recebiam do Governo do Estado de Pernambuco, que reverbera no texto de Rodrigo Caça-pa, sobre o valor simbólico que a música de rua ou a cultura popular tem para o Estado e para a público em geral. Então, eu queria questionar sobre essa constru-ção narrativa. A história da música de rua, como ela é contada. Tem uma narrativa folclorizante, engessante da música de rua, usada apenas em um determina-do período, que cria um abandono. Há também um outro tipo de narrativa que o Manguebeat utilizou, por exemplo, mais inventiva. A de Siba que faz uma dobra crítica. O Manguebeat colhia as influên-cias. Siba colhe e ao mesmo tempo vi-vencia a música de rua, na própria rua. Com isso, a partir da trajetória de vocês, eu queria que a gente conversasse sobre a história da música de rua através des-sas narrativas. Uma que provoca esque-cimento, abandono, e outra invenção e novas formas de contar.

Lula: Que lapada, meu irmão. (risos)

Mabuse: Passo logo a bola pra você.

Lula: Vou tentar montar duas vias, como vocês colocam, a do abandono e a outra de nascença. É interessante a gente vol-tar um pouco. Entender as manifestações como elas mesmas, sem agentes exter-nos. Sem mídia, como sempre foi.

Mabuse: Entender o fenômeno.

Lula: Exato. Sempre teve isso. As matri-zes afroameríndias sempre celebraram – a portuguesa, europeia também –, mas elas sempre celebravam por música, con-tato direto, como a dança. Naturalmen-te, isso acontecia e ainda acontece em alguns recantos, menos presente do que há uns 15 anos. Na história do estado, tem um momento com Alceu Valença – o primeiro foi Luiz Gonzaga – e o pessoal do udigrudi, da década de 70, tem uma conexão de algo que já estava pulsante...

Mabuse: E o Luiz Gonzaga já reinventa um monte de coisa. Isso que eu acho importante ficar claro. Esse contraponto, pra mim representa isto, não é Ariano Su-assuna querendo dizer que a cultura po-pular é da gente. Ela é minha, criei essa visão erudita e ninguém pode mais me-xer nisso aqui. Você tem naquela mesma época Lia de Itamaracá passando fome, mas tida como da cultura popular. Ou então...

Lula: Raiz...

Mabuse: ... o Mestre Salustiano se con-tenta com o cargo público que o outro cria pra ele. Talvez o contraponto disso do Manguebeat, que de repente é onde o pessoal estava produzindo. Quando o segundo disco de Lia realmente bomba. Mestre Salustiano lança o primeiro disco. Quem vive falando isto é Siba, e eu acho foda: a pessoa tem que entender que a produção cultural é viva. A história está sempre se reinventando. Luiz Gonzaga inventou algo... um trio de forró, que a

A memória da música

A seção Crítica de Boteco promove a cada encontro um debate sobre temas abordados na revista. Com o tema “História, memória e esquecimento”, esta edição foi fotografada por Camila van der Linden e gravada no Paço do Frevo, no Bairro do Recife, com o designer e pesquisador H.d. Mabuse e o arquiteto e artista visual Lula Marcondes. A mediação foi feita por Carlos Gomes e Marina Suassuna, ambos da equipe principal da revista Outros Críticos.

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gente acha que veio lá da... Hoje em dia você pensa, é uma coisa da Idade Média.

Lula: Perfeito. A gente tem essas duas abordagens, uma por ela mesma e outra que tem outras referências, se remonta, reconstrói e segue caminhos. Na história do país a gente vê Luiz Gonzaga, a cena udigrudi, o baião elétrico de Alceu. O pí-fano introduzido com a guitarra. Depois tem um vácuo na década de 80. Na dé-cada de 90 chega o Manguebeat. Neste momento, o encontro proporcionou uma cola em alguns momentos. Por exemplo, Siba – ao invés de chegar como Luiz Gon-zaga, que vai pro Rio de Janeiro, fica por lá um tempo, desenvolvendo uma lingua-gem dele – surge com o Mestre Ambró-sio na Zona da Mata, de vivência mesmo. Não é só construir uma linguagem ou pesquisa.

Mabuse: A melhor coisa que aconteceu nesses anos 90 é uma questão linguística, uma metáfora. Essa história toda do Man-gue a coisa mais relevante é a metáfora do Mangue. A riqueza do ecossistema como metáfora para a riqueza cultural. Acho que ninguém estava refletindo tão profundamente sobre isso, mas isso é do caralho porque faz com que você bote no mesmo espaço do Mestre Ambrósio ao Eddie. Devotos, Matalanamão mistu-rado aí no meio. Se você olhar, não tem uma relação muito clara. Absolutamente nada, um com o outro. É como se a cida-de abrace e tudo se amalgamasse.

Lula: Na década de 90 e começo dos anos 2000, esse movimento foi muito de amarração. Cirandas de interior, da Zona da Mata, vinham pra celebrar junto com Mestre Ambrósio, com Chão e Chinelo. Foi um movimento que gerou vivências de trocas e mesclas entre pessoas. Tem uma frase de Salu, muito interessante, que ele disse em um momento, ao ser perguntado o que havia de interessante no movimento do pessoal da classe mé-dia – aquela velha discussão... Ele disse: “É bom. Eles ajudam a gente. A gente não entende muito de burocracia”. (risos) Não é só de saber das burocracias ou de saber o artístico-cultural. Não é isso, não. Mas a roda que foi gerada permitiu aces-

so, pontes. Eu fui induzido pra isso natu-ralmente. A gente criou um boi de ma-racatu, o Boizinho Alinhado, a gente foi bater no interior, seguindo o Boi da Guri-ta Seca, na década de 94. Por incrível que pareça, muitos jovens, tudo estudante de Arquitetura da UFPE, a gente se viu em um universo em que a Universidade não explorava. Não é nem explorava; não to-cava. Muita gente se revoltou, tipo Wag-ner, que desenhou, que criou o boi com Salu, hoje mora no Timbó. Foi escolha, viu que a universidade não... Caçapa fa-zia arquitetura. Desistiu. (risos) Murilo Sil-va, rabequeiro, excelente ilustrador, de-sistiu do design industrial. Ou seja, essa troca foi, pra quem realmente foi buscar a alma da coisa não como fim, mas como vivência do dia a dia, de aprendizado. De poder sentar perto do mestre e ver o va-lor que ele tinha como ser humano, como história, como...

Mabuse: E hoje, como é que tu vê?

Lula: Hoje, essa ponte parece que foi uma névoa. Mudou na década de 90 até 2000, depois esmaeceu um pouquinho, e o que ficou? Quinze anos depois, muitos velhos estão morrendo, a juventude não está acompanhando. Quem foi pra aque-la vivência, como Siba, Caçapa, Alessan-dra Leão, exatamente era do grupo de estudantes. Um grupo que ficou irado mesmo com o papel da universidade.

Carlos: É contar a história de uma música que eles não viam sendo contemplada na universidade?

Lula: Era. Você vai no interior, por exem-plo, no meio do canavial você vê uma casa bem construída em taipa. Um instru-mento bem feito, um gonguê, de ferro, uma obra de arte. Você começa a ver que aqui tem uma apropriação. O que Lina Bo Bardi queria fazer uma transformação do país através do mais rico patrimônio que era a produção do povo. Ela queria transformar a produção industrial do país baseado nessa...

Mabuse: Que Aluísio Magalhães tam-bém tinha no Centro Nacional de Preser-vação... É bronca, viu.

Lula: É bronca.

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Mabuse: A gente ainda tem uma outra bronca que é o próprio conceito de me-mória, puxando para o outro lado. Pesso-almente, eu não acredito em progresso. Tem uma frase de McLuhan que eu acho massa que ele diz que toda vez que você ouvir uma pessoa falando em progresso é uma mente do século XIX. Não existe essa linearidade. Acho que é Hegel que fala um negócio desse, o relógio do tem-po marca horas diferentes em vários qua-drantes. Então, o que é rico pra caralho é ter um cara fazendo uma casa de taipa, num nível técnico absurdo, com uma tec-nologia, sei lá, de 300 anos – não tenho a menor ideia, mas digamos. Ou então, sendo mais radical, uma alfaia ancestral.

Lula: O tempo em que o homem está na América.

Mabuse: Ao mesmo tempo, você tem o uso das redes de computadores, ali. Isso é muito rico, quando as coisas estão mis-turadas. Mas, ao mesmo tempo, como tudo está sujeito à apropriação, principal-mente nessas tecnologias, pra gerar re-ceita, a gente tem umas maluquices que nem... Não se vocês conhecem Carlinhos Lampra. Ele tinha uma loja chamada Dis-cossauro, que foi a melhor loja de discos que eu fui na minha vida, até hoje. Era do lado da Faculdade de Direito do Recife, em cima daquele suco. Era fantástico, a melhor loja. Você entra numa loja que tem curadoria, conversava com as pesso-as. Demais.

Carlos: Época do vinil, ainda, né?

Mabuse: Ele pegou a entrada do CD. Ele está morando em São Paulo e comen-ta comigo: “Bicho, entrei no Facebook

e está lá um comentário: você é amigo de Mabuse há sete anos”. (risos) Aí, ele: “Porra! Sou amigo de Mabuse há sete anos um caralho! São quase trinta anos!”. A partir do momento que a amizade, não só a memória, vira um ativo financeiro – que é isso que o Facebook faz, cria isso como uma forma de ganhar dinheiro –, a memória vai pro saco, pô. Aí, o que eu lembrei, que achei do caralho e com o li-vro Olinda, que tu acabou de me dar, ele postou um cartão-postal que eu mandei pra ele em 1987. Este cartão vai durar como documento histórico muito mais que qualquer coisa que eu fiz na internet até hoje. A gente só tem a noção disso agora. Eu fazia um site chamado Man-guebit, que entrou no ar em 1994. Um dia desses, pô; não é? Não existe mais. A segunda versão dele existe, tem backup em algum lugar em casa, mas a primeira, não. Era uma época em que todo mundo achava que por que era digital, ia durar uma eternidade. Não vai durar.

Marina: Do que estava no site, já não existe mais? Ou foi salvo em algum lugar?

Mabuse: Não existe nada da primeira versão. Nada. Foi na EMPREL, inclusive, e Cláudio Marinho era diretor-adjunto. Ele fica o tempo todo: “Porra, não é pos-sível que alguém não tenha ficado com o backup”. Não, não tem. É um momento histórico que apagou-se completamente.

Lula: Uma Rosenblit digital.

Mabuse: Aí é que tá. A Rosenblit ainda tem os discos. Você ainda encontra na Guararapes, de vez em quando. A mate-rialidade digital acaba com a memória. E aí, a noção de progresso vai pra trás.

Tecnologias e esquecimentos

Foto: Camila van der Linden

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"Era uma época em que todo mundo achava que por que era digital, ia durar uma eternidade. Não vai durar."H.d. Mabuse

"Era uma época em que todo mundo achava que por que era digital, ia durar uma eternidade. Não vai durar."H.d. Mabuse

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Marina: Como vocês veem a atuação de cada um de vocês nesse contexto de me-mória e esquecimento?

Carlos: Para completar, tem a ver com o livro (Olinda - memórias fotográficas) que você trouxe, Lula. Eu vejo muita coisa tua (Mabuse), da Cidade Gráfica, de registrar a cidade. Ao mesmo tempo em que tem essa memória que a gente quer registrar no impresso, mas tem uma certa dificul-dade. Pode contar um pouco como foi acessar numa caixa, num baú escondido pra organizar o livro de fotografias. Mas também tem um segundo momento, da importância da internet de circular essa memória.

Mabuse: Como ferramenta de circulação da memória, é um negócio fantástico, né? Agora, tem pouca reflexão... Quer dizer, na verdade, não. Dos últimos dez anos pra cá tem muita gente refletindo sobre o acervo digital. Eu, pessoalmen-te, acho que se tem uma coisa que so-breviva a mim, por exemplo, tem que ser em papel, uma coisa física, mesmo. Tem um exemplo, uma vez eu encontrei umas daquelas fotos dos anos 70 que o fotó-

grafo ia em sua casa pra tirar a foto da criança e fazia uns quadros, meio pôster. Eu encontrei uma vez uma foto dessa na rua. Você se desfazer de uma foto des-sa. Muito provavelmente aquela pessoa tenha morrido. Aquela foto de alguma forma foi abandonada e eu não tenho a menor ideia de quem era. Estava no lixo, inteira. A abrangência, o acesso dela, é muito menor. Por outro lado, não é nada que você não esteja acostumado a ver na rua. Tipo, eu adoro tirar fotos dessa cida-de gráfica que temos ao redor da gente. Os grafites, tipo o da Conde da Boa Vis-ta, tem uma narrativa inteira ali, pô. Tinha um cara, grafiteiro, chamado Jopa, que eu acompanhei. Nunca conheci ninguém que conhecesse o cara.

Lula: Ele morreu, foi? Tinha em cima de um Jopa “Descanse em paz”; alguém ti-nha feito em cima.

Mabuse: Exato. Ele morreu há uns três anos, eu acho. Está lá, gigante, na Conde da Boa Vista, em homenagem ao cara. Isso é lindo. Mas ao mesmo tempo tem um grafite aqui de Glauber Arbos, que durou dois dias, pô. Nesse sentido, essa

Cidades gráficas, cidades humanas

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efemeridade não é nenhuma novidade. Eu tento justamente nesses registros manter essa imagem gráfica da cidade. Pelo menos pra mim.

Lula: O que eu vejo em nosso papel – já que eu faço parte de um grupo e traba-lho com o meu sócio há vinte e três anos, em um escritório de Arquitetura –, como fazemos projetos culturais, com artes visuais e design, a gente tem um com-promisso intrínseco. Nada projetado ou forçado, de, por exemplo, na área de Ar-quitetura, de retornar ao lugar em que se pensava o ser humano primeiro. Isso foi perdido. Eu trabalho na Universidade Ca-tólica de Pernambuco, no Departamento de Arquitetura, você vê que a juventude hoje está anestesiada, o que é geral. Eles vêm de uma formação supertrancada. A cidade, na nossa época, tinha uma alte-ridade completamente diferente. Ela não tinha uma cultura do medo tão engessa-da e forte como é hoje. Tem uma criança-da que está saindo da barra de saia dos pais e virando adolescente ou iniciando a vida adulta, que não tiveram vivência absoluta na cidade, na rua. Então, che-

gam à faculdade anestesiados. Pouquís-simos têm feeling, uma paixão pra ter uma abertura. Quando a gente acha, é um oásis. Mas, enfim, em muitos mo-mentos da história do país, a gente ouve pessoas preocupadas com essa questão do ser humano. Por exemplo, Armando de Holanda escreveu um livro chamado Roteiro para construir no Nordeste. É maravilhoso. É um livretinho, que é um guia. Tipo, “te liga, tu tá no Nordeste do Brasil, em Pernambuco! Um calor da gota no verão, chove.”. As pessoas esquece-ram, por falta de referência, vivência, ser maloqueiro, na cidade. Porque quem es-tuda arquitetura tem que viver a cidade, porque é a sua matéria prima. A gente tem um compromisso de retomar, colo-car o ser humano no lugar que é, de des-taque mesmo. Temos que fazer isso em prol da harmonia do ser humano e das trocas sociais. Então, esse é o trabalho da gente, porque houve um esquecimento das lições desses mestres. Na história da arquitetura tinha um ideal de transforma-ção de mundo, de país, e foi esquecido. A gente está sempre se vigiando pra não esquecer esse legado, porque faz parte

Foto: Camila van der Linden

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da memória. Que vem dos índios. No in-terior, por exemplo, você vê a construção de taipa e fica maravilhado. Volta a dis-cussão de estar vivo.

Mabuse: A arquitetura que sai da escala do avião, não é?

Lula: É. Exato.

Mabuse: A escala humana.

Lula: Em nenhum momento a gente é contra a tecnologia, mas tem a vez dela. Primeiro você sente como ser humano. O livro envolve isso. Tínhamos a noção de Olinda, a memória da cidade. Tenho 42 anos, pouco tempo; meu pai, 80. Mas pelo o que ele me contava, peguei uma trans-formação. Quando a capital se adentrou, a memória começou a se apagar. Foi um momento crítico fazer esse projeto. Por exemplo, meu pai se operou e um dia eu estava andando na rua, aí alguém que eu nunca tinha visto na vida: “Teu pai tá me-lhor?” (risos). Eu me emociono, né? É de emocionar uma coisa dessa. A gente saiu correndo pra fazer esse projeto. Não foi fácil, porque todo mundo está anestesia-do, vendo sua novela das oito, nem aí pra história. Como a vida coletiva se degene-rou naquele local, que ainda resiste, pois eu acho que morar no sítio histórico de Olinda ainda é um ato de resistência. A gente conseguiu, aos pouquinhos, parte dessa história que estava guardada, joga-da no lixo.

Marina: Dá pra vê que em uma das fotos, várias estão amassadas, como se estives-se passado por um processo natural do tempo. Tentar resgatar essas marcas do passado, do tempo.

Mabuse: É a memória da foto. Roupa tem memória.

Lula: Tinha umas regras do livro, a gente pegou de 1982 pra trás, antes de virar Pa-trimônio, porque depois disso, ela abriu pro mundo. Os projetos de turismos sempre foram em detrimento da qualida-de de vida do que mora.

Mabuse: Institucionalizou uma...

Lula: A barbárie, né? (risos) Aí, de 1982 pra trás, fotos de profissionais não seriam

usadas, e a terceira é que a gente deixa-ria o registro da memória das fotos. Esse toque a gente deu pra Robson, que foi o tratador, pra tratar o menos possível. Pra deixar palavras, amassão, rasgo, buraco, traça... Foi um eixo.

Carlos: O que vocês acham da constru-ção de um contra-discurso dessa ideia de progresso, do novo, Novo Recife, evolu-ção, escala industrial...

Mabuse: Desse lado, faz todo o senti-do tudo que a gente viu no Novo Reci-fe. Este uso do “novo” o tempo todo, é exatamente o que estamos falando, nega absolutamente toda a história. Faz parte, é o motor do capitalismo que se tenha a novidade o tempo todo. É um desastre pra gente. Agora, só voltando à última coisa, eu gostaria de optar pelo esque-cimento. (risos) Às vezes, a gente está numa loucura de acúmulo que, porra, velho. Às vezes eu prefiro optar pelo es-quecimento.

Lula: É uma viagem, por que, por exem-plo, voltando a Armando de Holanda – quer um cara mais sustentável que aque-le?

Mabuse: Sabe o que é foda? É isso que a gente estava falando.

Lula: Aí vem um jargãozinho, “sustenta-bilidade”. Sabe? É contrassenso.

Mabuse: Eu peguei um PDF dele. Então, têm as duas coisas. É um contrassenso e eu só tive acesso a ele por causa de um PDF. (risos)

Lula: Então, acho que a tecnologia é uma arma fantástica pra gente preservar e tra-balhar e poder...

Mabuse: Desenvolver.

Lula: É. Que não impeça. História, me-mória e esquecimento. Mesmo que você queira optar pelo esquecimento...

Mabuse: Pra mim. Uma opção.

Lula: Eu sei. Mas é uma ferramenta. Se não fosse a tecnologia a gente não esta-va... Antes de ter a junção de tudo, houve o contato humano. O grande lance é o equilíbrio das duas coisas. oc

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Foto: Camila van der Linden

"Eu acho que morar no sítio histórico de Olinda ainda é um ato de resistência."Lula Marcondes

"Eu acho que morar no sítio histórico de Olinda ainda é um ato de resistência."Lula Marcondes

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Foto: José de Holanda/Divulgação

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A música percorre um caminho de inquietação e reverência à palavra e aos sons delirantes das ruas. As relações de poder contaminam os espaços com o desejo explícito de segregar o que não cabe no gesto, nas cercas, nas noções de normalidade. A rua é viva e sem centro. A música é marginal, anormal, louca e deslumbrante. No entanto, torná-la marginalizada com ares de Política Cultural é uma das maiores violências que se pode cometer contra ela.

Poeta. Mestre. Maracatuzeiro. Sem origem. Sem gênero. A música. O músico. Por que não? Alcunhas que incorporam a trajetória de Siba são reveladoras dos estados de transe e transitoriedade com os quais o artista dialoga.

Avante e De baile solto são criações ainda em movimento. É preciso ouvir o passado, distender o presente, investigar conexões, poéticas. O disco não pode ser lugar de origem nem de chegada, mas de passagem. As canções e sonoridades seguem em trânsito, em marcha, bailando, soltas, macias, cantando-dançando-delirando:

“Sai!A gente brinca, a gente dança

Corta e recorta, trança e retrançaA gente é pura ponta de lança

Estrondo, Marcha Macia!”

por Carlos Gomes.

S I B A

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Há dez anos a música “Marcha Macia” encerrava o dis-co ‘No baque solto somente’, lançado por você e pelo Mestre Barachinha. No mais recente ‘De baile solto’, uma outra “Marcha Macia” surge transformada sono-ra, política e poeticamente na abertura do álbum. Na inclusão de letra, de uma poética crítica, que mantém em seu cerne a estética pela qual sua música é re-conhecida, mesmo ainda no período do Mestre Am-brósio, ou seja, na desterritorialização da música de rua de seus lugares normalmente marginalizados ou folclorizados. O que essas “marchas” têm em comum para você, como poéticas, ou mesmo se é possível fazer um diálogo entre esses dois momentos de sua trajetória, entre essas duas “marchas macias”.

A autonomia estética do Maracatu de Baque Solto é assombrosa. Tudo nesta tradição me parece afirmar com muita intensidade uma noção de distinção, uma consciência de diferença. Falando, cantando, tocando, dançando e também no modo de vestir, o Maracatuzeiro parece estar sempre dizendo “eu sou quem eu sou, e não outra coisa”.

Eu não nasci na Mata Norte. Como um típico cidadão classe média, nem deveria gostar de Maracatu, mas fui abduzido pela força expressiva do Baque Solto no meu primeiro encontro mais profundo com a tradição. Des-de então, sempre me vi numa situação intermediária, onde faço parte de uma cultura marginalizada e isolada pelo preconceito folclorizante e ao mesmo tempo tenho constantemente oportunidades de intermediar canais de comunicação e encontros, da Mata Norte para o mundo e vice-versa. Nesta posição, sempre nutri uma crença, talvez ingênua, na força da beleza. Sempre acreditei que qualquer pessoa que se aproximasse minimamente do Maracatu e dos Maracatuzeiros seria passível de algum tipo de iluminação similar a que eu mesmo tive vinte e tantos anos atrás. Assim, boa parte do que pro-duzi como artista até antes do De Baile Solto está repleto deste sentimento.

Porém, com o tempo fui aprendendo a enxergar de modo mais concreto as reais barreiras para um entendimento livre de preconceitos para as culturas orais no Brasil. Por aqui, qualquer traço de matriz africana e indígena, qualquer sombra de sobrevivência ibérica pré-industrial tem que se adaptar ao lugar de Folclore, suas formas de expressão se tornam “Manifestações” de um passado distante e seus representantes serão sempre prisioneiros deste tempo antigo, de onde é muito difícil le-vantar voz ativa no presente. Não é à toa que essa Babel que chamamos genericamente de “Cultura Popular” está sempre refém

Depois de lançar discos com o grupo Mestre Ambrósio e com a Fuloresta do Samba, entre outros projetos, Siba parte para a autoria solo nos discos Avante (2012) e De baile solto (2015). É possível encontrar a discografia completa do músico no site www.mundosiba.com.br

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do Coronelismo e suas versões similares, raramente conseguindo elaborar um discurso mais afirmativo de enfrentamento. As estra-tégias da Cultura Popular são, quase sempre, adaptação e reformulação.

As duas Marchas Macias são mesmo uma só e afirmam uma mesma coisa, que está contida no refrão da versão mais recente.

Entre ‘Avante’ e ‘De baile solto’, ensaio como comparação, que no primeiro há um artista olhando para si mesmo para nesse movimento poder enxergar o mundo ao redor; já no segundo disco o caminho é o inverso. À medida que produzia o segun-do disco solo – as letras, canções, arranjos etc.– havia em você uma necessidade de estabelecer relações com o que fez ante-riormente, numa tentativa de não formular as mesmas soluções estéticas desenvolvidas em ‘Avante’?

O ponto de partida para De Baile Solto foi a necessidade de retomar intensamente a rítmica da música de rua como força

propulsora. Eu havia precisado me exilar da Mata Norte, física e psicologicamen-te, para conseguir movimentar novas ideias, mas passei a sentir desde os primeiros shows de Avante que o dis-tanciamento, apesar dos efeitos positi-vos, era um preço alto demais a pagar.

Passei os três anos de estrada de Avante elaborando modos de reformulação rít-mica do repertório e esse processo gerou

o De Baile Solto, um disco entranhado na Ciranda, Coco e Maracatu, mas sem o

compromisso com o formato tradicional que eu tinha com a Fulores-

ta. Ao mesmo tempo, a

Foto: José de Holanda/Divulgação

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“A mesma inquietação que me levou a assumir uma escolha profissional de risco me possibilitou atravessar barreiras sociais a ponto de me tornar um Maracatuzeiro ‘sem origem’”

Foto: José de Holanda/Divulgação

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situação de desprezo e repressão ao Baque Solto me mostrava que a simples afirmação da beleza e vitalidade estética do Maracatu não tinha a força suficiente pra discutir sua situação de indigência social. Em outras palavras, De Baile Solto reformula a Fuloresta, com instru-mentação desenvolvida a partir de Avante e texto mais condizente com a dureza dos tempos atuais.

No documentário ‘Siba - Nos Balés da Tormenta’, você fala que atra-vés da guitarra, em Avante, procu-rou se deslocar do lugar em que estava para buscar um outro ca-minho. O novo disco tanto sonora quanto poeticamente ainda parece contaminado por esse deslocamen-to. Olhando em perspectiva, aque-la inquietação ainda permanece, mesmo que sob novo prisma?

O que me fez optar pelo caminho de artista foi um sentimento pro-fundo de deslocamento espiritual, social e psicológico que já era forte o suficiente aos 18 anos de idade para me forçar a encarar alternativas aos modos de vida que o mundo me apresentava como possíveis em Recife nos anos 1980, aquela coisa de “vá ser engenheiro, advogado, administrador de empresa, pra po-der bancar seu hobby de músico”... A mesma inquietação que me levou a assumir uma escolha profissional de risco me possibilitou atravessar barreiras sociais a ponto de me tor-nar um Maracatuzeiro “sem origem” (como alguns dizem na Mata Norte) e é ponto de partida de cada pro-cesso criativo que tento desenvol-ver. É no desconforto que procuro impulso pro movimento.

‘De baile solto’ foi lido majori-tariamente pela crítica como um disco político, pois nascido dian-te dos embates contra a política segregadora do Estado, sobretu-do pelos episódios envolvendo a restrição de horário das Sambadas de Maracatu, em Pernambuco,

mas que simbolicamente abrange para questões políticas e culturais discutidas e vivenciadas em mui-tas das capitais brasileiras, sob o prisma capitalista, vide as refle-xões sobre as cidades levantadas pelo Ocupe Estelita, por exemplo. No entanto, uma canção como “Será”, dos versos “Será que ainda vai chegar o dia de se pagar até a respiração?/ Pela direção que o mundo está tomando eu vou viver pagando o ar de meu pulmão”, lançada anos antes, já continha essa mirada crítica. Você percebeu uma diferença de tratamento – ou de recepção – entre as canções críticas dos discos anteriores e as do novo álbum?

Trocar a guitarra por uma rabeca em 1990, formar coletivamente o Mes-tre Ambrósio e inverter na música o jogo de forças entre a Cultura Popu-lar e Música Pop, deixar São Paulo no auge da visibilidade e ir cantar Ciranda e Maracatu no interior de Pernambuco... Foram sempre posi-ções políticas para mim. O De Baile Solto é apenas mais politicamente explícito e consciente, tem um tom mais duro e afirmativo, mas eu acho que tenho feito sempre a mesma coisa, a vida inteira...

A circulação de ‘De baile solto’ não está restrita apenas ao forma-to da Mini Desorquestra de Baile Solto e Rimas, formada por você, Mestre Nico, Leandro Gervázio, Antônio Loureiro e Lello Bezerra, mas também como “Siba Trio”. De que modo essas experiências têm transformado as suas canções em suas performances mais recentes?

A formação de Trio está completa-mente desvinculada da circulação do De Baile Solto. Tenho usado o formato reduzido para conseguir chegar a lugares mais distantes que costumam não ter orçamento capaz de bancar os custos de uma banda grande e equipe técnica. Também aproveito para fazer com o Trio

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“Lembrar algo é sempre esquecer outra coisa. Memorizar é sempre reinventar, pois nada existe no passado nem no futuro”

Foto: José de Holanda/Divulgação

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casas pequenas, dialogar mais diretamente com um pú-blico reduzido, experimentar sínteses musicais e novas ideias, cantar material de discos anteriores. São poucas as músicas do De Baile Solto no repertório do Trio.

Depois de tantos discos lançados, você acredita que é preciso uma reflexão por parte da imprensa sobre o vocabulário que ela vem se utilizando para tratar sobre a música que você cria e com a qual também dialoga? Por exemplo, “Cultura Popular”, “Manifes-tação Cultural”, “Música Folclórica”, “Música de rua” (este usado por mim nessa entrevista). É muito mais o modo como cada uma é usada ou os preconceitos que os usos delas carregam em determinadas abordagens?

Acho que precisamos, sim, de um novo vocabulário. Boa parte das palavras que empregamos para tudo o que não classificamos como “moderno”, “urbano” ou “pop”, está repleto de preconceitos e ajuda a manter situações de exclusão que podem chegar a extremos, como o caso recente da repressão ao Baque Solto em Pernambuco ou ainda pior, se levarmos em conta as perseguições bem mais violentas nos anos 1930. Ao mesmo tempo, não se trata simplesmente de inventar palavras melhores, pois as palavras que vingam são quase sempre as impostas de cima pra baixo. Palavras velhas e ressecadas muitas vezes são apropriadas e ressignificadas, como o caso da palavra “folclore”, que na boca das pessoas mais velhas na Mata Norte quer dizer “situações em que um Mara-catu se apresenta fora de contexto, para pessoas que não o entendem”. O que importa mesmo é o combate à distorção que essas palavras operam. Mais importante do que mudá-las é lutar por acesso horizontal à educa-ção, combater o racismo e o machismo nos outros e em si mesmo, banir ou ao menos limitar o poder do Coro-nelismo e seus similares, discutir o desenvolvimentismo histérico e suas consequências.

A história da música popular brasileira é feita de me-mórias e esquecimentos. Muito mais do que a repro-dução de cânones, de memórias controladas pelo lu-gar comum da criação artística; ao sua música persistir pelo desdobramento do que é marginalizado política e culturalmente, suas canções devaneiam sobre o que se quer fazer esquecer, como uma poesia acesa pelo silêncio. Como você acessa a memória na construção de suas músicas, sobretudo pelos temas abordados nas letras?

Lembrar algo é sempre esquecer outra coisa. Memori-zar é sempre reinventar, pois nada existe no passado nem no futuro. Tudo o que a gente inventa pode já ter existido antes, nunca se sabe, então criar é reformular, recombinar. Não dá pra guardar tudo no juízo, principal-mente no meu. oc

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Contemporâneapor Kiko Dinucci

a malDiçãoOuvindo alguns álbuns dos últimos cinco anos, passa a ser mais per-

ceptível uma abordagem pouco usual no que se refere à estrutura musical no Brasil, à polifonia incrustada na harmonia da canção. A polifonia não é nenhuma novidade na música brasileira diante do leque rítmico que a música tradicional nos traz. O samba, símbolo mor da música nacional, começou cem por cento polifônico. Os instrumentos percussivos, os instrumentos de corda, a voz. Cada elemento figurava uma peça essencial para a sua engrenagem sincopada. Isso ainda é visível no samba do recôncavo baiano (samba-de-roda, chula, samba duro). Ouvindo a gravação do samba de Donga, João da Baiana e Pixinguinha, “Patrão Prenda Seu Gado”, gravado em 1955 por Almirante e Conjunto Velha Guarda, notamos uma forte influência do samba da Bahia. Na gravação, Almirante se dirige a Donga: “- Dá-lhe, Donga... Olha esse ponteado, Donga... Vamos ouvir a viola, Donga... Nesse ponteado gostoso”.

Donga parece tocar um violão de aço, muito parecido com a viola do samba baiano. Apesar de a gravação ser da década de 1950, pode-mos chegar à conclusão de que o samba carioca feito da Casa da Tia Ciata pode ter sido muito parecido com o som dessa gravação. Além da proximidade com a música baiana, o violão de Donga se assemelha aos violões da música africana dos anos 1950, pela maneira com que corta o ritmo e suspende a música em poucos acordes com pedais no quinto grau da tônica. Donga se mantém basicamente na tônica (dó maior) e seu quarto grau (fá maior). Já pude testemunhar essa música sendo executada em diversas rodas de sambas, e em todos os casos essa canção foi tocada como partido alto e utilizava outra cadência harmônica: segundo grau (ré menor), quinto grau (sol maior) e tônica (dó maior). Comparando as duas maneiras distintas de cadência harmônica, podemos supor que algo mudou no samba a partir de sua popula-rização pela rádio na primeira metade do século XX.

Talvez por imposição do mercado, o samba adequou a sua estrutura harmônica aos mo-delos europeus que a rádio valorizava. A gravação de 1928 de “A Malandragem”, samba de Alcibíades Barcellos, o Bide, cantada por Francisco Alves, traz a cadência harmônica que se convencionou chamar de II – V – I (sobretônica, dominante e tônica) e utiliza a sequência IV – III – VI – II – V – I para se resolver, modelo que se repetiu em inúmeros sambas e se repete até hoje. Embora esses sambas de rádio do início do século XX contassem com orquestras, a banda base (a regional), seguia modelos de cadência harmônica mais adequadas à música europeia, e instrumentos como violão e cavaquinho seguiam juntos a mesma harmonia; a polifonia das cordas se resumiu nesse caso nas marcações sincopadas do cavaquinho tocan-do acordes e nos bordões cheios de semicolcheias nas cordas graves do violão.

do samba

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Casos iso-lados como Dorival Caymmi, Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro fizeram a seu modo abordagens polifônicas mais imprevisíveis com os seus instrumen-tos. Ambos vieram de um universo musical contrário aos vícios das rádios cariocas. Caymmi baseado no samba de roda baiano, Gonzaga nas frases e bordões de sua sanfona e Jackson na maneira com que dividia as células rítmicas ao cantar. Os três artistas ao chegarem ao Rio de Janeiro tiveram que adequar a sua música aos modelos radiofônicos. Caymmi começa a cantar com arranjos orquestrados acariocados, Gonzaga grava uma série de choros e Jackson passa a inúmeras vezes ser acompanhado por regionais de samba e choro. O mesmo já havia ocorrido anos antes com o embolador Manezinho Araújo, que foi obrigado a trocar a síncope do coco pela marcação do choro. Notamos tanto nesses casos dos três artistas como no próprio desenvolvi-mento do samba carioca, que a rádio e o mercado determinaram caminhos estéticos para a música brasileira a partir de modelos que adequavam os artistas às tendências.

A partir da década de 1950, a música brasileira incorporou a obsessão pela harmonia. Convencionou-se a direcionar qualquer possibilidade de mo-dernidade ou evolução exclusivamente à harmonia. A busca por refinamento, sofisticação e complexidade dos acordes acabaram levando as melodias para outros caminhos também, muito por influência do jazz. De Garoto a João Gilberto, os acordes deram novas direções, paralelas ao Brasil pós-industrial.

De certa maneira, a Bossa Nova é uma quebra com os modelos brasilei-ros da rádio dos anos 1950, apesar de suas dissonâncias, também pode ser encarada como adaptação a modelos norte-americanos como o cool jazz unido à necessidade de juntar a música brasileira à ideia de modernidade, do Brasil que deixa de ser matéria-prima para ser também um arrojado produto de ponta. E justamente esse corpo, que começa estranho no fim dos anos 1950 aos brasileiros, acaba determinando esteticamente quase que por completo o que viria a ser chamado de MPB.

A Tropicália no seu flerte com o rock (via Mutantes) e a música erudita contempo-rânea (via Duprat) se despren-deu desse modelo à época. Mas apesar da revolução estética, os tropicalistas mexeram muito pouco na forma. A harmonia, as célu-las rítmicas ainda estavam presas ora à Bossa Nova, Jovem Guarda ou à cultura pop internacional.

Nos anos 70, poucos casos isolados se opuseram ao pensamento mais comum da forma musical. Com os discos Todos os Olhos (1973) e Estudando o Samba (1976), Tom Zé, muito influenciado pela música erudita contemporânea e pelo pensamento de estudo e aprofundamen-to da estrutura do samba, desenvolve uma espécie de desmonte e re-construção do gênero. Ele passa a incorporar de maneira radical melodias em contraponto no lugar da harmonia vigente da MPB e retorna de certa maneira à polifonia do samba baiano de Irará e adjacências.

Walter Franco em canções como “Eternamente” e “Bumbo do Mundo” – ambas do disco Revolver (1975) – experimenta a substituição de harmonia ou riffs convencionais por estranhas melodias em paralelos; as estruturas musicais propostas por Itamar Assumpção e Arrigo Barnabé nos final dos anos 70 se asse-melham muito com essas duas canções de Walter. Na canção “Muito tudo”, Walter faz com que a melodia siga fielmente os riffs assimétricos; parece uma ideia simples, mas pouca gente utiliza esse recurso.

Gilberto Gil nos discos Expresso 2222 (1972), Refazenda (1975) e Refavela (1977) une a sofisticação harmônica à polifonia africana. Na canção “Expresso 2222”, flerta com

1960/70/80nos anos

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a viola polifônica ancestral do samba baiano e acaba traduzindo para as cordas algumas células percussivas. Em “Refavela”, se utiliza de acordes parados com cordas ora soltas, ora digitadas para criar melodias enigmáticas. Na canção “Essa é pra tocar no rádio”, trabalha com um estranho riff repetido e canta em paralelo. Não por aca-so, outros discos tocados por músicos baianos também flertaram com arranjos mais polifônicos, muito influenciados pelo rock psicodélico progres-sivo dos anos 70, como é o caso do primeiro disco de Moraes Moreira (Moraes Moreira, 1975) ou a versão de Maria Bethânia para “Volta Por Cima”, de Paulo Vanzolini no disco Drama (1972). Esses artistas acabaram promovendo o reencontro da canção brasileira com a polifonia via Bahia, assim como fez o Conjunto Velha Guarda em 1955. Esse retorno necessário à polifonia baiana acontece também nos tempos atuais, via Letieres Leite e Baiana System. A Bahia é polifônica por natureza.

Influenciado por Dorival Caymmi e expressões culturais baianas como candomblé, samba e ca-poeira, o violão de Baden Powell também propôs outras maneiras de trabalhar em vários momentos, um deles está escancarado no samba instrumen-tal “Candomblé” (do disco À Vontade, de 1963). Baden experimenta a polifonia dos tambores Le, Rumpi e Rum (os três tambores do candomblé) nas cordas. Os bordões das cordas graves suge-rem uma nova abordagem, as cordas mi (afinada em ré), lá e ré definem a melodia ao invés de sim-plesmente marcar o baixo. No decorrer da música, joga as melodias para as cordas mais agudas e os baixos assumem marcações sincopadas pouco usuais. Tudo isso mantido no mesmo acorde, ré menor. Essa estrutura se intensificou nos discos que Baden gravou no exterior e apareceu em músicas como “Pai” (do disco Lotus, 1970).

João Bosco aparece também como uma nova possibilidade para o violão. Influenciado por Caymmi e Baden, se aprofunda em detalhes rítmicos que promovem uma interseção entre violão e voz, desde seus primeiros trabalhos e radicalizados depois em músicas com “Gagabirô” (de Gagabirô, 1984).

Nos anos 80, Arrigo Barnabé e Itamar As-sumpção trabalharam cada qual à sua maneira a polifonia em suas canções. Arrigo se influenciou pela música erudita, dodecafônica, serial e atonal misturada ao rock, às histórias em quadrinhos e música popular. Itamar, influenciado pelo batuque-de-umbigada de sua cidade natal, Tietê (SP) e pelo próprio amigo Arrigo e seu irmão Paulo Bar-nabé, aplicou a polifonia à canção de maneira um pouco mais popular. Itamar inventou uma maneira muito particular de mesclar o samba, reggae, funk, rock, jovem guarda e atonalismo.

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Em 2009, ouvi o disco de Alessandra Leão, Brinquedo de Tambor (2006). Fiquei intrigado com as violas do disco, elas pareciam me tirar do lugar confortável. A pessoa por trás desses arranjos era Rodrigo Caçapa, que havia escrito para todos os instrumentos de cordas. Caçapa se apaixonou pelo contraponto no curso de música, descobriu em Tom Zé e Bach horizontes para novas possibilidades e se deslumbrou com o universo da música africana. Depois do segundo álbum de Alessandra (Dois Cordões, 2009), com arranjos escritos para guitarras, Caçapa lançou o seu primeiro tra-balho Elefantes na Rua Nova (2011), todo feito com percussão, violas e baixolão. Tanto o trabalho de Alessandra quanto o de Caçapa se influenciava pela cultura tradicional; ambos acharam um fio condutor que trafegava por todas essas influências, das festas, do brinquedo aliados à musica pop africana e sua polifonia.

Em seus dois últimos discos, Avante (2012) e De Baile Solto (2015), Siba também têm se embrenhado no universo da polifonia. Fã incondicional da música pop africana, especificamente do período elétrico dos anos 60 e 70, uniu a sua bagagem de vivên-cias com a música da Mata Norte com influências como o guitarrista congolês Franco. Ao se aprofundar na música tradicional e levá-la para os instrumentos elétricos, Siba revive de certa maneira o período de eletrificação da música africana e passa por um processo de decodificação do DNA da música pernambucana.

Polifonia Contemporânea

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Oriundo do universo da guitarra paraense, Felipe Cordeiro traz atualmente a sínte-se da música amazônica em sua mescla de lambada, guitarrada, brega e música vinda das aparelhagens. Influenciado por seu pai, o guitarrista e produtor Manuel Cordeiro, Felipe passa, a partir do disco Kitsch Pop Cult (2012), a assumir a diversidade da músi-ca paraense. Ao reelaborar de uma maneira pop a música amazônica, busca paralelo com outras influências latinas como a cumbia colombiana e a chicha peruana, além da música africana. Em seus shows, Felipe e Manoel tocando juntos exibem um dos panoramas mais interessantes da guitarra brasileira, com frases paralelas carregadas de ritmos dançantes. Felipe também é muito influenciado pelo guitarrista Pio Lobato, que nos anos 90 se aprofundou nas guitarras paraenses e assim como Felipe, também as levou a novas possibilidades estéticas, sempre dialogando com o mundo contem-porâneo e o pop como fez no álbum Tecnoguitarradas (2007).

Desde a época em que eu tocava no bando Afromacarrônico, buscava tirar algum som diferente do violão. Em 2005 o violão parecia um instrumento morto, engessado, todo mundo tocava mais ou menos da mesma maneira. A partir das mi-nhas limitações técnicas, comecei a inven-tar o meu jeito de tocar, mais baseado em frases de baixo e no ritmo, um jeito mais percussivo de tocar. Comecei a montar células que se sustentavam e seguiam mais um caminho modal ao invés de tortuosos caminhos harmônicos. Minha insatisfação com o samba e com a MPB era imensa, queria fugir das regras desses gêneros. A MPB parecia esgotada. Encontrei depois Thiago França e ele carregava também essa insatisfação. Quando montamos o Metá Metá com a Juçara Marçal queríamos (talvez de forma inconsciente) desconstruir os nossos instrumentos, o violão, o sax e a voz. Foi o que fizemos.

Encontramos Rodrigo Campos, Romulo Fróes e Marcelo Cabral com as mesmas crises perante a MPB e o samba. Em ne-nhum momento tramamos em fazer música polifônica, apenas tocamos e o processo espontâneo foi nos mostrando esse cami-nho. No caso do Passo Torto, a polifonia chegou de maneira mais radical. Fazíamos as músicas com acordes convencionais de MPB, como se fosse um samba e depois começávamos a desconstruir essa harmonia e a substituíamos por frases melódicas com forte acento rítmico. No nosso segundo álbum Passo Elétrico (2013), decidimos des-construir ainda mais as canções, deixando que as frases causassem um efeito mais vertiginoso.

A partir do Passo Torto, Rodrigo e eu começamos a desenvolver um diálogo de guitarras que era resultado de diversos

da Polifonia à CaCofonia

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caminhos e influências. Eu estava voltando a tocar guitarra depois de um intervalo de 10 anos. Havia abandonado a guitarra com o esgotamento musical da cena punk de São Paulo dos anos 90. Passei um tempo aprendendo a tocar violão, me aprofundando no samba, participando de rodas. Rodrigo estava começando a tocar guitarra; o universo dos diversos timbres impulsionados pelos pedais de efeitos abriram para ele um leque de possibilidades musicais que o violão e o cavaquinho não conseguiam alcançar. Ao se tornar íntimo da gui-tarra, converteu o cavaquinho em instrumento elétrico, de timbre metálico e cortante. Além dos discos do Passo Torto, mostramos esse diálogo de guitarras, que Romulo Fróes chama de “guitarras siamesas”, em discos como Encarnado (2014), de Juçara Marçal, Mulher do Fim do Mundo (2015), de Elza Soares e de maneira mais radical no terceiro disco do Passo Torto (Thiago França, 2015).

A polifonia de São Paulo é cacofônica, desde Tom Zé a Arrigo, passando pelo Passo Torto. Talvez isso seja influência da própria cidade que não goza de uma paisagem privi-legiada, reproduzimos de certa maneira os sons da rua, buzinas, gritos, pregões, sirenes, construções de prédios. Em São Paulo, o samba que deu errado, deu certo, como é o caso de Adoniran Barbosa e Paulo Vanzolini. Nos falta beleza e nos sobra defeitos e, consequen-temente, temos que achar nesses defeitos a nossa beleza. oc

à CaCofonia

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artigo

A história da música, mas que naturalmente poderia ser abrangida para a história das artes; no caso específico da música brasileira, há em sua trajetória registrada em livros, discos, partituras, oralidade, cantos, instrumentos, jornais, revistas, espaços de apresentação, estórias etc., um movimento repleto de cortes, rupturas e fissuras em suas narrativas canonizadas. sejam elas as legitimadas pelos grupos hegemônicos de poder, representados, por exemplo, pelo Estado, grande mídia ou Aca-demia, ou mesmo as narrativas que passam ao largo dessas, de geração em geração, através da oralidade e da vivência cotidiana de expressões culturais diversas, como as da zona da Mata de Pernambuco, nos exem-plos oriundos do Maracatu de baque solto, poetas da Mata Norte, entre outros.

Mais recentemente, outro tipo de tecnologia, gerada pela troca de in-formações e compartilhamento de experiências com a internet, pôde desconstruir os modelos de produção e difusão tradicionais, se livrando de certos grilhões da indústria cultural formada pelas gravadoras e todo o aparato de mídia vinculado a elas, como a da já citada grande impren-sa - com decisiva difusão através dos jornais impressos -, rádio e tevê. A partir dessa demanda, a expressão “música independente” passaria a ser ela própria uma outra narrativa, às vezes como rota paralela ao produ-zido pelo mainstream, repetindo os modelos de outrora, mas em muitos momentos como desconstrução dos modelos estabelecidos.

Nessa conjuntura de narrativas, o debate cíclico sobre “fim da canção”,

Não existe amanhã pra mim

por Carlos Gomes

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ou mesmo “fim da crítica cultural” - não só para a música, mas para as demais linguagens -, no fundo quer desqualificar narrativas que passam à margem da “história oficial”, cronológica, reta, da música produzida no país, ou seja, sem levar em conta as narrativas frag-mentárias, descontínuas, da música brasileira em torno da invenção, dos deslocamentos da noção de canção ou gênero musical, da voz, dos sons, ritmos.

Esta é uma impressão-reflexão escrita de dentro do olho do furacão. De quem assume um ponto de vista repleto de limitações, passível de erros. tipicamente de quem está através da escrita buscando o corpo a corpo com artistas, público, crítica e mercado, em suma, com o con-texto político e cultural do qual faz parte. “sobrevivendo ao suicídio coletivo extasiante”, como canta-conta a estória-canção “takeshi e Asayo”, de rodrigo Campos, utilizo os seus versos deslocados de sua origem para refletir que cada narrativa in-dividual, fragmentária, está sempre em confronto, sobrevivendo, e em vias de colisão com demais modos e posições de contar a “história” na produção de memória, mas, sobretudo, de esquecimentos. Estamos morrendo, sobrevivendo, crítica e canção, escrita e música, à margem da “história oficial da música brasileira”?

Para o compositor e cantor romulo Fróes, de são Paulo, numa das mortes anunciadas, a da canção, “a já clássica entrevista do Chico

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buarque, onde ele sugere o tal fim da canção, é um dos mais profundos pensamentos sobre canção no brasil em todos os tempos, ainda mais que partiu de uma angústia verdadeira de um artista desta dimensão e que ironicamente acabou ocupando o lugar do carrasco, quando justamente ele, talvez tenha sido o artista que mais transformou e levou adiante a canção brasileira desde a agora fami-gerada entrevista. o problema foi o modo como determinadas pessoas se utilizaram do pensamento do Chico, valendo-se dele pra diminuir não apenas aqueles que você classificou como à margem da história oficial, mas também a produção que supos-tamente seria a herdeira legítima da chamada ‘linha evolutiva’; e seja por desconhecimento ou má fé, estas mesmas pessoas, não por acaso quase sempre ligadas à Academia, não estão vendo esta linha tensionada, não es-tão enxergando os inegáveis e inúme-ros avanços da canção no brasil neste século, pelo simples fato de estarem procurando nos lugares errados e medindo com a régua errada, uma régua ultrapassada!”.

é significante pensarmos sobre essa noção de “linha tensionada” para percebermos que a crítica - mesmo a representada pela grande impren-sa ou pelos blogs, jornais e revistas de baixa circulação, ou mesmo as restritas a nichos de mercado - e a canção brasileira - se ficarmos no caso de são Paulo, de onde o músico fala, temos exemplos como Arrigo barnabé, Grupo rumo, itamar As-sumpção e Fellini nos anos 1980, produzindo discos e shows de forma independente, com pequenos selos e espaços musicais, e nos últimos anos os artistas com os quais o músico tem produzido, como Kiko Dinucci, Mar-celo Cabral, rodrigo Campos, thiago

França, Juçara Marçal - têm suas trajetórias o tempo todo atravessadas por narrativas construídas por meio de linhas de fuga, “tensionadas”. Ape-sar de não achar coerente a noção de “linha evolutiva”, termo cunhado por Caetano veloso nos anos 1960, pelo simples fato de não enxergar “evo-lução” na arte, mas transformações, deformações, em suma, tensões que constroem por consequência memó-rias e esquecimentos.

Acomodados por uma única linha crítica e musical, a “memória oficial” sempre foi produzida. há uma vasta referência bibliográfica sobre essa memória. Ao largo dela, “esquecimen-tos” também foram criados em alta demanda. “se compararmos a nossa imensa produção, em todas as épocas, são muito poucos os livros e autores que se lançaram a uma análise crítica profunda da canção no brasil. A novi-dade é que uma imensa e qualificada produção crítica tem se desenvolvido na internet, espalhada por sites, revis-tas e blogs especializados em música. é pra essa produção que tenho vol-tado minha atenção e é com ela que mais tenho aprendido nos últimos anos”, compara o músico.

A par da relação entre a produção de memórias (ou “histórias oficiais”) e esquecimentos, no contexto que envolve a história da música bra-sileira, o jornalista e escritor José teles, autor de Do frevo ao Manguebeat (2000), trouxe à luz nessa obra dois momentos importantes da música em Pernambuco: o tropicalismo (ou Pernambucália) e o udigrudi. o jor-nalista falou à revista outros Críticos sobre a noção de “história oficial”, na produção de livros sobre música, e se na abordagem sobre esses dois mo-mentos citados, havia nele o intuito de produzir uma memória sobre uma

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“ Se compararmos a nossa imensa produção, em todas as épocas, são

muito poucos os livros e autores que se lançaram a uma análise crítica

profunda da canção no Brasil.”

Romulo Fróes

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produção que era esquecida, de um modo geral, pelo cânone sobre o tema. “o tropicalismo só virou movimento quando os tropicalistas atentaram que a imprensa estava chamando aquilo de movimento. o único mani-festo do tropicalismo foi redigido aqui no recife¹, assinado inclusive por Caetano e Gil, em maio de 1968, no bar do Alves, na Encruzilhada. Gil e Caetano nunca falam nisso. A história que se escreve hoje sobre o movi-mento é, aí sim, a oficial. Apenas quis contar uma história que a história atirou para debaixo do tapete. o mesmo para o udigrudi pernambucano. o brasil ignorava totalmente aquele momento muito rico da música bra-sileira, que aconteceu aqui em Pernambuco, até que o livro foi publicado, e aí nem foi só o brasil, mas também o mundo, que descobriu aqueles dis-cos, aqueles caras. Por sinal, os discos todos foram lançados no exterior. Aliás, venho, já tem algum tempo, fazendo um livro sobre o tropicalismo local, que foi um enfrentamento à cultura das oligarquias pernambucanas, e rendeu cassações, censura e fez surgir o movimento Armorial de Ariano suassuna, uma reação ao tropicalismo de Jomard Muniz de britto & cia”.

A radialista e pesquisadora Patrícia Palumbo conversou conosco sobre a sua visão dos livros que tratam de contar a “história da música popu-lar brasileira”. se a autora acredita termos uma produção, de modo geral, que faz do contar, também um criticar, refletir sobre essa produção, ou se

¹ O autor faz referência ao “II manifesto tropicalista - Inventário do nosso feudalismo cultural”. Além de Caetano e Gil, também assinam Jomard Muniz de Britto e Aristides Guimarães (PE), Alexis Gurguel (RN), Anchieta Fernandes (RN), Carlos Antônio Aranha (PB), Celso Marconi (PE), Dailor Varela (RN), Falves da Silva (RN), Marcus Vinícius de Andrade (PB), Moacyr Cirne (RJ) e Raul Córdula Filho (PB). O primeiro manifesto foi originalmente publicado no Jornal do Commercio, do Recife, em 20 de abril de 1968, de título “Porque somos e não somos tropicalistas”, escrito por Jomard Muniz de Britto.

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estamos mais a reproduzir cânones. “temos bons livros sobre a música brasileira. Destaco a coleção da Editora 34, capita-neada por tárik de souza, que lançou ótimos títulos. livros de pesquisa, análise, muito bons, que tratam de movimentos como a tropicália. outra coleção boa é a de Myriam taubkin que lançou entre outros, Violeiros do Brasil (2008), um excelen-te panorama. Amplo e variado. sinto falta de edições como a de tom zé pela Publifolha -Tropicalista Lenta Luta (2003) - que tem os textos dele e uma ótima entrevista feita por luiz tatit e Arthur Nestrovski. Entrevistas revelam muito. Acredito que quando o artista fala sobre seu trabalho ele enriquece o debate e a análise, são registros preciosos”.

Entre fins da canção e crítica, Palumbo crê que “o fim da crí-tica é fato, o que não é de todo mal”, pois os “críticos tendem a ser personagens. E hoje não há sustentação pra isso”. teles “que tanto a canção quanto a crítica estão sofrendo de falta de volta ao tempo”, porém, “é necessária (a crítica). tem uma função social”. No entanto, “é uma pena que a canção, como a conhe-cemos está acabando, porque os compositores estão perdendo o dom da melodia, das harmonias”. Fróes, como já dito, reflete que estamos “procurando nos lugares errados”.

Entre fins, construções da memória, luzes sobre a margem, reflexões sobre a produção de esquecimentos, continua-se a escrever sobre a canção depois do fim; portanto, irmanadas como crítica e criação, toda uma nova produção de narrativas confundem com suas luzes incandescentes o que é centro, o que é margem. As rememorações sobre o que o tempo parecia tratar de esquecer, de relegar a lugares pouco visíveis, a partir da ruptura, do rompimento da cadeia, do esfacelamento dos lu-gares demarcados, estão sendo possíveis de se vivificar através de um criar-criticar sem mais preocupar-se com fronteiras ou limitações de qualquer tipo.

se não existe amanhã para a crítica, não existe para a can-ção, para a arte. uma crítica como reflexão desestabilizadora. venha de onde vier: duma melodia, timbre, ritmo, letra, per-formance, entrevista, movimento do corpo, maquiagem, roupa, olhar, escrita, escritura, texto, hipertexto, compartilhamento, hashtag etc. é sob essa crítica que sobreviveremos.

se não existe amanhã para a canção, não existe para a crítica, para a escrita. uma canção como reflexão desestabilizadora. venha de onde vier: duma melodia, timbre, ritmo, letra, per-formance, entrevista, movimento do corpo, maquiagem, roupa, olhar, escrita, escritura, texto, hipertexto, compartilhamento, hashtag etc. é sob essa canção que sobreviveremos ao suicídio coletivo extasiante. oc

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Não há exageros ao se afirmar que A Mulher do Fim do Mundo (2015) já nasce essencial. Visceral, impacta; a originalidade, surpreende. Não há como passar batido, despercebido no rio lamacento, e claro, insosso, que banha a MPB mais tradicional. Sendo um ícone do gênero, nos seus quase 80 anos de idade, Elza Soares pode-ria estar lançando um disco de gran-des sucessos do samba, regravando, escorada numa preguiça comum dos consagrados, ou pior, interpretando novos artistas que nada contribuem para uma renovação da música brasi-leira, mas que são vendidos como tal com toda a força dos seus jabás.

Exceções existem, tal qual Caetano

Veloso lançando o Cê (2006) e seus subsequentes que fecharam uma tri-logia que retroalimentou sua carreira e estilo. Mas, talvez estejamos diante de algo que vai além, onde a canção crítica atinge seu ápice. Guitarras dis-torcidas e barulhentas, num ritmo de um samba estranho, narram um mun-do perto do fim, em que Elza não ab-dicará de cantar. Os subalternos, aqui, são os protagonistas e detêm o direito de fala que lhes sempre fora negado: a mulher, a/o negra/o, a/o transexual, a/o que vive à margem.

O que deveria ser distópico é o real, como as ruas esvaziadas de pessoas e significado em “Luz Vermelha”. O que era pra ser velado, está escancarado,

E o que me fez morrer, vai me fazer voltarpor rafael de queiroz

Foto: Stėphane Munnier/Divulgação

resenha

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como o sexo em “Pra Fuder”. “A Maria de Vila Matilde” nunca mais aceitará os abusos de qualquer homem que seja, e avisa: “Ai de você se levantar a mão pra mim”. “Benedita” é uma tra-vesti, traficante, homicida e bendita, uma Madame Satã, a anti-heroína que nos amedronta e nos excita, quebran-do a narrativa clássica maniqueísta e nos obrigando a admirá-la. “Seja mar-ginal, seja herói”, como já nos pro-vocava Oiticica. Tudo isso construí-do com uma linguagem que também abarca palavrões e gírias, algo que “não soa bem” para uma senhora ido-sa, como no afrobeat “Firmeza”.

O teor das letras e os arranjos dissonantes profetizam o apocalipse de um mundo que assiste, cada vez mais, a avanços de pensamentos con-servadores, para não dizer fascistas. Morrer para renascer. “Deixa a chuva que derruba o céu/ lavar”, espera, em “Dança”. E Elza Soares renasce, depois de seis décadas de ofício e 34 discos lançados, ousando muito mais que ar-tistas em começo de carreira. Ela não é mais somente a intérprete de sam-bas da voz rasgada, um museu ambu-lante no pedestal da tradição. Elza é criação em sua essência, que dá a cara a tapa ao invés de se proteger cantan-do trilhas sonoras de novela, vindo agora, como lava, destruindo tudo à sua frente que represente o arcaico e o hegemônico.

Para enfrentar essa cruzada, a cantora juntou-se aos mais profícuos músicos e compositores de uma cena paulistana que vêm ressignificando a canção e descaretando o compasso, como os integrantes de bandas como Passo Torto e Metá Metá. O disco, que foi produzido por Guilherme Kastrup, tem a direção artística de Romulo Fróes e Celso Sim e ainda Kiko Dinuc-ci e Rodrigo Campos, entre outros, completando o núcleo criativo.

O encontro entre a cantora e esse grupo de autores ocorreu durante o show de lançamento do disco Eslavo-Samba (2011), de Cacá Machado, onde dividiram o mesmo palco e surgiu o

embrião do projeto. Foi um trabalho muito específico, pensado exclusiva-mente para a cantora, em torno de temáticas como negritude e sexo, da maneira que ela pediu. Ao todo foram 50 canções compostas e 11 escolhidas para compor o álbum. Apesar de ser intérprete, o disco soa personalíssi-mo, mostrando como a produção teve o cuidado de traduzir em canções sua vida tortuosa e sua persona ousada.

Dessa forma, a música “Solto/Co-migo” é exemplar ao falar sobre per-das – já se foram cinco dos seus nove filhos – e um corpo negro e torto, pois devido a um problema de coluna ela é obrigada a se apresentar sentada. Acompanhada de um arranjo de cor-das, Elza Soares entoa seus versos com a voz mais rouca do que antiga-mente e cansada pela idade, transfor-mando isso em uma qualidade e aju-dando a transmitir o sentido da letra mais intensamente.

Assim, o álbum carrega uma novi-dade e uma potência raras na nossa cansada música popular, ajudando a abrir espaços para escoar algumas das produções mais interessantes de uma nova geração de autores e tra-zendo de volta à vida grandes intér-pretes que por ventura tenham se perdido no caminho. Apresentando uma grande relevância estética e polí-tica, o novo disco de Elza Soares pode ser o prenúncio de uma nova era na música brasileira. oc

O disco foi patrocinado pela Natura Musical e idealizado e produzido pelo músico Guilherme Kastrup. Partici-param Kiko Dinucci, Marcelo Cabral, Rodrigo Campos, Felipe Roseno, Celso Sim e Romulo Fróes mais os compositores José Miguel Wisnik, Cacá Machado, Clima, Douglas Germano e Alice Coutinho.

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Anganga, o novo trabalho do mú-sico Cadu Tenório em parceria com Juçara Marçal, é como uma voadora de pés juntos bem na ‘caixa dos pei-tos’. São oito faixas criadas a partir de uma investigação conceitual que funde a experimentação sonora ao resgate de forças culturais oriundas da passagem entre os séculos 19 e 20. Devastadora, a sonoridade ruidosa do álbum evoca o transe no ouvinte, como a mão de um sacerdote católico ortodoxo que mergulha a cabeça do fiel repetidas vezes numa tina de água durante o ritual do batismo. Ouvir An-ganga é olhar nos olhos de um abis-mo e senti-lo inundar o próprio cor-po pelo vazio da queda. É perceber a catarse como se fosse a primeira vez.

Lançado pelos selos Quintavant/QTV e Sinewave, o trabalho poderia ser relatado de forma objetiva como um disco de afro-noise. Noise já é um gênero musical indigesto, e, uni-do a ele está o vissungo, o canto dos negros escravizados trazidos de An-gola para trabalharem nas minas de

diamante de Minas Gerais. O resulta-do disso é um espesso tecido sonoro cujo potencial imersivo transcende a barreira do próprio som. A voz de Ju-çara é como uma tocha que ilumina o caminho, enquanto a instrumentação gerada por Cadu é a escuridão que re-pousa no interior da caverna.

Creditado no encarte do álbum por gravar “sintetizadores, objetos ampli-ficados, cassetes, microfones de con-tato, bateria eletrônica, violão e vio-lino preparados”, o músico cria várias camadas de texturas sonoras basea-das na extração livre de sons propor-cionados pelo equipamento usado. É importante salientar isso porque, em-bora a tecnologia de áudio viva hoje o ápice de seu desenvolvimento, são muito poucos os sons que estão em-butidos no imaginário popular. Em Anganga, a experimentação sonora tange os limites do próprio áudio, não necessariamente trabalhando har-monias, melodias e ritmos. Para que o ouvinte consiga mergulhar na obra, é preciso esquecer a ideia da música

Mergulho no caospor fernando athayde

Foto: Tay Nascimento/Divulgação

resenha

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como um universo legitimado pela canção, pela composição linear/nar-rativa ou mesmo pela dualidade que a secciona brutalmente entre popular e erudita.

Anganga é contemporâneo exata-mente por não erguer barreiras. Afi-nal, ao mesmo tempo que instrumen-talmente o álbum vai além do que a maioria das pessoas se permite ouvir, Juçara resgata, através de sua bela voz, a narrativa ritmada e linear dos vissungos. A distância percorrida pelo disco em sua investigação artís-tica é uma volta completa em torno do próprio eixo sob o qual orbita a músi-ca. Dessa forma, é possível até mesmo interpretá-lo por meio de imagens e, ao fechar os olhos, ser imerso num ambiente sonoro orgânico, sombrio e coletivo, regido pelo metrônomo da vida contido na passagem entre os se-gundos, os minutos e as horas.

Como uma performance teatral que usa a sombra para moldar o cor-po do ator a formas desconcertantes, esse disco faz a música ser aquilo que o grande público não imagina que sequer exista. Essa particularidade, embora possa proporcionar o mesmo fascínio ou estranheza que uma ani-mação virtual em 3D proporcionava nas pessoas na primeira metade da década de 1990, abre espaço para uma discussão muito mais profunda. Claro que tal caráter contemplativo da arte serve muito bem à nossa vida corrida e moderna, em que todo mun-do mal tem tempo para escutar um disco ou assistir a um filme e, quando o faz, é num laptop de 15’’ e caixinhas de som que só respondem do médio para cima. Apesar disso, em que pon-to uma obra de arte deve deixar de ser interpretada como entretenimento rasteiro para se tornar a matéria pri-ma trabalhada pela vontade de saber e pela curiosidade de conhecer?

Essa é uma pergunta deixada em aberto, até porque o caráter orgâni-co da cultura se infiltra na vida me-cânica a todo instante, exatamente como numa pintura do suíço H.R. Gi-

ger, onde carne e aço se fundem e se transformam num processo infinito. Pessoal, a reação a um disco, ainda mais no caso de uma obra tão com-plexa quanto Anganga, é uma refle-xão que potencialmente trabalhará os miolos de cada uma numa frequência diferente.

À parte disso, é inegável que esse álbum faz surgir uma série de bifurca-ções semelhantes no caminho toma-do pelo ouvinte em sua audição, das quais, sem dúvida, a mais intrigante é o fato dele soar relevante tanto na sua incursão sonora, quanto na sua gama de referências históricas. Assim, mes-mo que seja uma obra de difícil au-dição para ouvidos não iniciados, o disco resgata a história do negro afri-cano trazido ao Brasil para experien-ciar a proximidade do inferno.

Anganga é uma divindade do povo banto, bem como Canto I, Canto II, Canto III e Canto IV utilizam os vis-sungos entonados por Clementina de Jesus no disco O Canto dos Escravos, lançado pelo filólogo e linguista Aires da Mata Machado Filho em 1982. Esse aspecto antropológico somado à ex-perimentação sonora intensa, faz com que o trabalho assinado por Juçara Marçal e Cadu Tenório seja, sobretu-do, uma obra de arte. Relevante não pela simples documentação de um traço cultural, Anganga é o registro da sensação proveniente de um con-texto histórico e estimulada através da percepção sensorial do ouvinte. oc

Produzido e arranjado por Cadu Tenório, mixado por Emygdio Costa e Cadu Tenório e masterizado porEmygdio Costa. Arte de Cadu Tenório, projeto gráfico deMariana Mansur e fotomontagem de Tay Nascimento. O álbum é um lançamento dos selos QTV e Sinewave.

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Há no mundo de hoje inúmeros elementos de distração. No seu en-frentamento diário da realidade, o sujeito contemporâneo encontra-se imerso num oceano de estímulos sen-soriais que se justapõem proporcio-nando-lhe uma gama interminável de pequenos sequestros de consciência que diluem a individualidade daquele Eu uno, centrado, cartesiano em um Outro, multifacetado e eternamen-te disperso. O celular está sempre a alarmar uma nova mensagem de um grupo de Whatsapp; as notificações da timeline do Facebook demandam um reiterado e compulsivo passar de

olhos; o feed de notícias traz a todo instante as últimas informações e novidades; e os sites de streaming fornecem, à distância de uns poucos cliques, um fluxo ininterrupto de mú-sica do mundo inteiro. Não sem ra-zão, Eric Hobsbawm fala com algum espanto do inédito “desenvolvimento de sociedades nas quais uma econo-mia tecnoindustrializada imerge nos-sa vida em experiências universais, constantes e onipresentes de infor-mação e produção cultural – de som, imagem, palavra, memória e símbo-los”¹. Saturação, transitoriedade e deslocamento; tríade balizadora dos

¹ HOBSBAWM, Eric; “Tempos Fraturados: Cultura e Sociedade no Século XX”, Companhia das Letras, São Paulo, 2013, pág. 14.

Foto: Michele Souza/Divulgação

resenha

por bruno vitorino

As Encantações de Renata Rosa

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² LIPOVETSKY, Gilles e SERROY, Jean; “A Estetização do Mundo: Viver na Era do Capitalismo Artista”, Companhia das Levras, São Paulo, 2015, pág. 22.

tempos hipermodernos que lança o indivíduo no paradoxo do “aqui, lá e em lugar algum”. Assim, perdido nas marés do novidadismo, desatachado de uma perspectiva histórica do tem-po, alternando entre modos de vida que endossam padrões de consumo estetizados, o sujeito flutua.

No entanto, existem sempre inte-ressantes movimentos no contrafluxo da Cultura, e dentre esses está o novo trabalho da cantora/compositora/instrumentista paulista, radicada em Pernambuco, Renata Rosa. Com seu Encantações, a artista se apropria de maneira bastante pessoal e orgânica de manifestações folclóricas encon-tradas no interior do estado - como a ciranda e o coco - em composições que reverenciam a tradição e ao mes-mo tempo celebram sua vivacidade e força criativa. De quebra, em seu dis-co, Renata ainda consegue resgatar à música seu preceito mais elementar: a escuta. Preceito este, diga-se, perdi-do ante o excesso e a banalização da arte de organizar os sons os quais a transfiguraram mero pano de fundo de uma realidade que se experimenta na superfície.

Dessa forma, a artista convida o ouvinte a, mais do que provar descar-gas epidérmicas de sensações frívo-las, juntar os pedaços espalhados do Eu para fruir da experiência estética proporcionada pelos efeitos de pre-sença da música. Propõe suspender no fugaz território do êxtase a liqui-dez das identidades, devolver ao su-jeito a sensação de estar no mundo e restituir à Arte “o poder de fazer conhecer e contemplar a própria es-sência do mundo”². Não à toa, Renata canta que “como cirandeiro eu sei ir à curva do Encantado”: seu objetivo é a revelação desses campos finitos de sensibilização e plenitude que se in-serem na tessitura do real como uni-versos paralelos. Nesse sentido, suas

“Encantações” podem facilmente ser lidas como epifanias, rupturas na ba-nalidade frenética do dia a dia para desvelar possibilidades mais profun-das e viscerais. Por isso, seu álbum se apresenta tão necessário.

Destaque para “Encantações”, a camerística faixa que abre e dá nome ao disco, com sua melodia intuitiva enriquecida por uma firme trama de vozes e amparada por uma inespe-rada base de sopros - arranjada por Caçapa - que equilibra as fortes cores sertanejas evocadas pelo ré mixolídio com um delicado si menor; a poesia da ciranda “Saudade do Futuro”; o som claro e límpido da rabeca tocada pela cantora na instrumental “Roda do Vento”, o qual evidencia uma artis-ta que sabe exatamente o que faz e co-nhece os mananciais da tradição em que bebe; e a interpretação de Rena-ta no quasi choro “Amei Demais” que, utilizando-se de notas de passagem as quais parecem (só parecem!) desa-finadas, cria uma tensão na melodia que condiz com a dramaticidade da canção e denuncia um total controle técnico e expressivo de sua voz por parte da cantora.

Recomendado! oc

Conta com bases e arranjos assinados Hugo Linns e Caçapa, participação dos metais da Jazz Sinfônica Nahor Gomes e Sidney Borgani e da família Suíra, que participa dos coros e arranjos vocais. O disco foi mixado por Gustavo Lenza no Estúdio La Nave e masterizado por Carlinhos Freitas no Estúdio Classic Master. A finalização e lançamento foram via-bilizados através de financiamento coletivo no site Catarse.

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“Como procurar fendas numa so-ciedade que se tornou um programa de computador? Como desprogramar essa máquina?”, se pergunta Leonardo Gonçalves, o Negro Leo, em entrevista ao Canal Curta! Sobre seu novo disco, Niños Heroes. A Terra parece lenta de-mais para o computador. Enquanto a ebulição do “mistifório das velocida-des sexuais” e das “velocidades rápi-das cheias de nexos policiais” prolife-ram fenômenos e seres híbridos, que embaralham os polos de natureza e cultura e cronologias, a modernidade persiste em seu trabalho de purifica-ção e categorização.

Negro Leo transtorna: traz a visão fragmentária, a confusão das imagens brutas desse tempo intempestivo do glifosato (herbicida tóxico usado pela multinacional Monsanto) e do kroko-dil (opiácio derivado da desomorfina, um sedativo 10 vezes mais forte que a

morfina). É a política, economia, ciên-cia, arte, religião, tecnologia, ecologia e ficção enquanto tudo, nada e meio.

Depois de três EPs e de Ilhas de Calor (2014), Niños Heroes é o segun-do álbum de Negro Leo, lançado em setembro deste ano pelo selo Quinta-vant/QTV. Acompanhado por Felipe Zenícola (do Chinese Cookie Poets no baixo), Eduardo Manso (do Be-mônio na guitarra) e Thomas Harres (da Abayomy Afrobeat Orquestra na bateria), o tecladista, cantor e com-positor articula sua linguagem com abordagens delirantes e nuances de nonsense e absurdo. Em 45 minutos, apresentam-se 22 faixas, saturadas e estouradas ao extremo, raramente passando dos três minutos (a maioria está mesmo abaixo dos dois minutos), lideradas pela voz rasgada de Leo gri-tando seus versos verborrágicos. São os estilhaços da grande explosão sen-

Foto: Joaquim Castro/Divulgação

resenha

Óbvio transtornadopor GABRIEL ALBUQUERQUE

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sível-política-apocalíptica, ou, ainda, “um passeio pela terra pós-colapso dos sentidos”, nas palavras de Fred Coelho no texto de apresentação do disco.

Suas letras são explícita e clara-mente políticas (temas como fome, guerra, desajustados), mas também dentro de uma concepção política ressignificada e descontínua, longe de partidarismos e estruturalismos ideológicos ou mesmo proposições. “Soluções... Não há soluções! Mas os problemas precisam ser colocados”, afirma. O que está em jogo é uma recombinação de todas as tempo-ralidades, que irrompe com violên-cia despedaçada englobando “Bebês Fantasmas das Guerras Dormindo”, “Memória do Google”, “o teatro psi-cológico do noticiário policial”, “Valas Abjetas das Conformidades”, conveni-ências e conivências televisivas, “Sa-télites Ociosos”, “Turismo Sexual no Mandela”, cotações de commodities. Mais um Final de Semana da História. O disco pinta um enorme “mercado de expectativas”, como diz a faixa-tí-tulo, no qual Deus e todos nós toma-mos parte, querendo ou não, afinal também habitamos e inventamos o Mundo. E, em conjunto, falhamos: “A Grécia falhou com os desajustados/ O presidente falhou com os desajusta-dos/ O governador falhou com os de-sajustados/ O prefeito falhou com os desajustados/ A religião falhou com os desajustados/ A filantropia falhou com os desajustados”.

O som, também ele, é desmembra-do. As músicas são erguidas a partir da desconstrução (não confundir com destruição, mas sim uma desmonta-gem, decomposição, nos termos de Derrida) da máquina pop global. Após uma sessão de improviso em estúdio, os músicos levaram as gravações para casa e recortaram trechos para colo-car melodia e letra. O resultado é uma quimera de rocks espaciais, sambas tortos, free jazz, noises e punk rock contorcidos nos labirintos furiosos de guitarras, baixos, pedais de distorção,

sintetizadores, efeitos eletrônicos, teclados e berros de saxofone (estes por conta de Alexander Zhemchuzni-kov e Paulo Dantas). Um reflexo ra-chado de nós mesmos em que não nos reconhecemos. Cacofonia e saturação como constituintes da era da “simul-taneidade técnica”, para usar o termo de Leo em sua resposta aos adornis-mos de Vladimir Safatle no texto “O fim da música”, publicado na Folha de S. Paulo.

Negro Leo, como poucos artistas, consegue captar e sentir esse zeit-geist de liquidez e incertezas. “na vala abjeta das conformidades” parece uma premonição do crime ambiental-tragédia anunciada da Samarco e Vale em Mariana, Minas Gerais: “O com-bustível cosmético-comestível-mixa-gem genética/ expectativa de vida/ de gente/ no Brasil/ é uma chance de calouro// Mirações bestiais, fins de eras/ intenet, afasia,/ mayday to-tal da viagem/ Noite e dia. E a loucu-ra raivosa de “oooh! baby” completa: “estado de natureza/ matar ou mor-rer/ a comida! acabou a comida!”.

Niños Heroes é o óbvio transtorna-do, desorientado, revirado às avessas em confusão, acaso, abstrações, alea-tório, desordem, falhas. O nosso cora-ção é uma cloaca. Assim passa a glória do mundo, sic transit gloria mundi. oc

O disco é produzido e conta com todas as músicas assinadas por Felipe Zenícola, Eduardo Manso, Thomas Harres e Negro Leo, com letras de Negro Leo e colaboração dos músicos Marcos Campello, Paulo Dantas sax alto, Arthur Lacerda e Ale-xander Zhemchuznikov. Gravado por Renato Godoy, Thomas Harres e Felipe Zenícola nos Estúdio Marini, Estúdio Massa, Audio Rebel e Rumori e arte da capa e final por Lucas Pires.

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