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Páginas Recolhidas Texto-fonte: Obra Completa, de Machado de Assis, vol. II, Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. Publicado originalmente pela Editora Garnier, Rio de Janeiro, 1899. ÍNDICE PREFÁCIO O CASO DA VARA O DICIONÁRIO UM ERRADIO ETERNO! MISSA DO GALO IDÉIAS DO CANÁRIO LÁGRIMAS DE XERXES PAPÉIS VELHOS PREFÁCIO Quelque diversité d'herbes qu'il y ayt, tout s'enveloppe sous le nom de salade. MONTAIGNE, Essais, liv. I, cap. XLVI Montaigne explica pelo seu modo dele a variedade deste livro. Não há que repetir a mesma idéia, nem qualquer outro lhe daria a graça da expressão que vai por epígrafe. O que importa unicamente é dizer a origem destas páginas. Umas são contos e novelas, figuras que vi ou imaginei, ou simples idéias que me deu na cabeça reduzir a linguagem. Saíram primeiro nas folhas volantes do jornalismo, em data diversa, e foram escolhidas dentre muitas, por achar que ainda agora possam interessar. Também vai aqui Tu só, tu, Puro Amor... comédia escrita para as festas centenárias de Camões, e representada por essa ocasião. Tiraram-se dela cem exemplares numerados que se distribuíram por algumas estantes e bibliotecas. Uma análise da correspondência de Renan com sua irmã Henriqueta, e um debuxo do nosso antigo Senado foram dados na Revista Brasileira, tão brilhantemente dirigida pelo meu ilustre e prezado amigo José Veríssimo. Sai também um pequeno discurso, lido quando se lançou a primeira pedra da estátua de Alencar. Enfim, alguns retalhos de cinco anos de crônica na Gazeta de Notícias que me pareceram não destoar do livro, seja porque o objeto não passasse inteiramente, seja porque o aspecto que lhe achei ainda agora me fale ao espírito. Tudo é pretexto para recolher folhas amigas. MACHADO DE ASSIS O CASO DA VARA Damião fugiu do seminário às onze horas da manhã de uma sexta-feira de agosto. Não sei bem o ano; foi antes de 1850. Passados alguns minutos parou vexado; não contava com o efeito que produzia nos olhos da outra gente aquele seminarista que ia espantado, medroso, fugitivo. Desconhecia as ruas, andava e desandava; finalmente parou. Para onde iria? Para casa, não; lá estava o pai que o devolveria ao seminário, depois de um bom castigo. Não assentara no ponto de refúgio, porque a saída estava determinada para mais tarde; uma circunstância fortuita a apressou. Para onde iria? Lembrou-se do padrinho, João Carneiro, mas o padrinho era um moleirão sem vontade, que por si só não faria coisa útil. Foi ele que o levou ao seminário e o apresentou ao reitor: — Trago-lhe o grande homem que há de ser, disse ele ao reitor. — Venha, acudiu este, venha o grande homem, contanto que seja também humilde e bom. A verdadeira grandeza é chã. Moço... Tal foi a entrada. Pouco tempo depois fugiu o rapaz ao seminário. Aqui o vemos agora na rua, espantado, incerto, sem atinar com refúgio nem

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Conto de machado de assis

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Pginas Recolhidas Texto-fonte: Obra Completa, de Machado de Assis, vol. II, Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. Publicado originalmente pela Editora Garnier, Rio de Janeiro, 1899. NDICE PREFCIO O CASO DA VARA O DICIONRIO UM ERRADIO ETERNO! MISSA DO GALO IDIAS DO CANRIO LGRIMAS DE XERXES PAPIS VELHOS PREFCIO Quelque diversit d'herbes qu'il y ayt, tout s'enveloppe sous le nom de salade. MONTAIGNE, Essais, liv. I, cap. XLVI Montaigne explica pelo seu modo dele a variedade deste livro. No h que repetir a mesma idia, nem qualquer outro lhe daria a graa da expresso que vai por epgrafe. O que importa unicamente dizer a origem destas pginas. Umas so contos e novelas, figuras que vi ou imaginei, ou simples idias que me deu na cabea reduzir a linguagem. Saram primeiro nas folhas volantes do jornalismo, em data diversa, e foram escolhidas dentre muitas, por achar que ainda agora possam interessar. Tambm vai aqui Tu s, tu, Puro Amor... comdia escrita para as festas centenrias de Cames, e representada por essa ocasio. Tiraram-se dela cem exemplares numerados que se distriburam por algumas estantes e bibliotecas. Uma anlise da correspondncia de Renan com sua irm Henriqueta, e um debuxo do nosso antigo Senado foram dados na Revista Brasileira, to brilhantemente dirigida pelo meu ilustre e prezado amigo Jos Verssimo. Sai tambm um pequeno discurso, lido quando se lanou a primeira pedra da esttua de Alencar. Enfim, alguns retalhos de cinco anos de crnica na Gazeta de Notcias que me pareceram no destoar do livro, seja porque o objeto no passasse inteiramente, seja porque o aspecto que lhe achei ainda agora me fale ao esprito. Tudo pretexto para recolher folhas amigas. MACHADO DE ASSIS O CASO DA VARA Damio fugiu do seminrio s onze horas da manh de uma sexta-feira de agosto. No sei bem o ano; foi antes de 1850. Passados alguns minutos parou vexado; no contava com o efeito que produzia nos olhos da outra gente aquele seminarista que ia espantado, medroso, fugitivo. Desconhecia as ruas, andava e desandava; finalmente parou. Para onde iria? Para casa, no; l estava o pai que o devolveria ao seminrio, depois de um bom castigo. No assentara no ponto de refgio, porque a sada estava determinada para mais tarde; uma circunstncia fortuita a apressou. Para onde iria? Lembrou-se do padrinho, Joo Carneiro, mas o padrinho era um moleiro sem vontade, que por si s no faria coisa til. Foi ele que o levou ao seminrio e o apresentou ao reitor: Trago-lhe o grande homem que h de ser, disse ele ao reitor. Venha, acudiu este, venha o grande homem, contanto que seja tambm humilde e bom. A verdadeira grandeza ch. Moo... Tal foi a entrada. Pouco tempo depois fugiu o rapaz ao seminrio. Aqui o vemos agora na rua, espantado, incerto, sem atinar com refgio nem conselho; percorreu de memria as casas de parentes e amigos, sem se fixar em nenhuma. De repente, exclamou: Vou pegar-me com Sinh Rita! Ela manda chamar meu padrinho, diz-lhe que quer que eu saia do seminrio... Talvez assim... Sinh Rita era uma viva, querida de Joo Carneiro; Damio tinha umas idias vagas dessa situao e tratou de a aproveitar. Onde morava? Estava to atordoado, que s da a alguns minutos que lhe acudiu a casa; era no Largo do Capim. Santo nome de Jesus! Que isto? bradou Sinh Rita, sentando-se na marquesa, onde estava reclinada. Damio acabava de entrar espavorido; no momento de chegar casa, vira passar um padre, e deu um empurro porta, que por fortuna no estava fechada a chave nem ferrolho. Depois de entrar espiou pela rtula, a ver o padre. Este no deu por ele e ia andando. Mas que isto, Sr. Damio? bradou novamente a dona da casa, que s agora o conhecera. Que vem fazer aqui? Damio, trmulo, mal podendo falar, disse que no tivesse medo, no era nada; ia explicar tudo. Descanse; e explique-se. J lhe digo; no pratiquei nenhum crime, isso juro; mas espere. Sinh Rita olhava para ele espantada, e todas as crias, de casa, e de fora, que estavam sentadas em volta da sala, diante das suas almofadas de renda, todas fizeram parar os bilros e as mos. Sinh Rita vivia principalmente de ensinar a fazer renda, crivo e bordado. Enquanto o rapaz tomava flego, ordenou s pequenas que trabalhassem, e esperou. Afinal, Damio contou tudo, o desgosto que lhe dava o seminrio; estava certo de que no podia ser bom padre; falou com paixo, pediu-lhe que o salvasse. Como assim? No posso nada. Pode, querendo. No, replicou ela abanando a cabea; no me meto em negcios de sua famlia, que mal conheo; e ento seu pai, que dizem que zangado! Damio viu-se perdido. Ajoelhou-se-lhe aos ps, beijou-lhe as mos, desesperado. Pode muito, Sinh Rita; peo-lhe pelo amor de Deus, pelo que a senhora tiver de mais sagrado, por alma de seu marido, salve-me da morte, porque eu matome, se voltar para aquela casa. Sinh Rita, lisonjeada com as splicas do moo, tentou cham-lo a outros sentimentos. A vida de padre era santa e bonita, disse-lhe ela; o tempo lhe mostraria que era melhor vencer as repugnncias e um dia... No, nada, nunca! redargia Damio, abanando a cabea e beijando-lhe as mos; e repetia que era a sua morte. Sinh Rita hesitou ainda muito tempo; afinal perguntou-lhe por que no ia ter com o padrinho. Meu padrinho? Esse ainda pior que papai; no me atende, duvido que atenda a ningum... No atende? interrompeu Sinh Rita ferida em seus brios. Ora, eu lhe mostro se atende ou no... Chamou um moleque e bradou-lhe que fosse casa do Sr. Joo Carneiro cham- lo, j e j; e se no estivesse em casa, perguntasse onde podia ser encontrado, e corresse a dizer-lhe que precisava muito de lhe falar imediatamente. Anda, moleque. Damio suspirou alto e triste. Ela, para mascarar a autoridade com que dera aquelas ordens, explicou ao moo que o Sr. Joo Carneiro fora amigo do marido e arranjara-lhe algumas crias para ensinar. Depois, como ele continuasse triste, encostado a um portal, puxou-lhe o nariz, rindo: Ande l, seu padreco, descanse que tudo se h de arranjar. Sinh Rita tinha quarenta anos na certido de batismo, e vinte e sete nos olhos. Era apessoada, viva, patusca, amiga de rir; mas, quando convinha, brava como diabo. Quis alegrar o rapaz, e, apesar da situao, no lhe custou muito. Dentro de pouco, ambos eles riam, ela contava-lhe anedotas, e pedia-lhe outras, que ele referia com singular graa. Uma destas, estrdia, obrigada a trejeitos, fez rir a uma das crias de Sinh Rita, que esquecera o trabalho, para mirar e escutar o moo. Sinh Rita pegou de uma vara que estava ao p da marquesa, e ameaoua: Lucrcia, olha a vara! A pequena abaixou a cabea, aparando o golpe, mas o golpe no veio. Era uma advertncia; se noitinha a tarefa no estivesse pronta, Lucrcia receberia o castigo do costume. Damio olhou para a pequena; era uma negrinha, magricela, um frangalho de nada, com uma cicatriz na testa e uma queimadura na mo esquerda. Contava onze anos. Damio reparou que tossia, mas para dentro, surdamente, a fim de no interromper a conversao. Teve pena da negrinha, e resolveu apadrinh-la, se no acabasse a tarefa. Sinh Rita no lhe negaria o perdo... Demais, ela rira por achar-lhe graa; a culpa era sua, se h culpa em ter chiste. Nisto, chegou Joo Carneiro. Empalideceu quando viu ali o afilhado, e olhou para Sinh Rita, que no gastou tempo com prembulos. Disse-lhe que era preciso tirar o moo do seminrio, que ele no tinha vocao para a vida eclesistica, e antes um padre de menos que um padre ruim. C fora tambm se podia amar e servir a Nosso Senhor. Joo Carneiro, assombrado, no achou que replicar durante os primeiros minutos; afinal, abriu a boca e repreendeu o afilhado por ter vindo incomodar "pessoas estranhas", e em seguida afirmou que o castigaria. Qual castigar, qual nada! interrompeu Sinh Rita. Castigar por qu? V, v falar a seu compadre. No afiano nada, no creio que seja possvel... H de ser possvel, afiano eu. Se o senhor quiser, continuou ela com certo tom insinuativo, tudo se h de arranjar. Pea-lhe muito, que ele cede. Ande, Senhor Joo Carneiro, seu afilhado no volta para o seminrio; digo-lhe que no volta... Mas, minha senhora... V, v. Joo Carneiro no se animava a sair, nem podia ficar. Estava entre um puxar de foras opostas. No lhe importava, em suma, que o rapaz acabasse clrigo, advogado ou mdico, ou outra qualquer coisa, vadio que fosse; mas o pior que lhe cometiam uma luta ingente com os sentimentos mais ntimos do compadre, sem certeza do resultado; e, se este fosse negativo, outra luta com Sinh Rita, cuja ltima palavra era ameaadora: "digo-lhe que ele no volta". Tinha de haver por fora um escndalo. Joo Carneiro estava com a pupila desvairada, a plpebra trmula, o peito ofegante. Os olhares que deitava a Sinh Rita eram de splica, mesclados de um tnue raio de censura. Por que lhe no pedia outra coisa? Por que lhe no ordenava que fosse a p, debaixo de chuva, Tijuca, ou Jacarepagu? Mas logo persuadir ao compadre que mudasse a carreira do filho... Conhecia o velho; era capaz de lhe quebrar uma jarra na cara. Ah! se o rapaz casse ali, de repente, apopltico, morto! Era uma soluo cruel, certo, mas definitiva. Ento? insistiu Sinh Rita. Ele fez-lhe um gesto de mo que esperasse. Coava a barba, procurando um recurso. Deus do cu! um decreto do papa dissolvendo a Igreja, ou, pelo menos, extinguindo os seminrios, faria acabar tudo em bem. Joo Carneiro voltaria para casa e ia jogar os trs-setes. Imaginai que o barbeiro de Napoleo era encarregado de comandar a batalha de Austerlitz... Mas a Igreja continuava, os seminrios continuavam, o afilhado continuava cosido parede, olhos baixos, esperando, sem soluo apopltica. V, v, disse Sinh Rita dando-lhe o chapu e a bengala. No teve remdio. O barbeiro meteu a navalha no estojo, travou da espada e saiu campanha. Damio respirou; exteriormente deixou-se estar na mesma, olhos fincados no cho, acabrunhado. Sinh Rita puxou-lhe desta vez o queixo. Ande jantar, deixe-se de melancolias. A senhora cr que ele alcance alguma coisa? H de alcanar tudo, redargiu Sinh Rita cheia de si. Ande, que a sopa est esfriando. Apesar do gnio galhofeiro de Sinh Rita e do seu prprio esprito leve, Damio esteve menos alegre ao jantar que na primeira parte do dia. No fiava do carter mole do padrinho. Contudo, jantou bem; e, para o fim, voltou s pilhrias da manh. sobremesa, ouviu um rumor de gente na sala, e perguntou se o vinham prender. Ho de ser as moas. Levantaram-se e passaram sala. As moas eram cinco vizinhas que iam todas as tardes tomar caf com Sinh Rita, e ali ficavam at o cair da noite. As discpulas, findo o jantar delas, tornaram s almofadas do trabalho. Sinh Rita presidia a todo esse mulherio de casa e de fora. O sussurro dos bilros e o palavrear das moas eram ecos to mundanos, to alheios teologia e ao latim, que o rapaz deixou-se ir por eles e esqueceu o resto. Durante os primeiros minutos, ainda houve da parte das vizinhas certo acanhamento, mas passou depressa. Uma delas cantou uma modinha, ao som da guitarra, tangida por Sinh Rita, e a tarde foi passando depressa. Antes do fim, Sinh Rita pediu a Damio que contasse certa anedota que lhe agradara muito. Era a tal que fizera rir Lucrcia. Ande, senhor Damio, no se faa de rogado, que as moas querem ir embora. Vocs vo gostar muito. Damio no teve remdio seno obedecer. Malgrado o anncio e a expectao, que serviam a diminuir o chiste e o efeito, a anedota acabou entre risadas das moas. Damio, contente de si, no esqueceu Lucrcia e olhou para ela, a ver se rira tambm. Viu-a com a cabea metida na almofada para acabar a tarefa. No ria; ou teria rido para dentro, como tossia. Saram as vizinhas, e a tarde caiu de todo. A alma de Damio foi-se fazendo tenebrosa, antes da noite. Que estaria acontecendo? De instante a instante, ia espiar pela rtula, e voltava cada vez mais desanimado. Nem sombra do padrinho. Com certeza, o pai f-lo calar, mandou chamar dois negros, foi polcia pedir um pedestre, e a vinha peg-lo fora e lev-lo ao seminrio. Damio perguntou a Sinh Rita se a casa no teria sada pelos fundos; correu ao quintal, e calculou que podia saltar o muro. Quis ainda saber se haveria modo de fugir para a Rua da Vala, ou se era melhor falar a algum vizinho que fizesse o favor de o receber. O pior era a batina; se Sinh Rita lhe pudesse arranjar um rodaque, uma sobrecasaca velha... Sinh Rita dispunha justamente de um rodaque, lembrana ou esquecimento de Joo Carneiro. Tenho um rodaque do meu defunto, disse ela, rindo; mas para que est com esses sustos? Tudo se h de arranjar, descanse. Afinal, boca da noite, apareceu um escravo do padrinho, com uma carta para Sinh Rita. O negcio ainda no estava composto; o pai ficou furioso e quis quebrar tudo; bradou que no, senhor, que o peralta havia de ir para o seminrio, ou ento metia-o no Aljube ou na presiganga. Joo Carneiro lutou muito para conseguir que o compadre no resolvesse logo, que dormisse a noite, e meditasse bem se era conveniente dar religio um sujeito to rebelde e vicioso. Explicava na carta que falou assim para melhor ganhar a causa. No a tinha por ganha; mas no dia seguinte l iria ver o homem, e teimar de novo. Conclua dizendo que o moo fosse para a casa dele. Damio acabou de ler a carta e olhou para Sinh Rita. No tenho outra tbua de salvao, pensou ele. Sinh Rita mandou vir um tinteiro de chifre, e na meia folha da prpria carta escreveu esta resposta: "Joozinho, ou voc salva o moo, ou nunca mais nos vemos". Fechou a carta com obreia, e deu-a ao escravo, para que a levasse depressa. Voltou a reanimar o seminarista, que estava outra vez no capuz da humildade e da consternao. Disse-lhe que sossegasse, que aquele negcio era agora dela. Ho de ver para quanto presto! No, que eu no sou de brincadeiras! Era a hora de recolher os trabalhos. Sinh Rita examinou-os; todas as discpulas tinham concludo a tarefa. S Lucrcia estava ainda almofada, meneando os bilros, j sem ver; Sinh Rita chegou-se a ela, viu que a tarefa no estava acabada, ficou furiosa, e agarrou-a por uma orelha. Ah! malandra! Nhanh, nhanh! pelo amor de Deus! por Nossa Senhora que est no cu. Malandra! Nossa Senhora no protege vadias! Lucrcia fez um esforo, soltou-se das mos da senhora, e fugiu para dentro; a senhora foi atrs e agarrou-a. Anda c! Minha senhora, me perdoe! tossia a negrinha. No perdo, no. Onde est a vara? E tornaram ambas sala, uma presa pela orelha, debatendo-se, chorando e pedindo; a outra dizendo que no, que a havia de castigar. Onde est a vara? A vara estava cabeceira da marquesa, do outro lado da sala. Sinh Rita, no querendo soltar a pequena, bradou ao seminarista. Sr. Damio, d-me aquela vara, faz favor? Damio ficou frio... Cruel instante! Uma nuvem passou-lhe pelos olhos. Sim, tinha jurado apadrinhar a pequena, que por causa dele, atrasara o trabalho... D-me a vara, Sr. Damio! Damio chegou a caminhar na direo da marquesa. A negrinha pediu-lhe ento por tudo o que houvesse mais sagrado, pela me, pelo pai, por Nosso Senhor... Me acuda, meu sinh moo! Sinh Rita, com a cara em fogo e os olhos esbugalhados, instava pela vara, sem largar a negrinha, agora presa de um acesso de tosse. Damio sentiu-se compungido; mas ele precisava tanto sair do seminrio! Chegou marquesa, pegou na vara e entregou-a a Sinh Rita. O DICIONRIO Era uma vez um tanoeiro, demagogo, chamado Bernardino, o qual em cosmografia professava a opinio de que este mundo um imenso tonel de marmelada, e em poltica pedia o trono para a multido. Com o fim de a pr ali, pegou de um pau, concitou os nimos e deitou abaixo o rei; mas, entrando no pao, vencedor e aclamado, viu que o trono s dava para uma pessoa, e cortou a dificuldade sentando-se em cima. Em mim, bradou ele, podeis ver a multido coroada. Eu sou vs, vs sois eu. O primeiro ato do novo rei foi abolir a tanoaria, indenizando os tanoeiros, prestes a derrub-lo, com o ttulo de Magnficos. O segundo foi declarar que, para maior lustre da pessoa e do cargo, passava a chamar-se, em vez de Bernardino, Bernardo. Particularmente encomendou uma genealogia a um grande doutor dessas matrias, que em pouco mais de uma hora o entroncou a um tal ou qual general romano do sculo IV, Bernardus Tanoarius; nome que deu lugar controvrsia, que ainda dura, querendo uns que o rei Bernardo tivesse sido tanoeiro, e outros que isto no passe de uma confuso deplorvel com o nome do fundador da famlia. J vimos que esta segunda opinio a nica verdadeira. Como era calvo desde verdes anos, decretou Bernardo que todos os seus sditos fossem igualmente calvos, ou por natureza ou por navalha, e fundou esse ato em uma razo de ordem poltica, a saber, que a unidade moral do Estado pedia a conformidade exterior das cabeas. Outro ato em que revelou igual sabedoria, foi o que ordenou que todos os sapatos do p esquerdo tivessem um pequeno talho no lugar correspondente ao dedo mnimo, dando assim aos seus sditos o ensejo de se parecerem com ele, que padecia de um calo. O uso dos culos em todo o reino no se explica de outro modo, seno por uma oftalmia que afligiu a Bernardo, logo no segundo ano do reinado. A doena levou-lhe um olho, e foi aqui que se revelou a vocao potica de Bernardo, porque, tendo-lhe dito um dos seus dois ministros, chamado Alfa, que a perda de um olho o fazia igual a Anbal, comparao que o lisonjeou muito, o segundo ministro, mega, deu um passo adiante, e achou-o superior a Homero, que perdera ambos os olhos. Esta cortesia foi uma revelao; e como isto prende com o casamento, vamos ao casamento. Tratava-se, em verdade, de assegurar a dinastia dos Tanoarius. No faltavam noivas ao novo rei, mas nenhuma lhe agradou tanto como a moa Estrelada, bela, rica e ilustre. Esta senhora, que cultivava a msica e a poesia, era requestada por alguns cavalheiros, e mostrava-se fiel dinastia decada. Bernardo ofereceu-lhe as coisas mais suntuosas e raras, e, por outro lado, a famlia bradava-lhe que uma coroa na cabea valia mais que uma saudade no corao; que no fizesse a desgraa dos seus, quando o ilustre Bernardo lhe acenasse com o principado; que os tronos no andavam a rodo, e mais isto, e mais aquilo. Estrelada, porm, resistia seduo. No resistiu muito tempo, mas tambm no cedeu tudo. Como entre os seus candidatos preferia secretamente um poeta, declarou que estava pronta a casar, mas seria com quem lhe fizesse o melhor madrigal, em concurso. Bernardo aceitou a clusula, louco de amor e confiado em si: tinha mais um olho que Homero, e fizera a unidade dos ps e das cabeas. Concorreram ao certmen, que foi annimo e secreto, vinte pessoas. Um dos madrigais foi julgado superior aos outros todos; era justamente o do poeta amado. Bernardo anulou por um decreto o concurso, e mandou abrir outro; mas ento, por uma inspirao de insigne maquiavelismo, ordenou que no se empregassem palavras que tivessem menos de trezentos anos de idade. Nenhum dos concorrentes estudara os clssicos: era o meio provvel de os vencer. No venceu ainda assim porque o poeta amado leu pressa o que pde, e o seu madrigal foi outra vez o melhor. Bernardo anulou esse segundo concurso; e, vendo que no madrigal vencedor as locues antigas davam singular graa aos versos, decretou que s se empregassem as modernas e particularmente as da moda. Terceiro concurso, e terceira vitria do poeta amado. Bernardo, furioso, abriu-se com os dois ministros, pedindo-lhes um remdio pronto e enrgico, porque, se no ganhasse a mo de Estrelada, mandaria cortar trezentas mil cabeas. Os dois, tendo consultado algum tempo, voltaram com este alvitre: Ns, Alfa e mega, estamos designados pelos nossos nomes para as coisas que respeitam linguagem. A nossa idia que Vossa Sublimidade mande recolher todos os dicionrios e nos encarregue de compor um vocabulrio novo que lhe dar a vitria. Bernardo assim fez, e os dois meteram-se em casa durante trs meses, findos os quais depositaram nas augustas mos a obra acabada, um livro a que chamaram Dicionrio de Babel, porque era realmente a confuso das letras. Nenhuma locuo se parecia com a do idioma falado; as consoantes trepavam nas consoantes, as vogais diluam-se nas vogais, palavras de duas slabas tinham agora sete e oito, e vice-versa, tudo trocado, misturado, nenhuma energia, nenhuma graa, uma lngua de cacos e trapos. Obrigue Vossa Sublimidade esta lngua por um decreto, e est tudo feito. Bernardo concedeu um abrao e uma penso a ambos, decretou o vocabulrio, e declarou que ia fazer-se o concurso definitivo para obter a mo da bela Estrelada. A confuso passou do dicionrio aos espritos; toda a gente andava atnita. Os farsolas cumprimentavam-se na rua pela novas locues: diziam, por exemplo, em vez de: Bom dia, como passou? Pflerrgpxx, rouph, aa? A prpria dama, temendo que o poeta amado perdesse afinal a campanha, props-lhe que fugissem; ele, porm, respondeu que ia ver primeiro se podia fazer alguma coisa. Deram noventa dias para o novo concurso e recolheram-se vinte madrigais. O melhor deles, apesar da lngua brbara, foi o do poeta amado. Bernardo, alucinado, mandou cortar as mos aos dois ministros e foi a nica vingana. Estrelada era to admiravelmente bela, que ele no se atreveu a mago-la, e cedeu. Desgostoso, encerrou-se oito dias na biblioteca, lendo, passeando ou meditando. Parece que a ltima coisa que leu foi uma stira do poeta Garo, e especialmente estes versos, que pareciam feitos de encomenda: O raro Apeles, Rubens e Rafael, inimitveis No se fizeram pela cor das tintas; A mistura elegante os fez eternos. UM ERRADIO A porta abriu-se... Deixa-me contar a histria laia de novela, disse Tosta mulher, um ms depois de casados, quando ela lhe perguntou quem era o homem representado numa velha fotografia, achada na secretria do marido. A porta abriu-se, e apareceu este homem, alto e srio, moreno, metido numa infinita sobrecasaca cor de rap, que os rapazes chamavam opa. A vem a opa do Elisirio. Entre a opa s. No, a opa no pode; entre s o Elisirio, mas, primeiro h de glosar um mote. Quem d o mote? Ningum dava o mote. A casa era uma simples sala, sublocada por um alfaiate, que morava nos fundos com a famlia; Rua do Lavradio, 1866. Era a segunda vez que ia ali, a convite de um dos rapazes. No podes ter idia da sala e da vida. Imagina um municpio do pas da Bomia, tudo desordenado e confuso; alm dos poucos mveis pobres, que eram do alfaiate, havia duas redes, uma canastra, um cabide, um ba de folha-de-flandres, livros, chapus, sapatos. Moravam cinco rapazes, mas apareciam outros, e todos eram tudo, estudantes, tradutores, revisores, namoradores, e ainda lhes sobrava tempo para redigir uma folha poltica e literria, publicada aos sbados. Que longas palestras que tnhamos! Solapvamos as bases da sociedade, descobramos mundos novos, constelaes novas, liberdades novas. Tudo era o novssimo. L vai mote, disse afinal um dos rapazes, e recitou: Podia embrulhar o mundo A opa do Elisirio. Parado porta, o homem cerrou os olhos por alguns instantes, abriu-os, passou pela testa o leno que trazia fechado na mo, em forma de bolo, e recitou uma glosa de improviso. Rimo-nos muito; eu, que no tinha idia do que era improviso, cuidei a princpio que a composio era velha e a cena um logro para mim. Elisirio despiu a sobrecasaca, levantou-a na ponta da bengala, deu duas voltas pela sala, com ar triunfal, e foi pendur-la a um prego, porque o cabide estava cheio. Em seguida, atirou o chapu ao teto, apanhou-o entre as mos, e foi p-lo em cima do aparador. Lugar para um! disse finalmente. Dei-me pressa em ceder-lhe o sof; ele deitou-se, fincou os joelhos no ar, e perguntou que novidades havia. Que o jantar duvidoso, respondeu o redator principal do Cenculo; o Chico foi ver se cobrava alguma assinatura. Se arranjar dinheiro, traz logo o jantar da casa de pasto. Voc j jantou? J e bem, respondeu Elisirio, jantei numa casa de comrcio. Mas vocs por que que no vendem o Chico? um bonito crioulo. livre, no h dvida, mas por isso mesmo compreender que, deixando-se vender como escravo, tero vocs com que pagar-lhe os ordenados... Dois mil-ris chegam? Romeu, v ali no bolso da sobrecasaca. H de haver uns dois mil-ris. Havia s mil e quinhentos, mas no foram precisos. Cinco minutos depois voltava o Chico, trazendo um tabuleiro com o jantar e o resto da assinatura de um semestre. No possvel! bradou Elisirio. Uma assinatura! Vem c, Chico. Quem foi que pagou? Que figura tinha o homem? Baixo? No possvel que fosse baixo; a ao to sublime que nenhum homem baixo podia pratic-la. Confessa que era alto. Confessa ao menos que era de meia altura. Confessas? Ainda bem! Como se chama? Guimares? Rapazes, vamos perpetuar este nome em uma placa de bronze. Acredito que no lhe deste recibo, Chico. Dei, sim, senhor. Recibo! Mas a um assinante que paga no se d recibo, para que ele pague outra vez; no se matam esperanas, Chico. Tudo isto, dito por ele, tinha muito mais graa que contado. No te posso pintar os gestos, os olhos e um riso que no ria, um riso nico, sem alterar a face, nem mostrar os dentes. Essa feio era a menos simptica; mas tudo o mais, a fala, as idias, e principalmente a imaginao fecunda e moa, que se desfazia em ditos, anedotas, epigramas, versos, descries, ora srio, quase sublime, ora familiar, quase rasteiro, mas sempre original, tudo atraa e prendia. Trazia a barba por fazer, o cabelo escovinha; a testa, que era alta, tinha grossas rugas verticais. Calado, parecia estar pensando. Voltava-se a mido no sof, erguia-se, sentavase, tornava a deitar-se. L o deixei, quando sa, s nove horas da noite. Comecei a freqentar a casa da Rua do Lavradio, mas durante os primeiros dias no apareceu o Elisirio. Disseram-me que era muito incerto. Tinha temporadas. s vezes, ia todos os dias; repentinamente, falhava uma, duas, trs semanas seguidas, e mais. Era professor de latim e explicador de matemticas. No era formado em coisa nenhuma, posto estudasse engenharia, medicina e direito deixando em todas as faculdades fama de grande talento sem aplicao. Seria bom prosador, se fosse capaz de escrever vinte minutos seguidos; era poeta de improviso, no escrevia os versos, os outros que os ouviam e transladavam ao papel, dando-lhe cpias, muitas das quais perdia. No tinha famlia; tinha um protetor, o Dr. Lousada, operador de algum nome, que devera obsquios ao pai de Elisirio, e quis pag-los ao filho. Era atrevido por causa de uma sombrinha de amor-prprio que no tolerava a menor picada. Naquela casa era bonacho. Trinta e cinco anos; o mais velho dos rapazes contava apenas vinte e um. A familiaridade entre ele e os outros era como a de um tio com sobrinhos, um pouco menos de autoridade, um pouco mais de liberdade. No fim de uma semana, apareceu Elisirio na Rua do Lavradio. Vinha com a idia de escrever um drama, e queria dit-lo. Escolheram-me a mim, por escrever depressa. Esta colaborao mental e manual durou duas noites e meia. Escreveuse um ato e as primeiras cenas de outro; Elisirio no quis absolutamente acabar a pea. A princpio disse que depois, mais tarde, estava indisposto, e falava de outras coisas; afinal, declarou-nos que a pea no prestava para nada. Espanto geral, porque a obra parecia-nos excelente, e ainda agora creio que o era. Mas o autor pegou da palavra e demonstrou que nem o escrito prestava, nem o resto do plano valia coisa nenhuma. Falou como se tratasse de outrem. Ns contestvamos; eu principalmente achava um crime, e repetia esta palavra com alma, com fogo achava um crime no acabar o drama, que era de primeira ordem. No vale nada, dizia ele sorrindo para mim com simpatia. Menino, voc quantos anos tem? Dezoito. Tudo sublime aos dezoito anos. Cresa e aparea. O drama no presta; mas, deixe estar que havemos de escrever outro daqui a dias. Ando com uma idia. Sim? Uma boa idia, continuou ele com os olhos vagos; essa, sim, creio que dar um drama. Cinco atos; talvez faa em verso. O assunto presta-se... Nunca mais falou em tal idia; mas o drama comeado fez com que nos ligssemos um pouco mais intimamente. Ou simpatia, ou amor-prprio satisfeito, por ver que o mais consternado com a interrupo e condenao do trabalho fui eu, ou qualquer outra causa que no achei nem vale a pena buscar, Elisirio entrou a distinguir-me entre os outros. Quis saber quem eram meus pais e o que fazia. Disse-lhe que no tinha me; meu pai era lavrador em Baturit, eu estudava preparatrios, intercalando-os com versos, e andava com idias de compor um poema, um drama e um romance. Tinha j uma lista de subscritores para os versos. Parece que, de envolta com as notcias literrias, alguma coisa lhe disse ou ele percebeu acerca dos meus sentimentos de moo. Props-se a ajudar-me nos estudos com o seu prprio ensino, latim, francs, ingls, histria... Cheio de orgulho, no menos que de sensibilidade, proferi algumas palavras que ele gostou de ouvir, e a que respondeu gravemente: Quero fazer de voc um homem. Estvamos ss; eu nada contei aos outros, para os no molestar, nem sei se eles perceberam da em diante alguma diferena no trato do Elisirio, em relao a mim. certo, porm, que a diferena no era grande, nem o plano de "fazer-me um homem" foi alm da simpatia e da benevolncia. Ensinava-me algumas matrias, quando eu lhe pedia lies, e eu raramente as pedia. Queria s ouvi-lo, ouvi-lo, ouvi-lo at no acabar. No imaginas a eloqncia desse homem, clida e forte, mansa e doce, as imagens que lhe brotavam no discurso, as idias arrojadas, as formas novas e graciosas. Muita vez ficvamos os dois ss na Rua do Lavradio, ele falando, eu ouvindo. Onde morava? Disseram-me vagamente que para os lados da Gamboa, mas nunca me convidou a l ir, nem ningum sabia positivamente onde era. Na rua era lento, direito, circunspecto. Nada faria ento suspeitar o desengonado da casa do Lavradio, e, se falava, eram poucas e meias palavras. Nos primeiros dias, encontrava-me sem alvoroo quase sem prazer, ouvia-me atento, respondia pouco, estendia os dedos e continuava a andar. Ia a toda parte; era comum ach- lo nos lugares mais distantes uns dos outros, Botafogo, S. Cristvo, Andara. Quando lhe dava na veneta, metia-se na barca e ia a Niteri. Chamava-se a si mesmo erradio. Eu sou um erradio. No dia em que parar de vez, jurem que estou morto. Um dia encontrei-o na Rua de S. Jos. Disse-lhe que ia ao Castelo ver a igreja dos Jesutas, que nunca vira. Pois vamos, disse ele. Subimos a ladeira, achamos a igreja aberta e entramos. Enquanto eu mirava os altares, ele ia falando, mas em poucos minutos o espetculo era ele s, um espetculo vivo, como se tudo renascera tal qual era. Vi os primeiros templos da cidade, os padres da Companhia, a vida monstica e leiga, os nomes principais e os fatos culminantes. Quando samos, e fomos at muralha, descobrindo o mar e parte da cidade, Elisirio fez-me viver dois sculos atrs. Vi a expedio dos franceses, como se a houvesse comandado ou combatido. Respirei o ar da colnia, contemplei as figuras velhas e mortas. A imaginao evocativa era a grande prenda desse homem, que sabia dar vida s coisas extintas e realidade s inventadas. Mas no era s do passado local que ele sabia, nem unicamente dos seus sonhos. Vs aquela estatuazinha que ali tenho na parede? Sabes que uma reduo da Vnus de Milo. Uma vez, abrindo-se a exposio das belas-artes, fui visit-la; achei l o meu Elisirio, passeando grave, com a sua imensa sobrecasaca. Acompanhou-me; ao passar pela sala de escultura, dei com os olhos na cpia desta Vnus. Era a primeira vez que a via. Soube que era ela pela falta dos braos. Oh! admirvel! exclamei. Elisirio entrou a comentar a bela obra annima, com tal abundncia e agudeza que me deixou ainda mais pasmado. Que de coisas me disse a propsito da Vnus de Milo, e da Vnus em si mesma! Falou da posio dos braos, que gesto fariam, que atitude dariam figura, formulando uma poro de hipteses graciosas e naturais. Falou da esttica, dos grandes artistas, da vida grega, do mrmore grego, da alma grega. Era um grego, um puro grego, que ali me aparecia e transportava de uma rua estreita para diante do Prtenon. A opa do Elisirio transformou-se em clmide, a lngua devia ser a da Hlade, conquanto eu nada soubesse a tal respeito, nem ento, nem agora. Mas era feiticeiro o diabo do homem. Samos; fomos at o Campo da Aclamao, que ainda no possua o parque de hoje, nem tinha outra polcia alm da natureza, que fazia brotar o capim, e das lavadeiras, que batiam e ensaboavam a roupa defronte do quartel. Eu ia cheio do discurso do Elisirio, ao lado dele, que levava a cabea baixa e os olhos pensativos. De repente, ouvi dizer baixinho: Adeus, Ioi! Era uma quitandeira de doces, uma crioula baiana, segundo me pareceu pelos bordados e crivos da saia e da camisa. Vinha da Cidade Nova e atravessava o campo. Elisirio respondeu saudao: Adeus, Zeferina. Estacou e olhou para mim, rindo sem riso, e, depois de alguns segundos: No se espante, menino. H muitas espcies de Vnus. O que ningum dir que a esta lhe faltem braos, continuou olhando para os braos da quitandeira, mais negros ainda pelo contraste da manga curta e alva da camisa. Eu, de vexado, no achei resposta. No contei esse episdio na Rua do Lavradio; podiam meter bulha o Elisirio, e no queria parecer indiscreto. Tinha-lhe no sei que venerao particular que a familiaridade no enfraquecia. Chegamos a jantar juntos algumas vezes, e uma noite fomos ao teatro. O que mais lhe custava no teatro era estar muito tempo na mesma cadeira, apertado entre duas pessoas, com gente adiante e atrs de si. Nas noites de enchente, em que eram precisas travessas na platia, ficava aflito com a idia de no poder sair no meio de um ato, se quisesse. Naquela, acabado o terceiro ato (a pea tinha cinco), disse-me que no podia mais e que ia embora. Fomos tomar ch ao botequim prximo, e deixei-me estar, esquecido do espetculo. Ficamos at o fechar das portas. Tnhamos falado de viagens; eu contei-lhe a vida do serto cearense, ele ouviu e projetou mil jornadas ao serto do Brasil inteiro, por serras, campos e rios, de mula e de canoa. Colheria tudo, plantas, lendas, cantigas, locues. Narrou a vida do caipira, falou de Enias, citou Virglio e Cames, com grande espanto dos criados, que paravam boquiabertos. Voc era capaz de ir daqui a p, at S. Cristvo, agora? perguntou-me na rua. Pode ser. No, voc est cansado. No estou, vamos. Est cansado, adeus; at depois, concluiu. Realmente, estava fatigado, precisava dormir. Quando ia a voltar para casa, perguntei a mim mesmo se ele iria sozinho, quela hora, e deu-me vontade de acompanh-lo de longe, at certo ponto. Ainda o apanhei na Rua dos Ciganos. Ia devagar, com a bengala debaixo do brao, e as mos ora atrs, ora nas algibeiras das calas. Atravessou o Campo da Aclamao, enfiou pela Rua de S. Pedro e meteu-se pelo Aterrado acima. Eu, no Campo, quis voltar, mas a curiosidade fezme ir andando tambm. Quem sabe se esse erradio no teria pouso certo de amores escondidos? No gostei desta reflexo, e quis punir-me desandando; mas a curiosidade levara-me o sono e dava-me vigor s pernas. Fui andando atrs do Elisirio. Chegamos assim ponte do Aterrado, enfiamos por ela, desembocamos na Rua de S. Cristvo. Ele algumas vezes parava, ou para acender um charuto, ou para nada. Tudo deserto, uma ou outra patrulha, algum tlburi, raro, a passo cochilado, tudo deserto e longo. Assim chegamos ao cais da Igrejinha. Junto ao cais dormiam os botes que, durante o dia, conduziam gente para o Saco do Alferes. Mar frouxa, apenas o ressonar manso da gua. Aps alguns minutos, quando me pareceu que ia voltar pelo mesmo caminho, acordou os remadores de um bote, que de acaso ali dormiam, e props-lhes lev-lo cidade. No sei quanto ofereceu; vi que, depois de alguma relutncia, aceitaram a proposta. Elisirio entrou no bote, que se afastou logo, os remos feriram a gua, e l se perdeu na noite e no mar o meu professor de latim e explicador de matemticas. Tambm eu me achei perdido, longe da cidade e exausto. Valeu-me um tlburi, que atravessava o Campo de S. Cristvo, to cansado como eu, mas piedoso e necessitado. Voc no quis ir comigo anteontem a So Cristvo? No sabe o que perdeu; a noite estava linda, o passeio foi muito agradvel. Chegando ao cais da Igrejinha, meti-me num bote e vim desembarcar no Saco do Alferes. Era um bom pedao at a casa; fiquei numa hospedaria do Campo de Sant'Ana. Fui atacado por um cachorro, no caminho do Saco, e por dois na Rua de S. Diogo, mas no senti as pulgas da hospedaria, porque dormi como um justo. E voc que fez? Eu? No querendo mentir, se ele me tivesse pressentido, nem confessar que o acompanhara de longe, respondi sumariamente: Eu? Eu tambm dormi como um justo. Justus, justa, justum. Estvamos na casa da Rua do Lavradio. Elisirio trazia no peito da camisa um boto de coral, objeto de grande espanto e aclamao da parte dos rapazes, que nunca jamais o viram com jias. Maior, porm, foi o meu espanto, depois que os rapazes saram. Tendo ouvido que me faltava dinheiro para comprar sapatos, Elisirio sacou o boto de coral e disse que me fosse calar com ele. Recusei energicamente, mas tive de aceit-lo fora. No o vendi nem empenhei; no dia seguinte pedi algum dinheiro adiantado ao correspondente de meu pai, calcei-me de novo, e esperei que chegasse o paquete do Norte, para restituir o boto ao Elisirio. Se visses a cara de desconsolo com que o recebeu! Mas o senhor no disse outro dia que lhe tinham dado este boto de presente? repliquei proposta que me fez de ficar com a jia. Sim, disse e verdade; mas para que me servem jias? Acho que ficam melhor nos outros. Bem pensado, como presente, posso guardar o boto. Deveras, no o quer para si? No, senhor; um presente... Presente de anos, continuou mirando a pedra com o olhar vago. Fiz trinta e cinco. Estou velho, meu menino; no tardo em pedir reforma e ir morrer em algum buraco. Tinha acabado de repor o boto na camisa. Fez anos, e no me disse. Para qu? Para visitar-me? No recebo nesse dia; de costume janto com o meu velho amigo Dr. Lousada, que tambm faz o seu versinho, s vezes, e outro dia brindou-me com um soneto impresso em papel azul... L o tenho em casa; no mau. Foi ele que lhe deu o boto... No, foi a filha... O soneto tem um verso muito parecido, com outro de Cames; o meu velho Lousada possui as suas letras clssicas, alm de ser excelente mdico... Mas o melhor dele a alma ... Quiseram faz-lo deputado. Ouvi que dois amigos dele, homens polticos, entenderam que o Elisirio daria um bom orador parlamentar. No se ops, pediu apenas aos inventores do projeto que lhe emprestassem algumas idias polticas; riram-se, e o projeto no foi adiante. Quero crer que lhe no faltassem idias, talvez as tivesse de sobra, mas to contrrias umas s outras que no chegariam a formar uma opinio. Pensava segundo a disposio do dia, liberal exaltado ou conservador corcunda. O principal motivo da recusa era a impossibilidade de obedecer a um partido, a um chefe, a um regimento de cmara. Se houvesse liberdade de alterar as horas da sesso, uma de manh, outra de noite, outra de madrugada, ao acaso da freqncia, sem ordem do dia, com direito de discutir o anel de Saturno ou os sonetos de Petrarca, o meu erradio Elisirio aceitaria o cargo, contanto que no fosse obrigado a estar calado, nem a falar, quando lhe chegasse a vez. A tens o que era esse homem fotografado em 1862. Em suma, boa criatura, muito talento, excelente conversador, alma inquieta e doce, desconfiada e irritadia, sem futuro nem passado, sem saudades nem ambies, um erradio. Seno quando... Mas muito falar sem fumar um charuto... Consentes? Enquanto acendo o charuto, olha para esse retrato, descontando-lhe os olhos, que no saram bem; parecem olhos de gato e inquisidor, espetados na gente, como querendo furar a conscincia. No eram isso; olhavam mais para dentro que para fora, e quando olhavam para fora derramavam-se por toda a parte. Seno quando, uma tarde, j escuro, por volta das sete horas, apareceu-me na casa de penso o meu amigo Elisirio. Havia trs semanas que o no via, e, como tratava de fazer exames, e passava mais tempo metido em casa, no me admirei da ausncia nem cuidei dela. Demais, j me acostumara aos seus eclipses. O quarto estava escuro, eu ia sair e acabava de apagar a vela, quando a figura alta e magra do Elisirio apareceu porta. Entrou, foi direito a uma cadeira, sentei-me ao p dele, perguntei-lhe por onde andara. Elisirio abraou-me chorando. Fiquei to assombrado que no pude dizer nada; abracei-o tambm, ele enxugou os olhos com o leno, que de costume trazia fechado na mo, e suspirou largo. Creio que ainda chorou silenciosamente, porque enxugava os olhos de quando em quando. Eu, cada vez mais assombrado, esperava que ele me dissesse o que tinha; afinal murmurei: Que ? que foi? Tosta, casei-me sbado... Cada vez mais espantado, no tive tempo de lhe pedir outra explicao, porque o Elisirio continuou logo, dizendo que era um casamento de gratido, no de amor, uma desgraa. No sabia que respondesse confidncia, no acabava de crer na notcia, e principalmente, no entendia o abatimento nem a dor do homem. A figura do Elisirio, qual a recompus depois, no me aparecia por esse tempo com a significao verdadeira. Cheguei a supor alguma coisa mais que o simples casamento; talvez a mulher fosse idiota ou tsica; mas quem o obrigaria a desposar uma doente? "Uma desgraa! repetia baixinho, falando para si, uma desgraa!" Como eu me levantasse dizendo que ia acender uma vela, Elisirio reteve-me pela aba do fraque. No acenda, no me vexe, o escuro melhor, para lhe expor esta minha desgraa. Oua-me. Uma desgraa. Casado! No que ela me no ame; ao contrrio, morria por mim h sete anos. Tem vinte e cinco... Boa criatura! Uma desgraa! A palavra desgraa era a que mais vezes lhe tornava ao discurso. Eu, para saber o resto, quase no respirava; mas no ouvi grande coisa, pois o homem, depois de algumas palavras descosidas, suspendeu a conferncia. Fiquei sabendo s que a mulher era filha do Dr. Lousada, seu protetor e amigo, a mesma que lhe dera o boto de coral. Elisirio calou-se de repente, e depois de alguns instantes como arrependido ou vexado, pediu-me que no referisse a pessoa alguma aquela cena dele comigo. O senhor deve conhecer-me... Conheo, e porque o conheo que vim aqui. No sei que outra pessoa me merecesse agora igual confiana. Adeus, no lhe digo mais nada, no vale a pena. Voc moo, Tosta; se no tiver vocao para o casamento, no se case nunca, nem por gratido, nem por interesse. H de ser um suplcio. Adeus. No lhe digo onde moro, moro com meu sogro, mas no me procure. Abraou-me e saiu. Fiquei porta do quarto. Quando me lembrei de acompanh-lo at escada, era tarde; ia descendo os ltimos degraus. O lampio de azeite alumiava mal a escada, e a figura descia vagarosa, apoiada ao corrimo, cabea baixa e a vasta sobrecasaca alegre, agora triste. S dez meses depois tornei a ver o Elisirio. A primeira ausncia foi minha; tinha ido ao Cear, ver meu pai, durante as frias. Quando voltei, soube que ele fora ao Rio Grande do Sul. Um dia, almoando, li nos jornais que chegara na vspera, e corri a busc-lo. Achei-o em Santa Teresa, uma casinha pequena, com um jardim, pouco maior que ela. Elisirio abraou-me com alvoroo; falamos de coisas passadas; perguntei-lhe pelos versos. Publiquei um volume em Porto Alegre. No foi por minha vontade, mas minha mulher teimou tanto que afinal cedi; ela mesma os copiou. Tem alguns erros; hei de fazer aqui uma segunda edio. Elisirio deu-me um exemplar do livro, mas no consentiu que lesse ali nada. Queria s falar dos tempos idos. Perdera o sogro, que lhe deixara alguma coisa, e ia continuar a lecionar, para ver se achava as impresses de outrora. Onde estavam os rapazes da Rua do Lavradio? Recordava cenas antigas, noitadas, algazarra, grandes risotas, que me iam lembrando coisas anlogas, e assim gastamos duas boas horas compridas. Quando me despedi, pegou-me para jantar. Voc ainda no viu minha mulher, disse ele. E indo porta que dava para dentro: Cintinha! L vou! respondeu uma voz doce. D. Jacinta chegou logo depois, com os seus vinte e seis anos, mais baixa que alta, mais feia que bonita, expresso boa e sria, grande quietao de maneiras. Quando ele lhe disse o meu nome, olhou para mim espantada. No um bonito rapaz? Ela confirmou a opinio inclinando modestamente a cabea. Elisirio disse-lhe que eu jantava com eles; a moa retirou-se da sala. Boa criatura, disse-me ele; dedicada, servial. Parece que me adora. J me no faltam botes nos palets que trago... Pena! melhor que eles eram os botes que faltavam. A sobrecasaca de outrora, lembra-se? Podia embrulhar o mundo A opa do Elisirio. Lembra-me. Creio que me durou cinco anos. Onde vai ela! Hei de fazer-lhe um epicdio, com uma epgrafe de Horcio... Jantamos alegremente. D. Jacinta falou pouco; deixou que eu e o marido gastssemos o tempo em relembrar o passado. Naturalmente, o marido tinha surtos de eloqncia, como outrora; a mulher era pouca para ouvi-lo. Elisirio esquecia-se de ns, ela de si, e eu achava a mesma nota antiga, to viva e to forte. Era costume dele concluir um discurso desses e ficar algum tempo calado. Resumia dentro de si o que acabava de dizer? Continuava a mesma ordem de idias? Deixava-se ir ainda pela msica da palavra? No sei; achei-lhe o velho costume de ficar calado sem dar pelos outros. Nessas ocasies a mulher calava-se tambm, a olhar para ele, no cheia de pensamento, mas de admirao. Sucedeu isso duas vezes. Em ambas chegou a ser bonita. Elisirio disse-me, ao caf, que viria comigo abaixo. Voc deixa, Cintinha? D. Jacinta sorriu para mim, como se dissesse que o pedido era desnecessrio. Tambm ela falou no livro de versos do marido. Elisirio preguioso; o senhor h de ajudar-me a fazer com que ele trabalhe. Meia hora depois descamos a ladeira. Elisirio confessou-me que, desde que casara, no tivera ocasio de relembrar a vida de solteiro, e ao chegarmos abaixo declarou-me que iramos ao teatro. Mas voc no avisou em casa... Que tem? Aviso depois. Cintinha boa, no se zanga por isso. Que teatro h de ser? No foi nenhum; falamos de outras coisas, e s nove horas tornou para casa. Voltei a Santa Teresa poucos dias depois, no o achei, mas a mulher disse-me que o esperasse, no tardaria. Foi a uma visita aqui mesmo no morro, disse ela; h de gostar muito de o ver. Enquanto falava, ia fechando dissimuladamente um livro, e foi p-lo em uma mesa, a um canto. Tratamos do marido; ela pediu-me que lhe dissesse o que pensava dele, se era um grande esprito, um grande poeta, um grande orador, um grande homem, em suma. As palavras no seriam propriamente essas, mas vinham a dar nelas. Eu, que o admirava, confirmei-lhe o sentimento, e o gosto com que me ouviu foi paga bastante ao tal ou qual esforo que empreguei para dar minha opinio a mesma nfase. Faz bem em ser amigo dele, concluiu; ele sempre me falou bem do senhor; dizia que era um menino muito srio. O gabinete tinha flores frescas e uma gaiola com passarinho. Tudo em ordem, cada coisa em seu lugar, obra visvel da mulher. Da a pouco entrou Elisirio, com a gravata no pescoo, o lao na frente, a barba rapada, correto e em flor. S ento notei a diferena entre este Elisirio e o outro. A incoerncia dos gestos era j menor, ou estava prestes a acabar inteiramente. A inquietao desaparecera. Logo que ele entrou, a mulher deixou-nos para ir mandar fazer caf, e voltou pouco depois, com um trabalho de agulha. No, senhora, vamos primeiro ao latim, bradou o marido. D. Jacinta corou extraordinariamente, mas obedeceu ao marido e foi buscar o livro que estava lendo quando eu cheguei. Tosta de confiana, continuou Elisrio, no vai dizer nada a ningum. E voltando-se para mim: No pense que sou eu que lhe imponho isto; ela mesma que quis aprender. No crendo o que ele me dizia, quis poupar moa a lio de latim, mas foi ela prpria que me dispensou o auxlio, indo buscar alegremente a gramtica do Padre Pereira. Vencida a vergonha, deu a lio, como um simples aluno. Ouvia com ateno, articulava com prazer, e mostrava aprender com vontade. Acabado o latim, o marido quis passar lio de histria; mas foi ela, dessa vez, que recusou obedecer, para me no roub-lo a mim. Eu, pasmado, desfiz-me em louvores; realmente achava to fora de propsito aquela escola de latim conjugal, que no alcanava explicao, nem ousava pedi-la. Amiudei as visitas. Jantava com eles algumas vezes. Ao domingo ia s almoar. D. Jacinta era um primor. No imaginas a graa que tinha em falar e andar, tudo sem perder a compostura dos modos nem a gravidade dos pensamentos. Sabia muitos trabalhos de mos, apesar do latim e da histria que o marido lhe ensinava. Vestia com simplicidade, usava os cabelos lisos e no trazia jia alguma; podia ser afetao, mas tal era a sinceridade que punha em tudo, que parecia natural nisso como no resto. Ao domingo, o almoo era no jardim. J achava o Elisirio minha espera, porta, ansioso que eu chegasse. A mulher estava acabando de arranjar as flores e folhagens que tinham de adornar a mesa. Alm disso e do mais, adornava cartes contendo a lista dos pratos, com emblemas poticos e nomes de musas para as comidas. Nem todas as musas podiam entrar, eles no eram ricos, nem ns to comiles; entravam as que podiam. Era ao almoo que Elisirio, nos primeiros tempos, mais geralmente improvisava alguma coisa. Improvisava dcimas, ele preferia essa estrofe a qualquer outra; mais tarde, foi diminuindo o nmero delas, e para diante no passava de duas ou de uma. D. Jacinta pedia-lhe ento sonetos; sempre eram quatorze versos. Ela e eu copivamos logo, a lpis, com retificaes que ele fazia, rindo: "Para que querem vocs isso?" Afinal perdeu o costume, com grande mgoa da mulher, e minha tambm. Os versos eram bons, a inspirao fcil; faltava-lhes s o calor antigo. Um dia perguntei a Elisirio por que no reimprimia o livro de versos, que ele dizia ter sado com incorrees; eu ajudaria a ler as provas. D. Jacinta apoiou com entusiasmo a proposta. Pois, sim, disse ele, um dia destes; comearemos domingo. No domingo, D. Jacinta, estando a ss comigo, um instante, pediu-me que no esquecesse a reviso do livro. No, senhora, deixe estar. No enfraquea, se ele quiser adiar o trabalho, continuou a moa; provvel que ele fale em guardar para outra vez, mas teime sempre, diga que no, que se zanga, que no volta c... Apertou-me a mo com tanta fora, que me deixou abalado. Os dedos tremiamlhe; parecia um aperto de namorada. Cumpri o que disse, ela ajudou-me, e ainda assim gastamos meia hora antes que ele se dispusesse ao trabalho. Afinal pediunos que esperssemos, ia buscar o livro. Desta vez, vencemos, disse eu. D. Jacinta fez com a boca um gesto de desconfiana, e passou da alegria ao abatimento. Elisirio est preguioso. H de ver que no acabamos nada. Pois no v que no faz versos seno fora de muito pedido, e poucos? Podia escrever tambm, quando mais no fosse alguns daqueles discursos que costuma improvisar, mas os prprios discursos so raros e curtos. Tenho-me oferecido tantas vezes para escrever o que ele mandar... Chego a preparar o papel, pego na pena e espero; ele ri, disfara, diz um gracejo, e responde que no est disposto. Nem sempre estar. Pois sim; mas ento declaro que estou pronta para quando vier a inspirao, e peo-lhe que me chame. No chama nunca. Uma ou outra vez tem planos; eu vou animando, mas os planos ficam no mesmo. Entretanto, o livro que ele imprimiu em Porto Alegre foi bem recebido, podia anim-lo. Anim-lo? Mas ele no precisa de animaes; basta-lhe o grande talento que tem. No verdade? disse ela chegando-se a mim, com os olhos cheios de fogo. Mas pena! tanto talento perdido! Ns o acharemos; hei de trat-lo como se ele fosse mais moo que eu. O mau foi deix-lo cair na ociosidade... Elisirio tornou com um exemplar do livro. No trazia tinta nem pena; ela foi busc-las. Comeamos o trabalho da reviso; o plano era emendar, no s os erros de imprensa, mas o prprio texto. A novidade do caso interessou grandemente o nosso poeta, durante perto de duas horas. Verdade que a maior parte do tempo era interrompido com a histria das poesias, a notcia das pessoas, se as havia, e havia muitas; uma boa poro das composies era dedicada a amigos ou homens pblicos. Naturalmente fizemos pouco: no passamos de vinte pginas. Elisirio confessou que estava com sono, adiamos o trabalho, e nunca mais pegamos nele. D. Jacinta chegou a pedir ao marido que nos deixasse a ns a tarefa de emendar o livro; ele veria depois o texto emendado e pronto. Elisirio respondeu que no, que ele mesmo faria tudo, que esperssemos, no havia pressa. Mas, como disse, nunca mais pegamos no livro. J raro improvisava, e, como no tinha pacincia para compor escrevendo, os versos iam escasseando mais. J lhe saam frouxos; o poeta repetia-se. Quisemos ainda assim propor-lhe outro livro, recolhendo o que havia, e antes de o propor, tratamos de compil-lo. O todo precisava de reviso; Elisirio consentiu em faz-la, mas a tentativa teve o mesmo resultado que a outra. Os prprios discursos iam acabando. O gosto da palavra morria. Falava como todos ns falamos; no era j nem sombra daquela catadupa de idias, de imagens, de frases, que mostravam no orador um poeta. Para o fim, nem falava; j me recebia sem entusiasmo, ainda que cordialmente. Afinal vivia aborrecido. Com poucos anos de casada, D. Jacinta tinha no marido um homem de ordem, de sossego, mas sem inspirao nem calor. Ela prpria foi mudando tambm. No instava j pela composio de versos novos, nem pela correo dos velhos. Ficou to desinteressada como ele. Os jantares e os almoos eram como os de qualquer pessoa que no cuide de letras. D. Jacinta buscava no tocar em tal assunto que era penoso ao marido e a ela; eu imitava-os. Quando me formei, Elisirio comps um soneto em honra minha; mas j lhe custou muito, e, a falar verdade, no era do mesmo homem de outro tempo. D. Jacinta vivia ento, no direi triste, mas desencantada. A razo no se compreender bem, seno sabendo as origens da afeio que a levara ao casamento. Pelo que pude colher e observar, nunca essa moa amou verdadeiramente o homem com quem casou. Elisirio acreditou que sim, e o disse, porque o pai dela pensava que era deveras um amor como os outros. A verdade, porm, que o sentimento de D. Jacinta era pura admirao. Tinha uma paixo intelectual por esse homem, nada mais, e nos primeiros anos no pensou em casar com ele. Quando Elisirio ia casa do Dr. Lousada, D. Jacinta vivia as melhores horas da vida, escutando-lhe os versos, novos ou velhos, os que trazia de cor e os que improvisava ali mesmo. Possua boa cpia deles. Mas, ainda que no fossem versos, contentava-se em ouvi-lo para admir-lo. Elisirio, que a conhecia desde pequena, falava-lhe como a uma irm mais moa. Depois viu que era inteligente, mais do que o comum das mulheres, e que havia nela um sentimento de poesia e de arte que a faziam superior. O apreo em que a tinha era grande, mas no passava disso. Assim se passaram anos. D. Jacinta comeou a pensar em um ato de pura dedicao. Conhecia a vida de Elisirio, os dias perdidos, as noitadas, a incoerncia e o desarranjo de uma existncia que ameaava acabar na inutilidade. Nenhum estmulo, nenhuma ambio de futuro. D. Jacinta acreditava no gnio de Elisirio. Muitos eram os admiradores; nenhum tinha a f viva, a devoo calada e profunda daquela moa. O projeto era despos-lo. Uma vez casados, ela lhe daria a ambio que no tinha, o estmulo, o hbito do trabalho regular, metdico, e naturalmente abundante. Em vez de perder o tempo e a inspirao em coisas fteis ou conversas ociosas, comporia obras de flego, nas boas horas e para ele quase todas as horas eram excelentes. O grande poeta afirmar-se-ia perante o mundo. Assim disposta, no lhe foi difcil obter a colaborao do pai, sem todavia confessar-lhe o motivo secreto da ao; seria dizer que se casava sem amor. O que ela disse foi que o amava deveras. Que haja nisso uma nota romanesca, verdade; mas o romanesco era aqui obra de piedade, vinha de um sentimento de admirao, e podia ser um sacrifcio. Talvez mais de um tentasse casar com ela. D. Jacinta no pensou em ningum, at que lhe surdiu a idia generosa de seduzir o poeta. J sabes que este casou por obedincia. O resultado foi inteiramente oposto s esperanas da moa. O poeta, em vez dos louros, enfiou uma carapua na cabea, e mandou bugiar a poesia. Acabou em nada. Para o fim dos tempos nem lia j obras de arte. D. Jacinta padeceu grandemente; viu esvair-se-lhe o sonho, e, se no perdeu, antes ganhou o latim, perdeu aquela lngua sublime em que cuidou falar s ambies de um grande esprito. A concluso a que chegou foi ainda um desconsolo para si. Concluiu que o casamento esterilizara uma inspirao que s tinha ambiente na liberdade do celibato. Sentiu remorsos. Assim, alm de no achar as douras do casamento na unio com Elisirio, perdeu a nica vantagem a que se propusera no sacrifcio. Errava naturalmente. Para mim Elisirio era o mesmo erradio, ainda que parecesse agora pousado; mas era tambm um talento de pouca dura; tinha de acabar, ainda que no casasse. No foi a ordem que lhe tirou a inspirao. Certamente, a desordem ia mais com ele que tanto tinha de agitado, como de solitrio; mas a quietao e o mtodo no dariam cabo do poeta, se a poesia nele no fosse uma grande febre da mocidade... Em mim que no passou de ligeira constipao da adolescncia. Pede-me tu amor, que o ters; no me peas versos, que desaprendi h muito, concluiu Tosta, beijando a mulher. ETERNO! No me expliques nada, disse eu entrando no quarto; o negcio da baronesa. Norberto enxugou os olhos e sentou-se na cama, com as pernas pendentes. Eu, cavalgando uma cadeira, pousei a barba no dorso, e proferi este breve discurso: Mas, meu pateta, quantas vezes queres que te diga que acabes com essa paixo ridcula e humilhante? Sim, senhor, humilhante e ridcula, porque ela no faz caso de ti; e demais, arriscado. No? Vers se o , quando o baro desconfiar que lhe arrastas a asa mulher. Olha que ele tem cara de maus bofes. Norberto meteu as unhas na cabea, desesperado. Tinha-me escrito cedo, pedindo que fosse confort-lo e dar-lhe algum conselho; esperara-me na rua, at perto de uma hora da noite, defronte da casa de penso em que eu morava; contava-me na carta que no dormira, que recebera um golpe terrvel, falava em atirar-se ao mar. Eu, apesar de outro golpe que tambm recebera, acudi ao meu pobre Norberto. ramos da mesma idade, estudvamos medicina, com a diferena que eu repetia o terceiro ano, que perdera, por vadio. Norberto vivia com os pais; no me cabendo igual fortuna, por hav-los perdido, vivia de uma mesada que me dava um tio da Bahia e das dvidas que o bom velho pagava semestralmente. Pagava-as, e escrevia-me logo uma poro de coisas amargas, concluindo sempre que, pelo menos, fosse estudando at ser doutor. Doutor, para qu? dizia comigo. Pois se nem o sol, nem a lua, nem as moas, nem os bons charutos Vilegas eram doutores, que necessidade tinha eu de o ser? E tocava a rir, a folgar, a deixar correr semanas e credores. Falei de um golpe recebido. Era uma carta do tio, vinda com a do Norberto, naquela mesma manh. Abri-a antes da outra, e li-a com pasmo. J me no tuteava; dizia cerimoniosamente: "Sr. Simeo Antnio de Barros, estou farto de gastar toa o meu dinheiro com o senhor. Se quiser concluir os estudos, venha matricular-se aqui, e morar comigo. Se no, procure por si mesmo recursos; no lhe dou mais nada." Amarrotei o papel, finquei os olhos numa litografia muito ruim do Visconde de Sepetiba, que j achei pendente de um prego, no meu quarto de penso, e disse-lhe os nomes mais feios, de maluco para baixo. Bradei que podia guardar o seu dinheiro, que eu tinha vinte anos, o primeiro dos direitos do homem, anterior aos tios e outras convenes sociais. A imaginao, madre amiga, apontou-me logo uma infinidade de recursos, que bastavam a dispensar os magros cobres de um velho avarento; mas, passada essa primeira impresso, e relida a carta, entrei a ver que a soluo era mais rdua do que parecia. Os recursos podiam ser bons e at certos; mas eu estava to afeito a ir Rua da Quitanda receber a penso mensal e a gast-la em dobro, que mal podia adotar outro sistema. Foi neste ponto que abri a carta do amigo Norberto e corri casa dele. J sabem o que lhe disse; viram que ele meteu as unhas na cabea, desesperado. Saibam agora que, depois do gesto, disse com olhar sombrio que esperava de mim outros conselhos. Quais? No me respondeu. Que compres uma pistola ou uma gazua? algum narctico? Para que ests caoando comigo? Para fazer-te homem. Norberto deu de ombros, com um laivozinho de escrnio ao canto da boca. Que homem? Que era ser homem seno amar a mais divina criatura do mundo e morrer por ela? A Baronesa de Magalhes, causa daquela demncia, viera pouco antes da Bahia, com o marido, que antes do baronato, adquirido para satisfazer a noiva, era Antnio Jos Soares de Magalhes. Vinham casados de fresco; a baronesa tinha menos trinta anos que o baro; ia em vinte e quatro. Realmente era bela. Chamavam-lhe, em famlia, Iai Lindinha. Como o baro era velho amigo do pai de Norberto, as duas famlias uniram-se desde logo. Morrer por ela? disse eu. Jurou-me que sim; era capaz de matar-se. Mulher misteriosa! A voz dela entravalhe pelos ossos... E, dizendo isto, rolava na cama, batia com a cabea, mordia os travesseiros. s vezes, parava, arquejando; logo depois tornava s mesmas convulses, abafando os soluos e os gritos, para que os no ouvissem do primeiro andar. J acostumado s lgrimas do meu amigo, desde a vinda da baronesa, esperei que elas acabassem, mas no acabavam. Descavalguei a cadeira, fui a ele, bradei-lhe que era uma crianada, e despedi-me; Norberto pegou-me na mo, para que ficasse, no me tinha dito ainda o principal. verdade; que ? Vo-se embora. Estivemos l ontem, e ouvi que embarcam sbado. Para a Bahia? Sim. Ento, vo comigo. Contei-lhe o caso da carta, e as ordens de meu tio para ir matricular-me na Bahia, e estudar ao p dele. Norberto escutou-me alvoroado. Na Bahia? Iramos juntos; ramos ntimos, os pais no recusariam este favor nossa jovem amizade. Confesso que o plano pareceu-me excelente, e demo-nos a ele com afinco. A me, apesar de muita lgrima que teria de verter ao despegar-se do filho, cedeu mais prontamente do que supnhamos. O pai que no cedeu nada. No houve rogos nem empenhos; o prprio baro, que eu tive a arte de trazer ao nosso propsito, no alcanou do velho amigo que deixasse ir o filho, nem ainda com a promessa de o aposentar em casa e velar por ele. O pai foi inflexvel. Podem imaginar o desespero do meu amigo. Na noite de sexta-feira esteve em casa dela, com a famlia, at onze horas; mas, com o pretexto de passar comigo a ltima noite da minha estada aqui, veio realmente chorar tantas e tais lgrimas, como nunca as vi chorar jamais, nem antes nem depois. No podia descrer da paixo, nem presumir consol-la; era a primeira. At ento, ambos ns s conhecamos os trocos midos do amor; e, por desgraa dele a primeira moeda grande que achara, no era ouro nem prata, seno ferro, duro ferro, como a do velho Licurgo, forjada como mesmo amargo vinagre. No dormimos. Norberto chorava, arrepelava-se, pedia a morte, construa planos absurdos ou terrveis. Eu, arranjando as malas, ia-lhe dizendo alguma coisa que o consolasse; era pior, era como se falasse de dana a uma perna dolorida. Consegui que fumasse um cigarro, depois outro, e afinal fumou-os s dzias, sem acabar nenhum. s trs horas tratava do modo de fugir ao Rio de Janeiro, no logo, mas da a dias, no primeiro vapor. Tirei-lhe essa idia da cabea unicamente no interesse dele prprio. Ainda se fosse til, v, disse-lhe eu; mas ir sem certeza de nada, ir dar com o nariz na porta, porque a mulher, se no gosta de ti, e te v l, capaz de perceber logo o motivo da tua viagem, e no te recebe. Que sabes tu? Pode receber-te, mas no h certeza, acho eu. Crs que ela goste de ti? No digo que sim, nem que no. Contou-me episdios, gestos, ditos, coisas ambguas ou insignificantes; depois vinha uma reticncia de lgrimas, murros no peito, clamor de angstia, a dor iase-me comunicando; padecia com ele, a razo cedia compaixo, as nossas naturezas fundiam-se em uma s lstima. Da esta promessa que lhe fiz. Tenho uma idia. Vou com eles, j nos conhecemos, provvel que freqente a casa; eu ento farei uma coisa: sondo-a a teu respeito. Se vir que nem pensa em ti, escrevo-te francamente que penses em outra coisa; mas se achar alguma inclinao, pouca que seja, aviso-te, e, ou por bem ou por mal, embarca. Norberto aceitou alvoroado a proposta; era uma esperana. Fez-me jurar que cumpriria tudo, que a observaria bem, sem temor, e, pela sua parte, jurou-me que no hesitaria um instante. E teimava comigo que no perdesse nada; que, s vezes, um indcio pequeno valia muito, uma palavrinha era um livro; que, se pudesse, aludisse ao desespero em que o deixava. Para peitar a minha sagacidade, afirmou que o desengano mat-lo-ia, porque esse amor, eterno como era, iria fartar-se na morte e na eternidade. No achei boca para replicar-lhe que isto era o mesmo que obrigar-me a s mandar boas notcias. Naquela ocasio, apenas sabia chorar com ele. A aurora registrou o nosso pacto imoral. No consenti que ele fosse a bordo despedir-se. Parti. No falemos da viagem... mares de Homero, flagelados por Euros, Breas e o violento Zfiro, mares picos, podeis sacudir Ulisses, mas no lhe dais as aflies do enjo. Isso bom para os mares de agora, e particularmente para aqueles que me levaram daqui Bahia. S depois de chegar ante a cidade, ousei aparecer nossa dona magnfica, to senhora de si, como se acabasse de dar um passeio apenas longo. No tem saudades do Rio de Janeiro? disse-lhe eu logo, de intrito. Certamente. O baro veio indicar-me os lugares que a gente via do paquete, ou a direo de outros. Ofereceu-me a casa dele, no Bonfim. Meu tio veio a bordo, e, por mais que quisesse fazer-se ttrico, senti-lhe o corao amigo. Via-me, nico filho da irm finada, e via-me obediente. No podia haver para mim melhores impresses de entrada. Divina juventude! as coisas novas pagavam-me em dobro as coisas velhas. Dei os primeiros dias ao conhecimento da cidade; mas no tardou que uma carta do meu amigo Norberto me chamasse a ateno para ele. Fui ao Bonfim. A baronesa ou Iai Lindinha, que era ainda o nome dado por toda a gente, recebeu-me com tanta graa, e o marido era to hospedeiro e bom, que me envergonhei da particular comisso que trazia. Mas durou pouco a vergonha, vi o desespero do meu amigo, e a necessidade de consol-lo ou desengan-lo era superior a qualquer outra considerao. Confesso at uma singularidade; agora que estavam separados entrou-me na alma a esperana de que ela no desgostasse dele, justamente o que eu negava antes. Talvez fosse o desejo de o ver feliz; podia ser uma instigao da vaidade que me acenasse com a vitria em favor do desgraado. Naturalmente, conversamos do Rio de Janeiro. Eu dizia-lhe as minhas saudades, falava das coisas que estava acostumado a ver, das ruas que faziam parte da minha pessoa, das caras de todos os dias das casas, das afeies... Oh! as afeies eram os laos mais apertados. Tinha amigos: os pais de Norberto... Dois santos, interrompeu a moa; meu marido, que conhece o velho desde muitos anos, conta dele coisas curiosas. Sabe que casou por uma paixo fortssima? Adivinha-se. O filho o fruto expressivo do amor dos dois. Conheceu bem o meu pobre Norberto? Conheci; ia l casa muitas vezes. No conheceu. Iai Lindinha franziu levemente a testa. Perdoe-me se a desminto, continuei com vivacidade. No conheceu a melhor alma, a mais pura e a mais ardente que Deus criou. Talvez que ache parcial por ser amigo. A verdade que ningum me prende mais ao Rio de Janeiro. Coitado do meu Norberto! No imagina que homem talhado para dois ofcios ao mesmo tempo, arcanjo e heri, para dizer terra as delcias do cu, e para escalar o cu, se for preciso ir l levar as lamentaes humanas... S no fim desta fala compreendi que era ridcula. Iai Lindinha, ou no a entendeu assim, ou disfarou a opinio; disse-me somente que a minha amizade era entusiasta, mas que o meu amigo parecia boa pessoa. No era alegre, ou tinha crises melanclicas. Disseram-lhe que ele estudava muito... Muito. No insisti para no atropelar os acontecimentos... Que o leitor me no condene sem remisso nem agravo. Sei que o papel que eu fazia no era bonito; mas j l vo vinte e sete anos. Confio do Tempo, que um insigne alquimista. D-se-lhe um punhado de lodo, ele o restitui em diamantes; quando menos, em cascalho. Assim que, se um homem de Estado escrever e publicar as suas memrias, to sem escrpulo, que lhes no falte nada, nem confidncias pessoais, nem segredos do governo, nem at amores, amores particularssimos e inconfessveis, ver que escndalo levanta o livro. Diro, e diro bem, que o autor um cnico, indigno dos homens que confiaram nele e das mulheres que o amaram. Clamor sincero e legtimo, porque o carter pblico impe muitos resguardos; os bons costumes e o prprio respeito s mulheres amadas constrangem ao silncio... ... Mas deixai pingar os anos na cuba de um sculo. Cheio o sculo, passa o livro a documento histrico, psicolgico, anedtico. Ho de l-lo a frio; estudar-se- nele a vida ntima do nosso tempo, a maneira de amar, a de compor os ministrios e deit-los abaixo, se as mulheres eram mais animosas que dissimuladas, como que se faziam eleies e galanteios, se eram usados xales ou capas, que veculos tnhamos, se os relgios eram trazidos direita ou esquerda, e multido de coisas interessantes para a nossa histria pblica e ntima. Da a esperana que me fica, de no ser condenado absolutamente pela conscincia dos que me lem. J l vo vinte e sete anos! Gastei mais de meio em bater porta daquele corao, a ver se l achava o Norberto; mas ningum me respondia de dentro, nem o prprio marido. No obstante, as cartas que mandava ao meu pobre amigo, se no levavam esperanas, tambm no levavam desenganos. Houve-as at mais esperanosas que desenganadas. A afeio que lhe tinha e o meu amor-prprio conjugavam as foras todas para espertar nela a curiosidade e a seduo de um mistrio remoto e possvel. J ento as nossas relaes eram familiares. Visitava-os a mido. Quando l no ia trs noites seguidas, vivia aflito e inquieto; corria a v-los na quarta noite, e era ela que me esperava ao porto da chcara, para dizer-me nomes feios, ingrato, preguioso, esquecido. Os nomes foram cessando, mas a pessoa no deixava de estar ali espera, com a mo prestes a apertar a minha, s vezes, trmula, ou seria a minha que tremia; no sei. Amanh no posso vir, dizia-lhe algumas noites, despedida, baixo, no vo de uma janela. Por qu? Explicava-lhe a causa, estudo ou alguma obrigao de meu tio. Nunca tentou dissuadir-me de promessa, mas ficava desconsolada. Comecei a escrever menos ao Norberto e a falar pouco de Iai Lindinha, como quem no ia casa dela. Tinha frmulas diferentes: "Ontem encontrei o baro no largo do Palcio; disse-me que a mulher est boa". Ou ento: "Sabes quem vi h trs dias no teatro? A baronesa". No relia as cartas, para no encarar a minha hipocrisia. Ele, pela sua parte, tambm ia escrevendo menos, e bilhetes curtos. Entre mim e a moa no aparecia mais o nome de Norberto; convencionamos, sem palavras, que era um defunto, e um triste defunto sem galas morturias. Beirvamos o abismo, ambos teimando que era um reflexo da cpula celeste, incongruncia para os que no andam namorados. A morte resolveu o problema, levando consigo o baro, por meio de um ataque de apoplexia, no dia vinte e trs de maro de 1861, s seis horas da tarde. Era um excelente homem, a quem a viva pagou em preces o que lhe no dera em amor. Quando eu lhe pedi, trs meses depois, que, acabado o luto, casasse comigo, Iai Lindinha no estranhou nem me despediu. Ao contrrio, respondeu que sim, mas no to cedo; punha uma condio: que conclusse primeiro os estudos, que me formasse. E disse isto com os mesmos lbios, que pareciam ser o nico livro do mundo, o livro universal, a melhor das academias, a escola das escolas. Apelei dela para ela; escutou-me inflexvel. A razo que me deu foi que meu tio podia recear que, uma vez casado, interromperia a carreira. E com razo, concluiu. Oua-me: s me caso com um doutor. Cumprimos ambos a promessa. Durante algum tempo andou ela pela Europa, com uma cunhada e o marido desta; e as saudades foram ento as minhas disciplinas mais duras. Estudei pacientemente; despeguei-me de todas as vadiaes antigas. Recebi o capelo na vspera da bno matrimonial; e posso dizer, sem hipocrisia, que achei o latim do padre muito superior ao discurso acadmico. Semanas depois, pediu-me Iai Lindinha que vissemos ao Rio de Janeiro. Cedi ao pedido, confesso que um pouco atordoado. C viria achar o meu amigo Norberto, se que ele ainda residia aqui. Ia em mais de trs anos que nos no escrevamos; j antes disso as nossas cartas eram breves e sem interesse. Saberia do nosso casamento? Dos precedentes? Viemos; no contei nada a minha mulher. Para qu? Era dar-lhe notcia de uma aleivosia oculta, dizia comigo. Ao chegar, pus esta questo a mim mesmo, se esperaria a visita dele, se iria visit-lo antes; escolhi o segundo alvitre, para avis-lo das coisas. Engenhei umas circunstncias especiais, curiosas, acarretadas pela Providncia, cujos fios ficam sempre ocultos aos homens. No me ria, note-se bem; minha imaginao compunha tudo isso com seriedade. No fim de quatro dias, soube que Norberto morava para os lados do Rio Comprido; estava casado. Tanto melhor. Corri a casa dele. Vi no jardim uma preta amamentando uma criana, outra criana de ano e meio, que recolhia umas pedrinhas do cho, acocorada. Nh Bertinho, vai dizer a mame que est aqui um moo procurando papai. O menino obedeceu; mas, antes que voltasse, chegava de fora o meu velho amigo Norberto. Conheci-o logo, apesar das grandes suas que usava; lanamo-nos nos braos um do outro. Tu aqui? Quando chegaste? Ontem. Ests mais gordo, meu velho! Gordo e bonito. Entremos. Que ? continuou ele inclinando-se para Nh Bertinho, que lhe abraava uma das pernas. Pegou dele, alou-o, deu-lhe trinta mil beijos ou pouco menos; depois, tendo-o num brao, apontou para mim. Conheces este moo? Nh Bertinho olhava espantado, com o dedo na boca. O pai contou-lhe ento que eu era um amigo de papai, muito amigo, desde o tempo em que vov e vov eram vivos... Teus pais morreram? Norberto fez-me sinal que sim, e acudiu ao filho, que com as mozinhas espalmadas pegava da cara do pai, pedindo-lhe mais beijos. Depois, foi criana que mamava, no a tirou do regao da ama, mas disse-lhe muitas coisas ternas, chamou-me para v-la; era uma menina. Revia-se nela, encantado. Tinha cinco meses por ora; mas se eu voltasse ali quinze anos depois, veria que mocetona. Que bracinhos! que dedos gordos! No podendo ter-se, inclinou-se e beijou-a. Entra, anda ver minha mulher. Jantas conosco. No posso. Mame, est espiando, disse Nh Bertinho. Olhei, vi uma moa porta da sala, que dava para o jardim; a porta estava aberta, ela esperava-nos. Subimos os cinco degraus; entramos na sala. Norberto pegou-lhe nas mos, e deu-lhes dois beijos. A moa quis recuar, no pde, ficou muito corada. No te vexes, Carmela, disse ele. Sabes quem este sujeito? aquele Barros de quem te falei muitas vezes, um Simeo, estudante de medicina... A propsito, por que que no me respondeste participao do casamento? No recebi nada, respondi. Pois afirmo que foi pelo correio. Carmela ouvia o marido com admirao; ele tanto fez, que foi sentar-se ao p dela, para lhe reter a mo, s escondidas. Eu fingia no ver nada; falava dos tempos acadmicos, de alguns amigos, da poltica, da guerra, tudo para evitar que ele me perguntasse se estava ou no casado. J me arrependia de ter ido ali; que lhe diria, se ele tocasse ao ponto e indagasse da pessoa? No me falou em nada; talvez soubesse tudo. A conversao prolongou-se; mas eu teimei em sair, e levantei-me; Carmela despediu-se de mim com muita afabilidade. Era bela; os olhos pareciam dar-lhe um resplendor de santa. Certo que o marido tinha-lhe adorao. Viste-a bem? perguntou-me ele porta do jardim. No te digo o sentimento que nos prende, estas coisas sentem-se, no se exprimem. De que sorris? Achasme naturalmente criana. Creio que sim; criana eterna, como eterno o meu amor. Entrei no tlburi, prometendo ir l jantar um daqueles dias. Eterno! disse comigo. Tal qual o amor que ele tinha a minha mulher. E, voltando-me para o cocheiro, perguntei-lhe: O que eterno? Com perdo de V.S., acudiu ele, mas eu acho que eterno o fiscal da minha rua, um maroto que, se no lhe quebro a cara um destes dias, a minha alma se no salve. Pois o maroto parece eterno no lugar; tem a no sei que compadres... Outros dizem que... No me meto nisso... L quebrar-lhe a cara... No ouvi o resto: fui mergulhando em mim mesmo, ao zunzum do cocheiro. Quando dei por mim, estava na Rua da Glria. O demnio continuava a falar; paguei, e desci at Praia da Glria, meti-me pela do Russell e fui sair do Flamengo. O mar batia com fora. Moderei o passo, e pus-me a olhar para as ondas que vinham ali bater e morrer. C dentro, ressoava, como um trecho musical, a pergunta que fizera ao cocheiro: O que eterno? As ondas, mais discretas que ele, no me contaram os seus particulares, vinham vindo, morriam, vinham vindo, morriam. Cheguei ao Hotel de Estrangeiros ao declinar da tarde. Minha mulher esperava-me para jantar. Eu, ao entrar no quarto, peguei-lhe das mos, e perguntei-lhe: O que eterno, Iai Lindinha? Ela, suspirando: Ingrato! o amor que te tenho. Jantei sem remorsos; ao contrrio, tranqilo e jovial. Coisas do Tempo! D-se-lhe um punhado de lodo, ele o restitui em diamantes... MISSA DO GALO Nunca pude entender a conversao que tive com uma senhora, h muitos anos, contava eu dezessete, ela trinta. Era noite de Natal. Havendo ajustado com um vizinho irmos missa do galo, preferi no dormir; combinei que eu iria acord-lo meia-noite. A casa em que eu estava hospedado era a do escrivo Meneses, que fora casado, em primeiras npcias, com uma de minhas primas. A segunda mulher, Conceio, e a me desta acolheram-me bem, quando vim de Mangaratiba para o Rio de Janeiro, meses antes, a estudar preparatrios. Vivia tranqilo, naquela casa assobradada da Rua do Senado, com os meus livros, poucas relaes, alguns passeios. A famlia era pequena, o escrivo, a mulher, a sogra e duas escravas. Costumes velhos. s dez horas da noite toda a gente estava nos quartos; s dez e meia a casa dormia. Nunca tinha ido ao teatro, e mais de uma vez, ouvindo dizer ao Meneses que ia ao teatro, pedi-lhe que me levasse consigo. Nessas ocasies, a sogra fazia uma careta, e as escravas riam socapa; ele no respondia, vestia-se, saa e s tornava na manh seguinte. Mais tarde que eu soube que o teatro era um eufemismo em ao. Meneses trazia amores com uma senhora, separada do marido, e dormia fora de casa uma vez por semana. Conceio padecera, a princpio, com a existncia da combora; mas afinal, resignara-se, acostumara-se, e acabou achando que era muito direito. Boa Conceio! Chamavam-lhe "a santa", e fazia jus ao ttulo, to facilmente suportava os esquecimentos do marido. Em verdade, era um temperamento moderado, sem extremos, nem grandes lgrimas, nem grandes risos. No captulo de que trato, dava para maometana; aceitaria um harm, com as aparncias salvas. Deus me perdoe, se a julgo mal. Tudo nela era atenuado e passivo. O prprio rosto era mediano, nem bonito nem feio. Era o que chamamos uma pessoa simptica. No dizia mal de ningum, perdoava tudo. No sabia odiar; pode ser at que no soubesse amar. Naquela noite de Natal foi o escrivo ao teatro. Era pelos anos de 1861 ou 1862. Eu j devia estar em Mangaratiba, em frias; mas fiquei at o Natal para ver "a missa do galo na Corte". A famlia recolheu-se hora do costume; eu meti-me na sala da frente, vestido e pronto. Dali passaria ao corredor da entrada e sairia sem acordar ningum. Tinha trs chaves a porta; uma estava com o escrivo, eu levaria outra, a terceira ficava em casa. Mas, Sr. Nogueira, que far voc todo esse tempo? perguntou-me a me de Conceio. Leio, D. Incia. Tinha comigo um romance, Os Trs Mosqueteiros, velha traduo creio do Jornal do Comrcio. Sentei-me mesa que havia no centro da sala, e luz de um candeeiro de querosene, enquanto a casa dormia, trepei ainda uma vez ao cavalo magro de D'Artagnan e fui-me s aventuras. Dentro em pouco estava completamente brio de Dumas. Os minutos voavam, ao contrrio do que costumam fazer, quando so de espera; ouvi bater onze horas, mas quase sem dar por elas, um acaso. Entretanto, um pequeno rumor que ouvi dentro veio acordar-me da leitura. Eram uns passos no corredor que ia da sala de visitas de jantar; levantei a cabea; logo depois vi assomar porta da sala o vulto de Conceio. Ainda no foi? perguntou ela. No fui, parece que ainda no meia-noite. Que pacincia! Conceio entrou na sala, arrastando as chinelinhas da alcova. Vestia um roupo branco, mal apanhado na cintura. Sendo magra, tinha um ar de viso romntica, no disparatada com o meu livro de aventuras. Fechei o livro; ela foi sentar-se na cadeira que ficava defronte de mim, perto do canap. Como eu lhe perguntasse se a havia acordado, sem querer, fazendo barulho, respondeu com presteza: No! qual! Acordei por acordar. Fitei-a um pouco e duvidei da afirmativa. Os olhos no eram de pessoa que acabasse de dormir; pareciam no ter ainda pegado no sono. Essa observao, porm, que valeria alguma coisa em outro esprito, depressa a botei fora, sem advertir que talvez no dormisse justamente por minha causa, e mentisse para me no afligir ou aborrecer. J disse que ela era boa, muito boa. Mas a hora j h de estar prxima, disse eu. Que pacincia a sua de esperar acordado, enquanto o vizinho dorme! E esperar sozinho! No tem medo de almas do outro mundo? Eu cuidei que se assustasse quando me viu. Quando ouvi os passos estranhei; mas a senhora apareceu logo. Que que estava lendo? No diga, j sei, o romance dos Mosqueteiros. Justamente: muito bonito. Gosta de romances? Gosto. J leu a Moreninha? Do Dr. Macedo? Tenho l em Mangaratiba. Eu gosto muito de romances, mas leio pouco, por falta de tempo. Que romances que voc tem lido? Comecei a dizer-lhe os nomes de alguns. Conceio ouvia-me com a cabea reclinada no espaldar, enfiando os olhos por entre as plpebras meio-cerradas, sem os tirar de mim. De vez em quando passava a lngua pelos beios, para umedec-los. Quando acabei de falar, no me disse nada; ficamos assim alguns segundos. Em seguida, vi-a endireitar a cabea, cruzar os dedos e sobre eles pousar o queixo, tendo os cotovelos nos braos da cadeira, tudo sem desviar de mim os grandes olhos espertos. "Talvez esteja aborrecida", pensei eu. E logo alto: D. Conceio, creio que vo sendo horas, e eu... No, no, ainda cedo. Vi agora mesmo o relgio, so onze e meia. Tem tempo. Voc, perdendo a noite, capaz de no dormir de dia? J tenho feito isso. Eu, no; perdendo uma noite, no outro dia estou que no posso, e, meia hora que seja, hei de passar pelo sono. Mas tambm estou ficando velha. Que velha o que, D. Conceio? Tal foi o calor da minha palavra que a fez sorrir. De costume tinha os gestos demorados e as atitudes tranqilas; agora, porm, ergueu-se rapidamente, passou para o outro lado da sala e deu alguns passos, entre a janela da rua e a porta do gabinete do marido. Assim, com o desalinho honesto que trazia, dava-me uma impresso singular. Magra embora, tinha no sei que balano no andar, como quem lhe custa levar o corpo; essa feio nunca me pareceu to distinta como naquela noite. Parava algumas vezes, examinando um trecho de cortina ou concertando a posio de algum objeto no aparador; afinal deteve-se, ante mim, com a mesa de permeio. Estreito era o crculo das suas idias; tornou ao espanto de me ver esperar acordado; eu repeti-lhe o que ela sabia, isto , que nunca ouvira missa do galo na Corte, e no queria perd-la. a mesma missa da roa; todas as missas se parecem. Acredito; mas aqui h de haver mais luxo e mais gente tambm. Olhe, a semana santa na Corte mais bonita que na roa. S. Joo no digo, nem Santo Antnio... Pouco a pouco, tinha-se reclinado; fincara os cotovelos no mrmore da mesa e metera o rosto entre as mos espalmadas. No estando abotoadas as mangas, caram naturalmente, e eu vi-lhe metade dos braos, muito claros, e menos magros do que se poderiam supor. A vista no era nova para mim, posto tambm no fosse comum; naquele momento, porm, a impresso que tive foi grande. As veias eram to azuis, que apesar da pouca claridade, podia cont-las do meu lugar. A presena de Conceio espertara-me ainda mais que o livro. Continuei a dizer o que pensava das festas da roa e da cidade, e de outras coisas que me iam vindo boca. Falava emendando os assuntos, sem saber por que, variando deles ou tornando aos primeiros, e rindo para faz-la sorrir e ver-lhe os dentes que luziam de brancos, todos iguaizinhos. Os olhos dela no eram bem negros, mas escuros; o nariz, seco e longo, um tantinho curvo, dava-lhe ao rosto um ar interrogativo. Quando eu alteava um pouco a voz, ela reprimia-me: Mais baixo! mame pode acordar. E no saa daquela posio, que me enchia de gosto, to perto ficavam as nossas caras. Realmente, no era preciso falar alto para ser ouvido: cochichvamos os dois, eu mais que ela, porque falava mais; ela, s vezes, ficava sria, muito sria, com a testa um pouco franzida. Afinal, cansou; trocou de atitude e de lugar. Deu volta mesa e veio sentar-se do meu lado, no canap. Voltei-me e pude ver, a furto, o bico das chinelas; mas foi s o tempo que ela gastou em sentar-se, o roupo era comprido e cobriu-as logo. Recordo-me que eram pretas. Conceio disse baixinho: Mame est longe, mas tem o sono muito leve; se acordasse agora, coitada, to cedo no pegava no sono. Eu tambm sou assim. O qu? perguntou ela inclinando o corpo, para ouvir melhor. Fui sentar-me na cadeira que ficava ao lado do canap e repeti-lhe a palavra. Riuse da coincidncia; tambm ela tinha o sono leve; ramos trs sonos leves. H ocasies em que sou como mame; acordando, custa-me dormir outra vez, rolo na cama, toa, levanto-me, acendo vela, passeio, torno a deitar-me e nada. Foi o que lhe aconteceu hoje. No, no, atalhou ela. No entendi a negativa; ela pode ser que tambm no a entendesse. Pegou das pontas do cinto e bateu com elas sobre os joelhos, isto , o joelho direito, porque acabava de cruzar as pernas. Depois referiu uma histria de sonhos, e afirmou-me que s tivera um pesadelo, em criana. Quis saber se eu os tinha. A conversa reatou-se assim lentamente, longamente, sem que eu desse pela hora nem pela missa. Quando eu acabava uma narrao ou uma explicao, ela inventava outra pergunta ou outra matria, e eu pegava novamente na palavra. De quando em quando, reprimia-me: Mais baixo, mais baixo... Havia tambm umas pausas. Duas outras vezes, pareceu-me que a via dormir; mas os olhos, cerrados por um instante, abriam-se logo sem sono nem fadiga, como se ela os houvesse fechado para ver melhor. Uma dessas vezes creio que deu por mim embebido na sua pessoa, e lembra-me que os tornou a fechar, no sei se apressada ou vagarosamente. H impresses dessa noite, que me aparecem truncadas ou confusas. Contradigo-me, atrapalho-me. Uma das que ainda tenho frescas que, em certa ocasio, ela, que era apenas simptica, ficou linda, ficou lindssima. Estava de p, os braos cruzados; eu, em respeito a ela, quis levantarme; no consentiu, ps uma das mos no meu ombro, e obrigou-me a estar sentado. Cuidei que ia dizer alguma coisa; mas estremeceu, como se tivesse um arrepio de frio, voltou as costas e foi sentar-se na cadeira, onde me achara lendo. Dali relanceou a vista pelo espelho, que ficava por cima do canap, falou de duas gravuras que pendiam da parede. Estes quadros esto ficando velhos. J pedi a Chiquinho para comprar outros. Chiquinho era o marido. Os quadros falavam do principal negcio deste homem. Um representava "Clepatra"; no me recordo o assunto do outro, mas eram mulheres. Vulgares ambos; naquele tempo no me pareciam feios. So bonitos, disse eu. Bonitos so; mas esto manchados. E depois francamente, eu preferia duas imagens, duas santas. Estas so mais prprias para sala de rapaz ou de barbeiro. De barbeiro? A senhora nunca foi a casa de barbeiro. Mas imagino que os fregueses, enquanto esperam, falam de moas e namoros, e naturalmente o dono da casa alegra a vista deles com figuras bonitas. Em casa de famlia que no acho prprio. o que eu penso; mas eu penso muita coisa assim esquisita. Seja o que for, no gosto dos quadros. Eu tenho uma Nossa Senhora da Conceio, minha madrinha, muito bonita; mas de escultura, no se pode pr na parede, nem eu quero. Est no meu oratrio. A idia do oratrio trouxe-me a da missa, lembrou-me que podia ser tarde e quis diz-lo. Penso que cheguei a abrir a boca, mas logo a fechei para ouvir o que ela contava, com doura, com graa, com tal moleza que trazia preguia minha alma e fazia esquecer a missa e a igreja. Falava das suas devoes de menina e moa. Em seguida referia umas anedotas de baile, uns casos de passeio, reminiscncias de Paquet, tudo de mistura, quase sem interrupo. Quando cansou do passado, falou do presente, dos negcios da casa, das canseiras de famlia, que lhe diziam ser muitas, antes de casar, mas no eram nada. No me contou, mas eu sabia que casara aos vinte e sete anos. J agora no trocava de lugar, como a princpio, e quase no sara da mesma atitude. No tinha os grandes olhos compridos, e entrou a olhar toa para as paredes. Precisamos mudar o papel da sala, disse da a pouco, como se falasse consigo. Concordei, para dizer alguma coisa, para sair da espcie de sono magntico, ou o que quer que era que me tolhia a lngua e os sentidos. Queria e no queria acabar a conversao; fazia esforo para arredar os olhos dela, e arredava-os por um sentimento de respeito; mas a idia de parecer que era aborrecimento, quando no era, levava-me os olhos outra vez para Conceio. A conversa ia morrendo. Na rua, o silncio era completo. Chegamos a ficar por algum tempo, no posso dizer quanto, inteiramente calados. O rumor nico e escasso, era um roer de camundongo no gabinete, que me acordou daquela espcie de sonolncia; quis falar dele, mas no achei modo. Conceio parecia estar devaneando. Subitamente, ouvi uma pancada na janela, do lado de fora, e uma voz que bradava: "Missa do galo! missa do galo!" A est o companheiro, disse ela levantando-se. Tem graa; voc que ficou de ir acord-lo, ele que vem acordar