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4O COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016 PAISAGEM CULTURAL: um conceito integrador das noções de patrimônio natural e cultural GUIMARÃES, SÁVIO Centro Universitário de Brasília. Faculdade de Tecnologia e Ciências Sociais Aplicadas SEPN 707/907, Asa Norte, Brasília/DF. CEP.: 70790-075 [email protected] RESUMO Junto ao desenvolvimento das ciências sociais evidenciado a partir de meados do século XX, o ideário contemporâneo vincula-se, gradativamente, a uma visão de mundo de caráter sistêmico, estimulante a interpretações amparadas nas múltiplas dimensões do objeto analisado. Assim, cresce a sensibilização em relação a campos ou experiências antes assimilados de maneiras distintas das que agora passam a configurar o pensamento científico e que, gradativamente, tendem a alterar também as pré-noções já arraigadas no senso comum. Sob tal contexto, entre tantos outros campos de análise, a comunicação aqui proposta, amparada em fatos e análises afins, objetiva uma reflexão sobre a ampla temática do patrimônio cultural, categoria de pensamento que tem passado por sucessivas transformações em sua conceituação e instrumentalização. A análise de um bem na atualidade, a partir dos eventuais valores a ele atribuídos, como os que o confere o status de patrimônio, certamente, irá se vincular a tais diretrizes de pensamento e, no caso da análise de um espaço, à noção de que qualquer espacialidade reveste-se de múltiplas possibilidades de leitura que, juntas, são capazes de evidenciá-la, não apenas como o mero resultado de ações sucessivas, mas também como a representação de específicos valores simbólicos, como o reflexo das possibilidades econômicas locais e como um lugar estimulante a distintas maneiras de sociabilidade. Outrora apartada da natureza como estratégia de compreensão e conceituação de seus mecanismos, a cultura agrega-se, crescentemente, ao meio-ambiente, uma vez que a questão ambiental emergiu de modo a forçar uma revisão de valores que afeta as mais diversas dimensões do pensamento e da ação humana. O conceito de paisagem, constructo mental complexo, que há muito vem se desenvolvendo em meio às noções de entrelaçamentos da natureza com a cultura, agora adjetivado “paisagem cultural”, junto à valorização da dimensão humana e seu envolvimento no campo, configura-se como uma pertinente tentativa de ruptura da tradicional separação entre cultura e natureza ao abranger muitas categorias de elementos que, assim, passam a se integrar à assimilação de um ou outro bem considerado patrimônio na atualidade. E justamente o conceito de paisagem cultural vem sendo apresentado como passível a outras possibilidades de se pensar tanto a preservação quanto a dinâmica das criações, ambiências e vivências humanas. Mas, afinal, englobando as mais diversas categorias de pensamento, além de atuar, por meio da chancela, pela preservação das representatividades culturais, tal conceito pode abarcar o processo, as eventuais necessidades e forças de mudança que venham ocorrer em um dado contexto sem que seja perdida a sua referência? Palavras-chave: cultura, patrimônio cultural, natureza, patrimônio natural, paisagem cultural

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4O COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016

PAISAGEM CULTURAL: um conceito integrador das noções de

patrimônio natural e cultural

GUIMARÃES, SÁVIO

Centro Universitário de Brasília. Faculdade de Tecnologia e Ciências Sociais Aplicadas SEPN 707/907, Asa Norte, Brasília/DF. CEP.: 70790-075

[email protected]

RESUMO

Junto ao desenvolvimento das ciências sociais evidenciado a partir de meados do século XX, o ideário contemporâneo vincula-se, gradativamente, a uma visão de mundo de caráter sistêmico, estimulante a interpretações amparadas nas múltiplas dimensões do objeto analisado. Assim, cresce a sensibilização em relação a campos ou experiências antes assimilados de maneiras distintas das que agora passam a configurar o pensamento científico e que, gradativamente, tendem a alterar também as pré-noções já arraigadas no senso comum. Sob tal contexto, entre tantos outros campos de análise, a comunicação aqui proposta, amparada em fatos e análises afins, objetiva uma reflexão sobre a ampla temática do patrimônio cultural, categoria de pensamento que tem passado por sucessivas transformações em sua conceituação e instrumentalização. A análise de um bem na atualidade, a partir dos eventuais valores a ele atribuídos, como os que o confere o status de patrimônio, certamente, irá se vincular a tais diretrizes de pensamento e, no caso da análise de um espaço, à noção de que qualquer espacialidade reveste-se de múltiplas possibilidades de leitura que, juntas, são capazes de evidenciá-la, não apenas como o mero resultado de ações sucessivas, mas também como a representação de específicos valores simbólicos, como o reflexo das possibilidades econômicas locais e como um lugar estimulante a distintas maneiras de sociabilidade. Outrora apartada da natureza como estratégia de compreensão e conceituação de seus mecanismos, a cultura agrega-se, crescentemente, ao meio-ambiente, uma vez que a questão ambiental emergiu de modo a forçar uma revisão de valores que afeta as mais diversas dimensões do pensamento e da ação humana. O conceito de paisagem, constructo mental complexo, que há muito vem se desenvolvendo em meio às noções de entrelaçamentos da natureza com a cultura, agora adjetivado “paisagem cultural”, junto à valorização da dimensão humana e seu envolvimento no campo, configura-se como uma pertinente tentativa de ruptura da tradicional separação entre cultura e natureza ao abranger muitas categorias de elementos que, assim, passam a se integrar à assimilação de um ou outro bem considerado patrimônio na atualidade. E justamente o conceito de paisagem cultural vem sendo apresentado como passível a outras possibilidades de se pensar tanto a preservação quanto a dinâmica das criações, ambiências e vivências humanas. Mas, afinal, englobando as mais diversas categorias de pensamento, além de atuar, por meio da chancela, pela preservação das representatividades culturais, tal conceito pode abarcar o processo, as eventuais necessidades e forças de mudança que venham ocorrer em um dado contexto sem que seja perdida a sua referência? Palavras-chave: cultura, patrimônio cultural, natureza, patrimônio natural, paisagem cultural

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Introdução

São vários os sítios naturais mais intensamente ocupados e alterados pela ação humana,

seja pelas particulares características físicas, seja, até mesmo, pelas analogias simbólicas

de tais ambientes que, por facilitarem ou desafiarem uma ocupação territorial, estimulam tal

tentativa. Se a assimilação do ambiente natural e das paisagens culturais, criadas pelo

homem ao intervir em tal ambiente, vai além de suas características físicas assumindo

múltiplos significados simbólicos (COSGROVE, 1998), também o tempo tem influenciado

essa e outras de suas interpretações.

Já apreendido sob ideais de harmonia e misticismo quando de seus ciclos de fertilidade

dependiam os cultivos humanos, o espaço natural, transformado consideravelmente no

processo inicial de industrialização por que passou boa parte do globo foi quase que

simultaneamente idealizado ou romanceado por aqueles que buscavam um refúgio aos

primeiros efeitos do mundo industrial. Mesmo sendo trazida para as centralidades urbanas,

a excessiva ordenação racional do mundo natural assim estabelecida, sob um ideal de

controle e de superação a partir da visão de progresso adotada, viu, diante do agravamento

da deterioração ambiental na segunda metade do século XX, o crescente esfacelamento de

tais preceitos e ambições que pautaram o desenvolvimento econômico nos últimos séculos.

Tal situação levou, inclusive, à criação e difusão da expressão “meio ambiente”, de certa

maneira, reforçando a necessária compreensão da inter-relação entre a natureza e o

homem, da qual este faz parte junto com a biodiversidade que compõe equilibrados

ecossistemas. E dos estudos e das ações dos primeiros biólogos e ecologistas, das

propostas para uma cidade verde ideal (HOWARD, 1996) ou mesmo uma bioarquitetura

praticável (LENGEN, 2004), cresceram os debates e as ações ambientais empreendidos em

escala local ou internacional, como a Conferência Mundial promovida pela Organização das

Nações Unidas (ONU), em 1972, na França, quando se incluiu o Patrimônio Natural como

objeto de preservação, ou como a Conferência Ecológica de 1992 (ECO 92), realizada no

Brasil, na qual foram listadas, na Agenda 21, várias diretrizes de caráter ambiental para

adoção mundial pelas políticas públicas em busca de um “desenvolvimento sustentável”,

vinculado a ideias de práticas conscientes processadas e já divulgadas anos antes, a partir

da publicação do Relatório Brundtland (1987), e que hoje se encontra entre os conceitos

mais presentes no discurso das mais distintas áreas ao defender a satisfação de

necessidades atuais sem o comprometimento da capacidade das futuras gerações em

satisfazer às suas (ACSELRAD, 2001).

Logo, não parece casual a crescente entrada da esfera natural no âmbito da cultura, das

reflexões e ações culturais que, assim, mais do que em muitas épocas anteriores, passa a

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reconhecer e valorizar a inter-relação entre o ambiente e as transformações nele

empreendidas e, por vezes, estabelecidas como uma determinada prática ou representação

simbólica, uma cultura (TUAN, 1980). Considerar as expressões manifestas na dinâmica

cultural, material e imaterial (correlacionados em qualquer prática ou representação), que

entre interações as mais diversas perfazem um determinado ambiente se mostra, como

crescentemente defendido pelos teóricos de distintas áreas aqui referenciados, uma

tentativa para a melhor compreensão de um espaço e, na atual conjuntura global, também

para a sua proteção. Nesse contexto, conceitos como o de paisagem cultural, a ser aqui

abordado entre outros assuntos a ele correlacionados, estão entre algumas das sucessivas

buscas pela atribuição de novos valores ou adequação dos mesmos às novas configurações

do mundo.

Junto às criações culturais cristalizadas, aquelas consideradas por sua materialidade,

assistimos agora, e participamos, de um novo momento no qual, nas mais diversas

sociedades de todos os continentes, este longo processo de construção cultural trilhado pelo

homem ao longo da história se amplia. De fato, nos últimos séculos tornaram-se crescentes

as reflexões e ações pela preservação cultural devido à valorização, conforme expresso na

atual versão da Constituição Federal do Brasil (1988), de todo e qualquer conjunto de práticas

e de bens culturais portadores de referência tanto à identidade quanto à memória dos mais

diferentes grupos atuantes no processo de configuração da sociedade nacional. Mas, agora,

tal postura se amplia para uma dimensão até então ainda não experimentada, uma realidade

postulada a partir de sua configuração inter-relacionada – expressões culturais de caráter

material e imaterial desenvolvidas pelo homem sob forte vínculo com um determinado meio

natural. Sob tal contexto, entre tantos outros campos de análise, a comunicação aqui

proposta objetiva uma reflexão sobre a ampla temática da cultura, categoria de pensamento

que tem passado por sucessivas transformações em sua conceituação e instrumentalização

até essa presente vinculação da mesma com o meio onde atua.

A cultura e o patrimônio cultural

De fato, na esteira do vigor alcançado na contemporaneidade pela categoria de pensamento

cultura, sobressaem-se, gradativamente, adjetivações do termo que se entrecruzam no

campo e que também se reforçam em importância. Considerando o conceito antropológico

de cultura, centrado nas práticas e representações significativas a uma coletividade,

qualquer que seja ela, tal como prenunciado no século XIX por representantes da escola

antropológica do evolucionismo social (TYLOR, 1947) e difundido na gestação da pós-

modernidade, torna-se compreensível as distintas assimilações com o tempo engendradas

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sobre tal campo. Ainda assim, várias das representações culturais (CHARTIER, 1988) de

alguma maneira consideradas significativas pelo homem têm sido, ao longo da história,

preservadas.

No campo da arquitetura, inicialmente preservadas por seu vínculo a crenças religiosas

(MUMFORD, 1982) ou por seu caráter de excepcionalidade artística, essas representações

culturais edificadas passaram a ser, por um longo período, assimiladas como “monumentos”

(artefatos edificados intencionalmente para o fim de memória) e, muito depois, como

“monumentos históricos” (artefatos que adquiriram potencial de memória com o passar do

tempo), conforme a célebre distinção de Alöis Riegl (RIEGL, 2014), até que ambos os

conceitos se fundiram em face da adoção de outro conceito, o de “patrimônio”, difundido em

caráter estratégico a partir de fins do século XVIII, no contexto pós Revolução Francesa

(CHOAY, 2001), e que conseguiu, de fato, alterar a relação da população insurgente com as

representações culturais fortemente vinculadas aos segmentos sociais destituídos do poder

em tal ocasião, deixando de saqueá-las e depredá-las para assimilá-las como

representatividades coletivas e, logo em seguida, públicas. E de “patrimônio artístico e

histórico”, tal conceito adquiriu, a partir de meados do século XX, uma noção ainda mais

abrangente, a de “patrimônio cultural”. Essa última conceituação foi criada, em 1959

(CHOAY, 2005), pelo então ministro de Estado e da Cultura da França, André Malraux, junto

à criação de sucessivos órgãos e procedimentos ligados a tal tema concedendo, assim,

enorme relevância à esfera cultural e, de certa maneira, conforme também enfatizou

Françoise Choay, promovendo um exponenciamento do vínculo entre cultura e

desenvolvimento econômico ao conectar mais fortemente tais esferas por meio de uma

política de “animação cultural” (ARANTES, 1995, p. 67), essencialmente ligada aos aspectos

de fruição do lazer.

No Brasil, a contínua luta por justiça social obteve, ao longo do século XX, algumas

conquistas no sentido do conferir importância à cultura nacional e, cada vez mais, no sentido

de começar a reconhecer e valorizar sua diversidade formativa. Mesmo que o respeito e a

preservação da diversidade cultural brasileira ainda careçam de uma maior conscientização

e maiores ações para tal fim, a partir da elaboração de legislações em escala nacional foram

sendo regulamentadas as ações sobre esse campo. Situação essa que se iniciou com a

Constituição Federal Brasileira de 1934, tornando o patrimônio histórico e artístico um

princípio constitucional, tal como com a Constituição de 1937, que atribuiu ao poder público

a proteção das belezas naturais e dos monumentos históricos e artísticos, além do célebre

Decreto-lei 25 de 1937; um decreto que, baseado, entre outros, no anteprojeto de Mário de

Andrade (TELLES, 2009), ainda hoje embasa muitas reflexões e decisões no campo,

regulamentando, desde o objeto cultural que recebe o status de patrimônio cultural, até a

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definição dos efeitos legais vinculados à proteção de tal objeto, selecionado entre outros,

como um bem cultural por ser considerado portador de significação e valor cultural para um

determinado grupo e, por isso, vinculado a um direito coletivo público e passível à fruição

“pelos titulares desse direito coletivo: a população” (RABELLO, 2016). Atualmente, a

Constituição Federal Brasileira demonstra o reconhecimento oficial de tal importância ao

especificar, em seu Artigo 216 da Seção II do Capítulo III que trata da Educação, Cultura e

Desporto, uma variedade de expressões culturais a serem preservadas:

Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: I – as formas de expressão; II – os modos de criar, fazer e viver; III – as criações científicas, artísticas e tecnológicas; IV – as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; V – os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico (CONSTITUIÇÃO, 1988).

Considerando que sucessivas iniciativas de preservação tenham sido elaboradas no campo

do patrimônio cultural há alguns séculos (KÜLL, 1998), e que as posturas e diretrizes mais

apuradas vêm sendo elaboradas, no âmbito internacional, desde os anos 1800 (IPHAN,

1980), e principalmente em momentos de transição, se mostra relevante o pensamento

sobre essa categoria de pensamento em face das vertiginosas transformações por que

passa a atualidade, momento em que numerosas e diferentes localidades, como um

palimpsesto, têm sofrido de maneira forte a supressão das marcas históricas já que, por

vezes, novas expressões ou representações físicas são superpostas àquelas

representativas de temporalidades anteriores. Fato que ocorre não só pela desvalorização

de representações culturais já antigas, por muitos consideradas signos ultrapassados, mas

também, e paradoxalmente, pela hipervalorização de áreas centrais que, geralmente, foram

revestidas de historicidade e que, pela ausência de vazios urbanos aptos à construção nos

grandes centros, tornam-se um novo alvo da especulação imobiliária. Tal circunstância,

como outras geradoras de posteriores pesares nas mais distintas localidades, conforme já

observado por muitos, como Maurice Halbwachs em seus trabalhos sobre uma importante

memória coletiva (HALBWACHS, 2004), tende a eliminar, gradativamente, os traços de

conhecimentos agregados ao espaço sedimentado das cidades que são, por vezes,

assimilados pelos que os vivenciam cotidianamente, mesmo sem tal percepção.

E nesse contexto complexo, de múltiplas dinâmicas e interesses, há que se considerar,

ainda, outra questão de relevância, envolta à manipulação da cultura histórica qualificada

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pela atribuição de valor que lhe é conferida ao ser considerada patrimônio de um lugar e que

tem gerado alguns embates entre profissionais desse mesmo campo no que diz respeito às

suas várias dimensões ou às categorias culturais crescentemente conceituadas. Mesmo que

se considere que toda e qualquer expressão ou representação cultural possa agregar

distintas dimensões de temporalidade, essa questão se relaciona, especificamente, às

novas práticas culturais, às chamadas culturas emergentes, legítimas enquanto reflexos da

dinâmica histórica a que as sociedades estão sujeitas, mas que, já há um bom tempo, vêm

evidenciando sua dificuldade na procura por espaços à sua expressão nos locais onde

comumente pretendem se expor: não mais o restrito espaço interno de galerias e museus,

mas a ampla espacialidade urbana.

Por mais que sejam apresentadas acepções conceituais que integrem essas expressões

como dimensões de um mesmo campo, a normatização já vigente e em constante agregação

de minúcias, entre proteções e impedimentos sobre o espaço patrimonializado e sua

ambiência, admite questões a serem analisadas, no sentido de um diálogo, com as também

legítimas expressões emergentes, centradas em novos códigos de assimilação e apropriação

do espaço. Mas a situação se complexifica pelo fato de que tais emergências, já assimiladas

como autênticas representatividades da cultura contemporânea, se distinguem nas mais

diversas modalidades de ação e demanda: ora pela reivindicação por equiparação de

incentivos públicos e privados às novas expressões em relação a representações culturais já

institucionalizadas, ora pela reivindicação de direito de expressão no espaço público mediante

intervenções ou ocupações e apresentações de caráter efêmero, ora pela solicitação de

atuação mediante as inovadoras projeções lumínicas justamente sobre as edificações

históricas e culturais das mais variadas cidades. Algumas propostas vinculadas a essas

experiências artísticas e culturais emergentes têm, inclusive, desafiado a própria legislação

vigente até mesmo por preceitos de atuação, e também nas mais distintas escalas, como

pode ser demonstrado na fala – entre a de outros a esse âmbito da cultura vinculados – do

artista e arquiteto argentino Tomás Saraceno ao descrever um de seus desafiadores e

utópicos projetos participativos, a polêmica instalação itinerante Air-Port-City, como:

Uma estrutura que procura desafiar as restrições políticas, sociais, culturais e militares atuais numa tentativa de restabelecer novos conceitos de sinergia (SARACENO apud JODIDIO, 2011, p. 368).

A defesa pela liberdade e facilitação da emergência de novas expressões culturais tem sido,

assim, também crescente na contemporaneidade mesmo que, por vezes, seus contornos

não sejam sequer entrevistos em meio ao crescente processo de globalização

contemporâneo, pautado em uma excessiva manipulação e um intenso fluxo baseado,

sobretudo, em informações culturais e artísticas pré-existentes e ainda remanescentes,

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patrimonializadas, de certa maneira já acomodadas no cotidiano contemporâneo e,

evidentemente, no âmbito da estrutura econômica – que crescentemente a ressignifica por

meio da tecnologia para objetivos específicos.

Assim sendo, mantem-se a noção de que qualquer espacialidade reveste-se de múltiplas

possibilidades de leitura, as quais, juntas, são capazes de evidenciar tal espacialidade, não

apenas como o mero resultado de ações sucessivas, mas também como a representação

de específicos valores simbólicos, como o reflexo das possibilidades econômicas locais e

como um lugar estimulante a distintas maneiras de sociabilidade. Contudo, uma análise

cultural procedida hoje agrega-se a um somatório de questões sucessivamente admitidas no

campo. Por um lado, desconstruir analiticamente uma prática ou representação cultural já é

considerado, há um bom tempo, uma maneira de perceber as estruturas e os códigos sob

os quais a mesma se processa. Por outro lado, valorizar além da sofisticação erudita as

representações populares da cultura, considerar além da dimensão tangível a natureza

imaterial de determinadas expressões e rituais culturais, reconhecer além das referências a

outras temporalidades aquelas do próprio presente revestidas de valor e autenticidade

principalmente para seus praticantes, permite-nos ampliar o campo de análise sobre a

cultura tal como tem sido considerado em muitos trabalhos sobre o campo, o qual, agora,

admite a inclusão de outra dimensão, prévia à própria manifestação cultural e com ela

presente em uma contínua inter-relação de influências: a natureza transformada em

paisagem.

A paisagem e a paisagem cultural

No contexto do agravamento da questão ambiental, diante da fragilidade crescente

demonstrada pela natureza – ou pela fragilidade hoje demonstrada pelo ideário moderno de

progresso plasmado em seu domínio – a sucessiva abrangência conceitual que o termo

cultura vem adquirindo também na “paisagem de eventos” (VIRILIO, 1993, p. 54) da pós-

modernidade, engendrou uma adjetivação da cultura para outro alcance, ao se vincular mais

diretamente com o conceito de paisagem.

Para a paisagem, e justamente essencial a demarcação, o ser-abarcada num horizonte momentâneo ou duradouro; a sua base material ou os seus fragmentos singulares podem, sem mais, surgir como natureza - mas, apresentada como "paisagem", exige um ser-para-si talvez optico, talvez estético, talvez impressionista, um esquivar-se singular e característico a essa unidade impartível da natureza, em que cada porção só pode ser um ponto de passagem para as forças totais da existência. (...) Afigurasse-me ser este o ato espiritual com que o homem modela um âmbito de fenômenos e o insere na categoria de "paisagem": uma contemplação em si reclusa, apercebida como unidade autossuficiente, entrançada, porém, numa extensão infinitamente ampla, numa torrente vasta, e guarnecida de

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limites que não existem para o sentimento do Uno divino e do todo da natureza, o qual reside em baixo, noutro estrato (SIMMEL, 2009, p. 06).

Constructo mental complexo, a histórica acepção do termo paisagem há muito vem assim se

desenvolvendo, em meio às noções de entrelaçamentos da natureza com a cultura: “La

naturaleza es indeterminada y sólo el arte la determina, un país no se convierte em paisaje

más que bajo la condición de un paisaje, y esto, de acuerdo con las dos modalidades, móvil

(in visu) y adherente (in situ), de la artealización.” (ROGER, 2007, p. 08). No entanto, nas

últimas décadas, diversos debates têm sido promovidos, especificamente, pela crescente

adoção do conceito de “paisagem cultural”, abarcando as duas já tradicionais e igualmente

polêmicas categorias da cultura, a cultura material e a cultura imaterial – essa última,

podendo ser assimilada por práticas sucessivas ou pela memorização. Tal acepção de uma

paisagem cultural vem apresentando outras possibilidades de se pensar tanto a preservação

quanto a dinâmica das criações, ambiências e vivências humanas.

O conceito de paisagem cultural, englobando as mais diversas categorias de pensamento,

além de atuar pela preservação das representatividades culturais por meio do instrumento

da chancela (uma forma de acautelamento regulamentada no Brasil pela Portaria 127 de

2009), admite, sob certo controle, o processo, as eventuais necessidades e forças de

mudança que venham a ocorrer em um dado contexto sem que seja perdido o seu valor

enquanto um referencial. Ainda dessa maneira, tal conceito desarticula algumas amarras até

então estabelecidas por meio do tradicional instrumento do “tombamento” – mesmo que

careça de maior instrumentalização de sua complexa gestão, em esferas tão amplas. Já há,

de fato, tentativas como as propostas pela Escola de Berkeley, mediante a elaboração de

atlas e tipologias de paisagem, ou como a recente proposta da UNESCO, mediante o

estabelecimento de três subcategorias distintas para o reconhecimento de uma paisagem

cultural e sua gestão, como já bastante divulgadas (RIBEIRO, 2007): a paisagem evoluída

organicamente, cuja ênfase valorativa se direciona à maneira como determinada paisagem

foi construída ao longo do tempo pelo homem, a paisagem associativa, cuja ênfase

valorativa se direciona às associações culturais desenvolvidas em torno de tal paisagem, e a

paisagem claramente definida, cuja ênfase valorativa se direciona à específica tradição do

paisagismo e da arquitetura da paisagem.

Apesar de ser discutido desde o século passado, principalmente na área da Geografia, o

conceito de paisagem cultural foi melhor apresentado ou formalizado no Brasil, vinculado-se

ao patrimônio cultural nacional, apenas em 2007, na Carta de Bagé, código de procedimento

que, assim como outros elaborados a partir de um congresso de temática específica e

vinculada a preocupações da cidade sede, o define da seguinte maneira:

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Paisagem cultural é o meio natural ao qual o ser humano imprimiu as marcas de suas ações e formas de expressão, resultando em uma soma de todos os testemunhos resultantes da interação do homem com a natureza e, reciprocamente, da natureza com homem, passíveis de leituras espaciais e temporais (CARTA DE BAGÉ, 2007).

De fato, o espaço que o homem modifica, à parte de peculiaridades conceituais, seja natural

ou já reconfigurado por atributos culturais, continua a exercer, mesmo que não de modo

determinante, sua influência numa rede de interações que se manifesta, tanto pela

implantação, escala, volume ou forma (LYNCH, 1997) que estes últimos assumem quanto

pelos comportamentos humanos (JACOBS, 2003) também passíveis de alteração segundo

um dado contexto de inserção e lógica de associação. Logo, os espaços construídos e

vivenciados pelo homem como suas expressões e representações, além dos motivos

específicos para os quais são engendrados, tendem, de fato, a se reforçar, com o tempo,

como fontes potenciais ao conhecimento, e reconhecimento próprio inclusive: “Choque e

adequação, reconhecimento e descoberta, confirmação e surpresa. O viajante viajou no seu

próprio país” (SARAMAGO, 1998, p. 08).

De maneira semelhante a Saramago, Anne Cauquelin, em sua ampla reflexão sobre o

conceito de paisagem, enfatiza distintas percepções passíveis de geração sobre um lugar

de acordo com o grau de vínculo que com ele estabelecemos, ainda que, evidentemente, a

atenção para as múltiplas dimensões que configuram um paisagem – naturais e culturais,

materiais e imateriais, agregadas de maneiras as mais distintas – permitam ampliar sua

compreensão:

Coisa curiosa: quando se trata de culturas estrangeiras, imaginamos facilmente a relação entre os espaços apresentados e os modos de vida, os usos, as “maneiras” de ver e os modos de dizer, de tal forma que chegamos a perceber uma espécie de tecido inconsútil, sem dentro nem fora, em uma única peça. Mas pra nós, em nossa própria cultura, temos grande dificuldade em imaginar que nossa relação com o mundo (com a realidade, diga-se) possa depender de um tecido tal que as propriedades atribuídas ao campo espacial por um artifício de expressão – qualquer que seja ele – condicionem a percepção do real (CAUQUELIN, 2007, p. 14).

Uma vez reconhecidas essas dimensões parcelares da realidade que nos cerca e o quanto

somos condicionados a percepções distintas dessa realidade, a gestão desse conjunto de

manifestações correlacionadas torna-se uma consequência esperada, ainda que venha a se

desdobrar entre sucessivas experiências de êxito imprevisível. Cantão e confim

Cidades, municípios, espaços de longa história ou de conformação recente, de pequeno ou

grande porte, marcados por certo caráter rural ou urbano, dos mais distantes cantões e

confins mais interioranos às grandes e celebrizadas centralidades urbanas, são alvo de

crescentes intervenções e manipulações de seu espaço e suas referências ali configuradas.

E no que diz respeito ao entrelaçamento entre natureza e cultura aqui em estudo,

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referências como as contribuições de Maurice Halbwachs, vinculadas à consideração do

mecanismo da “memória” no estudo da estrutura social e de suas representações culturais,

como as de base coletiva, se mostram uma possibilidade de relevante auxílio na tentativa,

tanto de uma identificação inicial de traços remanescentes e germinantes de uma

determinada cultura em sua dinâmica desenvolvida em um lugar específico quanto do

possível desenvolvimento posterior de mecanismos para sua melhor regulação.

Nossa cultura e nossos gostos aparentes na escolha e na disposição dos objetos se explicam em larga medida pelos elos que nos prendem sempre a um grande número de sociedades, sensíveis ou invisíveis. (...) Quando um grupo humano vive muito tempo em um lugar adaptado ao seus hábitos, não somente os seus movimentos, mas também seus pensamentos se regulam pela sucessão das imagens que lhe representam os objetos exteriores (HALBWACHS, 2004. p.137).

Halbwachs, cujos trabalhos, amparados em seu prestigiado estudo por muitos designado

como uma sociologia da “memória coletiva”, de conceito por ele criado em 1925 designando

uma dimensão de memória construída, partilhada e transmitida pelo grupo ou sociedade e,

diferindo, dessa maneira, da essencialmente subjetiva “memória individual” estudada por

Henri Bergson, seu professor, parece permitir um enriquecimento nos esforços de análise

para compreensão da esfera cultural. Se para Durkheim a sociedade – por ele conceituada,

de modo geral, como uma rede de representações coletivas compartilhadas entre seus

integrantes e estruturada por conjuntos de instituições, indivíduos e ações – tem na coesão

social, na formação das cidades e na alta comunicabilidade sua condensação progressiva,

para Halbwachs, a partir de outro de seus trabalhos (HALBWACHS, 1939), considerações

como a da memória coletiva terão, também nestes elementos, maiores possibilidades de

registrar, inclusive, a estrutura desta sociedade e, consequentemente, as suas específicas

representações de caráter cultural cristalizadas no espaço.

As cidades são sempre o resultado da necessidade que obriga os indivíduos a estarem constantemente em íntimo contato entre si; constituem, assim, pontos onde a massa social se contrai mais fortemente. (...) Enquanto a organização social é essencialmente segmentaria, a cidade não existe (DURKHEIM, 1978, p 39).

E as considerações de Halbwachs sobre a memória coletiva assemelham-se às bases do

pensamento de Durkheim ao afirmar que a evocação da memória tem como ponto de

referência e aplicação os quadros sociais. Neste sentido de compreensão do processo da

memória e suas duas instâncias, individual e coletiva, pode-se considerar que o individual

existe em relação a um grupo, ou seja, a memória individual é constituída, atravessada e

ampliada no interior de um grupo, a partir da influência, das referências e lembranças do

grupo, da sua memória coletiva. Em outras palavras, sob tal consideração, pode ser dito que a

memória individual refere-se a um ponto de vista sobre a memória coletiva. É possível, ainda,

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pensar na formação desse sujeito ou dessa memória individual via memória coletiva a partir

do lugar ocupado no grupo e das relações mantidas com o mesmo, o que vem a reforçar,

assim, a importância e a transversalidade entre estas duas dimensões, individual e coletiva.

Seja por meio da memória individual ou, principalmente, por meio da memória coletiva,

muito da história da estrutura social desenvolvida em um lugar, e das representações

culturais expressas no cotidiano por vários de seus segmentos sociais, nem sempre

registradas, podem ser iluminadas por uma análise e um discurso atentos à complexidade

do social (COSGROVE, 1998), o que, de certa maneira, também auxilia no conhecimento de

outras escalas, permitindo a concordância de que: “tem-se mais confiança nas sínteses

obtidas pelo aprofundamento de uma circunstância quotidiana do que num tratamento

global” (AUERBACH apud BOURDIEU, 2005, p. 05). E sob um contexto onde as realidades

locais são inseridas em uma dinâmica global sem precedentes, quando boa parte das

mesmas se configuram como aquelas parcelas defendidas de seu esfacelamento pelos

críticos do atual processo de globalização em razão de sua baixas condições econômicas e

tecnológicas para uma troca cultural equilibrada, diante de uma homogeneização em escala

vertical, tornam-se pertinentes reflexões e atuações no campo cultural alicerçadas em

conceitos abrangentes como o de paisagem cultural.

Considerações

A partir do conhecimento de conceitos e categorizações diversas e sucessivas, como as

evidenciadas neste artigo, criadas tanto no âmbito da cultura quanto no âmbito do espaço

natural alterado pelas práticas e representações culturais, tornam-se claros os esforços

empreendidos historicamente no sentido de sua melhor compreensão de acordo com a

emergência de novos valores e questões e, consequentemente, outras assimilações dessas

esferas, que assim demonstram parte de sua importância.

Ainda que possam ser criticados os atuais métodos de trabalho com tais terminologias, e até

mesmo as limitações conceituais das mesmas, essas categorias de pensamento também

podem ser apreciadas por auxiliarem na compreensão do quanto tem se tornado mais

evidente que a cidades expressam não apenas seus substratos materiais, culturais, mas

também os naturais, assim como uma morfologia social, todos em uma mescla de

interações cada vez mais reconhecida como fundamental para a compreensão das

configurações distintas de cada lugar (HALBWACHS, 2004). De fato, junto ao

reconhecimento das características gerais de um lugar, de suas potencialidades ou

carências naturais e culturais, as forças de pensamento, as teias intangíveis elaboradas por

seus agentes modeladores, que assim engendram ações, transformações e consequentes

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situações ali vivenciadas, também podem ser reveladas em uma investigação atenta às

múltiplas dimensões que se entrecruzam na conformação da realidade em questão.

Reflexões e ações amparadas na consideração de uma interação entre esferas até poucas

décadas assimiladas de maneira distinta e apartadas (até mesmo em situação de oposição)

podem, com certeza, auxiliar em uma melhor compreensão do contexto contemporâneo –

tanto em seus aspectos e relações locais quanto em suas referências globais dentro da

atual dinâmica contemporânea; um contexto que tem levado a numerosos questionamentos

sobre pontos fundamentais dessa conjuntura que por ora se apresenta, e que foram aqui

apenas superficialmente abordados. Afinal:

O que pode significar a palavra “sustentabilidade” fora dos grandes foros internacionais, na vida cotidiana dos 20 ou 30% da população desocupada, 50 a 70% de pobres que procuram sobreviver nas grandes cidades médias? Que esperanças pode dar-lhes a palavra “cultura”, evocada em jornais que obviamente não lêem, e que o rádio ou a televisão não mencionam quase nunca porque nesses meios de comunicação mais se fala de entretenimento, consumo, modas e prazeres fugazes? (CANCLINI, 2005, p. 186).

Uma possibilidade a ser escolhida é essa acima ressaltada por Canclini e neste trabalho

também defendida, buscar se atentar, nesse contexto, tanto aos acontecimentos de grande

escala e conhecimento, difundidos e reproduzidos pelos mais variados lugares, como também

se deixar ouvir expressões locais bem ou mal amparadas por uma determinada coletividade.

Na específica esfera cultural, se atentar às suas práticas ou instituições culturais consideradas

as mais representativas, por vezes “monumentalizadas” e alçadas ao status de arte,

patrimônio ou paisagens culturais, como também às práticas ou artefatos culturais mais

vivenciados e/ou midiatizados e consumidos no cotidiano e, ainda, àquelas singulares e por

vezes estranhadas práticas ou representações que nem sempre se desvelam ou sequer o

pretendem, mas que expressam legítimas alteridades e meandros da esfera relacional da

cultura, ou de suas múltiplas esferas.

Será a cultura global simplesmente a comercialização internacional de mercadorias culturais por indústrias transnacionais que cercaram e privatizaram os bens comuns culturais, o domínio público? (...) Será a cultura da cidade global uma cultura proletária em algum sentido ainda impensado ou inimaginado dessa palavra, o produto simbólico de massas imigrantes formando movimentos sociais e esferas públicas plebeias de formas ainda não teorizadas? (DENNING, 2005, p. 19).

Diante de “uma cultura global” quando muitos vislumbravam “culturas globais”, não

necessariamente processos passíveis de supressão de representações mais frágeis, mas a

emergência de vários e/ou novos diálogos, o fato de ser este um processo recente e

atuante, e por isso de difícil análise, não impede, contudo, sua simultânea investigação,

mesmo que se proceda por meio dos fatos da ordem do dia, por meio de vínculos a

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reflexões e situações anteriores, bem como por meio da imaginação criativa, também

conformadora de realidades.

São justamente esses dilemas da contemporaneidade, baseada em uma valorização e

circulação desenfreada de informações que levam a crer, nessas considerações parciais de

uma presente reflexão contínua, o quanto a cultura, se considerada como um sistema de

informações, torna-se um alvo de grande de interesse em tal cenário, o que, obviamente,

engendra uma maior preocupação em relação à sua manipulação, tal como a natureza, em

uma nova fase de valorização simbólica diante de suas reações à sua já excessiva

manipulação. Nesse momento da pós-modernidade, sobressaem-se, é preciso enfatizar, os

porta-vozes de uma cultura fortemente vinculada ao capital por meio da circulação –

financeira, informacional e humana – que tende a homogeneizar o imaginário, as ações e

situações vividas no cotidiano (GUIMARÃES, 2015). Especificidades culturais têm sido, por

não poucas vezes, apagadas diante da valorização midiática de uma representação cultural

específica (SANTOS, 2000), de um modo de vida específico que, de certa maneira, se

equivale ao mesmo padrão de intervenção adotado nos mais distintos e distantes lugares,

assim transformados em concorridos e homogeneizados espaços. Sob tal contexto,

conceitos como o de paisagem cultural, perfazem uma resposta ambiciosa mas coerente à

compreensão, discussão e ação sobre as múltiplas e inter-relacionadas dimensões do

ambiente em que vivemos, sobre o que o mesmo nos ensina, o que podemos preservar ou

mesmo redirecionar para um ou outro sentido considerado mais favorável.

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