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XXV ENCONTRO NACIONAL DO CONPEDI - BRASÍLIA/DF
DIREITO, ARTE E LITERATURA
ANDRÉ KARAM TRINDADE
MARCELO CAMPOS GALUPPO
MAGNO FEDERICI GOMES
Copyright © 2016 Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito
Todos os direitos reservados e protegidos. Nenhuma parte destes anais poderá ser reproduzida ou transmitida sejam quais forem os meios empregados sem prévia autorização dos editores.
Diretoria – CONPEDI Presidente - Prof. Dr. Raymundo Juliano Feitosa – UNICAP Vice-presidente Sul - Prof. Dr. Ingo Wolfgang Sarlet – PUC - RS Vice-presidente Sudeste - Prof. Dr. João Marcelo de Lima Assafim – UCAM Vice-presidente Nordeste - Profa. Dra. Maria dos Remédios Fontes Silva – UFRN Vice-presidente Norte/Centro - Profa. Dra. Julia Maurmann Ximenes – IDP Secretário Executivo - Prof. Dr. Orides Mezzaroba – UFSC Secretário Adjunto - Prof. Dr. Felipe Chiarello de Souza Pinto – Mackenzie
Representante Discente – Doutoranda Vivian de Almeida Gregori Torres – USP
Conselho Fiscal:
Prof. Msc. Caio Augusto Souza Lara – ESDH Prof. Dr. José Querino Tavares Neto – UFG/PUC PR Profa. Dra. Samyra Haydêe Dal Farra Naspolini Sanches – UNINOVE
Prof. Dr. Lucas Gonçalves da Silva – UFS (suplente) Prof. Dr. Fernando Antonio de Carvalho Dantas – UFG (suplente)
Secretarias: Relações Institucionais – Ministro José Barroso Filho – IDP
Prof. Dr. Liton Lanes Pilau Sobrinho – UPF
Educação Jurídica – Prof. Dr. Horácio Wanderlei Rodrigues – IMED/ABEDi Eventos – Prof. Dr. Antônio Carlos Diniz Murta – FUMEC
Prof. Dr. Jose Luiz Quadros de Magalhaes – UFMGProfa. Dra. Monica Herman Salem Caggiano – USP
Prof. Dr. Valter Moura do Carmo – UNIMAR
Profa. Dra. Viviane Coêlho de Séllos Knoerr – UNICURITIBA
D598
Direito, arte e literatura [Recurso eletrônico on-line] organização CONPEDI/UnB/UCB/IDP/ UDF;
Coordenadores: André Karam Trindade, Magno Federici Gomes, Marcelo Campos Galuppo – Florianópolis:
CONPEDI, 2016.
Inclui bibliografia ISBN: 978-85-5505-172-2
Modo de acesso: www.conpedi.org.br em publicações
Tema: DIREITO E DESIGUALDADES: Diagnósticos e Perspectivas para um Brasil Justo.
1. Direito – Estudo e ensino (Pós-graduação) – Brasil – Encontros. 2. Direito. 3. Arte. 4. Literatura.
I. Encontro Nacional do CONPEDI (25. : 2016 : Brasília, DF).
CDU: 34
________________________________________________________________________________________________
Florianópolis – Santa Catarina – SC www.conpedi.org.br
Comunicação – Prof. Dr. Matheus Felipe de Castro – UNOESC
XXV ENCONTRO NACIONAL DO CONPEDI - BRASÍLIA/DF
DIREITO, ARTE E LITERATURA
Apresentação
Quando, há alguns anos, o Conselho Nacional de Pesquisa e de Pós-Graduação em Direito
(CONPEDI) começou a organizar entre seus Grupos de Trabalho um destinado a discutir a
pesquisa brasileira em Direito e Literatura, primeiramente, e depois em Direito, Arte e
Literatura, a empreitada parecia um modismo destinado ao fracasso. No entanto, a cada
realização de seus congressos, o CONPEDI vem percebendo um crescimento expressivo não
só na quantidade de artigos submetidos, como também em sua qualidade.
A que se deve isso? Pelo menos duas respostas são possíveis. De um lado, a conexão do
Direito com a Literatura e a Arte, sobretudo no enfoque chamado de Direito na Literatura (ou
na Arte), que explora o modo como a Arte e Literatura compreenderam as manifestações do
Direito e da Justiça em dada sociedade, permite a manifestação daqueles cujo saber não cabe
nos estreitos limites da dogmática jurídica mas que, ainda assim, têm algo a dizer sobre o
fenômeno jurídico. De outro lado, essa conexão, sobretudo no enfoque chamado de Literatura
(ou Arte) no Direito, que explora o modo como o Direito se apresenta como uma narrativa
mimética, também permite que se compreenda a dogmática jurídica e sua operacionalização
pelo recurso aos saberes da teoria literária e da arte.
Nesta edição, 20 trabalhos foram discutidos pelo Grupo. Ante o fato de múltiplos enfoques,
metodologias e artes poderem ser adotados, optou-se por agrupar tematicamente os trabalhos.
O primeiro grupo contém trabalhos que lançam mão da Arte em geral em sua análise, no qual
foram apresentados três trabalhos. O primeiro deles, intitulado Arte como exercício da
desobediência civil, de Vanessa de Sousa Vieira, explora os paralelos entre o conceito
jurídico de desobediência civil e o conceito de arte como resistência cultural. O segundo,
intitulado A valorização do trabalho artístico humano: um estudo de caso acerca do direito
através das artes e das áreas públicas, de Felipe Ferreira Araújo, discute a importância da arte
de rua e da necessidade de sua proteção como expressão cultural legítima. O terceiro, Fluxos
migratórios e fronteiras: necessárias aproximações entre Arte, Política e Direito, de Renato
Duro Dias, apresenta a percepção dos conflitos nos direitos humanos envolvidos pelos fluxos
migratórios a partir da percepção do artista plástico Francis Alÿs.
O segundo grupo apresenta dois trabalhos nos quais os problemas ligados à sexualidade
humana são discutidos a partir da arte. O primeiro deles, chamado Cinquenta tons de cinza,
sexualidade e contrato de prestação sexual, de Tereza Rodrigues Vieira e Fernando Corsato
Neto, discute os problemas jurídicos decorrentes de certas parafilias sexuais, como o
sadismo, a partir do livro (e do filme) homônimo de Jamie Dornan. O segundo trabalho,
intitulado Transamérica: da influência da psiquiatrização da transexualidade no
reconhecimento das identidades trans, de Francielle Lopes Rocha e Valéria Silva Galdino
Cardin, problematiza o tratamento jurídico que se deu à sexualidade trans ao longo da
história a partir do diálogo com o filme Transamérica, de Duncan Tucker.
Os seis trabalhos do terceiro grupo discutem Direito e Literatura a partir de obras da
literatura clássica universal. O primeiro deles, Direito, Literatura e Sociedade, de Úrsula
Miranda Bahiense de Lyra, discute o desenvolvimento do Law and Literature Moviment e a
contribuição de Michel Foucault para o tema da constituição da subjetividade, também
essencial para aquele movimento. O segundo trabalho, intitulado O julgamento de Zé Bebelo:
Direito em travessia, de Lara Capelo Cavalcante e Kilvia Souza Ferreira, discute a célebre
passagem da obra Grande Sertão: Veredas para apresentar o problema da constituição de
poderes paralelos ao Estado. O terceiro trabalho apresentado, chamado A invenção do
tribunal do júri em “Auto da Compadecida” de Ariano Suassuna, de Ezilda Claudia de Melo,
explora o papel constituinte da emoção no instituto do júri. O quarto, Direito e Literatura:
uma breve análise das obras de Sófocles, Shakespeare e Kafka à luz da justiça, de Ítalo
Lustosa Roriz, compara as concepções de justice envolvidas nas obras Antígona, O Mercador
de Veneza e O Processo, mesmas obras abordadas por Simone Peixoto Ferreira Porto no
texto A justiça sob a perspectiva das obras clássicas da literatura mundial: Antígona, O
Mercador de Veneza e O Processo, em que explora o papel crítico assumido pela literatura
em relação ao Direito e ao Estado ao longo da história, e por Arthur Magalhães Costa e
Lucas Mikael Costa Barreto Campello no trabalho O Direito no Estado da Arte: Antígona, O
Mercado de Veneza e o Processo na reconstituição da historiografia forense, em que se
comparam os ideais de justiça na Antiguidade, no Renascimento e na Contemporaneidade.
O quarto grupo contém três trabalhos que discutem as conexões do Direito com a Música. O
primeiro deles, intitulado Povos indígenas, Direito e Música: quando será o tempo de
reconhecer, de Daize Fernanda Wagner, utiliza-se das teorias de François Ost para analisar
três momentos distintos da relação com os povos indígenas a partir de sua representação na
música. No segundo trabalho, Cartola, Chico e Noel: olhar jurídico sobre algumas canções,
Meilyng Leone Oliveira e Rosana dos Santos Oliveira mostram como determinadas
concepções jurídicas se expressam nas canções Nós Dois, Geni e o Zepelin e Habeas Corpus.
Por fim, o trabalho de Acácia Gardênia Santos Lelis e Mario Jorge Tenório Fortes Júnior, O
grito das "Camilas" não ecoa na sociedade: a visão da exploração sexual de crianças e
adolescentes na música interpretada pela banda "Nenhum de Nós", discute o problema da
exploração sexual de adolescentes privados de sua autonomia.
O quinto grupo aborda em dois trabalhos questões relativas ao meio ambiente, a arte e a
cultura. O primeiro trabalho, intitulado León Ferrari, a guerra e o meio ambiente, de Daniel
Moura Borges, discute a maneira como o artista plástico argentino problematiza os danos
ambientais decorrentes de guerras. O outro trabalho apresentado nesse grupo, de Magno
Federici Gomes (um dos organizadores do presente Grupo de Trabalho) e Ariel Augusto
Pinheiro dos Santos, intitulado Meio ambiente cultural, regulamentação artística, cota de tela
e mercado cinematográfico no Brasil, discute a constitucionalidade da reserva de
porcentagem da programação das emissoras de televisão brasileiras para a transmissão de
obras cinematográficas nacionais e o papel dessa cota na preservação do meio ambiente
cultural.
O último grupo reúne quatro trabalhos que exploram a conexão entre literatura
contemporânea, cinema e narrativa. Um insight jurídico a partir de Admirável Mundo Novo:
a eugenia nos critérios de seleção de material genético para a reprodução humana assistida,
de Carlos Eduardo de Oliveira Alban e Luísa Giuliani Bernsts, lançando mão da
fenomenologia hermenêutica e da metáfora em que se constitui a obra de Aldous Huxley,
analisa o problema da eugenia em bancos de material genético humano, estudando em
especial o caso do London Sperm Bank. Em O menino do pijama listrado: a importância da
constante reflexão da dignidade humana e da ética da tolerância em face do regime nazista,
Sérgio Leandro Carmo Dobarro e André Villaverde de Araújo exploram as possibilidades de
se utilizar do Cinema como crítica do Direito a partir do filme de Mark Herman. No trabalho
O cinema como ferramenta para a reflexão crítica sobre as relações internacionais
contemporâneas: análise do indivíduo como sujeito de Direito internacional a partir do filme
"O Porto", Joséli Fiorin Gomes discute a emergência de um novo papel dos indivíduos como
sujeitos do Direito Internacional. Finalmente, em "Uma lição de amor": o direito à autonomia
das pessoas com deficiência, Fernanda Holanda Fernandes exemplifica através do filme
homônimo o problema da reconfiguração da autonomia de pessoas deficientes a partir da
Convenção Internacional sobre os Direitos de Pessoas com Deficiência.
O nível, o número e a diversidade das obras apresentadas indicam que o CONPEDI tem
trilhado caminho correto, ao propiciar a reunião deste grupo de trabalho. Temos certeza que,
após ler os trabalhos, o leitor concordará conosco.
Brasília, 08 de julho de 2016.
André Karam Trindade
Magno Federici Gomes
Marcelo Campos Galuppo
A ARTE COMO EXERCÍCIO DA DESOBEDIÊNCIA CIVIL
ART AS AN EXERCISE OF CIVIL DISOBEDIENCE
Vanessa Sousa Vieira
Resumo
O direito de resistência se remonta à própria noção de vida em sociedade, pois o ser humano
sempre demonstrou oposição às normas injustas, desobedecendo ao seu conteúdo. A partir de
Thoureau, essa resistência foi denominada desobediência civil, traduzida como ato político,
pacífico, ilegal, mas legítimo, em face do regime democrático adotado pelos Estados
constitucionais. Assim como a desobediência civil, a cultura também tem a política como
fundamento, por representar uma atividade social que concretiza o próprio exercício da
cidadania, através da liberdade de expressão. A arte, como manifestação cultural, portanto,
pode se tornar um instrumento político para a desobediência civil.
Palavras-chave: Desobediência civil, Ato político, Cultura, Arte, Direito de resistência
Abstract/Resumen/Résumé
The right of resistance goes back to the very notion of life in society, because the human
being has always shown opposition to unfair rules, disobeying their content. From Thoreau,
this resistance was called civil disobedience, translated as political, peaceful, illegal but
legitimate act in the face of democracy adopted by constitutional States. As civil
disobedience, culture also has the policy as a foundation, it represents a social activity that
embodies the very exercise of citizenship, through freedom of expression. Art as a cultural
manifestation, therefore, can become a political tool for civil disobedience.
Keywords/Palabras-claves/Mots-clés: Civil disobedience, Political act, Culture, Art, Right of revolution
363
1 INTRODUÇÃO
A desobediência civil é tema sempre em voga, por tratar-se de instituto que, antes
mesmo de ser juridicizado, já era efetivamente vivenciado em sociedade, considerando-se
que, desde os primórdios, os detentores do poder deram mostras de arbitrariedade a que seus
opositores responderam com o descumprimento do abuso normativo perpetrado, contra ele
resistindo. A matéria, portanto, é sempre atual, a depender do enfoque que se lhe atribua,
sendo este o intento do estudo em questão.
Com efeito, essa pesquisa aventa uma nova abordagem acerca da desobediência civil,
voltando-se à indagação acerca das diferentes formas de seu exercício. Assim, através da
descrição do instituto e da aferição dos critérios que, de fato, o caracterizam, questiona-se se a
arte seria um meio apto ao exercício do direito de resistência. Por tratar-se de ato político,
pacífico, ilegal, mas legitimado pelo Estado de Direito Constitucional, apresenta-se a hipótese
de que a arte política pode ser uma das formas do exercício da desobediência civil.
Considerando-se, sobretudo, o contexto politicamente conturbado da atualidade,
surgem, como reação ou propostas de reflexão sobre essa conjuntura, diversas manifestações
notadamente de resistência ou oposição, que podem assumir formas distintas, dentre as quais
figura a arte. Daí a relevância do tema, que abrange uma perspectiva interdisciplinar da
desobediência, associando-a à prática artística, como meio de sua efetivação.
O objetivo perseguido por este estudo, portanto, diz respeito à possível intersecção
entre o Direito e a Arte, através de um instrumento de caráter jurídico, político e cultural, que
envolve ambas as esferas do conhecimento. A desobediência civil seria, nesse sentido, o elo
através do qual se estabelece o nexo entre essas áreas, já que se concebe a arte como passível
de interferência na esfera jurídica, através do elemento político comum a ambas.
A metodologia utilizada foi primordialmente a pesquisa bibliográfica, que orientou a
base teórica que serviu de substrato ao texto, assim lastreado após análise qualitativa das
informações obtidas. Trata-se, portanto, de produção de cunho teórico, apesar da inevitável
referência a obras de arte que surgem a partir da pesquisa empírica do artista. Daí a
necessidade também de uma pesquisa imagética, capaz de ilustrar aquilo que o texto indica,
teoricamente.
Com base na definição de conceitos jurídicos, relacionados à política e à cultura,
procedeu-se a estudo artístico iconográfico representativo da discussão teórica na qual se
baseia o artigo, a fim de melhor ilustrar o conteúdo exposto. Assim, estabelecendo-se
paralelos entre o instituto jurídico da desobediência civil e as formas políticas de se fazer arte,
364
a pesquisa visa a correlacionar teoria jurídica e prática artística, conforme se passa a
demonstrar.
2 BREVES DIGRESSÕES ACERCA DA DESOBEDIÊNCIA CIVIL
O exercício do direito de resistência acompanha o próprio desenvolvimento da
civilização e das relações de poder (FOUCAULT, 2008) que se estabelecem entre sujeitos e
instituições conectadas por nexos de hierarquização, como no caso dos governantes e
governados. Isso porque, desde os primórdios da existência humana, há quem se oponha ao
cumprimento das imposições abusivas daqueles que ditam a forma e o conteúdo das normas a
serem observadas. Como bem coloca Fernando Armando Ribeiro (2004, p.218), “a obrigação
jurídica permanece como uma espécie de obrigação política, que remanesce como gênero
responsável pela determinação geral da ação do indivíduo dentro de um Estado”.
Entretanto, a definição das regras pelas instituições estatais pode se mostrar, em
certas ocasiões, desconforme com a crença política do indivíduo ou da coletividade. Por essa
razão, quando da constatação da contrariedade entre as normas convencionadas e a
consciência do cidadão acerca de seus próprios direitos, a desobediência a essas normas pode
se tornar legítima. Nesse caso, o dever jurídico não se mostra capaz de sobrepujar a obrigação
política do cidadão, em face da incompatibilidade vislumbrada. Assim é que, em um Estado
Democrático de Direito, a violação a uma norma jurídica pode se justificar em virtude da
concretização de uma obrigação ético-política para com “a Constituição Democrática e os
princípios de justiça que a informam” (RIBEIRO, 2004, p. 218).
Com efeito, John Rawls (1987, p.389), ao elaborar sua Teoria de Justiça, questiona
até que ponto existe a necessidade de obediência a normas de conteúdo notadamente injusto,
assim considerado no contexto de uma democracia quase justa1. Ao tratar do tema, o filósofo
norte-americano afirma que a injustiça não é motivo suficiente para, por si só, isentar o
cidadão do cumprimento da lei, porquanto a estrutura das sociedades pressuponha a sua força
cogente (devido à legitimidade da Constituição e à aceitação dos princípios básicos da
sociedade democrática pelos cidadãos), ainda que seu conteúdo seja injusto, contanto que não
superado certo grau de injustiça.
Superado o limite da injustiça, contudo, fica o cidadão tacitamente autorizado a
1 Para John Rawls, uma sociedade quase justa é aquela “bem-ordenada em sua maior parte, na qual todavia
acontecem sérias violações da justiça” (RAWLS, 1987, p;402). Para o autor, um estado de quase justiça pressupõe um regime democrático, com uma autoridade legitimamente estabelecida.
365
exercitar seu direito à desobediência civil, conceituado por Rawls (1987, p.404) como “um
ato público, não violento, consciente e não obstante um ato político, contrário à lei,
geralmente praticado com o objetivo de provocar uma mudança na lei e nas políticas do
governo”. A desobediência seria um ato político por orientar-se segundo princípios de justiça
informadores da Constituição e das instituições sociais, que asseguram aos cidadãos a
preservação das suas liberdades iguais2, cuja violação constitui o objeto mais apropriado da
desobediência. O princípio da liberdade igual, para Rawls (1987, p.413), “define o status
comum da cidadania igual dentro de um regime constitucional e está na base da ordem
política”.
Assim, o direito à desobediência civil se torna um meio político de realização da
cidadania e da preservação do princípio da liberdade igual, ainda que contrariamente à lei,
mas em conformidade com uma Constituição, fundamentada no poder que emana do próprio
povo. No mesmo sentido, afirma Habermas (1997, p.73) que “a desobediência civil remete a
princípios fundamentais que são os que servem para legitimar a mesma Constituição
(Democrática)”. O mesmo pensamento pode atribuir-se, ainda, a Cohen e Arato (1995, p.588),
para quem a desobediência civil se presta a ratificar o vínculo entre a comunidade política e a
sociedade civil, em prol de interesses coletivos, reafirmando, dessa forma, os direitos políticos
de soberania popular e autodeterminação.
À par dessas breves considerações iniciais, que fornecem, sem fins de esgotamento,
conceitos e fundamentos para a desobediência civil, passa-se à breve análise histórica da
tratativa dispensada ao instituto através do tempo.
Buscando as raízes históricas afetas ao direito de resistência, pode-se encontrá-las, de
modo longínquo, no Código de Hamurabi, que cominava como castigo ao mau governante o
direito de rebelião. Já na Grécia, Sófocles, na Antígona, registra a existência de certas leis não
escritas, superiores a todas as outras, que autorizam a desobediência às demais, acaso com
elas conflitantes. Na obra de Tomás de Aquino, desenvolvem-se também as ideias de
revogação do poder real pelo povo, através da resistência ao soberano (GARCIA, 1994,
p.138-139). Maria Garcia (1994, p.142), ao discorrer sobre as raízes do direito de resistência,
afirma que também Locke, já no século XVII, em seu Ensaio sobre o Governo Civil e
tomando como base o contrato social de Thomas Hobbes, tratou da temática, prevendo o
direito de insurreição dos súditos, contra os excessos de poder do soberano.
2 Segundo a Teoria de Justiça de John Rawls, as liberdades iguais fazem parte do conteúdo dos princípios da
justiça e incluem a liberdade de consciência e de pensamento, a liberdade individual e a igualdade dos direitos políticos. Para ele, o sistema político forjado no contexto de uma democracia constitucional não seria justo, acaso não respeitadas essas liberdades.
366
Entretanto, é a partir do ensaio do romancista e poeta norte-americano Henry
Thoureau (1997), que o exercício desse direito legítimo é cunhado de desobediência civil.
Thoureau experienciou as sanções decorrentes do exercício do direito de resistência ao
recusar-se a pagar impostos que financiariam a Guerra do México (1846-1848), com a qual
não concordava. Dessa forma, abstendo-se do pagamento dos tributos, suportou as agruras da
prisão, em nome de um ato político destinado a evitar o financiamento indireto de uma guerra
que julgava despicienda.
Mais modernamente, essa doutrina influenciou, também, as ações de Gandhi e
Martin Luther King, que praticaram a desobediência civil, liderando movimentos de
resistência às leis que negavam direitos de cidadania, através de manifestações pacíficas que
resultaram no reconhecimento estatal de direitos civis à população (COSTA, 2000, p.48).
Hodiernamente, inexiste previsão expressa que autorize a desobediência civil nas
Constituições democráticas, o que não inviabiliza, todavia, o efetivo exercício desse direito.
Na Constituição brasileira, por exemplo, a interpretação acerca da possibilidade do direito de
resistência reside, em grande medida, no parágrafo único do art. 1º, segundo o qual “Todo o
poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos
termos desta Constituição”. Do excerto transcrito se depreende que, se o poder emana do
povo, que o confia a seus representantes, seria natural que esse mesmo povo, detentor do
poder, resistisse aos desmandos daqueles que não o representasse.
Lado outro, o §2º do art. 5º da nossa Carta Política consiga expressamente que “Os
direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e
dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa
do Brasil seja parte”. Nota-se, pela interpretação sistemática do dispositivo supramencionado
que o direito de resistência figura dentre os não expressamente previstos na Constituição, mas
que decorrem logicamente do regime democrático de direito a que se submete o nosso país.
Ainda que a tendência dos textos constitucionais contemporâneos não se mostre
propenso ao acolhimento expresso do direito de resistência, vê-se que ele é um pressuposto
resultante da adoção de um Regime Democrático de Direito, que, por sua vez, implica a
existência de um processo participativo e dialógico do cidadão e do Estado, na construção da
sociedade.
O certo é que, sob qualquer prisma de análise, durante toda a evolução histórica do
direito de resistência, esse direito nunca perdeu o seu caráter político, que evidencia o conflito
existente entre sociedade e Estado. Pode-se, assim, concluir que a desobediência civil é um
ato político de resistência, que pode ser exercido de diversas maneiras, dentre as quais, como
367
à frente ver-se-á, a cultura e suas diversas manifestações.
3 DA POLÍTICA COMO FUNDAMENTO DA CULTURA
Para Norberto Bobbio (1998, p.954), o conceito de política deve ser entendido como
“forma de atividade ou de práxis humana” estreitamente ligada ao conceito de poder,
considerado como os “meios adequados à obtenção de qualquer vantagem (Hobbes) ou,
analogamente, como conjunto dos meios que permitem alcançar os efeitos desejados
(Russell)”. A cultura também ganha definição simplificada, nas palavras de Jorge Coli (2008.
p.8) que, citando o Novo Aurélio, a conceitua como “conjunto complexo dos padrões de
comportamento, das crenças, das instituições e outros valores espirituais e materiais
transmitidos coletivamente e característicos de uma sociedade”.
Obviamente não é tarefa fácil conceituar institutos tão intricados em tão breves
palavras, sem o risco de simplificar sobremaneira seu vasto conteúdo. Entretanto, da tentativa
de definição acima esposada, percebe-se a nítida correlação existente entre a política e a
cultura, sendo aquela a forma de atividade humana e esta, uma dessas várias atividades, que
consignam valores e simbolismos caracterizadores de uma coletividade.
A cultura, portanto, tem como fundamento a práxis humana, ou seja, a forma de
atividade do indivíduo (isolada ou coletivamente considerado), constituindo-se como
conteúdo dessa forma de atividade. Outra atividade humana circunscrita à forma política é
exatamente a desobediência civil, da qual se tratou alhures e que é outro exemplo de conteúdo
emoldurado pela política. Ambos os comportamento humanos configurados pela cultura e
pela desobediência civil encontram respaldo político para sua concretização, na medida em
que envolvem um comportamento humano voltado a uma crença ou valor ético-político.
Assim, tomando como premissa a conclusão delineada no primeiro tópico deste
estudo, percebe-se que o direito de resistência é um ato político marcado pela oposição entre
governantes e governados, podendo esse direito ser exercido através da própria cultura, que
também tem a política como sustentáculo. Por isso, há de se considerar que as expressões
culturais podem ser um meio de exercício da desobediência civil, se tiverem como finalidade
precípua a oposição ou resistência ao status quo vigente, através de ato pacífico, público e até
mesmo ilegal, mas, ainda assim, legitimado pelo direito à liberdade de expressão, consagrada
como direito fundamental no art. 5º, IX, da Constituição da República.
Sobre a necessária ligação entre a política e a arte, em virtude do fato de o homem ser
um animal racional e, portanto, político, afirma Hannah Arendt (2007, p.181) que:
368
A fonte imediata da obra de arte é a capacidade humana de pensar, da mesma forma como a propensão para a troca e o comércio é a fonte dos objetos de uso. Trata-se de capacidades do homem e não de meros atributos do animal humano, como sentimentos, desejos e necessidades, aos quais estão ligados e que muitas vezes constituem o seu conteúdo.
A filósofa política alemã, em seu livro A Condição Humana, desenvolve o conceito de
Vita Activa, já tradicionalmente utilizado por Aristóteles, Karl Marx e Agostinho para tratar
das experiências políticas da humanidade, atribuindo-lhe novo significado, concernente à vida
humana que se empenha ativamente em fazer algo. Para tanto, subdivide o agir humano em
três diferentes categorias, sendo elas o labor, o trabalho e a ação.
O labor (desenvolvido pelo animal laborans) seria aquele trabalho fruto do nosso
próprio corpo, para atender as necessidades da vida - atividade, nesse sentido, intrinsecamente
ligada à força humana em si. Já o trabalho (desenvolvido pelo homo faber) seria aquela
atividade por meio da qual se originam os produtos fabricados pelas mãos humanas. A ação,
por fim, associada ao discurso, diria respeito ao modo através do qual os seres humanos se
manifestam, reconhecendo-se na “paradoxal pluralidade de seres singulares” (ARENDT,
2007, p.189), ou seja, exercitando a alteridade que os distingue entre si.
A partir desses conceitos afetos à atividade humana, Arendt estabelece uma ponte
entre o homo faber e a arte, afirmando que, sem os artistas (e outros modos de expressão
cultural), a história dos homens estaria fadada ao esquecimento. Nas suas palavras:
[…] os homens que agem e falam precisam da ajuda do homo faber em sua mais alta capacidade, isto é, a ajuda do artista, de poetas e historiógrafos, de escritores e construtores de monumentos, pois, sem eles, o único produto de sua atividade, a história que eles vivem e encenam, não poderia sobreviver. (ARENDT, 2007, p.187. Grifo nosso)
O artista, os poetas e historiógrafos seriam peças fundamentais na construção da
história política, através dos produtos de seu trabalho, sobretudo na atualidade, em que a
difusão de informações acaba por interligar todas as searas humanas, inclusive a cultural e a
política, fazendo com que aquela espelhe diversos dos elementos nesta contida.
Sobre o tema, o crítico de arte Luiz Camillo Osório3, em resposta ao questionamento
acerca da politização da arte, afirmou que:
3 Entrevisa concedida a Marcos Augusto Gonçalves, em 08/03/2015. Disponível em:
http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2015/03/1598685-curador-luiz-camillo-osorio-comenta-relacoes-entre-arte-politica-e-mercado.shtml. Acesso em 20/03/2016.
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essa vontade de participar, de intervir no mundo, de se mostrar consciente e política não é só da arte contemporânea, mas de todos nós que vivemos em um mundo, no mínimo, inquietante. A arte não poderia ficar de fora. O que vem se passando no mundo – 1989, 2001, 2008, 2012 e aqui 2013, para falar só de datas recentíssimas – leva qualquer um a buscar algum tipo de envolvimento com a realidade. Isso tampouco é novo na arte: a arte nos anos 1920/30 e depois nos anos 1960/70 também foi extremamente politizada.
Em um contexto constitucional democrático, a cultura (e suas diversas manifestações,
inclusive a arte), assegurada constitucionalmente, se relaciona diretamente ao direito à
liberdade de expressão que, a seu turno, traduz momentos de lutas políticas historicamente
travadas na busca do reconhecimento de direitos, visibilidade e voz (PRATES, 2015). Assim,
essa liberdade se torna condição de possibilidade da própria democracia, porquanto
legitimada pelo próprio regime adotado, ainda que lhe oferecendo resistência.
Lançando mão da teoria de Hannah Arendt, o trabalho dos artistas, sobretudo na
contemporaneidade, se relaciona política e historicamente com a realidade que os cerca,
tornando-se um meio através do qual o Estado é confrontado pelas obras de conteúdo político.
A cultura, como produto do comportamento humano inserido em uma coletividade, ganha
contornos políticos, por poder representar exatamente essas questões socialmente
universalizadas, ultrapassando os limites individuais do artista. A liberdade de expressão, ao
fim e ao cabo, se erige como corolário da própria cidadania, exercida de forma política e
democrática, através da cultura.
Luiz Camillo Osório enxerga exatamente essa autonomia assumida pela arte, em
relação à moral e ao conhecimento, para lidar diretamente com a política através da estética,
ideia que corrobora o fato de a arte, como manifestação cultural, poder ser um ato político,
tanto quanto a desobediência civil. Mais que isso, a arte poderia ser um meio de se exercitar a
desobediência civil, oferecendo resistência às instituições estatais, atos de governo ou leis
injustas. Nas palavras do retrocitado filósofo:
Pensando o juízo estético, mais do que isso, garantindo-lhe autonomia frente ao conhecimento e à moral, Kant teria aberto a possibilidade de se pensar um modo original de lidar com a política. O acontecimento singular da beleza seria fundamental para se capturar os sentidos possíveis da ação política e sua disseminação em um espaço público plural e conflituoso (OSÓRIO, 2011, p.220)
A arte política visa a comunicar ao público em geral alguma insatisfação ou injustiça
contra a qual resiste por meio do ato cultural e político em que se transforma a obra de arte.
Considerando que a arte política teria como um de seus objetivos comunicar um conflito
existente entre a ordem vigente e a expectativa que se tem dela, Maria Fernanda Salcedo
370
Repolês justifica a Desobediência Civil, através da teoria do Direito e da Democracia de
Jurgen Habermas, “com base em uma leitura discursiva do paradigma do Estado Democrático
de Direito […] “ (REPOLÊS, p.23).
Isso porque a desobediência civil traz a lume um ponto fulcral em que residem as
teorias políticas modernas, qual seja, o fato de a dicotomia facticidade e validade ganhar, no
Direito, nova leitura, a partir do paralelo entre legalidade e legitimidade.
Segundo Maria Fernanda Salcedo Repolês (2003, p.19), o objetivo dos desobedientes
é o de mobilizar a opinião pública, buscando mostrar a uma maioria desatenta, a princípio
insensível, o caráter geral e não particularista dos problemas que levantam. Para ela, através
da teoria de Habermas, é possível demonstrar, a partir da desobediência civil, a inexistência
da dicotomia entre o Direito positivo e a efetividade social da norma, traçada por uma visão
tradicional. Com efeito, o instituto da desobediência evidencia exatamente o contrário, ou
seja, que a inobservância da regra posta pode ser legitimada por esse mesmo sistema
normativo que a editou. Não há portanto, ruptura com o Direito quando, legitimado por ele, o
cidadão age em desconformidade com a prescrição legislativa infraconstitucional, nas
sociedades modernas.
No contexto moderno, “o Direito passa a ter um papel totalmente novo frente à
sociedade, pois, por ele, a política pode se institucionalizar, possibilitando que, com base em
um sistema de direitos, a comunidade jurídica tenha uma base de legitimidade […]”
(REPOLÊS, 2003, p. 29). E é exatamente na dimensão cultural com que essa legitimidade
jurídica pode se expressar, que se verifica a aproximação entre a arte, como expressão livre da
cultura, e a política.
Esse suposto dualismo entre Sociedade Civil e Estado, na concepção de Habermas,
pode ser reinterpretado e ganhar novos contornos, sob o prisma de análise da sua Teoria do
Discurso, da qual emerge a ideia de política deliberativa. Isso porque “a Sociedade Civil é o
substrato de uma esfera pública que inaugura constantemente espaços públicos de discussão e
de levantamento de temas” (REPOLÊS, 2003. p. 30). Dessa forma, as expressões culturais
são utilizadas como meio pelo qual o diálogo institucional se opera com a comunidade,
mediante ações políticas denominadas desobediência civil.
O produto das ações da sociedade civil não se desvincula do contexto público no qual
se insere, revestindo-se, por isso mesmo, de um inegável caráter político, que propicia debates
e resistência, para a construção dialógica de um ambiente participativo em que a linguagem
assume papel fundamental na interação entre as esferas pública e privada que se interpenetram
em uma integração social indissociável.
371
O agir comunicativo da Teoria do Discurso de Habermas se harmoniza, nesse sentido,
com o conceito de Vita Activa de Hannah Arendt, na medida em que ambos tratam dessa
experiência política da humanidade, como condição do agir humano voltado ao debate a partir
do qual se constroem democraticamente as decisões. Bobbio diz, com precisão, que o homem
de cultura não pode isolar-se, que também deve comprometer-se com os problemas da vida
coletiva, ressaltando que a cultura, por sua vez, tem necessidade de liberdade. (BOBBIO,
2015, p. 64). Nesse espaço necessário de liberdade é que a cultura se manifesta politicamente,
através da arte, pois “é a Política que fundamenta a Cultura” (MEIRELES, 2006, p.265).
4 A ARTE COMO EXERCÍCIO POLÍTICO DA DESOBEDIÊNCIA CIVIL
A arte pressupõe um uso tal de si que desperte interesse em outro, por critérios de
universalidade, tornando natural a implicação da política na realização de seu objeto, em face
da universalidade do tema, devido à inserção quase involuntária do homem no Estado
Democrático de Direito. Nas palavras de Adorno (2003, p.156), “o que chamo de 'a grande
arte' é simplesmente a arte que exige que todas as faculdades de um homem sejam nela
utilizadas, e cujas obras são tais que todas as faculdades de um outro homem sejam invocadas
no interesse de compreendê-la”.
Portanto, o interesse pela arte produzida em um determinado contexto se justifica pela
capacidade da arte de identificar-se com aqueles que conformam o seu entorno, na medida em
que o objeto da obra é reconhecido não apenas na esfera individual do artista, mas também do
seu espectador. Segundo Piero Manzoni, “para assumir o significado da própria época a
questão é, portanto, chegar à própria mitologia individual, no ponto em que ela consegue
identificar-se com a mitologia universal”. Nota-se, assim, que o fazer artístico não se limita ao
universo do artista, ganhando, ao contrário, dimensão supraindividual, pra atingir a
coletividade, no ponto em que com ela se identifica.
Nesse sentido, na primitiva e atual concepção de Aristóteles, segundo a qual o homem
é um ser político, percebe-se que a atuação artística de cunho político transcende a
individualidade do artista para ganhar a universalidade capaz de a todos dizer respeito.
Destarte, embora a obra encerre um sentido em si mesma, ela possui esse caráter universal
gerador de outros sentidos, no qual se inclui o direito de resistência. Não por outro motivo
Adorno ressalta, ainda, que:
O artista, portador da obra de arte, não é apenas aquele indivíduo que a produz, mas
372
sim torna-se o representante, por meio de seu trabalho e de sua passiva atividade, do sujeito social coletivo. Ao se submeter à necessidade da obra de arte, ele elimina tudo o que nela poderia dever apenas à mera contingência de sua individuação (ADORNO, 2003, p. )
Estabelecendo-se um paralelo entre a arte e a escrita, ambas tomadas como exemplo
de livre expressão cultural, interessante é o posicionamento de Ricardo Tim Souza (2013,
p.226), para quem escrever é um ato ético a todo real escritor. Analogamente, poder-se-ia
dizer que, ao artista, criar sua obra é também um ato ético, assim como a desobediência civil o
é ao cidadão, segundo Fernando Armando (2004. p.218), porquanto ambas as manifestações
(arte e desobediência) possam se enquadrar como modo de exercício do direito de resistência.
Após demonstrada a possibilidade de a arte, como manifestação cultural e, portanto,
política, caracterizar-se como efetivo exercício da desobediência civil, passa-se à
exemplificação do que foi acima tratado teoricamente. Diversos são os artistas que optam por
permear suas obras com conteúdos políticos que dialogam com a realidade que os circunda,
levando os espectadores a pensar e questionar o modelo estatal que os circunscreve.
Conforme mencionado adrede, em citação de entrevista de Luiz Camillo Osório, a arte
política não é nova no cenário artístico, sendo, ao contrário, representativa dos embates
sempre travados entre governo e sociedade.
Um bom exemplo de artista cujas obras se identificam com o efetivo exercício da
desobediência civil é Banksy, de origem britânica e que adota o pseudônimo, para manter-se
no anonimato e, assim, proteger-se da lei e da ordem (ELLSWORTH-JONES, 2013, p.1). O
artista é conhecido por fazer grafites de conteúdo político nas paredes das cidades, como no
caso da criança abraçada a um míssil, do policial sendo revistado por uma menina ou do black
bloc que, ao invés de coquetéis molotov, atira flores. Ao analisar a natureza do grafite como
forma de arte ou transgressão, Will Ellsworth-Jones descreve esse tênue limite, em termos
normativos, da seguinte forma:
o conselho da cidade proscreve o grafite como uma 'atividade ilegal e antissocial' e
gasta milhares de libras por ano apagando-o, mas lá estava o chefe-executivo do
conselho – ouvido em meio ao público levemente estridente da noite de abertura –
dando boas-vindas à arte de rua, tanto figurativa quanto literalmente, no exato
momento em que saía do frio lá de fora e entrava na sala de estar da cultura.
(ELLSWORTH-JONES, 2013, p.5)
Percebe-se que a produção artística de Banksy ocupa esse limiar entre a ilicitude e os
questionamentos artísticos, que denunciam conteúdos políticos, instigando os espectadores a
373
refletir sobre aquilo que ele expõe tão amplamente nas paredes das cidades. Nesse sentido,
sua arte atende aos comandos da desobediência civil, consoante revela Maria Fernanda
Salcedo Repolês, para quem:
“Aquele que pratica uma desobediência civil quer que o máximo possível de pessoas
o vejam transgredindo a lei injusta e que, assim, eles também sejam levados a
questionar a juridicidade daquela lei. É que a desobediência civil é utilizada como
estratégia extrema com dois fins precípuos: primeiro, sensibilizar a opinião pública
em torno de questões que até então não eram apresentadas como prioritárias ou
críticas; e, segundo, atingir o círculo oficial do poder político [...]” (REPOLÊS,
2003, p.19)
A arte de Banksy cumpre exatamente a descrição da autoria para a desobediência civil,
considerando seu potencial de atingir grande número de pessoas, devido ao fato de escolher
como lócus de suas obras o espaço público. Ademais, o grafite nas paredes, conforme
ressaltado anteriormente, consubstancia “atividade ilegal”, tendente a sensibilizar a opinião
pública quanto ao seu conteúdo (como a violência, os abusos cometidos por policiais, o
consumismo desenfreado, etc.), atingindo o círculo oficial do poder político de duas formas:
pelas ideias políticas pacificamente veiculadas e pela afronta a regras que vedam esse tipo de
conduta.
Outra reconhecida forma de o artista apresentar seus trabalhos, pondo em xeque o
próprio sistema de arte, foi adentrando diversas galerias famosas ao redor do mundo, elegendo
salas menos movimentadas para, simplesmente, a despeito de qualquer seleção, dependurar
suas próprias obras nas paredes. Para planejar essas ações, o artista fez visitas prévias aos
museus, atentando-se não para as obras de arte consagradas, mas para o espaço existente entre
elas e onde poderia encaixar a sua própria.
Com essa atitude, em geral filmada por alguém de confiança, Banksy transgride as
regras institucionais criadas para a seleção dos trabalhos expostos nas paredes das galerias,
mostrando pacifica, pública, coletiva e politicamente sua oposição às normas que regulam a
definição do que torna uma obra apta a ocupar legalmente um espaço público de exposição.
Na maioria das intervenções dessa natureza, as obras de Banksy duraram poucas horas nas
paredes, sendo retiradas incontinenti à percepção de que elas não compunham o acervo
oficial.
Certamente, os questionamentos de Banksy, com suas intervenções nos museus,
concernem a questões relativas ao mercado de arte, à discussão filosófica do conceito de arte,
374
mas traduz, também, certa inquietação política com as regras externas ao circuito artístico,
que fixam os critérios determinantes do que é a arte. Por isso, sua transgressão é um ato de
resistência à submissão a este tipo de regra.
Outro exemplo de arte política na qual transparece a desobediência civil por trás do ato
é a Obra Bandeira Branca, de Nuno Ramos, apresentada na 29ª Bienal de São Paulo. O
trabalho consiste em três enormes esculturas de areia preta pilada, foscas e frágeis, em cujo
topo, feito de mármore, três caixas de som emitem, em intervalos discrepantes, as canções
"Bandeira Branca", "Boi da Cara Preta" e "Carcará". Três urubus vivem na instalação durante
toda a duração do trabalho.
Nessa instalação, o artista gerou polêmicas, pelo fato de a obra confinar dois urubus
dentro de um viveiro construído no vão central da Bienal. Sob a acusação da prática de crime
ambiental, foram encaminhados abaixo-assinados ao Ministério Público de São Paulo,
exigindo providências.
Tratando de questões sobre vida e morte, o artista desafia os limites da liberdade de
expressão dentro do contexto das instituições museológicas, sendo certo que os organizadores
da 29ª Bienal afirmaram que a independência curatorial e a liberdade de criação, dentro dos
contornos estabelecidos pela lei, são valores fundamentais da entidade.
Os questionamentos, portanto, sobre os processos de imposição de limites jurídicos à
criação artística perpassam, ainda que como pano de fundo, a obra do artista, provocando o
público a refletir sobre essa incidência normativa. Acionada, a Justiça, em liminar, determinou
a retirada das aves do ambiente expositivo, devolvendo-as ao seu cativeiro de origem, mas
furtando à obra qualquer chance de construção de sentido. Ao comentar o ocorrido na obra de
Nuno Ramos, em associação com a perspectiva de ressignificação política da arte, Osório
afirma que:
Como não poderia deixar de ser, essa situação iria levar a uma reformulação do museu, ainda em processo, que passa a ser concebido, para além e à revelia de sua dinâmica espetacular, como espaço de pesquisa e de experimentação. Congregando múltiplas maneiras de ser das obras de arte, somos continuamente convocados a julgar, a fazer distinções, exigindo formas de engajamento ora mais críticas e reflexivas, ora mais lúdicas e sensoriais. É um espaço de possibilidades, obviamente atravessado por interesses e conflitos, no qual somos convidados a exercitar nossa capacidade de imaginar mundos ainda não constituídos. Esta capacidade é assinalada pelo artista Nuno Ramos ao afirmar que “a arte talvez seja a última experiência universalizante, ou ao menos não simétrica à discursividade do mundo, e acho que tende a ser cada vez mais atacada, toda vez que discrepar, como soberba e como arbítrio”. (2011, p. 233-234)
Marina Abramovic, artista performática nascida na Sérvia, executou diversos trabalhos
utilizando-se do corpo e da atuação do espectador como elementos da obra. Em uma dessas
375
obras, “Rhythm 0”, Abramovic propõe uma exploração radical do corpo, disponibilizando 72
objetos aos espectadores e postando-se em posição de suporte artístico passivo - o que
encorajava o público a assumir postura ativa em relação a ela. Os espectadores poderiam usar
os objetos postos à disposição no corpo de Abramovic, sem que ela reagisse. Pouco a pouco,
as pessoas começaram a selecionar objetos para ferir a artista e impingir-lhe dor e sofrimento,
tendo sido cravados espinhos de rosas em seus seios, cortadas as suas roupas, e apontada uma
arma para sua cabeça.
Em outro contexto, todas essas lesões corporais e ameaças à vida e à integridade de
Marina Abramovic seriam consideradas crimes que o ambiente artístico transforma em atos
possíveis, levantando questionamentos existenciais, psicológicos e filosóficos, mas também
políticos, sobre a passividade diante de atentados violentos praticados impune e
despropositadamente contra as pessoas. Analisando o trabalho de Abramovic, Flávia Dourado
(2014), afirma que “a ideia da transgressão está ligada à violação de uma lei ou norma social.
'E, mais ainda, uma violação que de certa forma prefigura a revogação da lei, pois quem vai
vencer a longo prazo é a transgressão'”.
5 CONCLUSÃO
A partir das breves reflexões sugeridas através deste estudo, propõe-se a ideia de que a
caracterização da desobediência civil, em voz uníssona na doutrina, pode se encaixar em
algumas expressões artísticas que seguem o mesmo padrão daquele instituto, sendo, por isso,
uma das variadas formas de sua manifestação. Vale dizer, algumas obras de arte se amoldam
aos critérios utilizados para tipificar a desobediência civil, mostrando-se como verdadeiro
exercício do direito de resistência, em face de sua nítida oposição a certas normas
consideradas injustas.
Isso porque a obra de arte pode apresentar-se como ato político contrário à ordem
vigente considerada injusta, sem, no entanto, mostrar-se violenta, mas, ainda assim,
traduzindo-se, por vezes, em ações ilegais, mas legitimadas por um Estado Democrático de
Direito que reconhece as liberdades individuais, englobando a liberdade de expressão. Assim,
a arte, como livre expressão da cultura, pode revestir-se de cunho político, exatamente pelo
fato de ser produto de ações humanas destinadas a promover profícuo e democrático diálogo
entre as instituições públicas e privadas, na busca pela efetivação de normas justas.
Conforme perfunctoriamente delineado, a desobediência civil acompanha o
desenvolvimento das sociedades, mostrando-se como instrumento de oposição da sociedade
376
civil contra os abusos cometidos pelo Estado. As formas de exercício desse direito também
passaram por adaptações ao longo dos tempos – o que oportunizou aos artistas, como agentes
políticos, se utilizarem de suas técnicas e conhecimentos, para debater questões universais,
por meio do seu trabalho. A arte, outrossim, tornou-se uma forma contemporânea de
promoção de intersecções entre os embates travados entre as esferas pública e privada,
tratando o artista, de maneira universal, de temas a todos caros, por sua politização.
Sendo a cultura um modo de consciência da civilização acerca de si mesma, a arte,
como expressão cultural, não se deve sujeitar ao dever jurídico de obediência àquilo que lhe é
politicamente contrário. A obra deve ser, ela própria, um instituto que decorre da
racionalidade humana e que autoriza a oposição de ideias, razão por que não deve se curvar,
mas construir ativamente a sua ideia de justiça, legitimamente suscitando o debate de questões
políticas.
O papel da arte se relaciona mais ao exercício mental de formular questionamentos,
que de encontrar respostas. É, por isto, processo inacabado de ininterrupta reconstrução, para
reconfiguração das estruturas de poder, em que sociedade civil clama por mudanças na esfera
pública, utilizando-se de atos políticos para exercer suas liberdades civis e direitos de
resistência e cidadania. A arte é um desses direitos.
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379
ANEXO 1
Grafites de Banksy
380
ANEXO 2
Nuno Ramos. Bandeira Branca - Três esculturas de granito e areia queimada comprimida, três postes de areia queimada comprimida, três urubus e três caixas de som de vidro. Grade de isolamento.
381
ANEXO 3
Performance “Rhythm 0” (1974), de Marina Abramovic
382