2
Ovo de galinha I Ao olho mostra a integridade de uma coisa num bloco, um ovo. Numa só matéria, unitária, maciçamente ovo, num todo. Sem possuir um dentro e um fora, tal como as pedras, sem miolo: é só miolo: o dentro e o fora integralmente no contorno. No entanto, se ao olho se mostra unânime em si mesmo, um ovo, a mo !ue o sopesa descobre !ue nele há algo suspeitoso: !ue seu peso no é o das pedras, inanimado, frio, goro" !ue o seu é um peso morno, t#mido, um peso !ue é vivo e no morto. II $ ovo revela o acabamento a toda mo !ue o acaricia, da!uelas coisas torneadas num trabalho de toda a vida. % !ue se encontra também noutras !ue entretanto mo no fabrica: nos corais, nos sei&os rolados e em tantas coisas esculpidas cu'as formas simples so obra de mil inacabáveis li&as usadas por mos escultoras escondidas na água, na brisa. No entretanto, o ovo, e apesar de pura forma conclu(da, no se situa no final: está no ponto de partida. III A presença de !ual!uer ovo, até se a mo no lhe fa) nada,

Ovo de Galinha

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Poema João Cabral de Mello Neto

Citation preview

Ovo de galinhaIAo olho mostra a integridadede uma coisa num bloco, um ovo.Numa s matria, unitria,maciamente ovo, num todo.Sem possuir um dentro e um fora,tal como as pedras, sem miolo: s miolo: o dentro e o foraintegralmente no contorno.No entanto, se ao olho se mostraunnime em si mesmo, um ovo,a mo que o sopesa descobreque nele h algo suspeitoso:que seu peso no o das pedras,inanimado, frio, goro;que o seu um peso morno, tmido,um peso que vivo e no morto.IIO ovo revela o acabamentoa toda mo que o acaricia,daquelas coisas torneadasnum trabalho de toda a vida.E que se encontra tambm noutrasque entretanto mo no fabrica:nos corais, nos seixos roladose em tantas coisas esculpidascujas formas simples so obrade mil inacabveis lixasusadas por mos escultorasescondidas na gua, na brisa.No entretanto, o ovo, e apesarde pura forma concluda,no se situa no final:est no ponto de partida.IIIA presena de qualquer ovo,at se a mo no lhe faz nada,possui o dom de provocarcerta reserva em qualquer sala.O que difcil de entenderse se pensa na forma claraque tem um ovo, e na franquezade sua parede caiada.A reserva que um ovo inspira de espcie bastante rara: a que se sente ante um revlvere no se sente ante uma bala. a que se sente ante essas coisasque conservando outras guardadasameaam mais com disparardo que com a coisa que disparam.IVNa manipulao de um ovoum ritual sempre se observa:h um jeito recolhido e meioreligioso em quem o leva.Se pode pretender que o jeitode quem qualquer ovo carregavem da ateno normal de quemconduz uma coisa repleta.O ovo porm est fechadoem sua arquitetura hermticae quem o carrega, sabendo-o,prossegue na atitude regra:procede ainda da maneiraentre medrosa e circunspeta,quase beata, de quem temnas mos a chama de uma vela.

A poesia acima foi extrada do livro"Joo Cabral de Melo Neto - Obra Completa",Editora Nova Aguilar - Rio de Janeiro, 1994, pg. 302.