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149 RESUMO JUÍZES PROFISSIONAIS? PADRÕES DE CARREIRA DOS INTEGRANTES DAS SUPREMAS CORTES DE BRASIL (1829-2008) E ESTADOS UNIDOS (1789-2008) Rev. Sociol. Polít., Curitiba, v. 21, n. 41, p. 149-169, fev. 2012 Recebido em 15 de novembro de 2010. Aprovado em 30 de novembro de 2010. Luciano Da Ros O artigo compara os perfis de carreira dos magistrados integrantes das supremas cortes do Brasil e dos Estados Unidos ao longo de toda história política dos dois países. Para tanto, o artigo analisa dados relativos à experiência profissional e jurídica e à circulação em cargos junto aos demais poderes do Estado, inclusive de natureza eletiva, previamente à investidura no posto de magistrado da Corte Suprema. Particularmente, esse exame expõe as diferenças e semelhanças quanto aos padrões de profissionalização dos integrantes dos órgãos de cúpula do poder Judiciário nos dois países, permitindo a discussão sobre os fundamentos políticos desse fenômeno no campo jurídico. Em especial, o artigo sugere que períodos de incremento no recrutamento de indivíduos vinculados a profissões propriamente jurídicas ocorrem como respostas ao fortalecimento de tais tribunais. Ante um novo período de elevada proeminência destas instituições, indivíduos reconhecidamente qualificados na área passam crescentemente a ser alternativas de legitimação de tais órgãos, seja em contextos de competição, seja em contextos de hegemonia política de determinados grupos. PALAVRAS-CHAVE: carreiras jurídicas; seleção judicial; profissionalização; profissões jurídicas. I. INTRODUÇÃO 1 Um dos meios mais empregados para compreender a realidade política brasileira tem sido compará-la com aquela própria dos Estados Unidos (EUA). Trata-se de perspectiva há muito presente em trabalhos de diversos cientistas sociais, como atestam as obras de autores tão distantes cronologicamente como Oliveira Vianna, Caio Prado Júnior e José Murilo de Carvalho, entre outros. A realidade estadunidense sempre serviu implicitamente como um modelo comparativo natural para analisar os diferentes destinos políticos das américas portuguesa e anglo-saxônica e, nos casos mais pessimistas, como uma espécie de espelho invertido para o qual se olha buscando identificar os fatores que conduziram à pros- peridade de uma e não de outra 2 . Na maioria dos casos, entretanto, não se chega a levar adiante uma comparação sistemática entre as duas realidades, mas apenas identificar de forma pontual diferenças entre ambas como forma de melhor desvendar o que ocorre especificamente no Brasil. O propósito deste trabalho busca afastar-se dessa tendência, colocando lado a lado duas importantes e longevas instituições de Brasil e Estados Unidos, examinando suas diferenças e semelhanças como forma de melhor compreender ambas e de discutir as questões teóricas decor- rentes. Como consequência de pesquisa previa- 1 Pesquisa financiada com bolsas da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal do Nível Superior (Capes) e da Comissão Fulbright, a quem o autor agradece pelo vital aporte financeiro. Versão preliminar desse trabalho foi apresentada no Grupo de Trabalho Elites e Instituições Políticas, no 32º Encontro Anual da Associação Nacional de Pós-Graduação em Ciências Sociais (Anpocs), realizado em outubro de 2008 em Caxambu. Agradeço aos comentários de Renato Monseff Perissinotto e Ernesto Seidl, bem como aos editores da Revista de Sociologia e Política e aos dois pareceristas anônimos pela leitura atenta e sugestões pertinentes que seguramente contribuíram para a melhoria deste artigo. Agradeço ainda ao apoio de André Marenco dos Santos pelo estímulo à continuidade deste trabalho que começamos juntos. 2 Nesse particular, destaca-se o trabalho de Morse (1988).

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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA V. 21, Nº 41: 149-169 FEV. 2012

RESUMO

JUÍZES PROFISSIONAIS?PADRÕES DE CARREIRA DOS INTEGRANTES DAS

SUPREMAS CORTES DE BRASIL (1829-2008) E ESTADOSUNIDOS (1789-2008)

Rev. Sociol. Polít., Curitiba, v. 21, n. 41, p. 149-169, fev. 2012Recebido em 15 de novembro de 2010.Aprovado em 30 de novembro de 2010.

Luciano Da Ros

O artigo compara os perfis de carreira dos magistrados integrantes das supremas cortes do Brasil e dosEstados Unidos ao longo de toda história política dos dois países. Para tanto, o artigo analisa dadosrelativos à experiência profissional e jurídica e à circulação em cargos junto aos demais poderes doEstado, inclusive de natureza eletiva, previamente à investidura no posto de magistrado da Corte Suprema.Particularmente, esse exame expõe as diferenças e semelhanças quanto aos padrões de profissionalizaçãodos integrantes dos órgãos de cúpula do poder Judiciário nos dois países, permitindo a discussão sobre osfundamentos políticos desse fenômeno no campo jurídico. Em especial, o artigo sugere que períodos deincremento no recrutamento de indivíduos vinculados a profissões propriamente jurídicas ocorrem comorespostas ao fortalecimento de tais tribunais. Ante um novo período de elevada proeminência destasinstituições, indivíduos reconhecidamente qualificados na área passam crescentemente a ser alternativasde legitimação de tais órgãos, seja em contextos de competição, seja em contextos de hegemonia políticade determinados grupos.

PALAVRAS-CHAVE: carreiras jurídicas; seleção judicial; profissionalização; profissões jurídicas.

I. INTRODUÇÃO1

Um dos meios mais empregados paracompreender a realidade política brasileira tem sidocompará-la com aquela própria dos Estados Unidos(EUA). Trata-se de perspectiva há muito presenteem trabalhos de diversos cientistas sociais, comoatestam as obras de autores tão distantescronologicamente como Oliveira Vianna, CaioPrado Júnior e José Murilo de Carvalho, entre

outros. A realidade estadunidense sempre serviuimplicitamente como um modelo comparativonatural para analisar os diferentes destinospolíticos das américas portuguesa e anglo-saxônicae, nos casos mais pessimistas, como uma espéciede espelho invertido para o qual se olha buscandoidentificar os fatores que conduziram à pros-peridade de uma e não de outra2.

Na maioria dos casos, entretanto, não se chegaa levar adiante uma comparação sistemática entreas duas realidades, mas apenas identificar de formapontual diferenças entre ambas como forma demelhor desvendar o que ocorre especificamenteno Brasil. O propósito deste trabalho buscaafastar-se dessa tendência, colocando lado a ladoduas importantes e longevas instituições de Brasile Estados Unidos, examinando suas diferenças esemelhanças como forma de melhor compreenderambas e de discutir as questões teóricas decor-rentes. Como consequência de pesquisa previa-

1 Pesquisa financiada com bolsas da Coordenação deAperfeiçoamento de Pessoal do Nível Superior (Capes) eda Comissão Fulbright, a quem o autor agradece pelo vitalaporte financeiro. Versão preliminar desse trabalho foiapresentada no Grupo de Trabalho Elites e InstituiçõesPolíticas, no 32º Encontro Anual da Associação Nacionalde Pós-Graduação em Ciências Sociais (Anpocs), realizadoem outubro de 2008 em Caxambu. Agradeço aoscomentários de Renato Monseff Perissinotto e ErnestoSeidl, bem como aos editores da Revista de Sociologia ePolítica e aos dois pareceristas anônimos pela leitura atentae sugestões pertinentes que seguramente contribuíram paraa melhoria deste artigo. Agradeço ainda ao apoio de AndréMarenco dos Santos pelo estímulo à continuidade destetrabalho que começamos juntos. 2 Nesse particular, destaca-se o trabalho de Morse (1988).

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mente realizada sobre os perfis de carreira dosmagistrados integrantes dos órgãos de cúpula dopoder Judiciário no Brasil (MARENCO DOSSANTOS & DA ROS, 2008), este trabalho busca,portanto, comparar aqueles achados com o quadroobservado no órgão similar dos EUA, a UnitedStates Supreme Court (USSC).

Semelhante comparação é viável principalmenteporque ao longo de maior parte da história os doispaíses adotaram regras institucionais parecidaspara a seleção dos magistrados de suas CortesSupremas, priorizando a indicação pelo poderExecutivo com ulterior aprovação do Senado. Asexceções são os períodos de 1829-1891, 1930-1934 e 1937-1945 no Brasil, em que regrasdiferentes foram adotadas, não havendomodificações quanto a esse quesito ao longo detoda a história estadunidense. Como se verá aseguir, mesmo essas variações nas regras deseleção permitem interessantes análises, possibi-litando desvendar os reais efeitos de tais regrassobre a seleção dos integrantes desses órgãos.

Para esse exame foram analisados os dadosbiográficos de todos os ministros do SupremoTribunal de Justiça (STJi) (1829-1891) e doSupremo Tribunal Federal (STF) (1891-2008) noBrasil e de todos os justices da Suprema Cortenos Estados Unidos da América (1789-2008).Abrangendo um período que chega a quase 2000anos no primeiro caso e que ultrapassa essehorizonte no segundo, o artigo busca apreendermudanças e continuidades quanto à formaçãoacadêmica, experiência profissional e jurídica e,especialmente, quanto à circulação dos futurosmagistrados em cargos junto aos demais poderesdo Estado (Executivo e Legislativo), tanto denatureza eletiva como funcional, além daquelesreferentes à administração da atividade coercitivado Estado (vinculadas à gestão de atividadesmilitares e policiais), previamente à investidura naCorte Suprema. Em particular, busca-se examinaras variações relativas à profissionalização dosintegrantes dos órgãos de cúpula do poderJudiciário dos dois países, elemento que contribuipara a diferenciação e institucionalização de taisórgãos (BONELLI, 2002; MCGUIRE, 2004;HELMKE, 2005).

O exame dos perfis dos integrantes dessasinstituições em amplo recorte temporal, todavia,apresenta tanto pontos positivos como negativos.Por um lado, ele desvenda os tipos de carreiras

priorizadas até o ingresso nos tribunais em dife-rentes momentos históricos de cada país, identifi-cando os fatores que conduzem ao incremento daprofissionalização de seus integrantes e, conse-qüentemente, introduz a discussão teórica sobreos fundamentos políticos de tal fenômeno. Poroutro lado, o período histórico demasiado longoacaba subestimando as particularidades de cadaconjuntura e dos respectivos recursos que estrutu-ram os padrões de recrutamento analisados, limi-tando-os ao seu aspecto institucional3.

Em vista dos argumentos apresentados acima,este estudo justifica-se basicamente por quatrorazões. Primeiramente, como já salientado, trata-se de uma oportunidade de discutir teoricamenteos fundamentos da profissionalização dosintegrantes de cortes supremas em diferentescontextos históricos, o que repercute tambémsobre a discussão relativa à institucionalização detais órgãos. Em segundo lugar, o trabalho permitecompreender de maneira mais adequada o própriocaso brasileiro, muitas vezes compreendido à luzde experiências estrangeiras sem que se procedaa uma comparação sistemática entre o STF e seusequivalentes estrangeiros. Em terceiro lugar, aexistência, ainda que em momentos históricosdelimitados, de regras distintas de nomeação demagistrados para tais tribunais permite investigaros reais efeitos dessas mesmas regras. Um dosargumentos levantado por institutional designers,acadêmicos da área jurídica e magistradosbrasileiros de instâncias inferiores afirma queregras privilegiando o recrutamento endógeno àcarreira judicial seriam mais desejáveis por evitara nomeação de indivíduos vinculados aagremiações políticas específicas, o que conduziriaa uma alegada partidarização de tais órgãos4.Analisar o efeito de regras distintas de nomeaçãosobre a profissionalização dos membros das cortessupremas, especialmente do caso brasileiro, torna-se possível, portanto, acessando tais dadosbiográficos. Por fim, uma comparação longitudinal

3 Agradeço a um dos pareceristas anônimos da Revista deSociologia e Política por essa observação pertinente.4 Curiosamente, nos Estados Unidos, o conflito pelaprofissionalização – entendida particularmente como oincremento de indivíduos treinados em law schools – deu-se principalmente na base do poder Judiciário, ondefreqüentemente indivíduos sem formação jurídica exerciamfunções judiciais (PROVINE, 1986).

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de vasto horizonte temporal permite identificar osreflexos das mudanças políticas mais gerais porque passaram os dois países ao longo de suashistórias sobre os integrantes das cortes supremasde Brasil e Estados Unidos, bem como os tipos derelações que se estabeleceram entre os demaispoderes do Estado e tais tribunais.

II. QUADRO DE ANÁLISE

Antes de passar à análise propriamente dita dosdados empíricos coletados para esse trabalho, faz-se importante delimitar o quadro teórico em quese insere essa discussão. Em particular, estetrabalho pretende dialogar com trabalhos quediscutem a profissionalização de elites jurídica e,em especial, as condições políticas que propiciamseu incremento.

A profissionalização no mundo do Direito temsido compreendida como uma forma específicade exercer-se uma ocupação e de estabelecer rela-ções no mundo do trabalho, constituindo-se umaalternativa às formas tradicionais de influênciapolítica. Valorizando o conhecimento abstrato e aexpertise, a formação em instituições específicasde ensino e a crença no mérito, a idéia de autonomiafuncional e a prestação de serviços com indepen-dência frente aos interesses do Estado e domercado, o profissionalismo prega a prática deuma política distinta, que não se exerceria pelomeio tradicionalmente reconhecido para tal – a açãopolítico-partidária – mas sim recorrendo ao conhe-cimento técnico e a valores de apelo universal quetranscenderiam a política convencional (HALLI-DAY, 1999, p. 1057-1059; BONELLI, 2002, p.16-92). Com isso, o propósito seria a constituiçãode um espaço próprio de atuação distinto da políticacotidiana, por meio do qual os profissionais doDireito influiriam politicamente sem tornarem-secontendores específicos, resguardando sua auto-noia por não se identificarem com nenhum dosprincipais agentes políticos, em particular mem-bros dos poderes representativos do Estado e departidos políticos.

De uma forma mais ampla, trata-se de entenderos operadores do Direito como uma policy commu-nity – a comunidade jurídica – integrante umsubsistema político específico – as instituiçõesencarregadas da interpretação das regras jurídicas,o chamado sistema de justiça5. O propósito deste

trabalho é compreender as condições que levaramindivíduos que priorizaram a circulação por essaarena (e não por outras, como a política-partidária,por exemplo) a serem alçados ao posto de juiz naCorte Suprema de cada país. Isso posto, as idéiasde profissionalização e expertise são empregadasaqui apenas para expressar a maior vinculação dosindivíduos a esse universo próprio da comunidadejurídica que, por sua vez, difere-se de outrasesfereas, como a político-partidária e a diretamentecoercitiva6.

Magistrados integrantes de cortes supremas,todavia, situam-se em um contexto politicamentesensível, que não lhes facilita a construção de umespaço próprio de atuação muito distante dasfronteiras delimitadas por políticos e legisladores.Tanto no Brasil quanto nos EUA, e a exemplo doque ocorre na maior parte do mundo, o processode nomeação dos integrantes desses tribunais éprofundamente permeado por elementos político-partidários, em especial se comparado ao queocorre nas instâncias inferiores da maioria dasprofissões jurídicas, majoritariamente burocratiza-das7. Como será visto, as regras de seleção

5 De acordo com Kingdon, “policy communities are

composed of specialists in a given policy area” “ascomunidades políticas são compostas de especialistas emuma dada área política” (KINGDON, 2003, p. 117; astraduções são de responsabilidade do revisor). Para umadiscussão mais aprofundada sobre policy communities,veja-se Kingdon (idem, p. 117-131), Baumgartner e Jones(2009, p. 4-9), entre outros.6 Embora a discussão sobre a ideia propriamente dita deprofissão seja obviamente importante, como este artigo aemprega de forma mais vaga, não parece caber aqui umapormenorização maior sobre o tema. Nesse sentido,embora seja verdade que os universos profissionais sejamdefinidos especialmente em relação ao Estado no Brasil(veja-se, em particular, o conceito de cidadania reguladade Santos (1979)) e que o mercado ocupe lugar mais centralnos Estados Unidos, em ambos os casos o que osadvogados do profissionalismo propoem é uma separaçãomaior em relação tanto ao mercado quanto ao estado(BONELLI, 2002). Agradeço a um dos pareceristasanônimos da Revista de Sociologia e Política por essasugestão pertinente.7 Convém observar, todavia, que o cargo de magistradonos Estados Unidos, tanto no âmbito estadual como fede-ral, é explicitamente pautado pelos vínculos expressoscom a política partidária, especialmente porque inexistemagistratura burocratizada, como na maior parte dos paíseseuropeus e latino-americanos (veja-se, por exemplo,Guarnieri e Pederzoli (1996); Lyles (1997) e, mais generi-camente, o volume editado por Malleson e Russell (2006)).

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existentes nos Brasil e nos EUA conferem razoáveldose de discricionariedade aos atores políticos nointerior dos poderes Executivo e Legislativo epouco espaço às profissões jurídicas, ao menosdo ponto de vista formal. Nesse contexto, apossibilidade de nomeação de indivíduos afiliadosa agremiações políticas específicas, independente-mente de seu mérito, expertise e crença nos valoresque compartilham os demais juristas – isto é,independentemente de seu reconhecimento pelacomunidade jurídica – certamente não é diminuta.Nesse sentido, cumpre observar que a noção deelite judicial é empregada livremente neste trabalhoapenas para ilustrar os indivíduos que ascenderamao topo da hierarquia institucional do poderJudiciário.

Mapeando as motivações judiciais dosintegrantes da Corte Suprema de Justicia daArgentina, Gretchen Helmke identificou justamenteque juristas profissionais, entendidos como aqueles“primarily concerned with his or her image in thelegal community”8 (HELMKE, 2005, p. 34), sãoapenas um tipo de magistrado dos órgãos decúpula do poder Judiciário, ao lado de policyseekers, que atuariam a partir de ideologias político-partidárias claras, e de carreiristas, que orientamsua atuação no tribunal para ascenderem em suascarreiras uma vez deixem a instituição. No caso,a promoção do profissionalismo entre osintegrantes de cortes supremas encontrar-se-iavinculada tanto à reputação que estes desfrutamjunto à comunidade jurídica quanto à legitimidadeinstitucional do órgão que integram. Esse perfilconectar-se-ia, portanto, à idéia de uma “corteinstitucionalista”, preocupada com a manutençãode sua autonomia e integridade institucional anteas possíveis ingerências dos poderes eletivos(HELMKE & SANDERS, 2006, p. 870-871) etambém a uma atuação próxima ao que se consideraa sua “missão institucional”, promovendo valorese idéias sensíveis à classe jurídica, como oconstitucionalismo ou os direitos humanos(GILLMAN, 1993; KECK, 2007). Essesindivíduos, em resumo, seriam mais diretamente“accountable to the legal profession”9, comosintetiza Provine (1986, p. XIII). Entretanto,

encontrar em tais órgãos indivíduos cujas carreirasvinculem-nos mais ao universo jurídico e menosa outras arenas não é um dado imediato da realidadee depende grandemente da vontade de atorespolíticos para acontecer.

A nomeação de indivíduos com perfil jurídico-profissional para órgãos de cúpula do poderJudiciário não depende, portanto, apenas davontade das profissões jurídicas. Para que estassejam contempladas com a indicação de juristasde carreira às Cortes Supremas nos diferentespaíses – isto é, para que a profissionalização sejaatingida em tais casos – contextos específicos sefazem necessários. Discutir as condições paratanto a partir do exame das realidades brasileira enorte-americana é a questão que ocupa esseestudo. Tal discussão integra o debate mais amplosobre os fundamentos da emergência doprofissionalismo no interior do Estado, colocando-o não apenas como um recurso ideológico ouretórico a ser empregado por elites profissionaiscontra políticos como forma de definir um espaçode atuação à margem destes, mas também comoum curso de ação que pode ser estimulado pelopróprio conjunto de forças políticas em contextosespecíficos.

Isso posto, o objetivo deste trabalho não édemonstrar que há predomínio da expertise sobreoutros recursos nas carreiras dos integrantes dascortes supremas de Brasil e Estados Unidos. Aocontrário, como se verá em seguida, a maioriados magistrados de tais órgãos apresentaramcarreiras nada ortodoxas do ponto de vistaestritamente jurídico. O que se busca compreen-der, portanto, é, do ponto de vista da séria histórica,quais fatores potencialmente levaram ao incrementono recrutamento de indivíduos com carreirasprioritariamente jurídicas. Nesse sentido, osachados empíricos sugerem que tais períodosocorreram especialmente como respostas aofortalecimento institucional de tais tribunais. Anteum novo período de elevada proeminência dessasinstituições, indivíduos reconhecidamentequalificados junto à comunidade jurídica passaramcrescentemente a ser identificados comoalternativas de legitimação de tais órgãos, seja emcontextos de competição, seja em contextos dehegemonia política de determinados grupos.

III. DESCRIÇÃO DO OBJETO

O número de integrantes das cortes supremasdos dois países e suas formas de nomeação não

8 “Primariamente preocupados com sua imagem nacomunidade legal” (N.R.).9 “responderiam à profissão jurídica” (N.R.).

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se mantiveram inalteradas ao longo de tantasdécadas. A prática de ampliar e reduzir o númerode magistrados no STJi, STF e na USSC semprefoi freqüente. Ao passo que o tribunal brasileiropossuiu cinco números diferentes de integrantesao longo de seus quase 180 anos de existência, ainstituição estadunidense experimentou seisconformações diferentes em relação à quantidadede membros em seus mais de 200 anos de história.Quanto à estabilidade das regras de nomeação,

todavia, a simetria entre os dois países não semantém. Se, por um lado, a USSC apresentou umaúnica regra de investidura no cargo desde suafundação em 1789, por outro lado, os diferentesórgãos de cúpula do poder Judiciário brasileiro jáobservaram três distintas formas de se nomearseus respectivos integrantes. A discriminaçãodesses dados encontra-se na Tabela 1, abaixo, emerece pormenorização.

TABELA 1 – NÚMERO DE INTEGRANTES E REGRAS PARA NOMEAÇÃO NAS CORTES SUPREMAS DOBRASIL E DOS ESTADOS UNIDOS

FONTES: Epstein e Segal (2005) e Mello Filho (2007).

Primeiramente, observa-se que o órgão decúpula da Justiça no Brasil sempre possuiu maisministros do que a Suprema Corte dos EUApossuiu justices. O número máximo de integrantesda USSC não passou de 10 pelo curto período detrês anos, mantendo-se em nove membros pelamaior parte do tempo. Diferentemente, no Brasil,esse esteve por 106 anos entre os 15 e os 17integrantes. Talvez por isso observe-se um númerototal de indivíduos nomeados a cada tribunal muitomaior no Brasil do que nos EUA, como se verá

adiante. Em segundo lugar, quanto à intensidadedas alterações do número total de integrantes, noBrasil estas geralmente foram mais bruscas. Poroutro lado, embora o número de integrantes daUSSC tenha permanecido estável ao longo dosúltimos 140 anos, várias propostas para a criaçãode novos cargos foram feitas, inclusivecapitaneadas pelo próprio Presidente do país. Ocaso clássico é o court-packing plan proposto porFranklin D. Roosevelt em 1937, com o objetivode forçar uma modificação nas posições na corte,

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que relutava em aceitar as medidas adotadas pelogoverno em combate à Grande Depressão iniciadaem 1929. Ainda que a proposta para incorporarnovos membros ao tribunal não tenha sidoimplementada, o objetivo do governo foi atingido.Frente àquela ameaça, a corte modificou seuposicionamento e permitiu que o poder Executivoadotasse seus planos (CALDEIRA, 1987).

No que se refere às regras de nomeação dosintegrantes dos tribunais dos dois países, ambasforam semelhantes pela maior parte do tempo. NosEUA, desde que o tribunal foi estabelecido,assentou-se a prática de indicação dos justices peloPresidente da República com posteriorconfirmação por dois terços do Senado, conformeconsta do Article II, Section 2 da Constituiçãoestadunidense. Método semelhante atualmente éempregado no Brasil, onde passou a existir a partirde 1891, quando a primeira Constituiçãorepublicana, inspirada diretamente na fórmulanorte-americana, exigiu “notável saber e reputação”dos ministros como requisitos adicionais para anomeação, que posteriormente, na Constituição de1934, foram alterados para “notável saber jurídicoe reputação ilibada”, permanecendo assim desdeentão. Outra diferença menor fica por conta dasmaiorias requeridas para a confirmação peloSenado. Ao passo que nos EUA se requer aconcordância de pelo menos dois terços dosintegrantes da Câmara Alta para a confirmação donomeado, no Brasil se requer maioria absoluta.Apesar dessas dessemelhanças, é lícito afirmar queos procedimentos são muito semelhantes nos doiscasos. Essa é a regra que tem se mantido desde aformação do STF, com apenas duas curtasinterrupções durante os períodos de 1930-1934 e1937-1945, quando a necessidade de confirmaçãopelo Senado foi suspensa, concedendopraticamente total discricionariedade ao Presidenteda República nesse processo.

Antes do período republicano, a regra válidapara o STJi durante todo o tempo de sua existênciafoi a indicação pelo Imperador entre os juízesletrados retirados das Relações – como eramchamados os atuais Tribunais de Justiça – combase em critério de antiguidade, como indicava oart. 163 da Constituição do Império. Além disso,para serem nomeados, os ministros deveriamreceber o título do Conselho. Conforme seobserva, a regra de escolha dos integrantes doSTJi era bastante mais restritiva que aquela queveio a ser contemplada quando da instalação do

STF em 1891. No caso, a regra obrigava aoImperador que o aludido recrutamento realizasse-se no interior da função judicial, excluindoinclusive outras carreiras ligadas ao exercício doDireito, como a advocacia. A regra aindadeterminava que essa escolha fosse realizada porcritério de antigüidade, o que tornava ainda maiscircunscritas as opções. Em contraponto a essescritérios restritivos encontrava-se a necessidadedo aludido título do Conselho para que fosse oescolhido efetivamente nomeado para o cargo deMinistro do STJi. Ainda sobre a regra deinvestidura, interessa observar que a escolhanecessariamente recaía sobre os juízes letrados,isto é, portadores de diploma em Direito. Não setrata de uma observação óbvia. O fato dosministros deverem ser aqueles consideradosletrados restringia sobremaneira o leque de opções.Isso porque os juízes letrados eram aqueles queiniciaram suas carreiras ocupando o cargo de Juizde Fora ou, posteriormente, de Juiz de Direito.Tratava-se de cargo ocupado por aqueles assimdesignados pelo Imperador e, na maior parte dotempo, sob controle direto do Ministério dosNegócios da Justiça. Contrariamente, os juízes depaz eram eleitos pelos grupos locais, fazendo-sefreqüentemente presentes indivíduos não letrados,isto é, não portadores de diploma jurídico(VELLASCO, 2004). O fato dos ministrosdeverem ser recrutados dentre os letrados,portanto, encontrava-se em consonância com aestratégia de construção de uma elite nacional,desgarrada dos particularismos locais.

As três regras de investidura existentes no casobrasileiro parecem indicar três diferentes graus decircunscrição à vontade do chefe de Estadoencarregado de promover a nomeação. Emprimeiro lugar, como o mais restritivo àqueladiscricionariedade, tem-se o procedimento adotadodurante o Império, que estabelecia critérios comoseniority e recrutamento endógeno para quenomeação de integrantes à Suprema Corte brasileirade então. Em um espaço intermediário verifica-sea regra atual, copiada da realidade norte-americana, que tempera a indicação presidencialcom critérios pouco objetivos de profissionalismo– o notável saber jurídico – e necessidade deconfirmação senatorial. Por fim, como a regramais discricionária encontra-se o procedimentoadotado durante boa parte da Era Vargas, em quea existência de uma vaga e a vontade presidencialeram os únicos requisitos para proceder-se à

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nomeação, eis que desnecessária a confirmaçãopelo Senado. É importante levar em consideraçãoessas variações quanto às regras de nomeação por-que posteriormente examinar-se-ão seus efeitossobre os graus de profissionalização observadosentre os integrantes da Corte Suprema brasileira.

IV. EXAMINANDO AS DUAS REALIDADES

Como forma de examinar os perfis de todosintegrantes das cortes supremas do Brasil e dosEUA ao longo de suas histórias, foram consultadostrabalhos acadêmicos e publicações institucionaisque disponibilizassem tais informações. No casobrasileiro, as principais fontes foram os trabalhosde Lago (2001), Mello Filho (2007), Marenco dosSantos e Da Ros (2008), além do Anuário daJustiça, elaborado pela Fundação Armando ÁlvaresPenteado (2007) e do próprio sítio mantido juntoà rede mundial de computadores pelo STF10. Emrelação aos justices da USSC, boa parte do materialjá se encontrava catalogada em banco de dadoselaborado por Lee Epstein e outros pesquisadores,encontrando-se disponível na internet (EPSTEINet alii, 2008). Esse foi complementado a partir dotrabalho de Cushman (1995), sendo constituídasnovas variáveis voltadas a responder questões deinteresse deste artigo.

Semelhantemente, alguns critérios foram segui-dos como forma de catalogar os dados consulta-dos. Primeiramente, preferiu-se não incluir indiví-duos rejeitados pelo Senado ou aqueles cujas indi-cações foram retiradas pela própria Presidência.Isso porque as primeiras (rejeições) são relativa-mente raras (cinco no Brasil e 12 nos EUA) e paraas últimas (retirada da indicação) não há informa-ções disponíveis para todo o horizonte temporalexaminado, podendo constituir-se uma fonte de

bias. Assim, a análise dos indivíduos indicados econfirmados pelo Senado parece constituir-se emum indicador adequado dos perfis das elitesjudiciais integralmente consentidas pelas forçaspolíticas do momento em cada país.

Quanto à USSC, convém observar que não serealizou diferenciação entre indicados a chief justice(Presidente do Tribunal) ou associate justice (Inte-grante da Corte). Um justice ocupou a corte emduas ocasiões distintas, Charles Evans Hughes,que chegou à corte em 1910 e saiu em 1916 pararetornar ao tribunal em 1930 e deixá-lo em definiti-vo em 1941. Nesse caso, ele foi incluído duas ve-zes no banco de dados, uma vez que consubstanciaduas nomeações distintas. No caso norte-ameri-cano são, portanto, 110 indivíduos os que ocupa-ram cargo na corte, mas que resultam em 111casos para análise, entre os anos de 1789 e 2008.

Em relação ao caso brasileiro, também forampriorizados apenas os indivíduos que ocuparamcargos na corte de modo definitivo. Quando datransição do STJi ao STF em 1891, algunsministros foram aproveitados ao novo tribunal.Nesses casos, como esses indivíduos não deixarama corte para exercer outras atividades, sendosimplesmente reempossados no novo órgão, elesnão foram computados duas vezes, mas apenasuma única vez11. Exatamente como ocorreu como justice Hughes, o Ministro José Francisco Rezekfoi nomeado duas vezes para o STF, primeiramenteem 1983, renunciando ao cargo na corte em 1990,para a ela retornar em 1992, deixando-a emdefinitivo em 1997. Por isso, seu caso fora compu-tado duas vezes, uma a cada nomeação. A síntesedas informações que constituem o universo decasos analisados encontra-se na Tabela 2, abaixo.

10 O sítio do Supremo Tribunal Federal mantém

TABELA 2 – DADOS GERAIS SOBRE OS INTEGRANTES DAS CORTES SUPREMAS DO BRASIL E DOSESTADOS UNIDOS

informações sobre as biografias de seus ministros. Cf.Brasil (2011).

FONTE: O autor, a partir de Lago (2001), Fundação Armando Álvares Penteado (2007), Mello Filho (2007),Marenco dos Santos e Da Ros (2008), Brasil (2011) e Epistein (2011).

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JUÍZES PROFISSIONAIS?

De início, observa-se uma diferença bastanteacentuada entre os dois tribunais especialmentequanto ao último quesito, média anual denomeações. A diferença é de mais de três vezesentre uma corte e outra, sugerindo maior freqüên-cia de indicações no Brasil do que nos EstadosUnidos. Algumas hipóteses podem contribuir paraexplicar essa diferença. Em primeiro lugar, deve-se mencionar o número total de integrantes dascortes. Conforme observado, o tribunal brasileirohoje apresenta 11 membros, já apresentou 15 e 16integrantes, respectivamente, e possuiu 17 mem-bros durante o longo período durante o Império(1829-1891). Diferentemente, a composição dacorte estadunidense manteve-se estável durantemuito tempo, adotando os nove membros que hojea caracterizam ainda no século XIX e sempre pos-suindo menos integrantes do que a corte brasileira.Isso significa que a faculdade conferida a umPresidente de nomear um novo membro à corte émais freqüente no Brasil, mas que seu efeito sobrea composição do tribunal não é tão elevado quantoaquele apresentado por uma indicação realizadapelo Presidente norte-americano. Em segundolugar, as regras de saída de integrantes do tribunalsão diferentes. Ao passo que os ministros do STF,desde a Constituição de 1934, são obrigados aaposentarem-se quando completam determinadaidade – aos 75 na Constituição de 1934, aos 68em 1937 e aos 70 desde 1946, seguindo a regrade aposentadoria compulsória que vale para todofuncionalismo público – os justices da USSCpermanecem no tribunal até o momento em quedecidem aposentar-se, não havendo idade-limitepara tanto. Isso dificulta o surgimento de novasvagas, reduzindo a periodicidade das nomeações(MCGUIRE, 2005).

Em terceiro lugar, há uma importante diferençaquanto à estabilidade política dos dois países aolongo da história, com possíveis reflexos sobre acomposição das respectivas cortes supremas. Aopasso que os episódios de court-packing nos EUAapenas no século XIX levaram a alguma alteraçãona composição da corte, no Brasil esses episódiosforam mais freqüentes e conduziram a mudançasmais abrutpas quanto ao número total de integran-tes da corte. Não raramente integrantes do STFforam aposentados compulsoriamente ao longo dahistória, dando vazão à indicação de novos minis-tros afeitos ao alinhamento político preconizadopelos sucessivos presidentes e regimes políticosinstalados. Alguns episódios, como os impassesgerados nos momentos iniciais de mudanças polí-ticas turbulentas, como a proclamação da Repúbli-ca em 1889, a Revolução de 1930 e o Golpe Militarde 1964, são claros nesse sentido. Uma última hi-pótese explicativa leva em consideração as regrasde acesso aos cargos, especialmente aquela queexistiu no Brasil durante o Império. Como osministros do STJi eram retirados das Relaçõescom base no critério de antiguidade, a rotatividadedos membros elevou-se sobremaneira com passardos tempos, visto que os titulares adoeciam, apo-sentavam-se ou simplesmente faleciam poucotempo depois de chegar à Corte Suprema. Issoatingiu níveis críticos como, por exemplo, em1886, quando nove novos ministros foram indica-dos ao tribunal, e sete deles no ano seguinte, le-vando a uma renovação quase completa do tribunalem apenas dois anos. Somente no intervalo de 20anos entre 1880 e 1900 foram nomeados 65 novosintegrantes para o tribunal. O gráfico abaixo expõeessas informações. Convém observar, entretanto,que nesse período verifica-se a conjunção de doisfatores propícios para alterações na composiçãoda corte – o efeito da regra de seniority no STJi ea implantação do regime republicano.

11 Como foi dada a tais ministros a opção por perma-necerem ou retirarem-se do tribunal, não se tratam de novasnomeações, podendo deduzir-se que a elite política de

então consentia com todos os ministros então na corte.Em vista disso, não se computou duas vezes taisreempossamentos.

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Se o efeito da regra de investidura do STJiexplica a sensível elevação de magistradosnomeados durante parte do século XIX, a hipóteserelativa aos períodos de instabilidade política noBrasil parece efetivamente confirmar-se quandolevamos em consideração os chefes de Estado quemais nomearam integrantes para os órgãos decúpula da Justiça brasileira e, em menor medida,nos EUA. Como expõe a Tabela 3, além de líderesque ficaram muito tempo à frente do governo(como Dom Pedro II e Getúlio Vargas), os chefes

de Estado que mais nomearam integrantes para aSuprema Corte do Brasil estão quase sempreassociados a períodos de elevada instabilidadepolítica, como a independência do país econseqüente instalação de novos tribunais (DomPedro I), a Proclamação da República, suaconsolidação e instalação da nova Corte Suprema(Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto), o iníciodo regime militar (Castello Branco) e sua posteriortransição para a democracia (João Figueiredo),além da própria Era Vargas.

GRÁFICO 1 – NÚMERO TOTAL DE INTEGRANTES NOMEADOS PARA CADA TRIBUNAL

TABELA 3 – CHEFES DE ESTADO QUE MAIS NOMEARAM INTEGRANTES PARA AS CORTES SUPREMASDE BRASIL E ESTADOS UNIDOS

A intensidade das transformações políticastambém parece explicar os presidentes que maisnomearam justices nos EUA, embora com menoracuidade. Os nomes de George Washington,Franklin D. Roosevelt e Abraham Lincoln, ligados

a eventos como a independência do país e instalaçãoda Corte Suprema, a emergência do welfare state ea Guerra Civil, enquadram-se perfeitamente nesseperfil, embora os nomes de Andrew Jackson,William Taft e Dwight Eisenhower não secoadunem com esse padrão.

FONTE: O autor, a partir de Lago (2001), Fundação Armando Álvares Penteado (2007), Mello Filho (2007),Marenco dos Santos e Da Ros (2008), Brasil (2011) e Epistein (2011).

FONTE: O autor, a partir de Lago (2001), Fundação Armando Álvares Penteado (2007), Mello Filho (2007),Marenco dos Santos e Da Ros (2008), Brasil (2011) e Epistein (2011).

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JUÍZES PROFISSIONAIS?

Passando ao exame do objeto desse artigo, aseção abaixo examina os perfis de carreira dosindivíduos recrutados para a Corte Suprema dosdois países no que se refere aos indicadores desua profissionalização, examinando a circulaçãopor arenas políticas, coercitivas ou exclusivamentejurídicas.

V. JUÍZES PROFISSIONAIS?

Um dos principais proxies para identificarjuristas profissionais entre os nomeados é apontaraqueles que exerceram apenas profissões jurídicas

antes de ingressar no cargo. Nesse sentido, foramconsideradas carreiras exclusivamente jurídicasaquelas que não envolviam a passagem por cargostipicamente políticos, junto aos poderes Executivoe Legislativo, ou tradicionalmente voltados àadministração de atividade coercitiva do Estado,como aqueles em postos superiores decorporações militares ou policiais12. O Gráfico 2,exposto abaixo, discrimina esses padrões ao longodas histórias políticas de Brasil e EUA.

Algumas leituras podem ser realizadas a partir

GRÁFICO 2 – CARREIRA EXCLUSIVAMENTE JURÍDICA

FONTE: O autor, a partir de Lago (2001), Fundação Armando Álvares Penteado (2007), Mello Filho (2007),Marenco dos Santos e Da Ros (2008), Brasil (2011) e Epistein (2011).

dos dados acima. Uma primeira, mais geral,observa que o recrutamento de juristasprofissionais é mais exceção do que regra nos doiscasos, apesar de importantes variações históricas.Entre os 274 nomeados ao STJi-STF, apenas 72indivíduos – 26,3% do total – apresentaramcarreiras exclusivamente jurídicas antes deingressar na corte. Esse valor é semelhante aoencontrado na realidade norte-americana, emboralevemente superior nos EUA. Entre os 111nomeados para a USSC, 35 justices – 31,5% dototal – não haviam ocupado outros cargos quenão aqueles próprios do universo jurídico antesde ingressar no tribunal.

Essa supremacia de indivíduos não vinculadosexclusivamente às profissões jurídicas, todavia,não é linear. Como se observa, em algunsmomentos, há freqüência maior de indivíduosretirados apenas dessas carreiras, ao passo queem outros há efetivamente o predomínio derecrutados com experiência política e/ou

coercitiva. Há aqui, portanto, uma oportunidadepara discutirem-se os contextos históricos quepropiciam incremento ou decréscimo norecrutamento de juristas profissionais para ascortes supremas das duas realidades, ensejandouma discussão sobre os fundamentos políticos doprofissionalismo.

Quanto ao caso brasileiro, observa-se acimaalguns picos importantes de ascensão dorecrutamento de indivíduos profissionaisexclusivamente da área para o órgão de cúpula da

12 Nesse sentido, cargos de natureza meramenteburocrática, ou administrativa, não foram consideradosrelevantes para essa classificação. Isso porque geralmenteeles, quando presentes, são ocupados pelos justices norte-americanos e pelos ministros brasileiros apenas no iníciode suas carreiras, por pouco tempo, e como uma forma deascenderem a outros cargos de natureza distinta, jurídica,política ou coercitiva.

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Justiça brasileira. O primeiro faz-se presente jáem 1830, durante a Regência, mas segue-se a eleuma longa e gradativa queda até o final do séculoXIX, quando atinge seu nível mínimo na décadade 1900. Imediatamente após, na década de 1910,observa-se um importante salto em direção àprofissionalização da elite judicial brasileira,aproximando-se da metade do total de indivíduosnomeados para a corte pela primeira vez na décadade 1930, quando atinge inéditos 46,1% deministros sem qualquer outra vinculação que nãoàs carreiras tradicionais do mundo jurídico. Dessemomento até a década de 1950, observa-se umatrajetória de queda, que se reverte a partir dos anos1960 e particularmente da década de 1970,ultrapassando a marca dos 50% pela primeira vez,não retornando a um patamar inferior desde então.Entre 2000 e 2008, quando se encerrou a coletadesses dados, atinge-se o período em que maisjuristas de carreira foram nomeados para a corte,totalizando 88,8% ministros com carreirasexclusivamente jurídicas recrutados.

Quanto à trajetória dos justices recrutados paraa Suprema Corte dos Estados Unidos, observa-sealgumas semelhanças. Como ocorre no congênerebrasileiro, os níveis de profissionalismo mantêm-se fundamentalmente baixos ao longo da maiorparte do século XIX, aproximando-se dos 50%apenas nas décadas de 1880-1890. Observa-seuma interrupção desta tendência na década de1900, mas volta-se a crescer na década seguinte,atingindo-se quase 60% nos anos 1920.Doravante, verifica-se uma queda continuada atéa década de 1950 para observar-se na décadaseguinte um crescimento significativo epraticamente continuado até a década atual, cominterrupção apenas nos anos 1980.

Algumas constatações importantes emergemdesses dados e, ao que parece, as hipótesesexplicativas para as mudanças históricasdesdobram-se em dois sentidos. O primeiro é oque parece ser uma condição necessária, mas nãosuficiente, para a nomeação de indivíduosprofissionais do mundo jurídico para essestribunais. No caso, trata-se da própria relevânciapolítica dessas Cortes Supremas. Se esta é reduzidaou praticamente inexistente, o profissionalismodificilmente parece ser estimulado. Como se sabe,o fortalecimento institucional de tais cortes érelativamente recente nos dois países, sendo umfenômeno basicamente do final do século XIX nosdois casos. No Brasil, foi nesse período que o

STF passou a existir como órgão capaz decontrolar a constitucionalidade das leis, função queseu congênere anterior, o STJi, não exercia, vistoque tal função era atribuída ao Conselho de Estadodurante o período imperial. Nos EUA, embora aSuprema Corte formalmente tenha tido essafaculdade desde 1803, somente a partir do finaldo século XIX começou a exercê-la comfreqüência. Durante os 100 anos entre 1789 e1889, aquele tribunal declarou inconstitucionaisapenas 18 leis federais, o que representa somente12,8% do total de leis declaradas inconstitucionaispela corte ao longo de toda sua história (KEITH,2007). O segundo sentido, entretanto, é menosimediato e apresenta dois contextos distintos queparecem contribuir para o incremento daocorrência de tal fenômeno.

O primeiro deles é aquele em que se verifica ahegemonia de determinado grupo ou conjunto deidéias na condução da atividade política. Talhipótese é exemplificada pela afirmação de CornellCalyton: “During a period where ideological andcultural consensus is strong it is natural to thinkof law not in political but in technical terms”13

(CALYTON, 1999, p. 19). Pensar a práticajurídica em termos estritamente técnicos eapolíticos, dando vazão à nomeação de indivíduoscom essas características, pode auxiliar naexplicação para os incrementos no recrutamentode indivíduos profissionalizados para os órgãosde cúpula do poder Judiciário dos dois países. Alógica do recrutamento de juristas profissionaispara a Corte Suprema integra-se, portanto, a umalógica mais ampla de inexistência de controvérsiacom relação a determinado conjunto de valores eidéias. No caso, certos posicionamentos são tãoconsensuais – pelo uso implícito da força ou pelaexistência de crenças compartilhadas – que se tornavirtualmente desnecessário recrutar indivíduospoliticamente alinhados ao governo ou ao regimepara assegurar-se uma corte leal às práticaspolíticas existentes. Cria-se uma forma delegitimação técnica em que a própria profissãopassa a acompanhar essa lógica e formar seusquadros dentro dessa ideologia comum,compreendida como técnica.

13 “Durante um período em que o consenso ideológico ecultural é forte, é natural pensar na lei não em termospolíticos, mas técnicos”. (N.R.).

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JUÍZES PROFISSIONAIS?

Nos EUA, trata-se, por exemplo, do períodode supremacia republicana do final do século XIXe início do século XX, que se estendeu atéprincípios da década de 1930, quando os embatespela aprovação do New Deal e sua recepção pelaSuprema Corte fizeram-se presentes. Não à toa operíodo ficou conhecido como “governo dosjuízes”, época em que o poder Judiciário federalbench e a Suprema Corte foram poderosamenteinsulados das arenas político-representativas como propósito de nacionalizar a política econômicado período posterior à Guerra Civil (GILLMAN,2002). Esse parece ser também o caso de algunsperíodos históricos do Brasil, especialmenteaqueles de natureza autoritária. Durante os anos1930, houve relevante incremento na profissio-nalização dos magistrados, o mesmo ocorrendodurante o regime militar, especialmente duranteos anos 1970 e 1980. Essa tendência de profissio-nalização coaduna-se com o que se escrevia naépoca: “Desde então [1968], sobretudo com aedição dos Atos [Institucionais] ns. 5 e 6, cessaramos conflitos, e o Poder Executivo-Revolucionáriopassou a ter no Supremo um órgão administra-tivamente saudável, tecnicamente ágil, [...] maspoliticamente morto” (VALE, 1976, p. 166).

Diferentemente, o segundo contexto pareceocorrer em condições diametralmente opostas. Eleestabelece-se em um ambiente de maior pluralidadede centros de poder, decorrendo diretamente demomentos em que se verifica o fortalecimentoinstitucional das cortes supremas em questão ede sua atuação frente a questões polêmicas epoliticamente relevantes. Trata-se, na realidade,de um argumento conhecido pelos cientistassociais que trabalham com a política depreenchimento de cargos em outros contextos einstituições (LOUREIRO, 1997; D’ARAÚJO,2007; OLIVIERI, 2007; CARVALHO, 2008).Nessa linha, o custo político de promover-se anomeação de aliados políticos para determinadosórgãos em contextos de competição política eleva-se em função da controvérsia trazida pelaimportância dos cargos, pela visibilidade dasinstituições e pela própria sensibilidade dedeterminadas áreas, como recentemente observa-se na área econômica no Brasil. Nesses contextos,aqueles que realizam a nomeação recorreriam acandidatos reconhecidos por seu méritoprofissional como estratégia para evitar críticasde oponentes, de aliados e dos própriosprofissionais da área.

No caso, verificou-se o incremento do recru-tamento endógeno às carreiras jurídicas no Brasilna década de 1910, justamente após uma série deembates entre o recém-instalado STF, queinaugurara poucos anos antes seus poderes dejudicial review, e os primeiros governos do regimerepublicano, especialmente com relação à aplicaçãoda chamada “doutrina brasileira do habeas-corpus”(KOERNER, 1999). Em virtude dos impassesgerados pela atuação da corte no período,exercendo pela primeira vez a capacidade de revera constitucionalidade das leis e libertando presospolíticos por meio da aplicação de tal doutrinajurídica, a relevância política conquistada pelotribunal parece ter transformado a nomeação deseus futuros ministros em um processocrescentemente controverso. Nesse contexto, érazoável supor que indicar mais juristasprofissionais para os cargos integra-se uma lógicade evitar controvérsias quanto às nomeações frentea temas como esses. O mesmo parece ocorrercom a intensa nomeação de juristas profissionaisnos anos 2000, resultado da importância que oSTF adquiriu como resultado da Constituição de1988, que o colocou entre os mais poderosostribunais com jurisdição constitucional do mundo(ARANTES, 1997; VIANNA et alii, 1999;TAYLOR, 2008). Essa interpretação é corroboradapor recente estudo sobre as aprovações deautoridades pelo Senado no Brasil. Lemos e Llanos(2007) apostam em uma hipótese de acomodaçãopara explicar a rapidez com são aprovados nomesindicados para órgãos como o STF. Por seremfundamentalmente não controversos, isto é,acomodados previamente às preferências dossenadores, eles não enfrentariam resistência naCâmara Alta brasileira e seriam rapidamenteratificados. Na palavra das autoras: “Essesextremos talvez apontem uma hipótese deacomodação no Brasil: quanto aos casos maisrápidos, o presidente preveria a reação doCongresso e enviaria um nome que pudesse obtero apoio necessário. Isso é verdade tanto para oscargos voltados para o mercado como para oscargos de alto escalão no Judiciário, especialmenteaqueles do Supremo Tribunal Federal, que levamcerca de dezenove dias para serem aprovados”(idem, p. 123).

Levando-se em conta os achados destapesquisa, pode-se supor que esse consenso emtorno dos indicados ao tribunal é em grande medidafruto do reconhecimento do mérito desses

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nomeados. Por sua vez, no que se refere àrealidade norte-americana, a tendência parece sero paulatino incremento do recrutamento endógenoàs carreiras jurídicas como fruto da importânciapolítica da corte quando esta passou a capitaneara chamada rights revolution do país, durante asdécadas de 1950 e 1960, evolvendo interpretaçõesdo texto constitucional em matérias politicamentesensíveis, como as políticas de integração racialdo país (EPP, 1998). Ademais, os anos 1960inauguraram aquele que provavelmente é o períodode mais intenso ativismo daquele tribunal,traduzindo-se em 67 leis federais declaradasinconstitucionais pela USSC durante os 41 anosentre 1960 a 2001, o equivalente 45,9% do totalde leis declaradas inconstitucionais pela cortedesde sua fundação (KEITH, 2007). Em funçãodisso inclusive tem sugerido que o tribunalrecentemente tem atuado mais em torno de seuspróprios interesses e menos de acordo com aslinhas ideológicas dos presidentes que osnomearam os justices, como se interpretatradicionalmente (KECK, 2007).

Todavia, importa salientar que o processo deappointment dos membros da USSC ésabidamente orientado de maneira partidária eideológica – presidentes republicanos tendem aindicar justices conservadores e presidentesdemocratas buscam nomear indivíduos liberaispara a corte. Tanto isso é verdadeiro quepraticamente todos os indicados para a USSC eramfiliados a partidos políticos antes de nomeação.Das 111 nomeações, em apenas um caso, do justiceFelix Frankfurter, o indicado era independente, nãofiliado a nenhum partido político. Isso, entretanto,não impediu a nomeação de justices filiados apartidos diferentes daquele do próprio Presidenteda República, mesmo que esses sejam casosminoritários, totalizando apenas cerca de 10% douniverso de análise, como já apontam ospesquisadores há muito tempo (NAGEL, 1961).Apesar desses elementos sugerindo a presença devínculos partidários e ideológicos entre osintegrantes da Suprema Corte dos EUA, o avançodo recrutamento de indivíduos profissionalizadose preponderantemente vinculados às carreirastípicas do universo jurídico é um fenômenoinegável especialmente a partir dos anos 1960. Omérito individual dos indicados tem sidoempregado justamente como forma de dissuadirsenadores de ideologias e partidos opostos aaceitarem as nomeações, exatamente como ocorre

no Brasil. Conforme argumentam dois autores emconhecido trabalho sobre a importância daqualificação profissional dos justices no processode confirmação junto ao Senado dos EUA: “Despitetheir political outlooks, they received the highestpossible merit rating, and senators, even those onthe other side of the ideological fence, may havefound difficult to justify voting against them”14

(EPSTEIN & SEGAL, 2005, p. 103).

Sabe-se, ademais, que a partir da década de1960 passou a viger nos Estados Unidos uma regrainformal demandando o recrutamento endógenoà carreira judicial, a chamada norm of priorjudicial experience (EPSTEIN, KNIGHT &MARTIN, 2003). A referida norma aparentementeteria surgido como decorrência da decisão nofamoso caso Brown v. Board of Education, em1954. As críticas de parlamentares contrários àdecisão teriam gradativamente conduzido a umentendimento de acordo com o qual, como formade evitar decisões controversas como essa, seriaurgente indicar para a corte “[...] men who wouldbase their decisions upon law, not sociology”15

(Schmidhauser apud EPSTEIN, KNIGHT &MARTIN, 2003, p. 910). O efeito foi o incrementodas nomeações de indivíduos com carreiras exclu-sivamente jurídicas e especialmente dos magis-trados junto ao poder Judiciário federal do país,que passou a ser a principal fonte de recrutamentopara os integrantes da USSC desde então. Amaioria dos justices que ingressaram no tribunal apartir da década de 1960 eram integrantes daquelesegmento do poder Judiciário no exato momentoem que foram indicados para a Corte Suprema,perfazendo 61,1% desde então e nada menos de76,9% do total a partir da década de 1970.

Como o processo de preenchimento das vagasdas instâncias inferiores da hierarquia judicialfederal norte-americana realiza-se da mesma formaadotada para os justices da USSC, o que se tempriorizado é portanto a indicação de indivíduos quejá foram previamente aprovados pelo Senado, aindaque para outros cargos. Como se observa no

14 “Apesar de suas orientações políticas, eles receberama maior avaliação por mérito possível, e senadores, mesmoaqueles do outro lado da cerca ideológica, podem ter achadodifícil justificar o voto contra eles”.15 “Homens que baseariam suas decisões na lei, não naSociologia” (N.R.).

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JUÍZES PROFISSIONAIS?

Gráfico 3, abaixo, a tendência de recrutamentode juízes do federal bench é clara a partir dadécada de 1960. Mesmo que menos intenso que oatual, o outro pico de nomeações entre os juízesfederais para a Suprema Corte coincidecuriosamente com o outro período em que houveascensão do recrutamento de indivíduosprofissionais da área para o tribunal, no períodode supremacia republicana entre 1880 e 1920,como visto anteriormente. Paralelamente ao padrão

que se iniciou nos anos 1960, essa crescentepresença de justices que antes eram juízes do poderJudiciário federal nos EUA tem sido acompanhadapelo recrutamento de indivíduos que antes eramprofessores universitários, como se confere nomesmo gráfico a seguir, priorizando-se também aindicação de indivíduos com reputação de elevadaqualificação profissional na área, como já apontadoem outros estudos (EPSTEIN & SEGAL, 2005;EPSTEIN et alii, 2005).

GRÁFICO 3 – INDICADORES DE PROFISSIONALIZAÇÃO ENTRE OS INTEGRANTES DA SUPREMA CORTEDOS EUA

FONTE: O autor, a partir de Lago (2001), Fundação Armando Álvares Penteado (2007), Mello Filho (2007),Marenco dos Santos e Da Ros (2008), Brasil (2011) e Epistein (2011).

O Brasil, por sua vez, vem seguindo recen-temente um padrão de recrutamento que enfatizaa expertise e o recrutamento endógeno às carreirasjurídicas, mas que condena o recrutamentoendógeno exclusivo à carreira judicial. É comose, no Brasil, o que se buscasse fosse constituir alegitimidade das nomeações junto a todas asprofissões do mundo do Direito, incluindoadvogados, procuradores, professores universi-tários e magistrados, especialmente entre asnomeações recentes. Essa experiência diferencia

o caso brasileiro da tendência internacional, emque geralmente prioriza-se a experiência judicialprévia como requisito. Outros parecem ser osrequisitos para a indicação à Corte Suprema noBrasil, portanto. Um primeiro que parece ter seassentado ainda durante a primeira expansão donúmero de profissionais no tribunal é o exercíciode atividade docente, cujo crescimento vendosendo praticamente constante desde o início doséculo XX, atingindo-se o nível máximo na décadade 2000, como se confere abaixo.

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Coerente com a tendência recente de profissio-nalização, observa-se que a realização de cursosde pós-graduação vem se constituindo umelemento importante nesse sentido, expandindo-se vagarosamente a partir dos anos 1960 ealcançando níveis elevados nas décadas de 1990e, especialmente, 2000, quando todos os nomea-dos possuíam título de Doutor em Direito antesde ingressar no tribunal16. Outro elemento quevem recentemente ganhando espaço nesse mesmosentido no Brasil é a experiência acadêmica noexterior. Esse tipo de formação, que já foi funda-mental para a elite política brasileira durante boaparte do século XIX (CARVALHO, 1980), e querepresenta o pico de 1820 a 1870 no gráfico ante-rior, constituindo a Faculdade de Direito da Univer-sidade de Coimbra seu símbolo mais imediato, hojeparece coadunar-se perfeitamente com a tendência

de profissionalização da elite judicial do país e degrande número de juristas brasileiros em geral(ENGELMANN, 2008). A partir dos anos 1990 ecom mais força a partir da década atual, tem-seobservado que os futuros ministros do STF vêmcrescentemente circulando em instituiçõesestrangeiras como professores e pesquisadoresvisitantes, quando não realizado seus estudos depós-graduação diretamente fora do Brasil17.

A crescente profissionalização dos integrantesdas cortes supremas do Brasil e dos EstadosUnidos parece estar ligada, portanto, a dois fatores.Um deles é a sua diferenciação com relação àscarreiras políticas; o outro ocorre frente aoscargos voltados à administração da atividadecoercitiva do Estado. Expor brevemente como temocorrido a diferenciação profissional dos ministrosdo STJi-STF e dos justices da USSC em relação atais carreiras é o que se passa a fazer.

Começando pela circulação dos futurosmagistrados de cortes supremas em cargos denatureza política, verifica-se que tanto no Brasilquanto nos EUA, há presença marcante deindivíduos que passaram por postos junto aos

GRÁFICO 4 – INDICADORES DE PROFISSIONALIZAÇÃO ENTRE OS INTEGRANTES DO STJI-STF NOBRASIL

FONTE: O autor, a partir de Lago (2001), Fundação Armando Álvares Penteado (2007), Mello Filho (2007),Marenco dos Santos e Da Ros (2008), Brasil (2011) e Epistein (2011).

16 De 1980 até 2008, entre os 29 ministros nomeadospara a Corte, onze haviam concluído curso de Doutoradoantes da posse, dois o Mestrado e dois a Especialização.A principal instituição para a realização desses estudos éa Universidade de São Paulo, que formou quatro doutorese um Mestre para a corte, seguida pelas Universidades deParis, que formaram três doutores para o tribunal. Éimportante ressaltar que a realização de pós-graduaçãonão é um indicador adequado de profissionalização entreos justices da U. S. Supreme Court porque o cursouniversitário em Direito nos Estados Unidos já é umgraduate study, sendo o título obtido de tal formação –Juris Doctor ou simplesmente J. D. – suficiente para oexercício da docência em nível superior. Por isso preferiu-se incluir essa variável apenas no caso brasileiro, mas nãono norte-americano.

17 Dos 15 ministros nomeados a partir de 1990, setedeles, o equivalente a 46,6% do total, possuem algumaexperiência de natureza acadêmica fora do Brasil. Osprincipais destinos são Estados Unidos (5) e França (3),além de Alemanha (1) e Reino Unido (1). A soma dospaíses não é igual ao número de ministros que tiveramesse tipo de experiência porque alguns deles passarampor mais de um país para realizar seus estudos.

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poderes Executivo e Legislativo. No casobrasileiro, 59,8% do total de indivíduos passarampor cargos dessa natureza, somando 63,9% nosEstados Unidos. Conforme se observa no Gráfico5, abaixo, o recrutamento de indivíduos comexperiência política prévia para os órgãos vemdiminuindo gradativa e continuadamente, emboratenha sido o principal tipo de experiênciaparalelamente àquela jurídica entre os integrantesdos órgãos de cúpula da Justiça dos dois países.Essa semelhança dos dados, entretanto, escondealgumas diferenças importantes entre as duasrealidades. Quando se considera a passagem porcargos eletivos de natureza legislativa (em nível

local, estadual ou nacional), observa-se que estaconstituiu a principal fonte de circulação políticanos EUA. Ao todo, 51,4% dos justices da USSCpassaram por esse tipo de cargo antes de ingressarna Corte Suprema do país, contra 33,3% daquelesque passaram por cargos vinculados ao poderExecutivo. Contrariamente, no Brasil a ênfase temsido a passagem por cargos não eletivos junto aopoder Executivo, como ministros e Secretáriosde Estado, representando 45,3% do total. Essepercentual, entretanto, não se afasta muito daquelede 41,6%, que indica o universo de indivíduosque passaram por postos legislativos no Brasil antesde ingressar na Corte Suprema.

GRÁFICO 5 – EXPERIÊNCIA POLÍTICA PRÉVIA

FONTE: O autor, a partir de Lago (2001), Fundação Armando Álvares Penteado (2007), Mello Filho (2007),Marenco dos Santos e Da Ros (2008), Brasil (2011) e Epistein (2011).

A diferenciação em relação às carreiras coerci-tivas geralmente é menos lembrada, mas tambémse constituiu um espaço importante para a dife-renciação dos círculos judiciais (SCHWARTZ,1979; SHAPIRO, 1981; KOERNER, 1998). Nessecaso, as diferenças entre Brasil e Estados Unidossão mais acentuadas e denotam vivências bastantedistintas entre os magistrados das cortes supremasdos dois países. Das 274 nomeações promovidasà Corte Suprema do Brasil, noventa e sete delas –35,4% do total – apresentaram alguma vivênciana administração da atividade coercitiva do Estado.Esse percentual reduz-se quase à metade no casonorte-americano, perfazendo 18,9% dos casos.Esses valores por si só seriam suficientes paraexpor uma diferença importante entre as duas reali-dades, mas outra dessemelhança é provavelmentemais relevante. Não só o envolvimento dos futuros

ministros do STJi-STF foi maior do que os dosjustices da USSC na gestão do uso da coerçãopelo Estado, como também houve importantesdiferenças quanto ao tipo de atividade exercida.No Brasil, a principal forma de contato com aadministração da atividade coercitiva do Estadofoi a gestão de forças policiais, em cargos comoDelegado ou Chefe de Polícia, observando-se28,1% dos ministros com esse tipo de vivênciaantes de ingressar na corte, contra apenas 13,1%daqueles que tiveram contato com a administraçãode atividades militares. Nos Estados Unidos, chamaa atenção que nenhum dos futuros justices da USSCtenha ocupado cargos de natureza policial antesde ingressar na Suprema Corte do país18. Os 21

18 Essa informação pode ser um pouco amenizada casoconsidere-se que seis justices, apenas 5,4% do total, foram

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indivíduos, ou 18,9% do total, que passaram porcargos ligados à administração da coerção nos EUAocuparam patentes de médias a elevadas – comoCapitão, Major ou Coronel – nas Forças Armadas

do país, quase sempre em cumprimento ao serviçomilitar obrigatório e em tempos de guerra, comoa II Guerra Mundial, a Guerra Civil ou a própriaGuerra de Independência do país.

prefeitos ao longo de suas carreiras. Como se sabe, nosEstados Unidos, o cargo de Prefeito é concomitante ao dechefe de polícia da cidade, o que confere alguma vivêncianesse tipo de atividade, ainda que não de maneira exclusiva,como verificado entre os ministros do STJi-STF no Brasil.Todavia, mesmo introduzindo-se essa variável de controle,observa-se que há muito mais integrantes da Corte Supremacom esse tipo de experiência no Brasil do que nos EUA.

GRÁFICO 6 – EXPERIÊNCIA COERCITIVA PRÉVIA

FONTE: O autor, a partir de Lago (2001), Fundação Armando Álvares Penteado (2007), Mello Filho (2007),Marenco dos Santos e Da Ros (2008), Brasil (2011) e Epistein (2011).

Analisando-se a série histórica das duasrealidades, no Gráfico 6 acima, observa-se que adiferenciação entre as arenas jurídicas ecoercitivas, do ponto de vista da experiênciaprofissional dos integrantes da cortes supremasdos dois países, é um processo praticamenteconsolidado. No Brasil, desde a década de 1950não se verificam indivíduos nomeados à CorteSuprema com esse tipo de experiência e desde adécada de 1980 nos EUA, sendo que os percentuaissão quase sempre reduzidos nesse caso. Emtempo, convém lembrar que tanto no Brasil quantonos EUA há indivíduos que tiveram tantoexperiências nas arenas políticas quanto nasatividades coercitivas antes de ingressarem nosrespectivos órgãos de cúpula do poder Judiciáriodos dois países. No Brasil, foram nada menos de59 os que tiveram carreiras jurídicas, políticas ecoercitivas (21,5% do total), ao passo que nosEUA foram 16 – 14,4% do universo de análise.

Finalmente, é importante apontar um achadode pesquisa que se relaciona a um aspecto frisadoainda no início desse artigo, qual seja, aquelereferente ao impacto das diferentes regras deseleção de magistrados no caso brasileiro. Deacordo com os dados, a exigência de qualificaçõespara as nomeações, restringindo a escolha da chefiade Estado, aponta exatamente no sentido opostoao que corriqueiramente se espera. Justamente aregra mais restritiva, a do STJi (envolvendorecrutamento endógeno à carreira judicial eseniority) foi a que apresentou o menor percentualde indivíduos exclusivamente ligados ao mundojurídico entre os recrutados ao órgão de cúpulado poder Judiciário brasileiro. Durante esseperíodo, apenas 17,7% dos indivíduos possuíamcarreiras ligadas apenas ao mundo jurídico.Contrariamente, a regra mais discricionária dasdécadas de 1930-1940, que prescindia daconfirmação da vontade presidencial pelo Senado,foi a que apresentou o mais elevado percentual deministros com carreira exclusivamente jurídica,42,8%. A regra atual, por sua vez, ocupa um espaçointermediário, apresentando 29,4% com perfilexclusivamente jurídico. Esses achados sugeremque outros fatores devem ser levados emconsideração além das regras de nomeação quandose pensa no insulamento de cortes supremas emrelação às atividades políticas. Regras referentes

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JUÍZES PROFISSIONAIS?

à própria carreira judicial nas instâncias inferioresdo poder Judiciário, estabelecendo limites maisrígidos em relação ao exercício de funçõesparalelas parecem ser determinantes nesse sentido.

VI. CONCLUSÕES

Das constatações expostas emerge umaquestão relevante a ser discutida. Em diversostrabalhos sobre as origens sociais e a formaçãoda identidade das diferentes profissões jurídicas,alguns autores expõem a emergência da ideologiado profissionalismo como determinante nosucesso desses grupos para que se adote umapostura de intervir politicamente, mas semidentificar-se com o conjunto de forças político-partidárias existentes. No caso, a construção deuma identidade de grupo vinculada ao exercíciode uma função profissionalizada de recorteessencialmente intelectual foi decisiva para asobrevivência e independência no exercício desuas funções frente ao contexto político.

Como se observa, a reflexão aqui pretendidaarticula-se diretamente com essa lógica, sendo-lhe complementar. Se a construção da ideologiado profissionalismo é decisiva para que essesgrupos sobrevivam influindo politicamente semapresentarem-se como contendores imediatos, poroutro lado, parece pouco crível que tais gruposadquiram poder às expensas dos atores políticossem que estes estejam de fato dispostos a depositá-lo nas mãos de indivíduos que não lhes sejamconhecidos e leais politicamente, como juízesprofissionais, por exemplo, mesmo que estes sedeclarem neutros, independentes ou apolíticos.

Os achados deste artigo sugerem que oincremento na profissionalização de magistradosde cortes supremas pode ser explicado em algumamedida como uma função da relevância políticadesses órgãos, integrada por dois contextosespecíficos, que forneceriam as bases para aascensão de indivíduos profissionais a tais postos.O primeiro ocorreria em contextos de fortehegemonia e liga-se à falta de controvérsia nointerior das práticas políticas e da profissãojurídica. O segundo estabeleceria-se em umambiente maior competição política e operariacomo uma espécie de estratégia subótima daquelesque promovem a nomeação ao cargo, que buscariaevitar conflitos sérios com os demais atorespolíticos nesse processo. Ao não agir assim,adotaria-se uma postura de contornos menospartidários, tornando-a mais aceitável ao conjunto

de forças políticas existentes e gerando menoscontrovérsias quanto às futuras decisões daquelesjulgadores.

A análise comparativa sugere ainda que umelemento importante – provavelmente umacondição necessária, embora não suficiente – parao incremento da profissionalização na arenajurídica é a própria constituição de uma ordempolítica que priorize a técnica e o méritoprofissional, na qual inexista, por exemplo, otrabalho escravo. Não há espaço para discorrersobre essa hipótese que mereceria ser trabalhadade maneira mais detalhada em outra oportunidade,mas é interessante observar que praticamenteinexistiram indivíduos vinculados apenas àscarreiras jurídicas, enquanto cada um dos paísespermitiu a escravidão em seus respectivosterritórios – até 1865 nos EUA e 1888 no Brasil19.

Ademais, os achados empíricos deste artigo,particularmente em relação ao caso brasileiro,sugerem que o incremento da profissionalizaçãona arena jurídica não está necessariamenterelacionado a um regime político específico,democrático ou autoritário. Na realidade, eleparece encontrar oportunidades para prosperar emambos contextos, o que de certa maneirasencontra-se em sintonia com a própria ideologiado profissionalismo – constituir um espaço deatuação política independente das arenastradicionalmente associadas ao efetivo exercíciodo poder, o que independe, portanto, da naturezado regime político existente.

Nesse sentido, em relação às diferentes regrasde seleção dos magistrados, a breve análiserealizada é de interesse porque coloca à prova oconventional wisdom existente em boa parte daacademia jurídica, de acordo com o qual regrasdemandando mais qualificações por parte doscandidatos seriam mais desejáveis por evitaremuma alegada partidarização dos tribunais(GUARNIERI & PEDERZOLI, 1996; EPSTEIN,KNIGHT & SHVETSOVA, 2001). Ao que parece,portanto, assim como a profissionalização dasprofissões jurídicas não se encontra necessa-riamente associado à presença de democracia,como se poderia supor, tampouco regras de

19 Essa observação foi incluída graças aos comentários deRenato Monseff Perissinotto e Maria Izabel Noll, a quemo autor agradece pelas sugestões e leituras atentas.

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recrutamento endógeno às carreiras judiciaissozinhas impedem a nomeação de indivíduos com

Luciano Da Ros ([email protected]) é Doutorando em Ciência Política pela University ofIllinois at Chicago (EUA).

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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA V. 20, Nº 41: 255-260 FEV. 2012

Partido Socialista Brasileiro) and Ciro Gomes (Popular Socialist Party or PPS, Partido PopularSocialista) in 2002, and Lula, Alckmin (PSDB), Heloísa Helena (Party of Socialism and Freedom, orPSOL, Partido Socialismo e Liberdade) and Cristovam Buarque (Democratic Worker’s Party, orPDT, Partido Democrático Trabalhista) in 2006. Our main explanatory variable is electoral coveragein the country’s four major daily newspapers: Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo, O Globoand Jornal do Brasil. The following control variables complete our model: candidates’ partypropaganda, the free publicly-sponsored electoral broadcasting time - known as Horário PolíticoGratuito Eleitoral - in the first and second rounds, presidential debates and presidential popularityrates. Models were estimated through MQO. Test results indicate that in 2002, press coverage givento candidates Lula and Ciro Gomes was one of factors responsible for the variation observed invoting intentions. In 2006, dynamics were a bit more complex. The only the intentions to vote affectedby coverage were those for candidate Heloisa Helena. Furthermore, it is surprising that Lula’sextremely negative coverage did not cost him votes. Yet this coverage did have an important indirectimpact on candidates Alckmin and Cristovam Buarque. Since this impact was larger during thescandal involving PSDB activities, we can assert that press coverage contributed decisively to theneed for a second round in the last presidential election. These results are sustained even whenapplied to analysis of voting patterns for voters with different educational levels, used as a means ofcontrolling for different levels of exposure to newspaper coverage.

KEYWORDS: Press Coverage; Media Effects; Brazilian Presidential Elections.

* * *

PROFESSIONAL JUDGES? CAREER PATTERNS FOR MEMBERS OF THE BRAZILIAN(1829-2008) AND UNITED STATES (1789-2008) SUPREME COURTS

Luciano Da Ros

This article compares the career profiles of U.S. and Brazilian supreme court judges throughout thepolitical history of these two countries. For these purposes, we analyze data on professional andjuridical experience and the circulation of positions within other branches of State power, includingelected offices, prior to Supreme Court appointment. In particular, this examination reveals similaritiesand differences of professionalization patterns among those who are the height of judicial power inboth countries, allowing for discussion of the political bases of this phenomenon within the juridicalfield. Most significantly, the article suggests that periods of increased recruitment of individualslinked to specifically juridical professions occurs as a response to the strengthening of the courtsthemselves. In the face of a new stage of increased prominence of these institutions, people who arerecognizably qualified in the area become an alternative source of legitimation for the organsthemselves, whether in contexts of competition or of the political hegemony of particular groups.

KEYWORDS: Juridical Careers; Selection of Judges; Professionalization; Juridical Professions.

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THE “DOCTORS” OF A NATION: THE ACADEMIC BACKGROUND OF BRAZILIANSENATORS AND ASSOCIATED VARIABLES

Pedro Neiva and Maurício Izumi

We provide a detailed description of the academic background of Brazilian senators during the 1987-2006 period, attempting to identify emerging cross-sectional and longitudinal patterns. We also attemptto verify to what extent backgrounds are related to region of origin, political party affiliation, participationin commissions, parliamentary experience and behavior within Senate plenaries. We discern apredominance of senators with Law degrees, yet a longitudinal perspective shows us that thisadvantage is on the decline. Other important groups are engineers, health professionals and peoplewith backgrounds in the humanities. Particular mention should be given to the role of senators with