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O CONCEITO DE LIBERDADE NO 1 PAULO FREIRE
Andr Ferreira1
Investigar as significaes filosficas subjacentes pedagogia no Brasil
contribuir para a construo de alicerces mais slidos para a teoria educacional brasileira.
Sendo um dos principais momentos da pedagogia nacional, o pensamento de Paulo Freire se
inscreve naturalmente como um objeto dos mais expressivos a ser olhado pelo escopo
filosfico. Escolhemos focar este olhar sobre o conceito de liberdade subjacente ao
pensamento de referido educador. Defendermos que tal intento contribuir para uma melhor
compreenso do desenvolvimento do pensamento pedaggico brasileiro, pois apontar as
respostas freireanas para um dos aspectos mais caros pedagogia e filosofia: a
independncia crtica do homem. Neste sentido, subscrevemos a inteno de Gadotti quando
tambm nos engajamos na tarefa de encontrar os melhores meios de tornar a educao um
instrumento de libertao humana e no de domesticao2.
O trabalho que aqui desenvolvemos prope um lcus temporal especial para Paulo
Freire. Nosso objeto o pensar freireano produzido at o final da dcada de setenta. Assim,
definimos como 1. Paulo Freire os textos clssicos do autor produzidos de 1967 a 1979:
Educao como prtica da liberdade (1967), Pedagogia do Oprimido (1969), Extenso
ou comunicao? (1971), Ao Cultural para a liberdade e outros escritos (1976), Carta
Guin-Bissau (1977), Educao e mudana (1979). Propomos este corte na obra do
pedagogo por que, para ns, com a abertura poltica e a volta dos exilados, dentre eles, o
prprio pedagogo, que Freire, ao longo dos anos oitenta, vivenciou novas experincias e
reflexes, aprimorando seu pensar pedaggico, ao longo desta dcada, Freire ir reaprender o
Brasil.
Portanto, metodologicamente, dividimos a obra de Freire em trs momento: o
primeiro, composto pelos textos acima citados, marcado pelo exlio; o segundo, de 1980 a
1991, composto por textos como Exlio e identidade (1980), A importncia do ato de ler
em trs artigos que se completam (1982) O partido como educador-educando in
Educao como ato poltico partidrio (1988), A educao na cidade, 1991, marcado pela
1 Doutorando em Filosofia da Educao UFPE. [email protected] 2 GADOTTI, 1999, 19
2
luta partidria e pela experincia como secretrio de educao de So Paulo; o terceiro
momento, de 1992 at 1999, iniciado pelo texto Pedagogia da Esperana: um reencontro com
a pedagogia do oprimido (1992), Poltica e educao (1993), marcado pelo balano crtico
de seus primeiros escritos e a consolidao seu pensamento enquanto corrente pedaggica.
importante lembrar que a notoriedade de educador pernambucano se construiu
antes mesmo de sua volta ao Brasil3. Um dos exemplos de sua fora pode ser constatado pelo
testemunho de Luiz Antonio Cunha, afirmando que, de suas leituras na dcada de setenta, o
livro mais importante foi sem dvida Pedagogia do Oprimido que o leu em 1970/71, em
ingls, em exemplar trazido escondido por destemido viajante4, haja vista que s em 1974
seria publicado no Brasil, apesar de j estarem circulando tradues mimeografadas5. No
entanto, com a abertura poltica que a presena de Freire vai se formatando, aos poucos,
como uma verdadeira corrente pedaggica.
O Personalismo
O Personalismo identificado por Abbagnano como uma corrente do
Espiritualismo. Em linhas gerais, o Espiritualismo foi uma reao ao positivismo, surgida em
meados do sc. XIX, que procurava revalorizar o papel da religio e principalmente salientar
a dimenso no reduzvel do homem s determinaes de sua natureza fsico-biolgica. Tem
como conceito chave a noo de conscincia, que o aproximou do idealismo alemo, e como
veremos, a partir da terceira dcada do sc. XX, o aproximar bastante da fenomenologia e do
existencialismo.
A identificao precisa dos autores e idias que constituem o personalismo gera
controvrsias. Abbagnano define personalismo como uma corrente francesa do
espiritualismo cujo foco se volta para o aspecto social e cuja ascendncia catlica e que teve
como fundador e maior divulgador Emmanuel Mounier. Ainda segundo Abbagnano, esta
caracterizao se distingue do modo que os historiadores ingleses da filosofia identificam o
personalismo: termo que o uso anglo-saxnico reserva ao espiritualismo em geral6.
3 Tendo nascido numa famlia de professoras primrias (alfabetizadoras), lembro-me que ainda criana (incio dos setenta) j ouvia falar de um certo professor que tinha sido cassado pela ditadura militar por ter criado um mtodo que alfabetizava as pessoas do povo (especialmente os trabalhadores das usinas) em algumas semanas. A memria tambm registra que o referido professor compunha para aquelas minhas queridas professoras, junto com nomes que criana soavam como Arrs, Joo Gular e Preste, o panteo domstico de mitos da poltica nacional. Apenas na adolescncia, poca da abertura, que o professor ganhou, para mim, rosto, nome e bibliografia. 4 Cunha, 81, 126 5 Cunha, 81, 126 6 ABBAGNANO, 1984, 139
3
Todavia, a adoo do termo ingls personalist - que ensejaria o nosso personalista e
personalismo - para identificar a corrente de pensamento denominada por Abbagnano de
espiritualismo, bem anterior a Mounier e ao dito personalismo francs. Segundo Giovanni
Reale e Dario Antiseri, em 1919, nos EUA, foi lanada a revista The Personalist, peridico
que um desdobramento das discusses levantadas por um grupo precedente de pensadores, o
Personalist Group7. J segundo Octavi Fullat, temos mais outros autores, de outros pases,
que tambm podem receber o epteto de personalista tais como Brzozowski e Koninski da
Polnia, e Berdiaev da Rssia8, alm dos pedagogos que identifica como personalistas: Paulo
Freire, no Brasil, e Lorenzo Milani, na Itlia. Segundo Reale e antiseri, o prprio Mounier
aponta distintas tendncias no que ele entendia por personalismo:
Uma tendncia existencialista (...), uma tendncia marxista, (...), e uma tendncia
mais clssica, que se insere facilmente na tradicional corrente introspectiva da
filosofia francesa9.
Assim, temos uma profuso de identidades relacionadas ao termo personalista e,
por tabela, personalismo. Diante deste fato, para melhor precisar a linha de pensamento que
nos interessa, para o universo deste texto estipulamos como personalismo a linha de
pensamento que, trabalhando com as noes de conscincia e pessoa, incorporam elementos
da fenomenologia e do existencialismo. Agindo desta forma, colocamos como elementos de
um mesmo conjunto pensadores como Emmanuel Mounier, Jean Lacroix, Martin Buber e
Georges Gusdorf. Trabalhamos com a idia de que o personalismo no foi apenas um
movimento catlico francs. Assim, definimos por personalismo a variao do espiritualismo
que incorporou elementos metodolgicos e conceituais da fenomenologia e da ontologia
existencial. A aproximao espiritualismo-fenomenologia, que sintetizar o personalismo, se
d atravs do interesse compartilhado pelo conceito de conscincia. Alm do fato de que a
incorporao da metodologia fenomenolgico-hermenutica10 contribuir para uma definio
mais contempornea de pessoa, afastando-se do puro imanentismo espiritualista. Via esse
mtodo, foi possvel precisar ainda mais o campo especfico da reflexo filosfica sobre o
homem, cuja esfera no se confunda com as das cincias (biolgicas, psicolgicas e
7 C/f REALE & ANTISERI, 1991, 728-729 8 Salientando que boa parte da produo intelectual de Berdiaev se deu em seu exlio na Frana, sendo um dos primeiros colaboradores da revista Esprit dirigida por Mounier C/f . REALE & ANTISERI, 1991, 727. 9 REALE & ANTISERI, 1991, 727. 10 Paul Ricoeur, um dos grandes mestres da hermenutica, foi identificado por Mounier como um personalista. C/f REALE & ANTISERI, 1991, 727.
4
sociolgicas) ou com a da histria. Pois, segundo o que comenta Fullat, luz do
personalismo, o ente humano tem natureza e possui histria, mas no nem a primeira nem a
segunda11. A oposio ao positivismo e a defesa da irredutibilidade do homem a apenas a sua
dimenso de natureza, j empreendida pelo espiritualismo, agora aufere maior sistematizao
metdica. Retomando a questo da liberdade, agora sob a influncia fenomenolgica, temos
que a discusso vai alm da oposio cincia positivista: a prpria noo de natureza e
processo histrico questionada. Pois, como j foi dito, o fenmeno pessoa no se reduz
dimenso neuro-fisio-biolgica (a natureza) nem dimenso scio-histrica (a realidade
cultural), que tambm se manifestam enquanto esferas de determinaes nas quais o indivduo
se insere. A natureza, a cultura e a histria tambm so dimenses que, ao comporem a
facticidade do indivduo, se manifestam como esferas de determinao. Todavia, a
especulao fenomenolgica nos ajuda a trabalhar com a idia de que nenhuma dessas
dimenses, que em conjunto constituem a natureza objetiva do indivduo, esgotam o sentido
do fenmeno pessoa, haja vista, que este ente tem a possibilidade de superar as
determinaes da facticidade que lhe determinam e apontar autonomamente o sentido de sua
prpria existncia, para este ente lhe constitutiva a liberdade.
Em sntese, usando a tradio aristotlica de classificao, para melhor expressar
nossa idia, poderamos dizer que o espiritualismo o gnero, e a caracterstica
fenomenolgico-existencial o que define a espcie. Do espiritualismo, o personalismo
mantm a reflexo em torno dos conceitos de conscincia, liberdade e infinito, e do
pensamento fenomenlogo-existencialista, reformula tais conceitos entendendo que a
conscincia intencional e constitui significativamente o mundo, que a liberdade o existir
autnomo, e que a significao do infinito dada historicamente.
Este personalismo aproximado da fenomenologia e do engajamento social tem em
Emmanuel Mounier um dos mais expressivos representantes. Assim como para o
personalismo em geral, para o personalista francs tambm a pessoa liberdade12. Os
historiadores da filosofia, de Abbagnano a Fullat, so unnimes em apontar que seu
engajamento pessoal s causas sociais e humanitrias, sua correo poltica, seu impecvel
comportamento tico (que o tornaram notrio ainda jovem) e seu sbito falecimento aos
quarenta e cinco anos, fizeram de Mounier quase que um mrtir da defesa da pessoa humana,
numa perspectiva marcada pela aproximao ao cristianismo catlico.
O personalismo, Mounier define como:
11 FULLAT, 1995, 446. 12 C/f ABBAGNANO, 1984, 141
5
toda doutrina, (...), que afirma o primado da persona humana sobre as
necessidades materiais e sobre os aparelhos coletivos que sustem seu
desenvolvimento13.
O aspecto mais caracterstico do pensamento do entusiasta do personalismo a
associao da noo de conscincia com a de comunidade, sustentada por suas reflexes sobre
comunicao interpessoal e comunho. Ele prope uma revoluo comunitria, uma
alternativa aos equvocos do comunismo sovitico e do liberalismo capitalista. A noo de
comunidade visa resgatar a sociabilidade ideal do humanismo, garantindo a equidade material
sem perder de vista a imparcialidade da justia e a liberdade individual. Todavia, essa
liberdade no a da individualidade liberal, mas a da pessoa, o ente humano portador de uma
conscincia autnoma, que s pode ser pensada em comunicao com as outras conscincias.
O agir num mundo comunitrio pautado pela comunicao das conscincias, a comunicao
da existncia com outras14.
Seguindo este caminho que Mounier, resignificando a noo catlica, que a
comunho se d quando a pessoa chama a si e assume o destino, o sofrimento, a alegria e o
dever dos outros15. Esta comunho, fundada no amor, um dos sustentculos da idia de
revoluo comunitria proposta pelo autor. Distinguindo-se do modus operandis do modelo
bolchevique-sovitico de revoluo, a revoluo comunitria a instaurao de um processo
de conscientizao que deve se disseminar por toda a sociedade, prenunciando um certo
socialismo utpico, que venha a substituir tanto as opresses de direita quanto os
totalitarismos de esquerda16. Assim sendo, a educao tem um papel imprescindvel nas
reflexes de Mounier, pois ela o meio pelo qual as conscincias tomam cincia crtica da
realidade que lhes est a volta. Para tanto, a educao tem que ser pensada para alm da tutela
do Estado, devendo estar sob a tutela do prprio povo. Fato que confere um certo tom
libertrio s reflexes pedaggicas do autor, tom que tambm sugerido por Paulo Freire.
Neste sentido, Mounier afirma que o setor educativo extra-escolar deve poder gozar da
mxima liberdade possvel17.
13 MOUNIER, 2000, 19 14 C/f ABBAGNANO, 1984, 140 15 Mounier apud REALE & ANTISERI, 1991, 737 16 C/f REALE & ANTISERI, 1991, 737 17 Mounier apud REALE & ANTISERI, 1991, 737
6
A influncia do personalismo em Paulo Freire: A liberdade enquanto religar-se ao Criador, o
primeiro esboo da noo de liberdade.
Denominamos o perodo da dcada de 60 como a fase mais personalista de Paulo
Freire. O pedagogo publica seus primeiros escritos j no exlio. no Chile, em 1967, que ele
conclu Educao como prtica da Liberdade: uma anlise da sociedade brasileira da poca
e um balano de suas experincias em alfabetizao. Este texto expressa o momento mais
autenticamente personalista de Freire. No primeiro captulo, A Sociedade brasileira em
transio, em meio a uma anlise bem particular da sociedade brasileira de sessenta,
manifesta com clareza a influncia das idias do catolicismo personalista. De incio, podemos
perceber a idia central da antropologia personalista: a irredutibilidade do homem s
determinaes da impostas pela natureza ou vida em sociedade. O homem pessoa, no
um mero objeto do mundo ao qual pertence: sujeito, capaz de atuar intencionalmente no
mundo. Nas palavras de Freire:
No se reduzindo to-somente a uma das dimenses de que participa a natural e
a cultural da primeira, pelo seu aspecto biolgico, da segunda, pelo seu poder
criador, o homem pode ser eminentemente interferidor18.
De imediato, podemos perceber tambm que j nos seus primeiros escritos, a posio
de Freire oposta ao determinismo inerente s idias do estruturalismo cultural, notadamente,
a teoria da reproduo. Pois, o homem, enquanto pessoa, no se reduz sua condio animal19
(biolgica) e nem s condies impostas pela vida em sociedade, as determinaes da cultura.
Neste sentido, o educador trs para a discusso o conceito personalista-
fenomenolgico de transcendncia. Assim, afirma o pedagogo pernambucano que o
homem, e somente ele, capaz de transcender20. Como vimos, a noo de transcendncia de
importncia fundamental no universo conceitual personalista-fenomenolgico, implicando a
possibilidade do sujeito refletir a si mesmo, apreendendo o sentido corrente do existir, abrindo
assim a possibilidade de resignific-lo. Todavia, para o Freire de Educao como Prtica da
Liberdade (1967), a transcendncia no o resultado exclusivo da transitividade de sua
18 FREIRE, 2000, 49 19 Segundo Freire: As relaes que o homem trava no mundo com o mundo (pessoais, impessoais, corpreas e incorpreas) apresentam uma ordem tal de caractersticas que as distinguem totalmente dos puros contatos, tpicos da outra esfera animal. FREIRE, 2000, 47 20 FREIRE, 2000, 48
7
conscincia, que o permite auto-objetivar-se e, a partir da, reconhecer rbitas existenciais
diferentes, distinguir um eude um no eu; e complementa, com relao pessoa, que:
a sua transcendncia est tambm, para ns, na raiz de sua finitude. Na
conscincia que tem desta finitude. Do ser inacabado que e cuja plenitude se
acha na ligao com seu Criador.21
Observemos a fora do iderio cristo, marcando a sintonia com as idias do
personalismo de Mournier, principalmente pelo fato do inacabamento humano, devido a sua
finitude, atingir sua completude na ligao ao Criador. Assim, diferente dos fenomenlogos,
para os quais a liberdade a prpria transcendncia dessa mesma finitude e inacabamento,
efetivada pela prxis humana, ampliadora do leque de possibilidades contrapostas s
determinaes factveis, no Freire de 1967, essa transcendncia ultrapassa o mundo e sua
prpria materialidade (noo certamente rejeitada por Heidegger e os demais fenomenlogos
ateus), saltando radicalmente por sobre o conjunto da totalidade das determinaes factveis,
atingindo destarte a dimenso da suprema plenitude. Isto no faz crer que a liberdade, ento,
no a transcendncia em si, mas a sua completude pela dimenso supra mundana, a suprema
autonomia diante da prpria materialidade. Assim, a liberdade est em ligar-se ao Criador: a
suprema ultrapassagem sobre o conjunto da totalidade das determinaes factveis, que abre
um leque agora infinito em suas possibilidades, haja vista que o possvel no apenas o que
se pode rearrumar e resignificar a partir do j existente, mas o radicalmente novo,
possibilitado pelo Criador.
Dilogo, Conscincia e Conscientizao
O personalismo freireano ganha novas cores aps a estada no Chile e Genebra.
Permanecem as noes como amor, comunho e conscincia, j apresentadas no Educao
como prtica da liberdade, todavia, imbudos de um maior engajamento poltico Neste
sentido, importante associar anlise da distino entre o pensamento de Freire e Mounier
com o advento da Teologia da Libertao e os rumos que a Igreja Catlica trilhou durante as
dcadas de setenta e oitenta, em especial na Amrica Latina. Lembremos que, apesar do vis
catlico, o pensamento mournierniano no vivenciou a guinada esquerda dada pela igreja
naquelas dcadas; No esqueamos da morte precoce do intelectual francs, que o privou de
21 FREIRE, 2000, 48
8
acompanhar o surgimento da igreja politicamente engajada, a igreja libertadora. NA
Pedagogia do Oprimido, j notamos o forte tom poltico da pedagogia proposta. No entanto,
os demais escritos (Ao Cultural para a liberdade e outros escritos (1976), Carta Guin-
Bissau (1977)) da poca, trazem o marco diferenciatrio de Freire e Mounier: a tomada de
conscincia, agora, o despertar da conscincia para sua misso emancipadora. Por sua vez,
a comunho, cada vez mais, assume um tom de efetividade social, descendo do cu
espiritualista para o cho da igreja libertadora. O tempo de exlio aproxima Freire do
marxismo ocidental, afastando-o da tradio tipicamente personalista, neste afastamento,
categorias tipicamente personalistas so resignificadas, no obstante, foi duramente criticado
pelos marxistas ortodoxos, que identificavam traos populistas em seu discurso pedaggico. O
dilogo deixa de ser encontro de subjetividade para constituir-se enquanto uma relao
dialtica de conscientizao mtua, e a prpria tomada de conscincia perde seu carter
iminente subjetivo para inserir-se num processo objetivo, histrico, de emancipao cultural22.
Para o personalismo de Freire o dialogo no eu-tu, ns-vs.
Esta concepo scio-poltica de dilogo que diferencia o personalismo freireano
do de Buber e Gusdorf23: em Freire o dilogo aponta para um processo de conscientizao
scio-poltica e para um necessrio engajamento nas lutas de emancipao popular, nos
personalistas em geral, o dilogo aponta para um processo de conscientizao pessoal,
conscientizao que necessariamente no se realiza no engajamento nas lutas de emancipao
popular conduzidas pelos movimentos de esquerda. Esta distino refora-nos a identidade do
discurso pedaggico freireano com a realidade no apenas brasileira, mas terceiro-mundista,
apontando que em tais circunstncias, a reflexo sobre a instaurao de um processo de
tomada de conscincia tem que abordar as aes que possibilitem a instaurao das condies
sociais mnimas para que o indivduo se veja como ser humano, para que da possa perceber-
se como pessoa. Pois, j que as condies sociais do terceiro-mundo em geral negam ao
indivduo at a sua percepo enquanto um ser valorado para alm do animal, o processo
instaurador do dilogo conscientizador tambm tem que dar conta da re-instaurao das
condies materiais mnimas que elevem o indivduo para uma condio de vida para alm do
22 Este momento de afastamento da senda personalista foi testemunhado pelo Prof. Dr.Ferdinad Rhr. Entre 1975-76, Ferdinand, ento, um jovem licenciando alemo de ascendncia catlica, que na poca no falava portugus e nem se imaginava naturalizado brasileiro, vai ao encontro do pedagogo em Genebra, afim de inquiri-lo, em ingls, sobre o papel do dilogo na Pedagogias do Oprimido. O pedagogo vaticina:...esquea essa parte do dilogo.... E indica para o jovem estudante a leitura das Teses sobre Fuerbach de Marx. 23 Veremos no subcaptulo seguinte que esta distino discutida e assumida por Gadotti, que tambm iniciuo sua trajetria via o personalismo tpico, porm abandona-o aps a aproximao com o personalismo freireano.
9
animalesco, haja vista que, no nvel da sobrevivncia ainda animal, no haver a efetiva
dialogao em nvel humano.
A Transcendncia e a Comunho
Vimos no captulo anterior que a noo de transcendncia um ponto chave na
corrente de pensamento fenomenolgica-existencialista: Husserl, Heidegger, Jasper e outros
operam com esta noo no sentido de t-la como a olhada da conscincia sobre si mesma,
possibilitando a reordenao do mundo significativo do sujeito. Vimos tambm que est
transcendncia o fundamento da prpria liberdade, para esta corrente, a qual se contrape s
determinaes estruturais do mundo concreto, que, sem o olhar sobre se mesma, submergem a
conscincia num existir inautntico. O personalismo, por sua vez, associa um outro conceito
ao de transcendncia, que aqui chamaremos de unidade fundamental. Em geral, para o
pensamento personalista, a transcendncia no um processo apontado para uma eterna
inconcluso: o olhar da conscincia sobre si mesma, quanto mais se aprofundar, descortinar
o essencial sentido de si prpria, sentido este que, distinto do existencialismo ateu, no um
significado autodeterminado, manifestante da radical condenao liberdade prpria da
antropologia existencialista, e sim um encontro com o supremo sentido, a atualizao da
essncia fundamental. Herdeiros do espiritualismo, para quem a liberdade definidora do ser
humano, os personalistas apontam a unidade fundamental como a efetivao suprema da
liberdade: no que se tem enquanto unidade fundamental que se dar a suprema liberdade.
Para o existencialismo, o significado da existncia autodeterminado, para o personalismo, e
a se inclui Freire, o significado j dado pela prpria essencialidade humana, que como foi
dito, porta em si a liberdade. Assim, um trao geral do personalismo, de Buber a Mounier, a
idia de um telos apontado como o sentido do processo de transcendncia. Este telos
apresenta-se, ao modo aristotlico, como a atualizao ltima da essncia mesma.
Freire, seguindo sua ascendncia personalista, menciona primeiramente a ligao
com o Criador como sendo a unidade fundamental. Todavia, caracterizar seu pensamento
pela retomada da idia de comunho esboada por Mounier. No mesmo texto24 em que aponta
a ligao com o Criador como sendo a unidade fundamental, esboa a idia de comunho,
definida ali como integrao, que caracteriza o homem sujeito. Adaptado, no integrado, o
homem perde a capacidade de optar e vai sendo submetido a prescries alheias que o
24 Educao como prtica da liberdade
10
minimizam25. Esta integrao fruto da liberdade, pois, toda vez que se suprime a
liberdade, fica ele [o homem] um ser meramente ajustado ou acomodado26. Aqui a noo de
comunho ainda no recebeu o status de unidade fundamental27, porm, no Pedagogia do
Oprimido este status lhe conferido, onde, conseqentemente, a ligao com a divindade
preterida a favor da noo de comunho. Ao modo hegeliano, dizemos que o pensamento
freireano, aqui, operou uma suprassuno (aufhebung): negou a ligao com a divindade
catlica, seu momento primeiro, para elevar-super-lo na noo da identidade humanidade,
que tambm identidade com o divino, no apenas com a divindade. Assim, a noo de
unidade fundamental suprassume-se de uma divindade para a plena humanidade que a
unidade suprema entre divino e humano, realizando, ento, como sucede para o
espiritualismo-personalismo, a plena liberdade.
Outra elaborao do conceito de comunho encontra-se no Pedagogia da
Esperana (1992), texto que uma releitura das idias lanadas no Pedagogia do
Oprimido. Nele, aps uma dcada de maturao, a de oitenta, Freire retoma os conceitos
desenvolvidos entre as dcadas de sessenta e setenta. A comunho, a unidade fundamental,
agora incorpora ao humanismo uma visada holista: a essncia fundamental, que se atualizar
na unidade, carrega agora em si, alm da identidade homem-divino, a identidade homem-
natureza28. Assim, a comunho no apenas a de homens e de mulheres e de deuses e
ancestrais, mas tambm a comunho com as diferentes expresses de vida. O universo da
comunho abrangia as rvores, os bichos, os pssaros, a terra mesma, os rios, os mares. A
vida em plenitude.29. Esta discusso abre campo para uma ecopedagogia: pedagogia do fazer
humano integrado vida como um todo.
Liberdade enquanto Comunho
A ligao com o Criador se d na Comunho, assim sendo, ao religare da religio
incorpora-se como elemento necessrio para a compreenso da liberdade a noo de
interao. No primeiro momento, de sua fase personalista, ao propor a liberdade enquanto o
religar-se ao Criador, Freire no tinha salientado a dimenso comunitria da liberdade com a
nfase que se percebe na Pedagogia do Oprimido. O credo cristo tradicional, a ligao direta
25 FREIRE, 2000, 50 26 FREIRE, 2000, 50 27 Supomos que o credo catlico mais ortodoxo ainda se fazia presente no Freire recm exilado. 28 Recentemente, o Prof. Ferdinand Rhr, tambm de ascendncia personalista, apresenta o conceito de integralidade como unidade fundamental. 29 FREIRE, 1992
11
indivduo-criador, presente no Educao como prtica da liberdade, agora substituda
pela idia de que a ligao indivduo-criador tem que ser necessariamente mediatizada pelo
coletivo dos homens. Assim sendo, o homem no se liberta apenas no seu retorno ao Criador,
mas o homem se liberta em comunho, que a interao no somente com o criador,
diretamente, mas a interao com o Criador via a interao com os outros homens. Sugere-nos
que a verdadeira interao com o Criador no se d numa religao individualizada, do tipo
eu/divindade, mas que se d em comunho, a religao do tipo ns/divindade.
Ningum liberta ningum, ningum se liberta sozinho: os homens se libertam
em comunho30.
A idia de que necessria a comunho para que se d a libertao vincula-o a um
conceito de liberdade que pensado enquanto uma totalidade efetiva. No temos a primazia
da faculdade de desejar racional do indivduo, sobre a liberdade manifesta nas instituies e
na ordem social. Agora, incorporando o conceito de dialtica, temos que uma no antecipa a
outra, mas ambas determinam-se mutuamente: a capacidade de autodeterminao racional
relaciona-se dialeticamente com a ordem vigente. Do jogo de foras, no qual a ordem forma o
homem e o homem constri a ordem, que a liberdade se manifesta. Da, ela s pode se dar
na totalidade, que o movimento da constante sntese desse jogo de foras. A liberdade do
homem nesta perspectiva no a autonomia da razo com relao aos instintos ou paixes, ou
seja no a mera liberdade da subjetividade racional frente a sensibilidade. A liberdade do
homem nesta perspectiva o prprio processo de constituio da razo na relao
homem/ordem social.
A noo de liberdade objetiva tem em Hegel seu principal sistematizador, sendo
fonte inspiradora do prprio pensamento freireano. Carlos Alberto Torres no seu livro
Pedagogia da Luta salienta a importncia do pensamento hegeliano na formulao dos
princpios bsicos da Pedagogia do Oprimido. Enfoca como pontos cruciais desta relao a
dialtica do senhor e do escravo, ego e desejo e o reconhecimento. A anlise
empreendida pelo autor identifica a passagem Senhorio e Escravido , exposta na
Fenomenologia do Esprito, como a chave do paralelo entre a relao dialtica
senhor/escravo com a dialtica opressor/oprimido, da Pedagogia do Oprimido31. O texto
30 FREIRE, 1987, 52. 31 TORRES, 1997, 26.
12
freireano explcito ao estabelecer tal relao, citando a prpria Fenomenologia do
Esprito:
Se o que caracteriza os oprimidos, como conscincia servil em relao
conscincia do senhor, fazer-se quase coisa e transformar-se, como salienta
Hegel [Phenomenology of Mind, Harper and Row, 1967, p. 234], em conscincia
para outro, a solidariedade verdadeira com eles est em com eles lutar para a
transformao da realidade objetiva que os faz ser este ser para outro 32
Todavia, segundo Carlos Alberto Torres, Freire no aceita a noo hegeliana de
reconciliao e sntese33. Paulo Freire abdica da noo de desenvolvimento positivo da
histria. A histria perde qualquer paradigma que garanta seu progresso positivo para a
humanizao e emancipao. Isto apontado claramente por Torres:
A grande diferena entre Hegel e Freire ser, justamente, a superao da
positividade da negao natural hegeliana na Pedagogia do Oprimido.34
Em Paulo Freire temos o abandono da teleologia positiva da histria, pois ele
pensa a desumanizao como uma de nossas possibilidades histricas, aponta os homens
como inconclusos. Portanto, sujeitos ao fracasso histrico. Hegel realmente jamais pensaria
assim. Poderia ser at que o filsofo alemo no apostasse tanto da evoluo progressiva
linear, apostaria talvez numa progresso espiral, onde vamos nos aperfeioando a partir de
nossos prprios erros, todavia, no pensaria na barbrie e retrocesso civilizatrio como um
destino possvel. J Freire nos diz que:
Humanizao e desumanizao, dentro da histria, num contexto real, concreto,
objetivo, so possibilidades dos homens como seres inconclusos e conscientes de
sua inconcluso35.
Freire abandona a noo de positividade do progresso histrico, mas no
abandona a idia de totalidade. Esvaziada da noo de positividade, a humanidade s pode ser
pensada enquanto projeto, todavia, ainda um projeto coletivo. A relao opressor/oprimido
em Freire aponta no s para a emancipao das injustias decorrentes da explorao do
trabalho, mas tambm para a tarefa coletiva da construo do sentido que se d ao processo de
32 FREIRE, 1987, 36. 33 TORRES, 1997, 33. 34 TORRES, 1997, 32. 35 FREIRE, 1987, 30.
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humanizao. Que deve ter na equalizao do acesso aos bens materiais uma de suas
principais conseqncias, mas que no deve se resumir a isso. Pelo contrrio, a equalizao
dos bens materiais seria uma decorrncia de uma equalizao maior: o reconhecimento mutuo
da humanidade entre os homens. Esvaziando nesse reconhecimento a dualidade
opresso/oprimido, apontando a construo coletiva de novos significados que norteiem as
aes polticas que venham a transformar a ordem social.
A incorporao de determinados princpios hegelianos fundamental para a
construo da noo de libertao enquanto comunho: a liberdade o prprio processo de
constituio da razo na relao opressor/oprimido. A razo no oposta sensibilidade:
racional reconhecer o outro como igual, portanto livre. Livre, o oprimido da opresso, e livre
o opressor do seu impulso dominador. O jogo de foras, a relao dialtica,
opressor/oprimido, constri constantemente a ordem social, onde um e outro se formam,
educam suas mentes e sentimentos. Da, s incorporando a totalidade desse jogo de foras, ou
seja, s reformando simultaneamente opressor/oprimido que a liberdade se far efetiva, pois
ela ser a manifestao de uma relao dialtica que constri uma nova ordem social que
educa a mente e os sentimentos do homens sob a luz da igualdade reconhecida. Neste sentido,
o conceito de liberdade pensado objetivamente, e segundo Freire:
Dizer que os homens so pessoas e, como pessoas, so livres, e nada
concretamente fazer para que esta afirmao se objetive, uma farsa.
Da mesma forma como em uma situao concreta a da opresso que se
instaura a contradio opressor/oprimidos, a superao desta contradio s se
pode verificar objetivamente tambm.36.
Concluindo, temos ento que a comunho o telos supremo, a unidade
fundamental que atualiza a essncia do homem. Atualizao esta que objetiva e compreende
em si a suprassuno da teno que efetivamente impede a plenitude humana: a tenso
opresso/oprimido. Assim sendo, a comunho a prpria efetivao da liberdade: a suprema
autonomia de toda forma de tirania e a realizao da essncia humana, que podemos entender
como a realizao concreta do divino que h na humanidade.
36 Idem,
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Bibliografia:
1. FREIRE, Paulo Pedagogia do Oprimido, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987, 23a Ed.
2. _____________ - Educao como prtica da liberdade, Rio de Janeiro, Paz e Terra,
2000, 24. Edio.
3. _____________ - Pedagogia da Esperana, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1992.
4. FULLAT, Octavi Filosofias da Educao, Trad. Roque Zimmermann, Petrpolis,
Vozes, 1994
5. HEGEL - Fenomenologia do Esprito, trad. Paulo Meneses, Petrpolis, Vozes,
junho/1992. Volumes 1 & 2.
6. GHIRALDELLI, Paulo (org) - O que filosofia da educao, Rio de Janeiro, DP&A, 2a
ed, 2000.
7. TORRES, C. Alberto Pedagogia da Luta: da pedagogia do oprimido escola pblica
popular, Campinas, Papirus, 1997.
8. ___________________ Leitura crtica de Paulo Freire, Campinas, Papirus.
9. __________________ Dilogo com Paulo Freire, So Paulo, Cortez.
10. __________________Conscincia e Histria: a prxis educativa de Paulo Freire,
Campinas, Papirus.
11. __________________Paulo Freire: Pedagogia e Sociedade, So Paulo, Cortez.