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Estudos Feministas, Florianópolis, 20(3): 384, setembro-dezembro/2012 809
A tríplice jornada de mulheresA tríplice jornada de mulheresA tríplice jornada de mulheresA tríplice jornada de mulheresA tríplice jornada de mulherespobres na universidade pública:pobres na universidade pública:pobres na universidade pública:pobres na universidade pública:pobres na universidade pública:
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Resumo: Resumo: Resumo: Resumo: Resumo: Este artigo é fruto de uma pesquisa de abordagem microssociológica realizada commulheres de camadas populares que frequentam cursos noturnos em uma universidade pública.Trata da experiência de mulheres que, a despeito de já levarem uma dupla jornada de trabalhodiária como mães, donas de casa e profissionais, resolvem dar prosseguimento aos estudos ecursar a universidade, passando a vivenciar uma tríplice jornada de trabalho diária. Além decolocar em evidência algumas das estratégias de sobrevivência e longevidade escolarempreendidas por essas mulheres no interior do espaço universitário, aponta também como sedeu a conciliação (ou não) entre as obrigações domésticas, trabalhistas e escolares. Ao mesmotempo que se percebem como mulheres-vítimas, também se impõem como mulheres-sujeitos.São conscientes de suas limitações, mas se negam a desistir de seus sonhos.Palavras-chavePalavras-chavePalavras-chavePalavras-chavePalavras-chave: mulheres; camadas populares; ensino superior; tríplice jornada de trabalho.
Copyright © 2012 by RevistaEstudos Feministas.
Rebeca Contrera ÁvilaUniversidade Estadual de Campinas
Écio Antônio PortesUniversidade Federal de São João del-Rei
IntroduçãoIntroduçãoIntroduçãoIntroduçãoIntrodução
Dentre as modificações sociais de gênero queocorreram na sociedade brasileira nas últimas décadas, apresença das mulheres na universidade tem-se mostradouma das mais significativas, com desdobramentos nos maisdiferentes segmentos da sociedade. A pesquisa que deuorigem a este artigo teve como foco a experiênciauniversitária de um grupo de mulheres que luta diariamentepela conquista de um diploma de curso superior.1 Sãomulheres de camadas populares que, a despeito de jálevarem uma dupla jornada de trabalho diária como mães,
1 Muitas das colocações e dastranscrições de entrevistas contidasno presente artigo fazem parte tam-bém da dissertação de mestradoque lhe deu origem (ÁVILA, 2010).
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REBECA CONTRERA ÁVILA E ÉCIO ANTÔNIO PORTES
donas de casa e profissionais, resolveram darprosseguimento aos estudos e cursar o ensino superior emuma universidade pública.
Ao contextualizar a problemática da mulheruniversitária, dona de casa, que, ao mesmo tempo, tem quedar conta do mercado de trabalho, dos afazeres domésticose dos estudos na universidade, buscou-se destacar arelevância do tema proposto para a pesquisa. As difíceiscircunstâncias vivenciadas por essas mulheres para levarema cabo essa empreitada foram a gênese das questões quederam origem ao problema central desta pesquisa: comose dá o processo de escolarização de mulheres com tríplicejornada de trabalho diária? Quais (e como) seriam asvivências e as estratégias profissionais, acadêmicas edomésticas empreendidas por elas, e também por suasfamílias, para a obtenção de um título de formação superior?Quais seriam as circunstâncias favorecedoras (oudificultadoras) para a sobrevivência e a longevidade dessasestudantes na universidade? Como fazem essas mulherespara conciliar os três segmentos diários de trabalho?
Tendo como referência os questionamentos anteriores,este artigo tem como objetivo colocar em evidência aexperiência universitária dessas mulheres e tornar visíveis asestratégias de sobrevivência e longevidade escolarempreendidas por elas e suas famílias. Pretende aindadestacar a inter-relação entre os sujeitos da educação eseu microcosmo profissional, familiar e escolar.
Trata-se de uma pesquisa de abordagem qualitativaque tem como fundamento teórico a confluência de doiscampos de pesquisa: no campo que se dedica aos estudosde Gênero, fundamenta-se em uma abordagem sócio-histórica da mulher contemporânea; no campo da Sociologiada Educação, fundamenta-se nos estudos relacionados àstrajetórias e às estratégias escolares de sujeitos de camadaspopulares.
Na investigação empírica, propriamente dita, foramrealizadas entrevistas narrativas semiestruturadas com 15mulheres que frequentavam diferentes cursos noturnos naUniversidade Federal de São João del-Rei (UFSJ) no períodocompreendido entre os anos de 2008 e 2009. A fim de localizare delimitar as mulheres em potencial que se enquadrassemno perfil do sujeito de pesquisa a ser investigado, foi realizadauma sondagem preliminar feita nos três campi da UFSJ queficam no município de São João del-Rei.2 Dentre as 45 mulheresencontradas, 15 foram selecionadas para as entrevistas.Embora tivessem disposição para participar da pesquisa,muitas delas manifestaram preocupação com relação aohorário das possíveis entrevistas, pois, devido a sua cargadiária de obrigações, dispunham de pouco tempo. Diante
2 São João del-Rei é um municípiolocalizado na Região do Campodas Vertentes, no sudeste doestado de Minas Gerais.
Estudos Feministas, Florianópolis, 20(3): 809-832, setembro-dezembro/2012 811
A TRÍPLICE JORNADA DE MULHERES POBRES NA UNIVERSIDADE PÚBLICA
dessa limitação, algumas entrevistas foram realizadas emuma sala de reuniões da universidade, no intervalo entre otrabalho e o início das aulas (ou em aulas vagas), outrasentrevistas foram realizadas nas casas das entrevistadas nasférias ou nos feriados.
O quadro apresentado nas páginas seguintes tem porobjetivo proporcionar uma visão geral das mulheres entrevis-tadas e facilitar o acompanhamento da leitura do texto.
Resultados da pesquisa e discussãoResultados da pesquisa e discussãoResultados da pesquisa e discussãoResultados da pesquisa e discussãoResultados da pesquisa e discussão
As trajetórias3 escolares de estudantes provenientesde famílias de camadas populares advêm de um contextosocial e de circunstâncias que derivam do reduzido capitaleconômico, cultural e escolar da família à qual o estudantepertence. Na perspectiva de Bourdieu, os diferentes tipos decapital são instrumentos de apropriação e acumulação devantagens, sobretudo de caráter econômico e de prestígiosocial.4 Logo, a trajetória escolar vivenciada pelo sujeito-aluno protagonista da atualidade precisa ser entendida apartir das experiências vividas por seus ancestrais e nãoindependente delas. Isso porque a posição que cada sujeitoocupa na sociedade depende grandemente do legadodeixado pelas gerações que o precederam.5
Em termos de escolarização, a geração dos avôs e avósdas entrevistadas teve reduzido acesso à educação formal,sendo a maior parte dessa geração analfabeta. O nível deescolarização dos pais das universitárias também é muito baixo.As gerações dos pais e dos avós oriundos de camadaspopulares deixaram quase nenhuma herança para a geraçãoatualmente investigada em termos de capital escolar. Quantoà ocupação profissional, a análise comparativa entre asgerações de avós e pais indicou que não houve significativamobilidade ocupacional e econômica ascendente. A maiorparte de pais e mães atua no setor informal, ocupando-se deatividades de baixo prestígio e baixa remuneração. Dentre as15 mulheres entrevistadas, apenas três afirmaram que, mesmovivendo de forma simples e sempre economizando, as famíliasnão passaram sérias privações econômicas, como falta dealimento e roupa.
Conjunturas agravantes podem desencadearcondições materiais de existência extremamente precárias edesestabilizar a economia doméstica. Alcoolismo, doença,morte, suicídio, abandono, separação dos pais, envolvimentosexual extraconjugal, número elevado de filhos, são algumasdas circunstâncias agravantes pelas quais passaram asfamílias das mulheres entrevistadas nesta pesquisa.
As rupturas com relação a uma economia domésticaestável podem interferir na trajetória escolar de crianças e
4 Pierre BOURDIEU, 1998.
3 A definição sociológica do termo“trajetória” é entendida como opercurso social e biográfico daescolaridade dos sujeitos pes-quisados, bem como as diferen-tes interseções e caminhos per-corridos.
5 BOURDIEU, 2001.
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Estudos Feministas, Florianópolis, 20(3): 809-832, setembro-dezembro/2012 813
A TRÍPLICE JORNADA DE MULHERES POBRES NA UNIVERSIDADE PÚBLICA
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814 Estudos Feministas, Florianópolis, 20(3): 809-832, setembro-dezembro/2012
REBECA CONTRERA ÁVILA E ÉCIO ANTÔNIO PORTES
adolescentes e provocar fluxos escolares acidentados porreprovações ou interrupção dos estudos.6 O acompanhamentodos percursos escolares das mulheres entrevistadas reveloudois diferentes tipos de fluxos escolares: os fluxos lineares (seminterrupções), somente para uma minoria; e os fluxos fortementeacidentados por interrupções ou reprovações e uma entradatardia na universidade, para a grande maioria. Algumas dasmulheres, como Jacira, Ana Maria, Mariana e Laura,interromperam os estudos no ensino fundamental e só voltarama fazer o ensino médio depois de muitos anos, duas delas namodalidade supletiva de Educação de Jovens e Adultos.Para elas, a tríplice jornada de trabalho não é umaexperiência recente, já que cursaram todo o ensino médioconciliando as funções de donas de casa, trabalho e estudo.Outras terminaram o ensino médio em idade regular e deramseus estudos por encerrados, despertando para o desejo decursar o ensino superior somente muitos anos depois. NadirZago explica que nas camadas populares
Há uma legião de ex-alunos que recomeçam seusestudos mesmo após vários anos de interrupção,indicando que a escolaridade não obedece ao tempo“normal” de entrada e permanência até a finalizaçãode um ciclo escolar, mas se define no tempo “dopossível”. A retomada dos estudos, embora com tempode permanência na instituição bastante variável, significaque a vida escolar não foi encerrada, que há uma oumais razões para voltar a ser aluno.7
Os ritmos e os tempos do retorno aos estudos foramdiferentes. Como disse Bruna, “As coisas são mais lentas naminha vida, as coisas têm o tempo certo pra acontecer”.Nas palavras de Mariana, “muita água rolou” e durante essetempo, embora de diferentes formas, o retorno aos estudos oupelo menos a possibilidade de um dia cursar o ensino superiornão fez parte dos planos de futuro dessas mulheres.
A partir da interpretação da narrativa das mulheresque ficaram muitos anos sem estudar, é possível observarque as circunstâncias atuantes que levaram a tão grandeatraso em seu percurso escolar são demarcadamenterepetitivas na experiência de muitas delas: os limitesacadêmicos impostos pela concomitância trabalho–estudonoturno; a falta de incentivo por parte da família; a pressãopsicológica (nem sempre explícita) do grupo de amigos,uma vez que muitos deles já haviam interrompido os estudos;e a entrada precoce no mundo do trabalho, em grandemedida, pelo trabalho doméstico.
Diferentemente daquelas mulheres que interromperamos estudos, as trajetórias escolares de Lílian e Gabriela sãoexcepcionais. Tiveram uma trajetória escolar toda regular eentraram na universidade aos 17 anos; fizeram um único
6 Segundo Bernard LAHIRE (1997,p. 24), situações como divórcio,morte ou desemprego doprincipal provedor financeiro dafamília tendem a fragilizar aeconomia familiar e desencadearuma situação econômicaprecária (com repercussões natrajetória escolar). É o que se podever também em Écio AntonioPORTES (1993), no caso brasileiro.
7 Nadir ZAGO, 2000, p. 25.
Estudos Feministas, Florianópolis, 20(3): 809-832, setembro-dezembro/2012 815
A TRÍPLICE JORNADA DE MULHERES POBRES NA UNIVERSIDADE PÚBLICA
vestibular no qual foram muito bem classificadas (Lílian passouem 1º lugar). Outro aspecto que aproxima suas histórias devida tem a ver com o fato de engravidarem enquanto faziamo ensino médio. Para ambas, o desafio de concluir o ensinomédio e imediatamente tentar o vestibular, apesar da gravideze dos cuidados com o bebê, teve a ver com o modo como afamília encarou a situação e decidiu se mobilizar em tornoda escolarização da filha.
Nas experiências escolares da maior parte dasmulheres, os casos de longevidade e sucesso escolar nãopodem ser explicados pela mobilização familiar em torno daescolarização das filhas. As precárias condições de existênciaque levam os pais das camadas populares a uma lutaincessante pela sobrevivência material, combinada com umadesesperança de si mesmos e com a baixa expectativaquanto ao futuro escolar de seus filhos, também os levam auma atitude (involuntária) de distanciamento da escola e detudo o que lhe é pertinente.8 O sucesso escolar, nesses casos,é fruto de uma forte disposição por parte do próprio estudante,denominada por Jean-Pierre Terrail de autodeterminaçãoselvagem.9
Diferentes pesquisas10 que se ocuparam da inserçãode estudantes de camadas populares na universidadepública no Brasil apontam para as dificuldades e ossofrimentos vivenciados por esses estudantes não somentedurante os anos da escolarização básica, mas tambémdurante a sua permanência e sobrevivência no meiouniversitário. Os percursos escolares desses sujeitos sãovulneráveis e marcados por sofrimento, mas são tambémmarcados por um querer imbatível, por um sobre-esforçoincessante.11
“Entre a cruz e a espada”: como conciliar“Entre a cruz e a espada”: como conciliar“Entre a cruz e a espada”: como conciliar“Entre a cruz e a espada”: como conciliar“Entre a cruz e a espada”: como conciliara tríplice jornada de trabalho?a tríplice jornada de trabalho?a tríplice jornada de trabalho?a tríplice jornada de trabalho?a tríplice jornada de trabalho?
Ter que desempenhar diariamente uma tríplice jornadade trabalho não é tarefa simples. Para as mulheres quevivenciam essa realidade, a rotina diária é um corre-correfrenético para tentar dar conta de todos os segmentos detrabalho. Para grande parte das mulheres, a habilidade deseparar e definir limites para os diferentes tempos/espaços éum grande desafio. Conciliar os três segmentos de trabalho éuma fonte de estresse, ansiedade e pressão constantes. Issoas torna emocionalmente vulneráveis. Gabriela conta quenão consegue se “desligar” nem mesmo quando vai dormir:
Por causa disso. Por causa da tríplice jornada e porcausa de ter que ficar pensando o tempo todo comofazer as coisas, então eu sou uma pessoa completa-mente ansiosa. De às vezes, deitar na cama e ficar
8 Daniel THIN, 1998.
9 Jean-Pierre TERRAIL, 1990.10 Wânia Maria GuimarãesLACERDA, 2006; Débora C.PIOTTO, 2007; PORTES, 1993 e2001; Jailson SOUZA E SILVA, 2003;Maria José Braga VIANA, 1998; eZAGO, 2000.
11 PORTES, 2001.
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pensando o que é que eu tenho que fazer no diaseguinte. Parece que às vezes você quer desligar, masvocê tem que ficar pensando o que é que você vaifazer.
A rotina de trabalho dessas mulheres é extremamentedesgastante, restando pouco (ou nenhum) tempo paramomentos de lazer. Quando indagadas sobre o que fazemem seus momentos de lazer e descanso, a grande maioriadas mulheres diz que esse momento é mínimo ou inexistente:“Pra mim isso não existe mais” (Ana Maria). O tempo “livre” éutilizado para dar conta de toda uma gama de ocupaçõesdedicadas ao trabalho doméstico ou escolar. Na prática, oplanejamento e o uso racional do tempo é uma das maisimportantes estratégias de conciliação entre as diferentesjornadas de trabalhos levadas pelas mulheres.
Todas as mulheres percebem que essa tríplice jornadalhes impõe limitações que as impedem de ter uma imersãototal em todos os segmentos de trabalho. Elas têmconsciência de que não darão conta de tudo.
Outro dia uma pessoa me perguntou uma coisa edepois ela riu quando eu respondi. Ela me perguntouassim: “Como que você faz pra dar conta de tudoisso?”. E eu respondi pra ela assim: “Mas eu não douconta [rindo]! Não dou conta, porque fica tudo maisou menos”. A minha casa fica muito mal cuidada, sabe?A família fica muito de qualquer jeito. Mesmo o estudo,a gente não tem tempo pra se dedicar como a gentegostaria, não é? Agora, o trabalho, aí já tem aqueletempo que você sai de casa para aquilo mesmo, nãoé? O trabalho até que não, mas a vida da gente noresto, assim.... É complicado. Fica tudo mais ou menos,mesmo. (Jacira)
A dimensão profissionalA dimensão profissionalA dimensão profissionalA dimensão profissionalA dimensão profissional
Levando-se em conta que as mulheres entrevistadaspertencem aos estratos sociais economicamente menosprivilegiados, a inserção no mercado de trabalho se deu,em todos os casos, por razões econômicas. A maior partedelas pretende seguir carreira profissional na área para aqual está estudando, ainda que apenas cinco delas jáatuem em áreas afins às de seus cursos. As demais mulheresocupam-se profissionalmente de funções como auxiliar decontabilidade, auxiliar de dentista, cabeleireira, depiladorae pedicura, recepcionista, auxiliar de serviços gerais,faxineira e empregada doméstica.
Dentre as mulheres entrevistadas, seis inseriram-seprecocemente no mercado de trabalho como empregadasdomésticas. Jacira se lembra de que a mãe estava sempre
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grávida e com problemas de saúde, então, com sete anos,assumia a casa e cuidava dos irmãos mais novos e, aos 12anos, foi trabalhar como empregada doméstica.
Nas famílias das camadas populares é um fatocomum as meninas assumirem responsabilidades com otrabalho doméstico ainda na infância.12 No espaço privadodessas famílias constroem-se, desde a infância, espaçosmodeladores bem delimitados na educação de meninos emeninas. As meninas passam por uma espécie de“treinamento” que, na maior parte das vezes, logo as faráseguirem o mesmo rumo profissional que grande parceladas mulheres das camadas desfavorecidas: a entrada nomercado de trabalho pelo emprego doméstico.13 Nomercado de trabalho brasileiro, apenas 25% dasempregadas domésticas têm carteira de trabalho assinadae essa ocupação ainda hoje representa a possibilidade detrabalho para a maior parte das mulheres das classesdesfavorecidas.14 Quando se sobrepõem as variáveisocupação profissional, gênero e pertencimento étnico,verifica-se que, entre as empregadas domésticas, asmulheres negras, além de serem a maioria, são também asque, quando comparadas às empregadas domésticasbrancas, recebem os menores salários e têm menoresvínculos no mercado formal.15
A experiência ocupacional de Ana Maria confirmaas colocações feitas. Ana Maria é negra e sua mãe tambémera empregada doméstica. Aos 12 anos decidiu que queriatrabalhar, pois a situação financeira de sua família era muitoprecária e ela queria ter seu próprio dinheiro. No início,trabalhava todas as tardes, depois da aula, mas, quandoterminou a oitava série, parou de estudar e foi trabalhar oitohoras por dia, sempre como empregada doméstica. Acondição de informalidade acompanhou grande parte dajornada trabalhista de Ana Maria. Por ocasião da entrevista,tinha 42 anos e 30 anos de trabalho, dos quais mais de 20como empregada doméstica e apenas 14 anos com carteiraassinada. No hospital onde trabalha, durante um bom tempoexerceu a função de faxineira, mas, quando sua chefe soubeque ela havia passado no vestibular da UFSJ, disse: “Assimque tiver uma oportunidade, vou te mudar de função”. Porocasião da entrevista, Ana Maria trabalhava como auxiliarde serviços gerais, cadastrando roupas na lavanderia dohospital. Ainda que a promoção de Ana Maria não tenhasignificado também aumento de salário, certamente teveum impacto importante em sua condição de trabalho. Elapassou a trabalhar sentada e a fazer uso de um computador.
Embora algumas das mulheres entrevistadas tenhamuma condição de trabalho um pouco melhor em termos deprestígio e renda, isso não é suficiente para colocá-las em
12 Cristiane SOARES e Ana LúciaSABÓIA, 2007.
13 Ethel Volfzon KOSMINSKY eJuliana Nicolau SANTANA, 2006.
14 Cláudio Salvadori DEDECCA,2007.
15 Maria Cristina Aranha BRUSCHINIe Maria Rosa LOMBARDI, 2000; eHildete Pereira de MELO eCristiane SOARES, 2006.
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uma situação financeira mais confortável. É importanteobservar que essas mulheres são coprovedoras ou mesmoprovedoras da renda familiar e ganham em média um saláriomínimo. Nesse caso, a ocupação do marido deve ser tam-bém um indicador importante sobre a condição econômicada família.16 Um exemplo dessa situação é o caso de Núbia,que cursa Administração, passou no concurso paratrabalhar no setor financeiro da UFSJ, mas seu marido ganhasalário mínimo como açougueiro.
A dimensão do trabalho doméstico eA dimensão do trabalho doméstico eA dimensão do trabalho doméstico eA dimensão do trabalho doméstico eA dimensão do trabalho doméstico efamiliarfamiliarfamiliarfamiliarfamiliar
A história das mulheres no Brasil, escrita entre avançose retrocessos pela própria história de vida de mulheres queousaram enfrentar os espaços sociais, escolares e trabalhistasde dominação masculina de épocas passadas,17 proporcio-nou às mulheres contemporâneas os direitos e as conquistasque hoje desfrutam. No entanto, no espaço doméstico adominação masculina continua a se manifestar de formaincisiva, não só por meio da violência física, mas tambémpela perpetuação da violência simbólica.
As mudanças visíveis que afetaram a condição femininamascaram a permanência de estruturas invisíveis quesó podem ser esclarecidas por um pensamentorelacional, capaz de pôr em relação a economiadoméstica, e portanto a divisão de trabalho e depoderes que a caracteriza, e os diferentes setores domercado de trabalho (os campos) em que estãosituados os homens e mulheres. Isso, em vez deapreender separadamente, como tem sido feito emgeral, a distribuição de tarefas entre os sexos, e,sobretudo os níveis, no trabalho doméstico e no trabalhonão doméstico.18
Com relação ao controle ideológico exercido nasrelações de gênero, Guacira Louro adverte que a dinâmicade poder entre os gêneros pode ser cheia de dissimulações.Nem sempre as manifestações de poder se dão pela via darepressão. É preciso que se tenha em conta toda a rede de“pedagogias” culturais, familiares e religiosas que, de formaaparentemente inocente e até democrática, constroemidentidades, práticas e estereótipos. É preciso que sedesconfie dos gestos “tolerantes” e das concessões quemantêm determinados sujeitos e práticas em lugares efunções socialmente demarcadas como “naturais” a esseou àquele gênero.19 Sobre isso, Bourdieu esclarece quesujeitos masculinos e femininos constroem-se não apenassocialmente, mas também corporalmente. Em outraspalavras, os corpos e suas diferentes posturas, inclinações,
16 Ver o quadro de acompanha-mento de leitura.
17 Sobre esse tema, ver JaneSoares de ALMEIDA, 2000; LuziaMargareth RAGO, 1987; Eni deMesquita SAMARA, 1989; e RaquelSOIHET, 1997.
18 BOURDIEU, 2007, p. 126.
19 Guacira Lopes LOURO, 2007a.
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falas, gestos e maneiras de agir seriam fruto de todo umtrabalho de construção social. Os mais diferentes meios einstrumentos de socialização/educação (dentre os quais sedestacam a família, a Igreja e a escola) inscrevem nasociedade um conjunto de disposições duradouras,aparentemente naturais, que irão ditar a maneira como oscorpos masculinos e femininos deverão comportar-se,formando o que o autor chama de “habitus sexuados”. Aconsolidação desse habitus e toda a rede de construçãohistórico-social que envolve a legitimação das funções nadivisão sexual do trabalho, inscrita no cotidiano como sefizesse parte da natureza física dos sujeitos, fazem parte, defato, de um intenso trabalho coletivo de dominação econstrução arbitrária da naturalização do biológico.20
Um ponto de superação do pensamento de AlainTouraine21 e de Louro22 com relação aos escritos de Bourdieu23
é o argumento de que, a despeito de, na oposição dasrelações de poder entre homens e mulheres, a dominaçãomasculina impor-se, predominantemente, sobre os sujeitosfemininos, sempre houve espaços de resistência econtrapoderes. É preciso que se desconstrua a lógica quepercebe a relação masculino–feminino somente como umarelação de oposição entre um polo dominante e um polodominado.
Os sujeitos que constituem a dicotomia não são, defato, apenas homens e mulheres, mas homens emulheres de várias classes, raças, religiões, idades etc.,e suas solidariedades e antagonismos podem provocaros arranjos mais diversos, perturbando a noção simplistae reduzida de ‘homem dominante versus mulherdominada’. Por outro lado, não custa reafirmar que osgrupos dominados são, muitas vezes, capazes de fazerdos espaços e das instâncias de opressão, lugares deresistência e de exercício de poder.24
Estudos realizados por Cristiane Soares e Ana Sabóia25
e por Maria Cristina Bruschini26 chegaram à conclusão deque há diferentes circunstâncias que interferem na dinâmicada realização e do tempo gasto com afazeres domésticos,dentre elas: existe uma relação inversamente proporcionalentre a escolaridade e o tempo gasto com afazeres domés-ticos, isso porque o nível de escolarização tem influênciadireta sobre os rendimentos, o que possibilita às mulherescom maior rendimento a contratação de empregados e acompra de equipamentos elétricos; em arranjos familiarescom a presença de um cônjuge, as mulheres cônjuges têmuma jornada doméstica média três vezes maior que a deseus companheiros; levando-se em conta a variável formaçãofamiliar, as maiores jornadas diárias de trabalho domésticosão cumpridas por mulheres de famílias formadas por casal
20 BOURDIEU, 2007.
21 Alain TOURAINE, 2007.22 LOURO, 2007b.23 BOURDIEU, 2007.
24 LOURO, 2007b, p. 33.
25 SOARES e SABÓIA, 2007.26 BRUSCHINI, 2006.
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com filhos menores de 14 anos, isso porque os cuidadospessoais e escolares com filhos pequenos são as atividadesque mais consomem o tempo de trabalho doméstico; e acondição de vulnerabilidade econômica traz para asmulheres das camadas mais pobres as maiores sobrecargasde trabalho diário.
O tempo gasto com trabalho doméstico absorve umaparcela significativa da rotina diária das mulheresentrevistadas. A maior parte das mulheres trabalha fora decasa e tem uma jornada de trabalho diária de oito horas. Alimitação de tempo as obriga a estabelecerem estratégiasde otimização do tempo que lhes resta para darem contade todo o programa diário, inclusive o trabalho doméstico.Durante a semana faz-se apenas o serviço básico, comomanter o banheiro limpo, lavar a louça, fazer a comida evarrer a cozinha. Nas palavras de Ana Maria: “A gente dáaquela catada. E faz tudo nos pouquinhos minutos quevocê tem”. Já os finais de semana e feriados são reservadospara fazer faxina, lavar a roupa e adiantar tudo o que forpossível para a semana.
Os depoimentos das mulheres, em consonância comoutras pesquisas,27 apontam para o fato de que, apesardas muitas conquistas, algumas marcas do passado aindase fazem resistentes, refletindo o fenômeno social que ÉcioPortes conceitua como efeito de durabilidade e perma-nência. Trata-se de fenômenos sociais que fizeram parte decontextos sociais em épocas remotas, mas que, emboramodificados, se encontram ainda fortemente inseridos nasociedade atual.28 Por exemplo, a permanência da tradiçãode que é “normal” que os afazeres domésticos sejam respon-sabilidade da mulher, mesmo que essa mulher trabalhecomo coprovedora ou provedora da renda familiar.
O paradigma, da “naturalidade” da divisão sexual dotrabalho, impõe às mulheres a responsabilidade peloespaço doméstico, com um ônus alto pelo conjuntodas funções reprodutivas. Mesmo o aumento de suaparticipação no mercado de trabalho não levou auma maior distribuição das tarefas domésticas entreos membros da família, e tampouco gerou, ainda,uma ruptura total na estrutura patriarcal.29
As mulheres que participaram da pesquisa não têmcondições econômicas para contratar os serviços de alguémpara ajudar nos trabalhos domésticos. Todas as mulheresque têm filhos já crescidos recebem algum tipo de ajudapor parte deles para o trabalho doméstico, mas essa ajudaé variável e, em alguns casos, muito limitada. Um exemplodessa situação é descrita por Tamara quando conta que afilha (20 anos) faz uma arrumação rápida na casa durantea semana, mas a faxina grossa fica para ela nos finais de
27 Helen HIRATA e Daniele KERGOAT,2007; e SOARES e SABÓIA, 2007.
28 PORTES, 2001.
29 MELO, 2005, p. 4.
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semana e nos feriados, ocasião em que os filhos (22 e 24anos), a filha e o marido descansam. Quando indagadasobre onde estavam o marido e os filhos enquanto ela faziaa faxina no feriado, Tamara respondeu: “Descansando.Ouvindo música, na Internet... E o marido também, porquequando eu estou ele não faz, não. E a Laura só faz quandoeu não estou também”.
Das 15 mulheres entrevistadas, três dizem não receberqualquer tipo de ajuda por parte do marido e apenas duasdizem que o marido ajuda em tudo. Foi predominante nosdepoimentos a observação de que o marido só ajuda como trabalho doméstico de forma esporádica e, ainda assim,quando solicitado. Nesse caso, a ajuda está subordinadaa uma série de restrições que fazem com que recaia sobre adona de casa a maior e pior carga de trabalho, além dodesgaste emocional que acompanha o constrangimentode sempre precisar solicitar a ajuda. Apenas duas dasentrevistadas afirmam que os maridos dividem o trabalhodoméstico com elas. Sobre a ajuda do marido, Ana Mariadiz: “Cozinha eu empurrei para o Edson. Coitado... Casa eparte da roupa também”. A forma como Ana Maria se refereao marido como “coitado” (mesmo que ele esteja aposen-tado e ela trabalhe o dia inteiro) revela como ainda estáfortemente impregnada, até mesmo no imaginário feminino,a visão de que o homem não deveria ser responsável pelostrabalhos domésticos.
Se a participação da maior parte dos maridos emtrabalhos domésticos, como cozinhar, limpar a casa, lavarroupa e lavar louça, é pouco expressiva, já quando se tratado cuidado dos filhos pequenos para que as mulheres possamestudar, a dimensão da ajuda se inverte. Com exceção deum deles, são os maridos que cuidam dos filhos pequenosenquanto as mulheres vão para a universidade. Daí anecessidade de chamar a atenção para a importância dapostura de cooperação dos maridos. A despeito daslimitações quanto a ajudar em determinados tipos detrabalhos domésticos, da inconstância e da seletividade daajuda prestada, a ajuda dos maridos no cuidado com osfilhos revelou-se um fator determinante para a permanênciadas mulheres na universidade.
O misto de sentimentos negativos que as mulheressentem em relação às diferentes cobranças que lhes sãoimpostas pela família é motivo de sofrimento e estresseemocional. O estresse emocional tem sobre elas um efeitopior do que aquele que advém do esgotamento físico, poisprovoca um sentimento de culpa duradouro. Esse sentimentode culpa esteve presente na fala de muitas das mulheresentrevistadas, como na transcrição feita abaixo a partir daentrevista com Ana Maria:
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Outro dia... Eu cheguei da faculdade, peguei umaapostila que eu tinha que ler, mas eu fiquei com penatambém. Ela [a filha de 18 anos] deitou perto de mim ecomeçou a conversar. E eu pensei: “Nosso Deus”! Elafalando e aí eu não podia falar para ela que eu estava...Ela viu que eu estava estudando, mas acho que elafica assim com um pouco de... De pensar assim: “Ômãe, me dá atenção aqui, olha estou aqui”. Aí elaficou lá conversando, conversando, conversando. Eudava atenção, lia um pouquinho. Acabou que eu nãofiz nada e ela acabou ficando emburrada e falou:“Vou lá para o meu quarto, você não liga pra mim”. Aío que é que acontece: aquele sentimento de culpa.Eu fechei a apostila, aí fui lá para o quarto dela,conversei um pouquinho com ela e pronto. Écomplicado. O Edson [marido] também fica: “Ah, vocênão dá confiança pra mim, você não liga pra mim”.Como é que eu vou colocar na cabeça deles que nãoé que eu não ligo, mas é que eu já não estou dandoconta mais. Assim... Eu não estou resistindo. Écomplicado. Até que serviço, a gente se ajeita, masessa cobrança... acho que é pior do que o serviço. Euprefiro pegar o serviço e fazer porque eu pego, eufaço e pronto, acabou. Mas esse tipo de cobrançatem dia que a gente fica com um pouquinho desentimento de culpa. “Será que eu estou fazendo certo,será que eu estou fazendo errado?”.
Diferentes pesquisas30 que tratam da bipolaridadedo trabalho feminino como mães e profissionais apontampara o fato de a culpa ser um sentimento presente na vidade grande parcela dessas mulheres, independentementeda classe social. Para Guiomar Soares, as muitas culpasque as mulheres continuam impondo a si mesmas são umaherança do modelo social patriarcal. Apesar das importantesmudanças, os modelos e os papéis esperados das mulherese dos homens do passado encontram-se ainda fortementepresentes no imaginário da sociedade moderna e não serátão simples e nem tão rápida a reversão desse enraizamentosociocultural.31
A experiência universitáriaA experiência universitáriaA experiência universitáriaA experiência universitáriaA experiência universitária
No Brasil, ingressar em uma universidade pública éprivilégio de poucos e a aprovação nem sempre ocorre naprimeira tentativa. Para a maior parte das mulheresentrevistadas, o número de tentativas de entrada nauniversidade variou entre duas e quatro vezes, indicandopor parte delas intensa perseverança para conseguirem oobjetivo almejado. Mesmo diante do fracasso momentâneoas mulheres continuaram tentando até alcançar êxito,apesar da já grande defasagem de idade.
30 ALMEIDA, 2007; e Márcia ReginaCangiani FABBRO, 2006.
31 Guiomar Freitas SOARES, 2006.
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A TRÍPLICE JORNADA DE MULHERES POBRES NA UNIVERSIDADE PÚBLICA
Tamara entrou na universidade aos 50 anos, Jacira aos45, Mariana aos 41 e Ana Maria aos 40, só para destacaraquelas que entraram com idade mais avançada. Sobre essarealização, Vilma Toneloto explica que mulheres de meia-idadeque ingressam na universidade pela primeira vez fazem desseevento o sonho de suas vidas. É como dizer a si mesmas e atodos quantos possa interessar que ainda são capazes decorrer atrás do tempo perdido e realizar feitos importantes navida.32 Dessa forma, percebe-se que, para essas mulheres, arazão do ingresso na vida universitária não se limita somente àbusca de ascensão social (as mais velhas nem esperam tantomais por isso). O depoimento de Mariana exemplifica bemessa questão. Ela conta que “é como se nós quiséssemosrecuperar o tempo perdido”. Ficaram tanto tempo sem estudare agora descobrem que podem ter sucesso nos estudos.
A grande maioria das mulheres ingressou em cursosde licenciatura de baixo prestígio social (80%), compredominância para o curso de Pedagogia (40%). Nemsempre o curso em que foram aprovadas era o curso desejadoinicialmente, mas era o curso possível. A maior parte dasmulheres (60%) tinha outra opção de curso que não aqueleem que ingressaram, como nos casos de Sara e Dalila, quepretendiam fazer, respectivamente, Engenharia Mecânica eMedicina, mas acabaram optando por Matemática ePedagogia como via de acesso à universidade.
Em uma tentativa de entender as razões que levaramà escolha do curso, faz-se necessário recorrer à tese dacausalidade do provável.33 É como se as condições objetivasde existência vividas por essas mulheres, detentoras deinsuficiente capital cultural (principalmente na sua vertenteescolar), as impelisse a empreender escolhas práticas comorespostas adaptadas às diferentes circunstâncias atuantesque lhes sobrevêm, na tentativa de conquistarem seusobjetivos. É como se essas mulheres precisassem fazer uso deinstrumentos alternativos para terem chance de seapropriarem de um diploma de curso superior. Para osestudantes universitários oriundos de famílias de reduzidocapital econômico e cultural, a escolha do curso passa,muitas vezes, por uma análise de sua real possibilidade deentrada na universidade pública e, “[...] ao avaliar suascondições objetivas, a escolha do curso geralmente recaisobre aqueles menos concorridos e que, segundo estimam,proporcionam maiores chances de aprovação”.34
Estratégias de sobrevivência naEstratégias de sobrevivência naEstratégias de sobrevivência naEstratégias de sobrevivência naEstratégias de sobrevivência nauniversidadeuniversidadeuniversidadeuniversidadeuniversidade
A história de cada sujeito é singular e se constitui detrajetórias peculiares, mas algumas das trajetórias chegam
32 Vilma Aparecida Franco deSouza TONELOTO, 1998.
33 BOURDIEU, 1998.
34 ZAGO, 2006, p. 231.
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a surpreender pela forma como sujeitos sociais desprovidosde capital cultural, econômico e social, “votados a umfracasso escolar praticamente certo”, conseguem driblar oefeito de destino de seus veredictos e alcançar sucesso elongevidade escolar.35 No entanto, por mais que a entradana universidade indique longevidade escolar, não é umagarantia de sucesso. A permanência do estudante dascamadas populares na universidade é difícil e marcadapor uma série de ajustes e ações práticas empreendidaspor ele e por sua família em resposta aos diferentesobstáculos que vão surgindo ao longo do percurso.36 Emgrande medida, são essas ações práticas, entendidas aquicomo estratégias de sobrevivência na universidade, quegarantirão ao estudante transpor a barreira universitária.
Diante dos desafios que enfrentam no dia a dia paradar conta de suas obrigações, as mulheres entrevistadastêm consciência de que precisam aproveitar ao máximo osmomentos em que estão em sala de aula. Sabem que emcasa ou no trabalho quase não terão tempo para estudar,então, prestar atenção às aulas se torna a principalestratégia de estudo da maior parte delas. Faltar às aulassomente em caso de extrema necessidade, pois precisamse precaver quanto ao futuro. Muitas delas têm criançaspequenas e, quando os filhos ficam doentes, às vezesprecisam perder uma semana inteira de aula.
Para os universitários pertencentes às camadaspopulares, a relação com a escola quase sempre é de tensão.Diante da necessidade de “matar aula” as mulheres entramem conflito consigo mesmas: não querem e não podem “mataraula”, mas em algumas situações o “matar aula” se tornauma estratégia de sobrevivência na universidade. Trata-sede uma tática conciliadora. Dalila compara sua vida deestudante ao esforço que o náufrago faz para salvar suavida. Segundo ela, às vezes é preciso fazer uso de estratégiasemergenciais para não acontecer de “nadar, nadar e acabarmorrendo na praia”. A estudante, nesse caso, faz um balançoda situação e opta por “matar aula” para poder dar contade cumprir seus compromissos acadêmicos e não sereliminada do sistema.
Quanto aos textos indicados pelos professores comoleitura preparatória para as aulas, as mulheres dificilmenteconseguem dar sequência e continuidade a uma leiturade forma a ler um texto do início ao fim sem interrupção. Issoquando conseguem chegar para a aula com o texto lido.As leituras normalmente são feitas de “picadinho”, “nacorreria”, “em pedaços”, ou em locais que dificultam aconcentração, como dentro do ônibus ou na sala de aula.
Não podem se “dar ao luxo de perder tempo”. Aquestão do ter espaços–tempos próprios e exclusivos para
35 Pierre BOURDIEU e PatrickCHAMPAGNE, 1998, p. 221.
36 PORTES, 1993 e 2001.
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A TRÍPLICE JORNADA DE MULHERES POBRES NA UNIVERSIDADE PÚBLICA
os estudos é algo raro nas experiências relatadas. O espaçoe o tempo destinados aos estudos são aqueles ajustáveisao possível. As obrigações escolares são feitas “quandodá” e na medida do possível, em grande parte, no próprioespaço universitário. Não existe planejamento de longoprazo, de forma que nem elas mesmas se apercebem deque aquela ação emergencial por elas empreendida é, defato, uma estratégia de estudo. Estudam na biblioteca, nacantina (enquanto lancham), em alguma sala de aula vaziaou em sua própria. No ambiente doméstico, os momentosdedicados aos estudos acontecem nos finais de semana(dividindo tempo–espaço com os afazeres domésticos) ou,nos dias úteis, nos horários em que a família está dormindo.Luzia relata o seguinte: “É nesse horário que eu estudo. Atéuma hora, uma e meia. Eu me esforço para ficar o máximode tempo que eu posso. Teve dia de eu estudar até às trêsda manhã”.
As entrevistadas foram muito rigorosas na autoanálisecom relação a seus rendimentos acadêmicos. Conseguemidentificar os pontos exatos em que estão deixando a desejare quais são suas limitações. O baixo desempenho emalguma prova, o não cumprimento das leituras ou a omissãona entrega de trabalhos requisitados pelos professores nãopodem ser interpretados como desinteresse. Ao contrário,quando não conseguem cumprir com suas obrigaçõesescolares, as mulheres se sentem frustradas. Existe sempre osentimento de que gostariam de poder fazer melhor:
Eu não consigo ler um texto, preparar o texto para oprofessor explicar ele ainda. Não dá tempo, então éisso que está me incomodando porque eu cansei paraentrar na faculdade. Era o meu sonho, sabe? Da minhamãe e do meu pai. Agora que eu entrei eu vou levarassim? (Ivone)
Há um descompasso constante entre o que desejamfazer e o que realmente conseguem fazer. Três das mulheresperderam matérias e ficaram em dependência. O caráterfortemente acidentado da trajetória escolar de grande partedos estudantes provenientes das camadas economicamentedesfavorecidas não passa a ser menos acidentado com aentrada desses estudantes na universidade. Ao contrário, paraalguns, concluir o ensino superior será vencer uma verdadeiramaratona de reincidentes reprovações e dependências quepoderão atrasar em muitos anos o sonho da conclusão docurso.37 Para alguns estudantes, esse tempo extra arrastar-se-á por vários anos, como no caso de Luzia, que cursou CiênciasEconômicas de 2001 a 2008 e precisou abandonar o curso.Contrastando a experiência universitária de Luzia comexperiências similares de outros estudantes universitários de
37 ZAGO, 2000.
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camadas populares tanto no Brasil como na França, pode-se afirmar que a dificuldade desses alunos não terminaquando entram na universidade. Para muitos deles,permanecer e concluir o curso vai ser ainda mais difícil doque entrar na universidade.38
As mulheres da pesquisa convivem diariamente como sono e o cansaço, situação que afeta diretamente suacapacidade de concentração nas aulas. As poucas horasde repouso a que se submetem resultam em um estado defadiga e sonolência quase constante, sendo difícil depoisvencer o sono na hora da aula. Outro fator que geradificuldade de concentração é a preocupação com o queacontece em casa. Apesar de toda a sobrecarga com otrabalho doméstico, o cuidado e o bem-estar dos filhospequenos, é a responsabilidade doméstica que maispreocupa as mulheres. A pesquisa evidenciou que essequesito pode se tornar uma categoria de impedimentodeterminante para a permanência na universidade, comorelatado na experiência a seguir.
Luzia precisou interromper o curso para ficar com ofilho devido à pressão do marido para que ela largasse ocurso. O marido se recusou a cuidar do filho para que elaestudasse. Luzia se ressente muito de ter sido obrigada adeixar a universidade. Quando iniciou a faculdade, 12 anosapós ter terminado o ensino médio, Luzia não era casada enão tinha filhos. Casou-se em 2005 e só pretendia ter filhosapós concluir a faculdade, mas acabou engravidando.Com a chegada do filho, as circunstâncias atuantes para acontinuidade dos estudos (que já eram difíceis) se tornaramainda mais complexas. Entre as experiências que Luziarelata, uma delas aconteceu no dia em que ela teria umaprova muito importante e o filho ficou doente:
Menina, eu tive que perder uma prova [...] uma provaque era vital pra mim. Foi assim, eu cheguei aqui, nahora do almoço e ele estava com febre. E elevermelhinho, quietinho assim, e aí o meu maridocomeçou: “Olha só, você já falou que tem prova...”.Falei com ele que eu tinha estudado o final de semanatodo, estudei na segunda até tarde. “Você dá um jeitoaí”. Ele pensa que é facinho, que basta eu dar umrecadinho e acabou. “Porque com esse menino dessejeito eu não fico com ele”. Aí... Até eu falei “meu Deus...”Eu pensei assim... que quando eu estou mal, estou comfebre eu ter uma pessoa tensa do meu lado... Eu pensei“Então eu não vou... Pelo menino”. Mas se eu tivesseido ele teria dado um jeito, não é? Mas aí eu perdiuma prova dessa matéria que eu fui reprovada. Foicom esse professor que eu tenho uma situação críticacom ele. Aí eu estava sabendo todinha a matéria,perdi a prova. Aí ele [o professor] fez uma prova pra
38 Alain COULON, 2008; e PORTES,2001.
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mim e ele falou assim... “você...”. Ríspido. “Você quisperder a primeira prova então eu caprichei em umapra você”. Desse jeito. Tinha uma outra meninaesperando para a segunda aula, ele falando assimcom ela “Olha, ela já tem até filho e ainda insiste aquicomigo”. “Pode me entregar Luzia, eu caprichei nessaprova. Assina e me entrega porque você não vai fazernada”. Aquilo pra mim foi... Ai... Eu chorei de raiva!Raiva! De tudo o que eu pude sentir o maior sentimentofoi raiva! Aí eu fui falar com o meu marido e ele falou“Primeiro você tem obrigação com a sua família”.Olha que tipo de incentivo que eu tinha, não é? Muitocomplicado. E com isso o meu desempenho foibaixíssimo. Eu perdi duas matérias o período passado[2º semestre de 2008]. Foi péssimo! Muitas depen-dências e outras disciplinas que não consegui fazer.Aí eu tive que trancar.39 Eu sinto falta porque faculdadefederal hoje em dia é luxo, não é? Mas eu não estavadando conta.
Os sentimentos de Luzia com relação a essa situaçãoestavam ainda muito sensíveis por ocasião da entrevista.Ela desabafou que sua sobrecarga de trabalho era tãointensa que a deixava totalmente fragilizada, “precisandode um milímetro pra largar tudo”, ou então, precisando domesmo milímetro para continuar e terminar o curso se omarido apenas dissesse “não... volta, eu fico aqui”. Asituação descrita por Luzia é um exemplo de como ascircunstâncias atuantes de difícil solução incidem sobreessas mulheres de forma simultânea, entrelaçando asdiferentes dimensões de sua tríplice jornada diária etrazendo sobre elas uma carga quase impossível desuportar. Como se já não bastasse a pressão que sofria emcasa, o espaço universitário se tornou também mais umambiente de sofrimento na pessoa do professor que ahumilhava e oprimia.
Considerações finaisConsiderações finaisConsiderações finaisConsiderações finaisConsiderações finais
A despeito dos percalços dos fluxos escolares dopassado, todas as mulheres entrevistadas inserem-se nocontexto daquilo que os estudiosos entendem porlongevidade escolar, já que todas conseguiram chegar aoensino superior. Por outro lado, a ocorrência de longevidadeescolar não implica, automaticamente, uma conjuntura desucesso escolar na universidade. A complexidade dasmúltiplas atribuições diárias vivenciadas por essas mulheres,em combinação com a situação de vulnerabilidadeeconômica presente no cotidiano de suas famílias, acabapor provocar circunstâncias atuantes desfavoráveis, algumasdelas servindo como categoria de retardamento (ou até de
39 Luzia não desistiu do sonho deobter um diploma de curso supe-rior e optou por fazer a faculdadede Ciências Contábeis a distân-cia. Ela disse: “Eu vou terminaressa. Eu quero terminar essaporque por mim mesma eu tenhoque ter um terceiro grau. Euquero ter”.
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impedimento) ao sucesso escolar na universidade. E ainda,por mais paradoxal que possa parecer, a própria universidadepode tornar-se uma categoria de impedimento. Como reflexodessa contradição, algumas das estudantes vivenciaramintensamente a relação de tensão e contradição existenteentre os sujeitos das camadas populares e a universidade.
Com relação à universidade, o que as mulheresdesejam e aquilo de que mais precisam é de ajuda paraconseguirem conciliar seus diferentes segmentos de trabalhoe terem êxito na empreitada escolar. Da parte dos professores,esperam mais compreensão diante da extrema dificuldadepara conseguirem estudar. “Não quero que ninguém mepasse sem que eu saiba a matéria, mas que tenha um poucomais de humanidade por conta de toda essa dificuldadepara estar aqui”, diz Luzia.
Os depoimentos das mulheres dão margem àinterpretação de que talvez a universidade não estejaapercebida da presença delas em seu interior,40 ou então,que a universidade esteja indiferente a essa presença, ouainda, que essa presença até esteja incomodando. Afinal,como ficou subentendido na colocação do professor deLuzia, alguns poderiam pensar: “Se essas mulheres já têmuma sobrecarga de trabalho tão intensa, o que vieramfazer na universidade? Esse não é um espaço para elas”.Segundo Coulon, para certas categorias particulares deestudantes e, principalmente, para aqueles que têmdificuldade para se manter no espaço universitário, énecessário que a universidade invente uma pedagogia daafiliação, uma pedagogia “[...] que considere e valorizesuas possibilidades em vez de estigmatizar suas lacunas”.41
Se por um lado diferentes circunstâncias atuantespodem servir como canais de impedimento ou obstáculo,por outro lado há também diversas circunstâncias que atuamcomo promotoras de longevidade e sucesso escolar nauniversidade. Ainda que o percurso e a experiência escolarsejam influenciados por todo um conjunto de diferentes redesde configuração, para as mulheres, sujeitos sociais destapesquisa, é no interior das relações de interdependênciaentre família e escola que se edificam as principaispossibilidades de longevidade e sucesso escolar. Os relatosdas expectativas e das limitações dessas mulheres deixamclaro que elas têm plena consciência de que suapossibilidade de sucesso na universidade depende, emgrande medida, da ajuda recebida de sua rede deconfiguração familiar.
Finalizando, faz-se necessário chamar a atençãopara a possibilidade de que, assim como observado porAlain Touraine,42 as novas gerações de mulheres brasileiras(até mesmo aquelas provenientes das camadas populares)
41 COULON, 2008, p. 68.
40 Segundo Coulon (2008, p. 22),“As novas vias de acesso ao ensinosuperior e o desenvolvimento daformação continuada abrem aporta das universidades acategorias de estudantes que elasnão conheciam antes”.
42 TOURAINE, 2007.
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estejam construindo uma nova representação de si mesmas.Essas mulheres tendem a não mais se definirem em relaçãoaos homens e às funções sociais que lhes seriam reservadasno lar e na sociedade, tão somente a partir dedeterminações externas. Essa posição de escolha diantede possibilidades opostas, denominada por Touraine deconduta ambivalente, tem levado as mulheres a fazeremescolha não por uma única opção, mas por múltiplas opçõessimultâneas, como no caso das mulheres desta pesquisaque assumem múltiplos papéis: são mães, esposas e donasde casa; são estudantes universitárias e atuam no mercadode trabalho. Essas mulheres estão conscientes de que suaimersão radical em apenas uma esfera de ação privá-las-ia da realização e do sucesso em outros domínios e optam,de forma ambivalente, não pela escolha entre uma ou outrapossibilidade, mas pela combinação das duas. O que asdefine é a multiplicidade de papéis simultâneos queassumem, passando por experiências de constanteadaptação (em geral dolorosas).
Uma das conclusões mais importantes da pesquisapor nós realizada diz respeito à forma como as mulheresfazem uma autoanálise de si mesmas e de sua própriasituação. Ao mesmo tempo que se percebem como mulheres-vítimas, também se impõem como mulheres-sujeitos. Sãoconscientes de suas limitações e desafios, mas se negam aabdicar diante das dificuldades e das oposições. Têmconsciência daquilo que gostariam de fazer e do querealmente é possível ser feito. Sentem-se divididas entre otrabalho doméstico, a profissão e os estudos, mas se negama ter que escolher entre isto ou aquilo; na verdade, estãoescolhendo isto e aquilo.
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[Recebido em 22 de fevereiro de 2011reapresentado em 4 de maio de 2012
e aceito para publicação em 4 de junho de 2012]
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