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3 PROVA ILÍCITA E DIREITOS FUNDAMENTAIS KARINA TERESA DA SILVA MACIEL 1 SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Breve Histórico da Limitação do Direito à Prova em Favor do Direito à Privacidade. 3. Conceito de Prova Ilícita. 4. A Vedação da Prova Ilícita como Princípio. 5. A Vedação da Prova Ilícita como Norma Garantia. 6. Os Direitos Fundamentais Protegidos pela Vedação à Prova Ili- citamente Obtida. 7. As Restrições Normativas Constitucionais e Infracons- titucionais da Prova Ilícita. 8. A Extensão dos Efeitos da Prova Ilícita: a Prova Ilícita por Derivação. 9. O Princípio da Proporcionalidade e a Ponderação de Interesses em Sede de Prova ilícita. 10. Considerações Finais. 11. Refe- rências Bibliográficas. Resumo: O presente artigo visa a analisar em que medida a vedação da prova ilícita, ou a reverso, sua utilização, pode atuar como garan- tia dos direitos fundamentais contrapostos na demanda judicial. Neste intento, procede-se à análise dogmática da norma contida no inciso LVI do art. 5º da Constituição Federal de 1988 e à análise hermenêutica da norma sob o enfoque do princípio da proporcio- nalidade. Palavras-chave: direitos fundamentais – prova ilícita – análise dogmáti- ca – princípio da proporcionalidade. Abstract: The following article aims to review in which way the pro- hibition of the illegal evidence, or in another way, the application can act as a guarantee of the fundamental rights. In this purpose, proceeds to the dogmatic analysis contained in clause LVI, art. 5º, Constitution of 1988 and hermeneutic analysis of the law by the focus of the principle of proportionality. Keywords: fundamental rights – illegal evidence – analysis dogmatic – the principle of proportionality. 1 Especialista em Direito Empresarial pela PUC-SP. Especialista em Direito Processual Civil pela PUC-SP. Mestranda em Direito pela UNIMEP-Piracicaba. Professora universitária do Direito UNISAL-Campinas. Advogada. 03 UNI2 cap3.indd 47 3/1/2011 18:18:15

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3Prova IlícIta e DIreItos FunDamentaIs

Karina Teresa da silva Maciel1

Sumário: 1. Introdução. 2. Breve Histórico da Limitação do Direito à Prova em Favor do Direito à Privacidade. 3. Conceito de Prova Ilícita. 4. A Vedação da Prova Ilícita como Princípio. 5. A Vedação da Prova Ilícita como Norma Garantia. 6. Os Direitos Fundamentais Protegidos pela Vedação à Prova Ili-citamente Obtida. 7. As Restrições Normativas Constitucionais e Infracons-titucionais da Prova Ilícita. 8. A Extensão dos Efeitos da Prova Ilícita: a Prova Ilícita por Derivação. 9. O Princípio da Proporcionalidade e a Ponderação de Interesses em Sede de Prova ilícita. 10. Considerações Finais. 11. Refe-rências Bibliográficas.

Resumo: O presente artigo visa a analisar em que medida a vedação da prova ilícita, ou a reverso, sua utilização, pode atuar como garan-tia dos direitos fundamentais contrapostos na demanda judicial. Neste intento, procede-se à análise dogmática da norma contida no inciso LVI do art. 5º da Constituição Federal de 1988 e à análise hermenêutica da norma sob o enfoque do princípio da proporcio-nalidade.

Palavras-chave: direitos fundamentais – prova ilícita – análise dogmáti-ca – princípio da proporcionalidade.

Abstract: The following article aims to review in which way the pro-hibition of the illegal evidence, or in another way, the application can act as a guarantee of the fundamental rights. In this purpose, proceeds to the dogmatic analysis contained in clause LVI, art. 5º, Constitution of 1988 and hermeneutic analysis of the law by the focus of the principle of proportionality.

Keywords: fundamental rights – illegal evidence – analysis dogmatic – the principle of proportionality.

1 Especialista em Direito Empresarial pela PUC-SP. Especialista em Direito Processual Civil pela PUC-SP. Mestranda em Direito pela UNIMEP-Piracicaba. Professora universitária do Direito UNISAL-Campinas. Advogada.

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1. introdução

O presente artigo visa a analisar em que medida a vedação da prova ilícita, ou a reverso, sua utilização, pode atuar como garantia dos direitos fundamentais contrapostos na demanda judicial.

Neste intuito, partir-se-á de uma breve análise histórica da evo-lução do direito à prova no ordenamento jurídico pátrio.

Num segundo passo, visando a compreender o sentido e a ex-tensão do inciso LVI do art. 5º da Constituição Federal de 1988, se adentrará no estudo dogmático da vedação à utilização processual das provas ilícitas.

Assim, pretende-se examinar a estrutura desta norma, indagan-do-se se possui natureza de princípio ou regra; se é norma de ga-rantia ou meramente declaratória de direito; quais os direitos fun-damentais protegidos pela vedação da prova ilícita; quais os sujeitos detentores desse direito e os obrigados ao seu cumprimento.

Mais a frente, buscar-se-á estabelecer algumas das restrições normativas constitucionais e infraconstitucionais da prova ilícita, a fim de principiar a visualização de seus limites.

No passo seguinte, tratar-se-á da extensão dos efeitos da veda-ção da prova ilícita, abordando a prova ilícita por derivação e a prova emprestada.

Por fim, utilizando-se do princípio da proporcionalidade, ten-tar-se-á iniciar o traçado, ainda que tênue, da linha que delimita a permissão e a vedação da utilização da prova ilícita, estabelecendo algumas leis de colisão decorrentes da ponderação de interesses e de direitos fundamentais contrapostos na demanda judicial.

2. Breve HiStórico da Limitação do direito à Prova em Favor do direito à Privacidade

O direito de provar o alegado decorre do direito à ampla defesa que

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“significa permitir às partes a dedução adequada de ale-gações que sustentem sua pretensão (autor) ou defesa (réu) no processo judicial (civil, penal, eleitoral, trabalhista) e no processo administrativo, com a consequente possibilidade de fazer a prova dessas alegações e interpor os recursos ca-bíveis contra as decisões judiciais e administrativas. [...] De nada adiantaria garantir-se a eles com u’a mão o direito de alegar e subtrair-lhes, com a outra, o direito de fazer prova das alegações. O direito à prova, pois, está imbricado com a ampla defesa e dela é indissociável.”.2

Entretanto, em que pese à relevância do direito de prova para a demonstração da pretensão das partes e para assegurar a própria finalidade do processo, certo é que a busca da verdade material não é absoluta em um Estado Democrático de Direito.3

Sendo assim, com a evolução dos Estados modernos, e com o reconhecimento do princípio da dignidade da pessoa humana e do

2 Conforme ensina nelson nery Jr., o princípio da ampla defesa (Princípios do processo na Constituição Federal: processo civil, penal e administrativo, p. 244). Cumpre dizer que o direito a ampla defesa constante no art. 5º, LV da CF/1988, é reconhecido constitucionalmente desde a formação do Estado Brasileiro, tendo sido previsto na CF/1824 (art. 179, nºs 11 e 17), sendo perpetuado pelas Constituições Federais posteriores de 1891 (art. 72, §16), 1934 (art. 113, nºs 24 a 27), 1946 (art. 141, §§ 25 a 27), 1967 (art. 150, §§ 15 e 16) e pela EC nº 1/1969 (art. 153, §§ 15 e 16).

3 O Supremo Tribunal Federal já fixou o entendimento que inexiste direito fundamental absoluto: “Não há, no sistema constitucional brasileiro, direitos ou garantias que se revistam de caráter absoluto, mesmo porque razões de relevante interesse público ou exigências derivadas do princípio de convivência das liberdades legitimam, ainda que excepcionalmente, a adoção, por parte dos órgãos estatais, de medidas restritivas das prerrogativas individuais ou coletivas, desde que respeitados os termos estabelecidos pela própria Constituição. O estatuto constitucional das liberdades públicas, ao delinear o regime jurídico a que estas estão sujeitas - e considerado o substrato ético que as informa - permite que sobre elas incidam limitações de ordem jurídica, destinadas, de um lado, a proteger a integridade do interesse social e, de outro, a assegurar a coexistência harmoniosa das liberdades, pois nenhum direito ou garantia pode ser exercido em detrimento da ordem pública ou com desrespeito aos direitos e garantias de terceiros” (MS 23452 / RJ – Relator(a): Min. celso de Mello, Órgão Julgador: Tribunal Pleno, Julgamento: 16/09/1999, publicação: DJ 12-05-2000)

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devido processo legal,4 o direito à prova foi sendo paulatinamente balizado axiologicamente, de sorte a submeter-se a outros direitos fundamentais igualmente assegurados constitucionalmente, como os direitos à intimidade, privacidade e integridade física e moral do ser humano.

No âmbito constitucional, a utilização das provas ilícitas nos processos judiciais e administrativos foi expressamente vedada ape-nas na Constituição Federal de 1988 (art. 5º, LVI). Entretanto, mes-mo antes do referido dispositivo constitucional, o direito de prova já se encontrava limitado por outros direitos fundamentais tendentes à proteção da intimidade e vida privada do indivíduo.

Dessa forma, pode-se afirmar que o direito de prova já era limita-do pelas garantias da inviolabilidade da casa5 e das correspondências,6 que são reconhecidos constitucionalmente desde os primórdios da formação do Estado pátrio.

Ademais, infraconstitucionalmente, a legislação já apregoava a necessidade da manutenção da ética na obtenção das provas. O Có-digo de Processo Civil de 1973, em seu art. 332, já restringia a busca da verdade real do processo, limitando o direito de prova a “todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos”. 7

4 “[...] pelo seu caráter instrumental, o devido processo se apresenta como um abrangente conjunto de regras de conduta aceitas por uma sociedade civilizada, pelo qual, para a distribuição equânime de seus vários benefícios, essas regras são, de fato, precisa e consistentemente, observadas e aplicadas.” Paulo Fernando silveira, Devido Processo Legal: due process of Law, p. 305.

5 A inviolabilidade da residência do indivíduo foi prevista constitucionalmente nas Constituições de 1824 (art. 179, VII), 1891 (art. 72, §11), 1934 (art. 102, §23), 1937 (art. 122, nº 6), 1946 (art. 141, §15), 1967 (art. 150, §10), na Emenda Constitucional nº 1/69 (art. 153, §10) e na Constituição Federal de 1988 (art. 5º, XI).

6 Por sua vez, o direito à inviolabilidade das correspondências foi incluído nas Constituições de 1824 (art. 179, XXVII), 1891 (art. 72, §18), 1934 (art. 102, §24), 1937 (art. 122, nº 6), 1946 (art. 141, §6º), 1967 (150, §9º), na Emenda Constitucional nº 1/69 (art. 153, §9º) e na Constituição Federal de 1988 (art. 5º, XII).

7 Assim dispõe o art. 332: “Todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos, ainda que não especificados neste Código, são hábeis para provar a verdade dos fatos, em que se funda a ação ou a defesa.”

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Assim, a inadmissibilidade da prova obtida ilicitamente no pro-cesso civil8 e na investigação criminal9 já era aventada no entendi-mento jurisprudencial pátrio, e, em especial, pela Corte Suprema antes da CF/88.

Em derradeiro, pode-se afirmar que a Constituição de 1988 marcou uma terceira etapa na fixação dos critérios de admissão da prova em juízo, resultado do processo de democratização que nor-teou a Assembleia Constituinte.10

3. conceito da Prova iLícita

Conforme ressalta ricardo rabonese, não há unanimidade quan-to à terminologia da prova ilícita.11 Entretanto, no Brasil a maioria da doutrina especializada adota as lições de nuvolone,12 definindo que “a prova será ilegal sempre que houver violação do ordenamen-to como um todo (leis e princípios gerais), quer sejam de nature-za material ou meramente processual. Ao contrário, será ilícita a prova quando sua proibição for de natureza material, vale dizer, quando for obtida ilicitamente.”13 Por sua vez, será ilegítima a prova que contrariar disposição ou princípio de Direito processual.

Sendo assim, o ponto central da doutrina de nuvolone é a natu-reza da norma violada pela produção da prova. Se a norma violada for de Direito material, especialmente de Direito constitucional, a afronta se dará diretamente contra os direitos fundamentais. Se, ao contrário, a norma violada for de natureza processual, serão afronta-das as finalidades do processo.14

Complementando este raciocínio, pode-se citar luiz F. T. avolio, que acertadamente observa que

8 Consulte: RE 85439,11.11.77, Xavier, RTJ, 84/609; RE 100094, 28.06.84, Mayer, RTJ, 110/798.

9 Veja: HC 63834, 18.12.86, Borja, RTJ 122/47.10 PaTrícia azevedo da silveira. “A prova ilícita no cível”. In: c. a. alvaro de oliveira

(Coord.). Prova Cível. pp. 209-210.11 Provas obtidas por meios ilícitos, pp. 13-18.12 nuvolone, Pietro. “Le prove vietate nel processo penale Nei paesi di diritto

latino”. Riv. Dir. Proc. XXI (1966), Padova: Cedam, pp. 442-475, passim.13 nelson nery Jr., Princípios do Processo na Constituição Federal: processo

civil, penal e administrativo, pp. 265-266, passim.14 ricardo raboneze, Provas obtidas por meios ilícitos, p. 15.

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“a par da distinção no plano da natureza da norma violada, outra se faz quanto ao momento da transgressão: enquanto na prova ilegítima a ilegalidade ocorre no momento de sua produção no processo, a prova ilícita pressupões uma viola-ção no momento da colheita da prova, anterior ou concomi-tante ao processo, mas sempre externamente a este.”15

Nesse sentido, pode-se observar que esta doutrina encontra es-pecial adequação no ordenamento pátrio, uma vez que as provas ilícitas mencionadas pelo inciso LVI do art. 5º da CF/88, são concei-tuadas legalmente como “as obtidas em violação a normas consti-tucionais ou legais”.16

Não obstante, a referida conceituação não é suficiente para a adequada compreensão e tratamento da matéria, fazendo-se neces-sária a análise dogmática da norma que encerra a vedação das provas ilícitas.

4. a vedação da Prova iLícita como PrincíPio

Após analisar diversas teorias17 sobre a diferenciação entre re-gra e princípio, nelson nery Jr. filia-se à doutrina de JoseF esser, pon-derando:

15 Provas Ilícitas: interceptações telefônicas, ambientais e gravações clandestinas, p. 43.

16 Art. 157 do Código de Processo Penal.17 Neste passo, compete transcrever as lições de canoTilho, citadas por nery:

“(1) as regras e princípios são duas espécies de normas; (2) a distinção entre regras e princípios é uma distinção entre espécies de normas. Saber como distinguir, no âmbito do superconceito norma, entre regras e princípios, é uma tarefa particularmente complexa. Vários são os critérios sugeridos. A) Grau de abstração: os princípios são normas com um grau de abstração relativamente elevado; de modo diverso, as regras possuem uma abstração relativamente reduzida. B) Grau de determinabilidade na aplicação do caso concreto: os princípios, por serem vagos e indeterminados, carecem de mediações concretizadoras (do legislador, do juiz), enquanto as regras são suscetíveis de aplicação direta. C) Caráter de fundamentalidade no sistema das fontes de direito: os princípios são normas de natureza estruturante ou com um papel fundamental no ordenamento jurídico devido à sua posição hierárquica no sistema das fontes (ex. Princípios constitucionais) ou à sua importância estruturante dentro do sistema jurídico (ex. Princípio do Estado de Direito). D) Proximidade da ideia de direito: os princípios são ‘standards’ juridicamente vinculantes radicados na exigências de ‘justiça’ (Dworkin) ou na ‘ideia de direito’ (Larenz); as regras podem ser normas vinculativas

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“No sistema continental europeu – que pode ser aplicado ao sistema brasileiro, fundado, como o europeu continental, nos preceitos do civil law – o que distingue princípio de nor-ma não é a abstração (Abstraktheit) ou o caráter geral (gene-relle Charakter), mas a possibilidade de se determinarem os casos de aplicação, que é o que caracteriza o “preceito jurídi-co” (Rechtssatz). O princípio não é em si mesmo um coman-do, uma instrução (Weisung), mas sim fundamento, causa, critério e justificação da instrução, vale dizer, o princípio já se encontra incluído na instrução, determinando a posição desta dentro do conjunto do ordenamento. Em virtude dis-so e do caso concreto, pode converter-se em uma instrução positiva concreta, desde que exista um sistema suscetível de dedução ou de um método que estabeleça a construção da norma singular, partindo da casuística e em razão da qual se fixe o valor “normativo” ou “construtivo” do princípio.” Logo, seria possível construir a norma do caso concreto a partir dos princípios.18

Por sua vez, após citar as três grandes categorias de classificação das teorias sobre a distinção entre princípios e regras,19 José virgilio

com um conteúdo meramente funcional. F) Natureza normogenética: os princípios são fundamento de regras, isto é, são normas que estão na base ou constituem a ratio de regras jurídicas, desempenhando, por isso, uma função normogenética fundamentante.” “Como se pode ver, a distinção entre princípios e regras é particulamente complexa. Esta complexidade deriva, muitas vezes, de facto de não se esclarecerem duas questões fundamentais: (1) saber qual a função dos princípios, ou seja, se têm uma função retórica-argumentativa ou são normas de conduta; (2) saber se entre princípios e regras existe um denominador comum, pertencendo à mesma ‘família’ e havendo apenas uma diferença de grau (quanto à generalidade, conteúdo informativo, hierarquia das fontes, explicitação do conteúdo, conteúdo valorativo), ou se, pelo contrário, os princípios e as regras são suscetíveis de uma diferenciação qualitativa.” (José JoaquiM goMes canoTilho, Direito Constitucional, pp. 1160-1161, apud nelson nery Jr, obra citada, pp. 29-30.)

18 Obra citada, pp. 30-34 passim.19 Segundo o autor, as três grandes categorias das teorias sobre a distinção

entre princípios e regras são: a) Teoria da distinção forte, que concebe serem as regras e princípios como normas de estruturas lógicas diversas, b) Teorias que propõem uma diferenciação débil, apregoando ser somente uma diferença de grau (de generalidade) que distingue regras e princípios e c) Teorias que rejeitam a possibilidade de distinção, uma vez que todas as qualidades lógico-dêonticas encontram-se igualmente presentes nos

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da silva filia-se às lições de roberT alexy,20 o qual pode ser enquadra-do como um dos representantes da teoria da distinção forte entre princípios e regras.

roberT alexy utiliza-se de um critério estrutural, que não leva em consideração nem fundamentalidade nem generalidade e tampouco abstração ou outros critérios materiais (presentes nas classificações tradicionais). Assim, diferencia os princípios das regras por meio dos efeitos produzidos na Ordem Jurídica. Nesse sentido, a maior contribuição do constitucionalista alemão é a concepção dos princí-pios como mandamentos de otimização, que ora se transcreve:

“O ponto decisivo na distinção entre regras e princípios é que princípios são normas que ordenam que algo seja rea-lizado na maior medida possível dentro das possibilidades jurídicas e fáticas existentes. Princípios são, por conseguin-te, mandamentos de otimização, que são caracterizados por poderem ser satisfeitos em graus variados [...] Já as regras são normas que são sempre satisfeitas ou não satisfeitas. Se uma regra vale, então, deve se fazer exatamente aquilo que ela exige; nem mais, nem menos. Regras contêm, portanto, determinações no âmbito daquilo que é fática e juridica-mente possível. Isso significa que a distinção entre regras e princípios é uma distinção qualitativa, e não uma distinção de grau. Toda norma é ou uma regra ou um princípio.”21

Portanto, se válidas, as regras devem ser realizadas sempre por completo:22 por sua vez, na aplicação dos princípios no caso con-

princípios e regras. (A constitucionalização do Direito: os direitos fundamentais nas relações entre particulares, pp. 30-32)

20 Teoria dos Direitos Fundamentais, virgílio aFonso da silva (trad.), pp. 85-179.

21 Obra citada, pp. 90-91.22 Por esta razão, conforme bem assevera virgílio aFonso da silva, “Nos casos de

conflitos entre regras, vale o conhecido raciocínio “tudo ou nada”. Se duas regras entram em conflito, isso pode ser resolvido por meio da definição de uma espécie de “cláusula de exceção” em uma das duas regras. Mas isso nem sempre é possível [...]. Nesses casos, não há outra alternativa que não a verificação da invalidade de uma delas. [...] no caso de conflito entre regras, questão que se refere exclusivamente a um problema de validade e que, e isso é o mais importante, não é graduável [...] Assim, duas regras que prevêem conseqüências jurídicas diversas para o mesmo suporte fático não podem pertencer ao mesmo sistema jurídico. Uma delas é, pelo menos para esse sistema, inválida.” (obra citada, p. 33)

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creto, o grau de sua realização sempre poderá variar, pois inexiste precedência prima facie de um princípio sobre outro.23

Não obstante, independentemente da doutrina a que se filie o intérprete do Direito, certo é que a inadmissibilidade das provas ilícitas contida no inciso LVI, do art. 5º da Constituição Federal, é um princípio.24

5. a vedação da Prova iLícita como norma Garantia

Dada a redação do inciso LVI do art. 5º da CF que prescreve “são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilí-citos”, é possível inferir que a referida norma não trata de mera de-claração de direitos, mas de própria garantia, uma vez que o termo “inadmissíveis” indica o conteúdo deôntico de proibição da utiliza-ção processual das provas ilícitas.

Nesse ponto, cumpre transcrever as lições de luiz F. T. avolio para quem

“os preceitos constitucionais com relevância processual pos-suem natureza de normas de garantia. Estas, sob o enfoque do devido processo legal, são modernamente entendidas não apenas como garantia exclusiva das partes, mas sobretudo da jurisdição.”25

Sendo assim, diante da invalidade material e processual da pro-va ilícita, cumpre perquirir se esta seria inexistente ou absolutamen-te nula.26

23 roberT alexy, obra citada, pp. 93-94.24 Tal conclusão não se aplica a outras normas de direitos fundamentais, que

tradicionalmente são consideradas como princípios pela doutrina pátria. Se adotada a teoria de roberT alexy, os princípios da legalidade (art. 5º, II, da CF/88), da anterioridade da lei penal (art. 5º, XXXIX da CF/88) e do devido processo legal (art. 5º, LVI, da CF/88), por exemplo, deveriam ser classificados como regras.

25 Provas Ilícitas: interceptações telefônicas, ambientais e gravações clandestinas, p. 86.

26 ada Pelegrini grinover, anTonio scarance Fernandes e anTônio Magalhães goMes Filho denominam de “atipicidade constitucional” todo ato que viole princípio ou norma constitucional, estabelecendo que: “Sendo a norma constitucional-processual norma de garantia, estabelecida no interesse público [...], o ato processual inconstitucional, quando não juridicamente inexistente, será sempre absolutamente nulo, devendo a

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Parte da doutrina invoca que a prova ilícita seria inexistente,27 dado que a violação das normas de Direito material ocorreria na pró-pria formação, ou seja, no nascedouro da prova ilícita. Logo, como ato juridicamente inexistente, a prova ilicitamente obtida jamais po-deria produzir efeitos no mundo jurídico.

Entretanto, em que pese à força dos argumentos da primeira tese, prefere-se trilhar a posição de outra parcela da doutrina que entende ser a prova ilícita eivada de nulidade absoluta.28 Assim, ainda que eivada de nulidade, em casos excepcionais de confron-to entre direitos fundamentais contrapostos, por meio do juízo de ponderação,29 seria possível afastar a referida nulidade a fim de per-mitir que a prova ilícita produzisse efeitos na relação processual.

Desta forma, considerados os direitos fundamentais protegidos por esta norma, pode-se afirmar que o inciso LVI figura como uma garantia processual30 (diante da ineficácia processual que decorre da nulidade absoluta da prova obtida por meios ilícitos), que vem se somar às garantias materiais da reparação por danos moral e mate-rial decorrentes da violação dos direitos à intimidade e privacidade previstos no próprio corpo do inciso X do art. 5º da CF/88.

Sendo assim, conclui-se afirmar que nosso sistema jurídico está norteado pelo princípio da vedação à prova ilícita, que é aplicável a todos os momentos processuais e pré-processuais de busca da pro-va, inclusive no exercício da atividade de investigação policial e per-petrada por particulares.

Entretanto, em que pese ser norma-garantia de direito funda-mental (que pudesse levar os mais afoitos a compreendê-la como

nulidade ser decretada de ofício, independentemente de provocação da parte interessada.” (As nulidades no Processo Penal, p. 25)

27 Nesse sentido, luiz F. T. avolio (obra citada, pp. 86-89) e anTonio scarance Fernandes (Processo Penal Constitucional, p. 84).

28 Em nosso sistema jurídico, a nulidade dos atos jurídicos desdobra-se em duas modalidades: ato nulo (ou absolutamente nulo) e ato anulável (ou relativamente nulo). Desta forma, de acordo com a definição legal do art. 145 do Código Civil, a prova ilícita pode ser definida como ato absolutamente nulo.

29 A ponderação de interesses, dada a relevância do tema na concreção das provas ilícitas, será abordada em item específico posterior.

30 No mesmo sentido: ada Pelegrini grinover, anTonio scarance Fernandes e anTônio Magalhães goMes Filho, As Nulidades no Processo Penal, p. 24.

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uma norma absoluta), certo é que não possui essa característica. Como as demais normas de direitos fundamentais, possui força rela-tiva, de sorte que, em sua concreção, a inadmissibilidade das provas ilícitas poderá ceder em prol de outro direito fundamental.

Assim, emprestando-se a nomenclatura proposta por canoTilho, pode-se enquadrar a vedação da prova ilícita como um princípio-garantia.31

Principiada a análise dogmática do inciso LVI do art. 5º da Cons-tituição Federal de 1988, necessária se faz a utilização dos métodos sistemático e teleológico a fim de atribuir o real sentido e alcance deste princípio-garantia.

6. oS direitoS FundamentaiS ProteGidoS PeLa vedação à Prova iLicitamente oBtida

A criação das leis, inclusive a Constitucional, necessita de uma decisão política prévia, adotada por um poder ou autoridade po-liticamente existente. Assim, ao determinar a inadmissibilidade da prova obtida por meio ilícito, o constituinte realizou um juízo de ponderação dos vários interesses e valores da sociedade, a fim de escolher o valor mais relevante.

Deste modo, para conhecer a materialidade da norma contida no inciso LVI do art. 5º da CF/88, cumpre definir quais os direitos fundamentais foram considerados relevantes para ensejar a criação dessa norma.

Pode-se afirmar que toda a prova ilícita – daí a razão para a sua inadmissibilidade – viola alguma das garantias decorrentes dos direitos à intimidade, privacidade ou integridade física do indiví-duo. Como garantias diretamente decorrentes dos dois primeiros direitos, pode-se elencar a inviolabilidade da casa, do sigilo de cor-respondência, das comunicações telegráficas, de dados e das comu-nicações telefônicas (constantes nos incisos XI e XII do art. 5º da CF/88) e como garantia consequente da integridade física do indiví-duo, pode-se apontar a proibição da tortura (disposta no inciso III do art. 5º da CF/88).

31 José JoaquiM goMes canoTilho. Direito Constitucional, p. 1167, apud nelson nery Jr. p. 31.

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Nesse sentido, louvável é a evolução da interpretação do Su-premo Tribunal Federal em relação à proteção da inviolabilidade da casa constante do inciso XI, do art. 5º da CF/88, que, fortalecendo o processo de democratização e cidadania, ampliou o sentido32 de ‘casa’ para abranger qualquer local fechado ao público (englobando casas propriamente ditas, quartos de hotéis e motéis enquanto ocu-pados, escritórios profissionais e setores administrativos de pessoas jurídicas),33 garantindo, assim, a efetividade dos direitos à intimida-de e privacidade.

A mesma tendência jurisprudencial também ampliou o sentido do termo ‘correspondência’ constante no art. 5º, XII da CF/88, para garantir sigilo não apenas das cartas e encomendas físicas previstas originariamente pelo constituinte, mas também da correspondên-cia virtual, o e-mail. O mesmo ocorre com a expressão ‘dados’, que atualmente contempla as informações arquivadas em meio físico ou virtual. 34

32 Filiando-se e reunindo as teorias de canoTilho e Müller, nelson nery Jr. compreende a norma como “o sentido atribuído a qualquer disposição. Disposição é parte de um texto a interpretar. Norma é a parte de um texto interpretado.”. Logo, a norma que vincula objeto da interpretação, não se identifica com o texto do dispositivo legal, mas “antes, se apresenta como resultado de um trabalho de construção designado de concretização”. (Princípios do processo na Constituição Federal: processo civil, penal e administrativo, pp. 22 a 25 passim.)

33 RHC 90.376, Rel. Min. celso de Mello, julgamento em 3-4-07, DJ de 18-5-07; HC 82.788, Rel. Min. celso de Mello, julgamento em 12-4-05, DJ de 2-6-06.

34 Nesse sentido, analisando a Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia, ana luísa riquiTo bem aponta a necessidade da atuação criadora dos Tribunais para suplantar a literalidade das disposições legais e efetivamente garantir a privacidade: “2.15. O direito à reserva da vida privada é justamente um daqueles que mais tem exigido do pouvoir créateur dos juízes de Estrasburgo. Isto porque o artigo 8º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem se revela obsoleto por apenas contemplar a proteção da “correspondência”, numa altura em que o intercâmbio pessoal de informação lança mão sobretudo das técnicas digitais de comunicação. A realidade das novas tecnologias deverá, pois, ser acolhida, na nova Carta. Nesta sede, também merece reflexão a diferente interpretação jurisprudencial que a este direito tem sido dada por aquele Tribunal e pelo tribunal de justiça das comunidades, a assinalarem-lhe um âmbito de proteção diverso. Com efeito, Estrasburgo tem considerado que a tutela se estende ao estabelecimento profissional ou sede de negócios, ao passo que o Tribunal de Justiça, utilizando um conceito não reificado de

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Por outro lado, ainda na análise do inciso XII, cumpre notar que o constituinte, como contrapeso à inviolabilidade do sigilo da cor-respondência, das comunicações telegráficas, da proteção dos dados e das comunicações telefônicas, fixou a possibilidade da quebra da inviolabilidade dessas últimas, para fins de investigação criminal e instrução processual penal, a ser regulada posteriormente por lei,35 que foi editada em 24.07.1996, a Lei nº 9.296/96.36

Por fim, da interpretação sistemática das normas constitucio-nais decorre ainda a ilicitude da prova obtida sob tortura, na medida em que a Constituição veda a tortura, reconhecendo o direito à inte-gridade física e a dignidade da pessoa humana.37

privacidade, quer dizer, mais ancorada na ideia de que esta é sobretudo um direito de personalidade, a tem circunscrito à esfera “pessoal” de actuação do indivíduo. Do direito à privacidade, foi-se autonomizando o direito à proteção de dados pessoais que a Carta deverá incluir em artigo separado porque, na verdade, ele passou a ser uma guarda avançada de todas as liberdades. Uma fonte de inspiração deverá evidentemente ser a Convenção do Conselho da Europa para a Proteção das pessoas relativamente ao Tratamento automatizado de dados de Caráter Pessoal que, aliás, prevê a possibilidade de estender os princípios que a norteiam ao tratamento manual de ficheiros.” (O conteúdo da Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia, in ana luísa riquiTo et al, Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia, pp. 65-66).

35 Cumpre notar que o Supremo Tribunal foi exemplar ao não permitir a interceptação telefônica antes da edição da referida lei, pois o inciso XII do art. 5º da CF/88 tinha eficácia contida, ou seja, poderia ser restringido por lei infraconstitucional posterior. Logo, prevaleceu íntegra a inviolabilidade das comunicações telefônicas até o advento da L. 9.296/96.

36 Nos termos dessa lei, a legalidade da interceptação telefônica foi ampliada para as comunicações em sistema de informática e telemática, fixando-se três critérios para a autorização da interceptação: indícios razoáveis da autoria ou da participação em infração penal; a indispensabilidade da produção da prova; e a punição do crime com pena de reclusão (art. 2º, inc. I a III).

37 “Discrepa, a mais não poder, de garantias constitucionais implícitas e explícitas – preservação da dignidade humana, da intimidade, da intangibilidade do corpo humano, do império da lei e da inexecução específica e direta de obrigação de fazer – provimento judicial que, em ação civil de investigação de paternidade, implique determinação no sentido de o réu ser conduzido ao laboratório, ‘debaixo de vara’, para coleta do material indispensável à feitura do exame DNA. A recusa resolve-se no plano jurídico-instrumental, consideradas a dogmática, a doutrina e a jurisprudência, no que voltadas ao deslinde das questões ligadas à prova dos fatos.” (HC 71.373, Rel. p/ o ac. Min. Marco aurélio,

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Logo, tem-se que os direitos à intimidade,38 privacidade e in-

tegridade física do indivíduo foram considerados especialmente

relevantes pelo constituinte para limitar o direito de prova, qualifi-

cando-a como ilícita e inadmissível quando produzida mediante a

ofensa desses direitos. A finalidade da norma constante no inciso

LVI do art. 5º da CF/88 é, portanto, fornecer uma garantia proces-

sual à ofensa desses direitos fundamentais, limitando o conheci-

mento do Estado Juiz ao inadmitir as provas ilicitamente produzi-

das.

julgamento em 10-11-1994, Plenário, DJ de 22-11-1996.) No mesmo sentido: HC 76.060, Rel. Min. sePúlveda PerTence, julgamento em 31-3-1998, 1ª Turma, DJ de 15-5-1998. Ainda sobre a tortura se manifestou o STF: “[...] A TORTURA COMO PRÁTICA INACEITÁVEL DE OFENSA À DIGNIDADE DA PESSOA. A simples referência normativa à tortura, constante da descrição típica consubstanciada no art. 233 do Estatuto da Criança e do Adolescente, exterioriza um universo conceitual impregnado de noções com que o senso comum e o sentimento de decência das pessoas identificam as condutas aviltantes que traduzem, na concreção de sua prática, o gesto ominoso de ofensa à dignidade da pessoa humana. A tortura constitui a negação arbitrária dos direitos humanos, pois reflete - enquanto prática ilegítima, imoral e abusiva - um inaceitável ensaio de atuação estatal tendente a asfixiar e, até mesmo, a suprimir a dignidade, a autonomia e a liberdade com que o indivíduo foi dotado, de maneira indisponível, pelo ordenamento positivo. [...] TORTURA CONTRA MENOR PRATICADA POR POLICIAL MILITAR - COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA COMUM DO ESTADO-MEMBRO. - O policial militar que, a pretexto de exercer atividade de repressão criminal em nome do Estado, inflige, mediante desempenho funcional abusivo, danos físicos a menor eventualmente sujeito ao seu poder de coerção, valendo-se desse meio executivo para intimidá-lo e coagi-lo à confissão de determinado delito, pratica, inequivocamente, o crime de tortura, tal como tipificado pelo art. 233 do Estatuto da Criança e do Adolescente, expondo-se, em função desse comportamento arbitrário, a todas as conseqüências jurídicas que de correm da Lei nº 8.072/90 (art. 2º), editada com fundamento no art. 5º, XLIII, da Constituição. [...]” (HC 70389/SP, Rel. p/ o ac. Min. celso De mello, julgamento em 23-06-1994, Plenário, DJ de 10-08-2001.)

38 Sobre o direito de intimidade, o segredo das comunicações telefônicas, de dados, de domicílio e corporal (tortura) no ordenamento jurídico espanhol, consulte cleMenTe garcia garcia e andres garcia goMes, Colision entre el Derecho a la intimidad y El Derecho a la Informacion y Opinion. Su proteccion juridica, pp. 131-173.

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7. aS reStriçõeS normativaS conStitucionaiS e inFraconStitucionaiS da Prova iLícita

Uma vez definidos os direitos fundamentais diretamente pro-tegidos pela inadmissibilidade da prova ilícita, cumpre analisar as restrições normativas constitucionais e infraconstitucionais que res-tringem o conceito da ilicitude da prova e o âmbito de aplicação do inciso LVI da CF/88.

O constituinte, ao definir as quatro hipóteses taxativas de res-trição à inviolabilidade da casa, indiretamente também restringiu as hipóteses em que serão produzidas provas ilícitas. Sendo assim, mesmo sem o consentimento do morador, serão lícitas todas as pro-vas colhidas em seu domicílio nos casos de flagrante delito, desastre ou prestação de socorro, ou ainda, quando se originarem de busca domiciliar realizada durante o dia, por determinação judicial.

A segunda restrição às provas ilícitas pode ser extraída do in-ciso XII do art. 5º da CF/88, que prevê a possibilidade de restrição infraconstitucional da inviolabilidade do sigilo das comunicações telefônicas. Em consequência, prevê a possibilidade da ampliação da produção das provas lícitas (diminuindo, indiretamente, o âm-bito de incidência do inciso LVI do mesmo dispositivo constitu-cional).

Por conseguinte, ao regular a parte final do inciso XII do art. 5º da CF/88, a Lei nº 9.296/96 restringiu infraconstitucionalmente o âmbito da ilicitude da prova (constante do inciso LVI do mesmo artigo), na medida em que ampliou as possibilidades para a obten-ção de prova lícita nas interceptações telefônicas, comunicações em sistema de informática e telemática.39

Uma terceira restrição pode ser aventada, a Lei nº 9.034/95, que disciplina os mecanismos para a quebra do sigilo daqueles que

39 Nesse particular, cumpre dizer que a ADIn 1.488-9/DF (que pretendia a declaração de inconstitucionalidade dos dispositivos da Lei nº 9.296/1996, que equiparavam as atividades de informática e de telemática ao sigilo de comunicação), foi julgada improcedente pelo Supremo Tribunal Federal. O Min. néri da silveira, relator do processo, utilizando-se dos métodos teleológico e histórico evolutivo, afastou a inconstitucionalidade da lei, pois houve apenas a adaptação da restrição constitucional no tempo e não atingiu o núcleo essencial do direito fundamental objeto de regulamentação.

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integram organizações criminosas. Logo, restringindo o âmbito da proteção do direito à privacidade, ampliou-se o direito de prova, restringindo infraconstitucionalmente as hipóteses de verificação da prova ilícita.

Por fim, pode-se citar a Lei nº 6.538/78 (que dispõe sobre os serviços postais), como a quarta hipótese de restrição infraconstitu-cional do âmbito da ilicitude da prova. Em seu art. 10, referida lei prevê as hipóteses em que não se aplica o sigilo postal, declaran-do lícita a abertura de correspondência que apresente indícios de conter objeto sujeito a pagamento de tributos, ou que apresente indícios de conter objetos de valor não declarado, objetos ou subs-tâncias de expedição, uso ou entrega proibidos.

Definidas algumas hipóteses de restrição normativa da prova ilícita, cumpre, ainda, analisar a extensão dos efeitos da inadmissibi-lidade dessa prova, abordando a prova ilícita por derivação.

8. a extenSão doS eFeitoS da Prova iLícita: a Prova iLícita Por derivação

O estudo da prova ilícita por derivação se torna relevante no enfoque do presente estudo na medida em que sua definição e de-limitação podem colaborar para a proteção dos direitos fundamen-tais.

Embora não seja pacífica, é crescente a admissão pela doutrina40 e jurisprudência brasileira,41 da teoria fruit of the poisonous tree, de origem americana42 que considera maculada a prova derivada direta ou indiretamente da prova ilícita. Logo, será igualmente inadmitida

40 São adeptos a essa teoria: nelson nery Jr. (obra citada, pp. 269-275), luiz F. T. avolio (obra citada, pp. 68-73).

41 Veja a decisão plenária do HC nº 69912-0-RS, Rel. Min. sePúlveda PerTence, publicada em 26.11.93, que por maioria, determinou a ineficácia da prova ilícita por derivação. A doutrina dos frutos da árvore contaminada foi objeto, ainda, do HC nº 73351/SP, Rel. Min. ilMar galvão, julgado em 10.05.1996 e publicado no Informativo STF nº 30, de 15.05.1996 e do HC nº 72588/PB, Rel. Min. Maurício correia, julgado em 12.06.1996 e publicado no Informativo STF nº 35, de 19.06.1996.

42 Paulo Fernando silveira relata que nos EUA, a regra de exclusão (inadmissibilidade) das provas ilícitas (exclusionary rule) foi admitida na área federal em 1914, no julgamento do caso “Weeks v. United States”,

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diante da repercussão causal da ilicitude da prova originária, não podendo aquela influir no julgamento do juízo.

Entretanto, conforme nota nelson nery Jr., a referida teoria vem sofrendo mitigações pela própria jurisprudência americana43 por meio da incidência dos princípios da atenuação,44 da fonte indepen-dente45 e da exceção de boa-fé,46 de sorte que as provas originadas

donde surgiu a doutrina dos frutos da árvore envenenada (Devido Processo Legal, pp. 369-370).

43 No mesmo sentido, afirma Paulo Fernando silveira: “Com o correr do tempo, as cortes mais conservadoras que sucederam à de Warren (1959-1969) restringiram a amplitude da doutrina dos frutos da árvore envenenada, de modo que a condenação passou a subsistir, apesar da prova obtida por meio ilegal, dependendo de sua relevância ou da capacidade confirmatória das demais.” (obra citada, p. 372).

44 Segundo o autor, a teoria da atenuação “apela para um princípio de imputação, suscetível de reduzir as margens de um efeito à distância, sobreponível às indicações de uma estrita conditio sine qua non. A doutrina da atenuação atinge um segundo e decisivo princípio, recondutível à doutrina de independent source , que legitima a valoração d provas secundárias sempre que elas poderiam ter sido obtidas por via autônoma e legal, à margem da exclusionary rule que impende sobre a prova primária. Esta primeira exceção foi aplicada no caso Wong Sun vs. U.S., em 1963, no qual a pessoa havia sido presa ilicitamente; porém, depois de ser posta em liberdade, se apresentou voluntariamente no departamento de narcóticos, onde foi interrogada, realizando afirmações auto-incriminadoras que foram empregadas para processá-la.” (obra citada, p. 270 e 271).

45 “No caso Nix vs. Williams, aplicou-se a inevitable discovery, em 1984, dando-se validez a uma declaração do detido, obtida ilicitamente,na qual revelava onde se encontravam os restos da vítima assassinada, ao entender-se que os restos seriam inevitavelmente descobertos pelos numerosos voluntários que estavam rastreando a zona onde os encontraram.” (nery, p. 271).

46 “Outra limitação pode ser observada à prova derivada de prova ilícita, na doutrina conhecida como good faith exception, por meio da qual se legitima e se confere validez às provas obtidas ilicitamente quando policiais atuaram de boa-fé, crendo que sua atuação se ajustava à lei. Esta exceção foi aplicada ao caso Massachussets vs. Sheppard em 1984, em que a autorização judicial para a apreensão de determinados documentos era nula, ao não se especificar quais objetos poderiam ser apreendidos. Conferiu-se validez à busca em domicílio por considerar-se que os policiais atuaram de boa-fé crendo estarem legitimados por um mandado judicial.” (nery, p. 272).

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em fatos ilegalmente obtidos não se tornam absolutamente inaces-síveis.

Tais mitigações, segundo o autor, não devem ser importadas ao nosso sistema jurídico, sob pena de ofensa ao princípio da inocência e dignidade da pessoa humana.47

Sendo assim, os parágrafos 1º e 2º do art. 157 do CPP, com a redação dada pela Lei nº 11.690, de 9.6.2008, devem ser interpreta-dos restritivamente, sob pena neutralizar e inviabilizar o sistema de garantias fundamentais. Afinal, por meio da interpretação extensiva, ou seja, por meio do juízo hipotético, sempre seria possível imaginar um meio independente, apto a gerar a aquisição do elemento de prova.

Deste modo, conforme nota nelson nery Jr.

“[...] a independent source deve ser aplicada não de ma-neira apriorística, mas tendo em vista as particularidades e ponderações de cada caso concreto, sendo admissíveis as provas derivadas das ilícitas quando restar demonstrada a inexistência de nexo de causalidade entre ambas. Se a inde-pendência não puder ser demonstrada cabalmente, ou seja, se restar qualquer dúvida sobre isso, a prova deve ser consi-derada ilícita, pois prevalece o preceito in dubio pro reo na valoração da prova.”48

47 “A mitigação da inevitable discovery não pode ser aplicada em nosso ordenamento, posto que violadora de direitos fundamentais. [...] A descoberta inevitável é inconstitucional porque viola a CF 5ª LVI. Isto porque a construção da inevitable discovery doctrine baseia-se em juízos hipotéticos, ou meras suposições e conjunturas, dificilmente conciliáveis com as exigências provenientes do princípio da presunção de inocência (CF 5º LVII). [...] A good faith exception também não possui resguardo em nosso ordenamento, porque representa hipótese de juízo vago e hipotético, dificilmente conciliável com a presunção de inocência, prática que permitiria ação abusiva, arbitrária e invasiva por parte do Estado, nos direitos fundamentais do cidadão, sem dizer que poderia ser usada como subterfúgio para travestir abuso de autoridade ocorrido durante cumprimento de diligências. A dignidade humana não pode ser refém de exercício de futurologia, motivo pelo qual é inconstitucional a utilização da inevitable discovery e da good faith exception.” (obra citada, p. 273)

48 nery, pp. 271 a 273, passim.

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Portanto, deverá ser privilegiada a opção do constituinte pela inadmissão da prova ilícita, de sorte a interpretar restritivamente o art. 157 do CPP, sob pena de se esvaziar a efetividade da garantia constitucional.

9. o PrincíPio da ProPorcionaLidade e a Ponderação de intereSSeS em Sede de Prova iLícita

Por fim, delineado o conceito, a estrutura e os limites da norma contida no LVI do art. 5º da CF/88, há que se tratar sobre o princí-pio da proporcionalidade (regra hermenêutica)49 em sede de prova ilícita.

Conforme restou assentado no item 4, o LVI do art. 5º da CF/88 encerra um princípio, ou seja, um mandamento de otimização. Logo, em tese, será possível a utilização da prova ilegalmente obtida se, por meio dela, restar assegurado direito fundamental considerado mais relevante na análise do caso concreto sob julgamento.50

“O objetivo da aplicação da regra da proporcionaliade, como o próprio nome indica, é fazer com que nenhuma restrição a direitos fundamentais tome dimensões desproporcionais. É, para usar uma expressão consagrada, uma restrição às restrições.”51

49 virgílio aFonso da silva, utilizando-se da distinção entre regras e princípios de roberT alexy, classifica a proporcionalidade como regra, pois é aplicada de forma constante, sem variação de medida. O proporcional e o razoável. Revista dos Tribunais 798, p. 23-50.

50 Conforme afirma nelson nery Jr., “a proposição da doutrina quanto à [tese] intermediária é a que mais se coaduna com o que se denomina modernamente de princípio da proporcionalidade (Verhältnismässigkeitsmaxime), devendo prevalecer, destarte sobre as radicais. [...] A ilicitude do meio de obtenção da prova seria afastada quando, por exemplo, houver justificativa para a ofensa a outro direito por aquele que colhe a prova ilícita. É o caso do acusado que, para provar sua inocência, grava clandestinamente conversa telefônica entre outras duas pessoas. Age em legítima defesa, que é causa da exclusão da antijuridicidade, de modo que essa prova, antes de ser ilícita, é, ao contrário, lícita, ainda que fira o direito constitucional de inviolabilidade da intimidade, previsto na CF 5º X, que, como já se disse não é absoluto.” (obra citada, p. 260 e 261).

51 virgílio aFonso da silva, “O proporcional e o razoável”. Revista dos Tribunais 798, pp. 23-50.

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A proporcionalidade como método hermenêutico de solução de conflitos entre princípios nos casos concretos, é subdividida em 3 sub-regras: adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito.

Assim, a proporcionalidade deve ser aplicada por meio de até três passos (pois para a aplicação da proporcionalidade, nem sem-pre seria necessário realizar todos os passos), a serem realizados na seguinte ordem:

• Primeiramente,háqueseefetuarotestedaadequação,ve-rificando-se se a norma (no caso, o princípio da vedação à prova ilícita) é adequada para garantir ou fomentar a prote-ção da intimidade e privacidade – o que sempre se verifica.

• Posteriormente, então, passa-se a análise da necessidade,arguindo se o objetivo da inadmissibilidade da prova ilícita (proteção da intimidade, privacidade) não poderia ser alcan-çado, com a mesma intensidade, por meio de outra norma que limitasse, em menor grau, o direito fundamental atingi-do. Nesse sentido, no que tange à vedação da prova ilícita, haver-se-ia de verificar se não existe nos autos outra prova que comprove a pretensão da parte ou ainda, a possibilida-de da parte provar o fato por meio de outra prova lícita, ou seja, que não ofendesse o direito à intimidade e privacida-de.

Superados estes dois primeiros passos, seria necessária a análi-se da proporcionalidade em sentido estrito, que “consiste em um so-pesamento entre a intensidade da restrição do direito fundamen-tal atingido e a importância da realização do direito fundamental que com ele colide”.52 No caso concreto, haveria que se sopesar a importância do princípio da inadmissibilidade da prova obtida por meio ilícito e a ofensa que a não utilização da prova acarretaria a outro direito fundamental relevante.

Assim, no caso concreto, em uma colisão entre direitos funda-mentais que tenham estrutura de princípios, deve ser aplicada a lei de colisão de roberT alexy, que reza:

52 virgílio aFonso da silva, O proporcional e o razoável. Revista dos Tribunais 798, pp. 23-50.

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“quanto maior for o grau de não realização ou de restrição de um princípio, maior terá que ser a importância da reali-zação do princípio que com ele colide”.

Cumpre ressaltar, portanto, que a aplicação da regra da propor-cionalidade na avaliação da prova ilícita estaria, em regra, vinculada à avaliação do binômio necessidade e proporcionalidade em sentido estrito.

Visando elucidar o tema, transcreve-se:

“Se o direito à inviolabilidade da intimidade (CF 5º X) e das comunicações telefônicas (CF 5º XII) é garantido pela Constituição Federal, não menos verdade é que existem ou-tros direitos igualmente tutelados pelo texto constitucional [...]. Como não pode haver incompatibilidade entre precei-tos constitucionais, é preciso que os direitos constitucionais aparentemente em conflito ou antagônicos sejam harmo-nizados e compatibilizados entre si pelo intérprete e apli-cador da norma. Assim, se a vida estiver sendo ameaçada por telefonemas, o direito à intimidade e à inviolabilida-de da comunicação telefônica daquele que vem praticando a ameaça à vida de alguém deve ser sacrificado em favor do direito maior à vida. A justificativa decorre do sistema constitucional, no qual se encontra inserido o princípio da proporcionalidade, como corolário do estado de direito e do princípio do devido processo legal em sentido substancial (substantive due process clause)”.53

Por fim, importa dizer que, diante da ponderação dos interesses e direitos fundamentais em jogo, a doutrina e jurisprudência abraça largamente a utilização da prova ilícita em benefício do réu na seara penal e disciplinar administrativo.

Entretanto, a questão varia enormemente nos processos entre particulares, como são os cíveis e empresariais, podendo se apontar uma tendência pela inadmissibilidade da utilização da prova ilícita em favor da proteção da intimidade e privacidade.

Neste particular, cumpre noticiar que o Projeto de Lei do Se-nado nº 166, de 2010,54 que visa instituir o novo Código de Pro-

53 nelson nery Jr., obra citada, p. 278.54 Sobre a tramitação atual do projeto de lei, consultar: http://professormedina.

wordpress.com/2010/08/03/apresentado-calendario-de-tramitacao-do-projeto-

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cesso Civil, prestigia a moderna corrente hermenêutica de interpre-tação constitucional, prevendo expressamente a possibilidade de o juízo utilizar-se do princípio da proporcionalidade na avaliação da inadmissibilidade da prova ilícita, conforme se transcreve:

“Art. 257. As partes têm direito de empregar todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos, ainda que não especificados neste Código, para provar fatos em que se fun-da a ação ou a defesa e influir eficazmente na livre convic-ção do juiz.

Parágrafo único. A inadmissibilidade das provas obtidas por meio ilícito será apreciada pelo juiz à luz da ponderação dos princípios e dos direitos fundamentais envolvidos”.55

Nesse sentido, em pese às opiniões contrárias de abalizada dou-trina que aponta a inconstitucionalidade deste dispositivo,56 cumpre louvar a expressa previsão de utilização desta regra hermenêutica na avaliação das provas trazidas a juízo.

Afinal, a previsão da utilização da regra hermenêutica da pon-deração de direitos fundamentais aparentemente em choque num dado caso concreto (ínsita no princípio da proporcionalidade) não pode ser considerada inconstitucional prima facie.

As regras hermenêuticas, como métodos para alcançar o sen-tido e alcance mais razoável da lei, não estão sujeitas à análise de constitucionalidade por serem formas mentais para a consecução de um fim. Este sim, o resultado da interpretação que se dê ao caso con-creto (admitindo-se ou inadmitindo-se a prova ilícita no processo) é que poderá, ou não, ser inconstitucional. Tudo dependerá dos di-reitos fundamentais que estiverem em conflito no caso em concreto, da utilização restrita e cautelosa deste expediente, o que, diga-se de passagem, já vem ocorrendo em nossos Tribunais.

do-novo-codigo-de-processo-civil-no-senado-federal/55 O texto integral pode ser colhido em: http://www.senado.gov.br/senado/

novocpc/pdf/Anteprojeto.pdf56 gregório assagra de alMeida e luiz Manoel goMes Jr., Um Novo Código de

Processo Civil para o Brasil: análise teórica e prática da proposta apresentada ao Senado Federal, pp. 166-167.

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10. conSideraçõeS FinaiS

Diante do presente estudo, pode-se verificar a importância da matéria no que tange à proteção dos direitos fundamentais, quer pela inadmissibilidade, em regra, das provas ilícitas, quer na admis-sibilidade excepcional de sua utilização.

A vedação da utilização processual das provas ilicitamente obtidas (inserta no art. 5º LVI da CF/88), se constitui em um direito fundamental e princípio-garantia processual aos direitos, também fundamentais, da intimidade, privacidade e integridade física do ci-dadão em face do direito geral de prova.

Não obstante, identicamente aos demais direitos fundamentais, não possui caráter absoluto, podendo ceder, por meio do princípio da proporcionalidade, aos demais direitos fundamentais que com ele aparentemente colidirem no caso concreto.

11. reFerênciaS BiBLioGráFicaS

ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos fundamentais. Trad. de Virgílio Afonso da Silva, São Paulo: Malheiros, 2008.

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Enviado em: 11/2010Aprovado em: 11/2010

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