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Paisagem e Fotografia
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281contemporanea | comunicao e cultura - vol.09 n.02 agosto de 2011
RASTROS NA PAISAGEM: A FOTOGRAFIA E A PROVENINCIA DOS LUGARES
TRACES IN THE LANDSCAPE: PHOTOGRAPHY AND THE PROVENANCE OF PLACES
MAURICIO LISSOVSKY*
NO SE PODE FALAR DO DESERTO COMO DE UM LUGAR; POIS ELE , TAMBM, UM NO LUGAR; O NO-LUGAR DE UM LUGAR OU O LUGAR DE UM NO-LUGAR. EDMOND JABS
RESUMOAo longo do sculo XIX, e durante as primeiras dcadas do XX, os lbuns de vistas foram a forma dominante de difuso das fotograas de paisagem. Os rastros na paisagem forneciam o testemunho da laboriosa ascenso do fotgrafo ao ponto de vista. A emergncia da fotograa moderna coincide com a necessidade do apagamento destes rastros. Por meio de um percurso que se inicia nas dunas desrticas de OSullivan e Weston e nos conduz at os mares antigos de Fugimoto e os campos ingleses de aps-indstria de John Davies, este artigo procura esboar uma primeira descrio dos regimes de apagamento destes traos. A anlise da obra de quatro fotgrafos contemporneos ajuda-nos ento a compreender que no cerne da fotograa de paisagem habita um problema de difcil soluo: o que isso no espao que prov os lugares?
PALAVRAS-CHAVE: Fotograa. Paisagem. Lugar.
ABSTRACTThroughout the 19th century, and during the rst decades of the 20th century, the views albums were the dominant form of diffusion of landscape photographs. The traces in the landscape offered a testi-mony of the laborious ascent of the photographer up to the point of view. The emergence of modern photography brings the need to efface these tracks. Through a journey that begins in the desert dunes of OSullivan and Weston and leads us to the ancient seas of Fugimoto and post-industrial English elds of John Davies, this essay aims to sketch a rst description of the ways-of-deletion of these traces. The analysis of the work of four contemporary photographers help us to understand that at the heart of landscape photography inhabits a problem very hard to solve: what in space provides the places?
KEYWORDS: Photography. Landscape. Place
*Historiador, roteirista, professor e coordenador Programa de Ps-Graduao em Comunicao da ECO/UFRJ.E-mail: [email protected]
contemporanea|comunicao e culturaW W W . C O N T E M P O R A N E A . P O S C O M . U F B A . B R
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1.A PAISAGEM OITOCENTISTA E A CONQUISTA DO PONTO DE VISTAPassava pouco do meio-dia quando Timothy OSullivan decide interromper a extenuante viagem atravs do deserto de Carson, Nevada, na primavera de 1867. Ele retira o pesado equipamento fotogrco da charrete que lhe serve de meio de transporte e estdio ambulante e caminha at o alto de uma duna prxima. (FOTO 1) O vento do deserto logo encobrir suas pegadas, mas a fotograa reteve a inscrio efmera de sua ascenso ao ponto de vista. O corpo da terra deixara-se imprimir como os interiores aveludados e felpudos da casa burguesa que preserva os vestgios do proprietrio como a natureza preserva no granito uma fauna extinta (BENJAMIN 1989: 43-44).
A fotograa oitocentista de meados do sculo, antes da emergncia do pictorialismo e do instantneo,
aposta todas as suas chas no enquadramento. Mesmo os valores composicionais, estritamente falan-
do, esto subordinados ao movimento amplo de seleo do fotografvel. A funo do trip, sublinha
Szarkowsky, no era simplesmente manter a cmera em p, mas preservar a deciso do fotgrafo feita
antes que ele fechasse o obturador e a imagem do vidro do fundo desaparecesse. (1989: 129)
No surpreende, portanto, que, ao longo do sculo XIX e durante as primeiras dcadas do XX, os l-
buns de vistas tenham sido a forma dominante de difuso das fotograas de paisagem. sobretudo
por sua anidade com as narrativas de viagem que so comercializadas e acolhidas. Contraposta ao
retrato, a emergncia da fotograa de paisagem como gnero privilegiado para a manifestao de uma
arte fotogrca s ocorrer tardiamente, em paralelo ao discurso que ir tornar a superfcie da parede
FOTO 1
Dunas no deserto de Carson, Nevada. Timothy OSullivan, 1867.
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(a parede do espao de exibio, no museu ou na galeria) o locus por excelncia da apreciao esttica.
Neste sentido, Rosalind Krauss observa, com propriedade, que a prpria histria do modernismo pode
ser contada como o da constituio da obra de arte como representao de seu prprio espao de
exibio. (KRAUSS 1996: 133)
A pintura clssica havia encontrado na janela colocada no fundo da cena um lugar para a inscrio da
paisagem, mas, nos primrdios da fotograa, retrato e paisagem excluem-se mutuamente. preciso
recorrer a sobreposies a solues articiosas. Por isso, um dos homens mais fotografados do sculo
XIX permanece praticamente invisvel. No um governante, ou uma celebridade do teatro, mas o mari-
nheiro nbio que acompanhou Maxime Du Camps em suas expedies ao Oriente Prximo. Chamava-se
Ishmael, mas nem por isso seu nome foi registrado em qualquer das imagens em que gura, apenas
nas memrias do notrio explorador e fotgrafo, onde anotou:
A grande diculdade era manter Hajji-Ishmael imvel enquanto eu realizava os
procedimentos; nalmente o consegui por meio de um truque um tanto barroco...
Eu disse a ele que o tubo de metal da lente que saa da cmera era um canho
que cuspiria uma chuva de chumbo se ele tivesse o azar de se mexer uma his-
toria que o imobilizou completamente, como pode ser visto pelas minhas fotos.
(BALLERINI 2002: 46)
O duplo sacrifcio de Ismael (de seu movimento e de sua estampa) o preo pago pela miniaturizao dos
monumentos, um dos aspectos da fotograa que Benjamin considerava revolucionrio. (BENJAMIN 1985:
104) Mas h um gnero de vistas oitocentistas, ao qual o lsofo dedica uma reexo mais extensa: os
estereogramas, magnicamente descritos no texto sobre o Panorama Imperial e mencionados em vrias
outras passagens de sua obra. (BENJAMIN 1987: 76-7) Tal como nas pegadas sobre a areia, ainda de
um percurso no interior da imagem que se trata. Um movimento que no mais apenas tico, mas que
desequilibra, surpreende, pois a profundidade nas estereoscopias no um contnuo, mas um conjunto de
planos sucessivos onde o percurso do olhar se faz por pequenos saltos. (LISSOVSKY 2009, 51-4)
As vistas fotogrcas do XIX so inseparveis da noo de um percurso que as antecede e de um marco
que nelas se inscreve. Para que a moderna fotograa de paisagem possa surgir ser necessrio apagar
estes rastros. Mas, ao contrrio do vento batendo nas dunas que, em pouco tempo, recobre as pegadas
do fotgrafo, os processos que envolvem este apagamento so bem mais complexos. Distinguimos, a
princpio, dois regimes de apagamento destes rastros: o primeiro caracteriza as ltimas dcadas da fo-
tograa clssica; o segundo, a emergncia da paisagem moderna.
MAURICIO LISSOVSKY
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2.PRIMEIRO REGIME DE APAGAMENTO DOS RASTROS:
O PICTORIALISMO E SEUS EQUIVALENTES
No se pode compreender a necessidade de apagar os rastros da paisagem se no nos voltarmos, ini-
cialmente, ao surgimento da tecnologia do instantneo. J desde ns do sculo XIX, os fotgrafos no
precisavam excursionar levando o prprio laboratrio na bagagem. No foi somente o tempo de expo-
sio que se tornou mais rpido, os procedimentos simplicaram-se e o esforo despendido entre uma
exposio e outra diminuiu signicativamente. A primeira reao organizada ao instantneo fotogrco
cou conhecida como pictorialismo. Um de seus paladinos, o artista e escritor ingls Charles Cafn,
publica, em 1901, Photography as a Fine Art, livro que procura promover os valores do impressionismo
na prtica da fotograa artstica. Nesta obra, dois captulos so dedicados aos Mtodos de Expresso
Individual e um fotograa de paisagem.
Nas ltimas linhas de seu livro, Cafn deixa claro o incmodo que o agrante lhe causava: Se qual-
quer um pudesse ser bem sucedido, escreve ele, referindo-se fotograa, no haveria espao para o
artista, cujo mrito impregnar a imagem de experincia e impresso subjetivas. Porm, se o ins-
tantneo predominasse, impresso e experincia estariam fatalmente excludas. Por isto, o verdadeiro
acionado deveria impor-se diculdades, pois por meio do persistente esforo em super-las que a
fotograa estaria sendo gradualmente conduzida ao nvel da arte. (191) O objetivo dos melhores fot-
grafos, como de todo verdadeiro artista, argumentava Cafn, no apenas fazer uma imagem, mas re-
gistrar e transmitir a outros a impresso que experimenta na presena de seu tema. (88) Os mtodos
que prope para isso em tudo se opem ao que, quela altura, j se conhecia por fotograa direita,
e tm em comum a impresso de marcas sobre as imagens por meio da manipulao dos negativos ou
das cpias. (87) Assim, a grama sobre a qual um cavalo descansa ser entalhada, enquanto, com o au-
xlio de um pincel e uma agulha, o sof onde um jovem dorme transforma-se em mar. (FOTOS 2 e 3)
FOTO 2 Frank Eugene. Horse, 1898.
FOTO3 Frank Eugene; Nirvana, 1898
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FOTO 4 The Steerage. Alfred Stieglitz,1907
Na concepo de Cafn e de muitos pictorialistas, a neutralidade precisa do mecnico era especialmente prejudicial fotograa artstica das paisagens, uma vez que delineava cada detalhe da folhagem de uma rvore em detrimento da nossa impresso de uma massa difusa, que se move com o vento. (151-2) Assim, tal como sucedeu na pintura, onde a paisagem teve de pagar tributo literatura para aceder do fundo das cenas ao primeiro plano, a dignidade artstica da paisagem fotogrca dependeu igualmente de sua transformao em paisagem potica: isto , em imagens nas quais os estados da natureza correspondessem simpaticamente a determinados estados de nimo.
A tautologia mecnica da fotograa (uma grama uma grama uma grama... um sof um sof um sof...) deveria ser repelida por procedimentos como os que fascinavam Benjamin na av do narrador da Recherche, que preferia presentear ao neto com reprodues fotogrcas que contivessem vrias espessuras de arte. Assim, em vez de oferecer-lhe a reproduo de uma paisagem famosa ou a foto-graa de um monumento, optava pela fotograa de uma gravura que copiava tal pintura ou monumento famoso, como se, assim, pela multiplicao das mediaes artsticas, a vulgaridade do mecnico fosse exorcizada. (PROUST 1987: 44-5)
A transposio de impresses subjetivas do artista em marcas impostas cpia ou ao negativo no causava nenhum estranhamento a Cafn ou a outros tericos da poca. Ser preciso esperar por Alfred Stieglitz para que o primeiro regime de apagamento dos rastros venha a ser realizado pela inscrio de outro tipo de trao. Na descrio que faz da tomada de uma de suas imagens mais famosas, The Steerege onde o tombadilho inferior visado a partir do plano superior onde o fotgrafo se encontra , lenta assuno a um ponto de vista que ele se refere, mas o percurso que conduz o fotgrafo at
este local difere radicalmente do de OSullivan. (FOTO 4)
MAURICIO LISSOVSKY
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Stieglitz viaja para a Europa, a bordo do luxuoso transatlntico Kaiser Wilhem II, em companhia de sua famlia, numa primeira classe repleta de novos ricos cuja atmosfera diz odiar. No terceiro dia da viagem ele se afasta. Da balaustrada do convs superior, observa com simpatia os passageiros da segunda classe:
Eu fui at o nal do convs e quei s, olhando para baixo [...] Rembrand veio minha mente e imaginei se ele teria sentido o que eu estava sentindo [...] Aqui seria uma foto baseada em formas relacionadas e nos mais profundos sentimen-tos humanos, um passo em minha prpria evoluo, uma descoberta espont-nea. (SEKULLA 1982, 98-9)
A fotograa j estava l, esperando por ele, desde os primeiros dias da viagem, mas foi preciso que se afastasse de sua posio e grupo social, numa tpica descrio inicitica, para que, em suas prprias palavras, outro marco na fotograa fosse alcanado. Ainda da conquista do ponto de vista que se trata. No entanto, diferentemente da fotograa das dunas de Nevada, as pegadas agora esto impres-sas na alma do fotgrafo.
No primeiro regime de apagamento dos rastros, os passos que levaram o fotgrafo ao ponto de vista devem ser meticulosamente apagados e substitudos por modos cada vez mais depurados de inscrio (subjetiva) do sujeito na paisagem. Stieglitz representa o apogeu da paisagem fotogrca clssica. Sua conana na capacidade do artista deixar sua marca na imagem praticamente ilimitada. O corolrio desta crena a noo de equivalncia, que ter quase tanta inuncia sobre a prtica de fotgrafos paisagistas das gera-
es subseqentes quanto o instante decisivo de Cartier-Bresson entre os fotojornalistas (FOTO 5).
FOTO 5 Alfred Stieglitz. Equivalente, 1923.
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Para Stieglitz, equivalente no era o assunto, mas o esprito por trs dele. A vidncia do fotgrafo re-
lacionava-se aqui sua capacidade de transformar uma realidade literal, banal, em algo novo e ideal
(CLARKE 1997: 170) Em busca do que imaginava ser a essncia do processo fotogrco, como criao
subjetiva, Stieglitz procura abolir o assunto. E, na impossibilidade faz-lo de todo, toma para si um
tema democrtico, que est disponvel, sem taxas, para quem quiser. (DUBOIS 1994: 201) No limite
desta equivalncia est aquela entre a nuvem de cristais de gelo suspensos na atmosfera e a nuvem
dos haletos de prata que a prpria chapa fotogrca. Na expresso de Philip Dubois: auto-retratos
da fotograa por ela mesma. (205) Puro ato de recorte que sacrica, no altar da arte, poderia ter dito
Benjamin, a ortogonalidade da paisagem em favor da autonomia do espao de representao.
Os Equivalentes so o derradeiro gesto de um fotgrafo clssico que prende a respirao e aponta a
cmera para o cu. Como o pregador em seu plpito, o fotgrafo faz de seu corpo um mero veculo de comunicao de certas verdades do esprito. A despeito da transparncia da imagem e da simplicida-de do gesto, crticos como Andy Grundberg no deixaram de assinalar que era sempre difcil denir a qual sentimento ou viso esta ou aquela imagem equivaliam. (BRIGHT 1993: 130) Essa impreciso, no entanto, no empanou o sucesso da noo, que decorreu sobretudo de sua capacidade de tornar a instantaneidade ato fotogrco veculo ideal para a propagao do esprito.
No processo do apagamento das marcas que caracterizavam as vistas oitocentistas, a fotograa de ns do XIX
e incio do XX oscila entre a verborragia do pictorialismo simblico-impressionista e a logofobia dos equivalen-
tes. No de admirar que toda esta tenso entre falastronice e silncio ressurja agora no que se tornou uma
das vogas mais difundidas de um paisagismo contemporneo em busca do vestgio perdido: as fotograas
de antigos campos de batalha, que j so chamadas de battlescapes. (BUELLESBACH; COWPER 2009)
Mas nem os passos sobre as dunas, nem as guras humanas que conferem escala aos monumentos ou
encenam formas delegadas de contemplao tampouco seus substitutos artsticos (a inscrio mais
ou menos imediata da subjetividade do fotgrafo na imagem) , correspondem aos indcios que Benja-
min buscava nas fotograas: este trao que assinala o lugar imperceptvel em que o futuro se aninha
ainda hoje em minutos nicos, h muito extintos. (BENJAMIN 1985: 94) preciso busc-los nisso que
se ausenta, bem mais do que naquilo que se introduz. Pois h aqui, no apagamento dos rastros na
paisagem, uma injuno histrica que j foi sabiamente observada. Ao contrrio da maioria dos demais
gneros da fotograa moderna, a paisagem fotogrca tomou forma nos Estados Unidos, tendo emergi-
do como celebrao deste encontro com a natureza selvagem. Seu surgimento coincide com o m do
problema indgena, e o conseqente deslocamento para as reservas ao Norte dos ltimos guerreiros
da grande nao Sioux. A paisagem norte-americana, o culto fotogrco da natureza selvagem , em
ampla medida, o legado desta retirada. (BRIGHT 1993: 127) sobre este territrio do vazio (CORBIN
1989) que outra produo de paisagens vai nos interessar, onde o que importa menos a conquista
do ponto de vista (objetivo ou subjetivo) que a modulao das formas. A esta mudana de foco corres-
ponde o segundo regime de apagamento dos rastros, caracterstico da paisagem moderna.
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3.SEGUNDO REGIME DE APAGAMENTO: A PAISAGEM MODERNAQuando o instantneo deixa de ser o mediador mgico do esprito, quando ele se naturaliza, quando as
lembranas do crime original de onde toda paisagem provm j haviam evanescido, uma nova ordem de
visualidades emerge. A paisagem fotogrca moderna deve ser pensada como o cenrio de uma expul-
so h muito esquecida. E as guraes que ela assume, ao longo do sculo XX, seriam, neste sentido,
ensaios de reparao. Reconhecemos, inicialmente, duas modulaes da paisagem, dois movimentos de
reparao aos quais chamamos, por ora, restituio e acolhimento. Dois autores emblemticos da mo-
derna paisagem norte-americana nos servem aqui como exemplo destes movimentos: em Ansel Adams,
encontramos a restituio; em Edward Weston, o acolhimento.
Como notrio, as fotograas de Ansel Adams serviram de apoio a campanhas de criao de parques
nacionais nos Estados Unidos e uma vez se disse que uma imagem sua capaz de capturar o especta-
dor com muito mais fora que o motivo natural que o originou. (SONTAG 1981: 180) De onde vem essa
fora? O prprio Adams tinha uma explicao: s vezes eu acho que chego aos lugares justamente
quando Deus est pronto para que algum acione o obturador. (NASH 1995: 113) Em Adams, o apaga-
mento dos traos corresponde, como nunca antes, restituio de uma condio original intocada. Um
dos requisitos para tal viso era aproxim-la o mais possvel do olho de Deus, f/64, a menor abertura
do diafragma, e que permite maior profundidade de campo. Sob as vistas deste olho de Deus, que
tudo v, a imagem se desencarna, se desumaniza, tornando-se a alegoria da uma natureza protegida
das interaes humanas. (FOTO 6)
FOTO 6
Ansel Adams.
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Para que a operao de restituio seja durvel durvel por toda a eternidade a profundidade de
campo no condio suciente. Adams concebe uma tcnica de pr-visualizao da cpia impressa
que chamou sistema de zonas, um mtodo para controlar os valores luminosos da imagem. Graas ao
sistema de zonas, o fotgrafo podia anar a imagem de modo que a sria harmnica de sua gama de
cinzas a zesse vibrar por toda a eternidade. No gesto de reparao da paisagem, a profundidade de
campo projeta o fotgrafo at o ponto mais distante. Sobre cada uma das superfcies divisadas que,
no sculo XIX, apenas se ofereciam contemplao , ele agora se debrua e faz seu polimento.
Amigo de Adams, Edward Weston representa aqui a modulao oposta, o movimento de acolhimento.
Adams escreveu vrios livros para divulgar sua tcnica, Weston, por sua vez, manteve ao longo da vida
FOTO 7 Edward Weston. Excusado, Mxico, 1925.
FOTO 8 Edward Weston. Pimento, 1930.
um dirio que , seguramente, o mais importante documento de artista produzido por um fotgrafo.
Sobre Excusado, Mxico, 1925, escreveu:
Venho fotografando nosso vaso sanitrio, esse receptculo de esmalte brilhante,
de extraordinria beleza [...]. Aqui estavam todas as curvas sensuais da gura
humana divina, menos as imperfeies. Jamais conseguiram os gregos elevar sua
cultura a tal ponto de perfeio, o que me recordou, de alguma maneira, em seu
movimento para a frente e em seus contornos que se desenvolvem primorosa-
mente, a Vitria de Samotrcia. (SONTAG 1981: 185)
MAURICIO LISSOVSKY
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Mas, ao contrrio de Adams, no do polimento do vaso que depende a sua fotograa. Ele uma con-
trapartida da transformao pessoal do sujeito na transformao daquilo que v. a este processo de
afeco mtua entre objeto e sujeito do ato fotogrco que chamo, aqui, acolhimento. Os mtodos de mo-
dulao desenvolvidos por Weston visavam, segundo ele mesmo, extrair do objeto, sua quintessncia.
Quando Weston retorna aos Estados Unidos, em 1926, aps sua primeira temporada mexicana, inicia
suas fotograas de conchas e pimentes. Os longos tempos de exposio que utiliza em algumas con-
chas chegou a ser superior a 20 minutos no so apenas um modo de intensicar a forma e a textura,
mas de favorecer transmutao de uma coisa em outra. So a durao pela qual a coisa se revela poli-
morfa. Ao longo dos anos 1920, Weston evita as paisagens. Em 1922, havia anotado que elas no so
um tema favorvel para a fotograa, por serem demasiado caticas,... muito cruas, e desarranjadas.
(SZARKOWSKY 1981: 11) Quando anal comea a realiz-las sistematicamente, suas fotograas de
dunas de areia so uma sntese da operao de transmutao da forma e substncia das coisas ope-
rao que s se tornou possvel graas descoberta do acolhimento como modo de favorecer a ao da
quintessncia, de sua potncia de transformao.
FOTO 9Edward Weston. Oceano, 1936.
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J podemos perceber que, no acolhimento, o que se restitui a potncia criadora de forma e coisa. E,
na restituio, o que se acolhe o brilho resplandecente da eternidade. O que ambos os procedimentos
revelam, na oscilao que nos leva de um plo a outro (da pura potncia transformadora permann-
cia absoluta da eternidade), na respirao suspensa entre a inspirao que acolhe e a expirao que
restitui, so os traos da incompletude do Mundo e sua Histria: vestgios de sua atualidade perdida
que agora restituo, sonhos irrealizados que o meu acolhimento permite cumprir. So estes vestgios que
se ocultam nas paisagens modernas, abrigados nas lacunas deixadas que pelo duplo apagamento dos
rastros (o apagamento do apagamento dos rastros) que as tornou possveis.
4. A PAISAGEM FOTOGRFICA CONTEMPORNEA E SEUS ASPECTOS
As tenses entre permanncia e mudana esto na origem de toda paisagem. No difcil dar-se con-
ta do que est em jogo aqui, na hesitao entre restituir e acolher: a variedade de aspectos deste
amlgama de tempo e espao que nos habituamos a chamar lugar. Pois h lugares que buscamos pelo
devir-tempo do espao (e a estes aspectos chamamos jornadas); e h lugares que procuramos no devir-
espao do tempo (e a estes aspectos chamamos estratos). A paisagem que agora contemplamos tudo
o que nos resta da espera pelo lugar. o bagao de um mundo onde a durao desta espera cravou
seus dentes. A produo fotogrca contempornea tem nos ajudado a compreender melhor alguns dos
aspectos, algumas das guras de restituio e acolhimento que nos oferecem as jornadas e os estratos:
exlio e retorno; sedimentao e catstrofe.
EXLIO: OS CAMINHOS DE KIAROSTAMIYoussef Ishaghpour foi muito feliz em abrir seu ensaio sobre as paisagens do cineasta iraniano Abbas
Kiarostami com uma citao de Rainer Maria Rilke: Em verdade, estranho no mais habitar a ter-
ra, no praticar mais os costumes recm-aprendidos, no mais conferir s rosas, nem a outras coisas
pro-missoras, a signicao de um futuro humano (ISHAGHPOUR 2004: 89) Poderia ter recorrido aos
versos do poeta egpcio Edmond Jabs, em No se pode falar do deserto:
No se pode pretender que o deserto seja
o vazio, o nada. No se pode, tampouco,
pretender que ele seja o trmino,
uma vez que ele , igualmente, o comeo.
(MEIRA 2004)
O aspecto que emerge aqui, gurao do deserto, da jornada no deserto, o exlio. (FOTO 10) Podem
ocorrer elementos singulares, uma rvore sobre a colina, um jumento, um caminhante, mas nenhum
deles chega a denir uma direo, ainda que esteja sempre claro que o destino que est em jogo: O
deserto foi minha terra // o deserto minha viagem, minha errncia, escreve Jabs em gua. (MEIRA
MAURICIO LISSOVSKY
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FOTO 10Abbas Kiarostami. Estradas.
S/D) A sensao de distncia aqui fundamental, ainda que, como lembra o poeta, no se pode pre-
tender que o deserto seja uma distncia, porque ele , ao mesmo tempo, real distncia e no-distncia
absoluta. (MEIRA 2004)
Ishaghpour percebe que deste tipo de distncia que a paisagem emerge como alteridade absoluta:
Para tornar visvel essa beleza da natureza como o inteiramente outro, preciso que se esteja em
exlio. (ISHAGHPOUR 2004: 91) Na jornada do exilado, que se retira, se recolhe, a imagem torna-se
abertura e carrega consigo os traos de uma expectativa: Isso porque escreve Ishaghpour a na-
tureza no coincide consigo mesma por uma coincidncia e presena inertes, mas porque, ausente de si mesma, ela est sempre a caminho, por vir. Essa no coincidncia da natureza consigo mesma constitui a condio de sua intimidade com o olhar exilado, mas fervoroso, que vem a seu encontro. (96)
Em sua tmida intimidade, o exilado lhe estende a mo. o gesto de acolhimento do fotgrafo. Mas o que ele v, na palma de sua mo aberta, so as linhas indecifrveis de seu prprio destino. Entre o deserto atravessado por rastros e as linhas da minha mo, uma coincidncia distante.
RETORNO: A SEMEADURA DE CLUDIA JAGUARIBEUma coisa paisagem recortada por caminhos que nos levam no se sabe bem onde, outra paisagem da terra arada. Esta segunda jornada a do retorno, e da semeadura. A mo que retorna agora est cheia. Ela no se volta para si, mas espalha os elementos que trouxe consigo, recobre o corpo da terra.
RASTROS NA PAISAGEM: A FOTOGRAFIA E A PROVENINCIA DOS LUGARES
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FOTO 11Cludia Jaguaribe. Rio de Janeiro, 2010
A semeadura dos campos ope-se ao gesto de quem se exila, de quem busca a terra perdida na prpria palma da mo vazia. Como quem retorna, Cludia Jaguaribe abriu a mo e suavemente semeou favelas pelos morros do Rio de Janeiro (digo suavemente, porque nunca eles estiverem menos escarpados). At onde a vista alcana, sobre a terra frtil, acabam de surgir os brotos. (Foto 11)
Os aspectos fotogrcos que nos legam vestgios de jornadas (o exlio, o retorno) so traos do devir-lugar do tempo, pois a diferena entre chegar e partir nunca da ordem do deslocamento que se realiza no espao, mas de uma durao da qual o movimento faz o desenho. J nos fotgrafos que comenta-remos a seguir, encontramos a operao inversa: So vestgios dos estratos, do devir-tempo do lugar. E seus aspectos so a sedimentao e a catstrofe.
MAURICIO LISSOVSKY
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SEDIMENTAO: OS FSSEIS DE SUGIMOTO
Hiroshi Sugimoto o fotgrafo dos sedimentos. Enquanto trabalhava na preparao de dioramas para
um museu de histria natural, iniciou sua famosa srie de cinemas, em que o tempo de exposio das
fotograas coincidia com a durao do lme (FOTO 12).
Em Union City Drive, 1993, a sedimentao de uma longa narrativa resulta em um painel luminoso e a tela
se tornar radiante em funo do percurso das estrelas. Em uma percepo feliz do gesto de acolhimento
de Sugimoto, Geoff Dyer escreveu que o tempo passa atravs da sua cmera (DYER 2007: 180)
J muito se escreveu sobre as relaes entre fotograa e cinema implicadas nesta srie. (BRASIL 2009:
89-90) No seria possvel revis-las no mbito deste texto, mas devemos reter ao menos a demonstra-
o cabal de que uma imagem apenas uma simples superfcie pode servir de suporte a toda uma
histria. A evidncia da sedimentao tornou-se to clara para Sugimoto que, h poucos anos, declarou
ser a fotograa um modo de produzir fsseis a partir do presente. Na exposio Histria da Histria (2007), colocou suas imagens lado a lado com peas de sua coleo de fsseis e objetos de arte antiga oriental, e escreveu que considerava os fsseis um dispositivo pr-fotogrco de registro do tempo e a forma mais antiga de arte. (SUGIMOTO)
FOTO 12Hiroshi Sugimoto, Union City Drive-In, Union City, 1993
RASTROS NA PAISAGEM: A FOTOGRAFIA E A PROVENINCIA DOS LUGARES
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A srie que sucedeu dos cinemas comeou a ser feita em 1985 e j conta com centenas de Seasca-pes: fotograas onde os nicos elementos, cu e mar, repartem-se igualmente pela superfcie. Um leitor do Gnesis diria que se tratam de agrantes do momento da Criao em que teria ocorrido a repartio fundamental entre as guas e o rmamento, ou do ponto de vista de No, aps o dilvio. Sugimoto diz que quer retratar a terra em um estado pr-humano, ou como se ele fosse o primeiro homem a contempl-la: por isso que no h vestgio humano. (FRIED 2009: 294) E, no entanto, a cada foto corresponde um local e uma data: Lago Superior, 1995; Mar Ligrio, perto de Saviore, 1993; Atlntico Norte (Bretanha), 1996; Mar Bltico, perto de Rgen, 1996. Que diferena fazem estas legendas, anal, uma vez que no h qualquer indcio, qualquer caracterstica que justique ou torne necessria essa referncia? No que as imagens sejam todas iguais. So todas distintas, mas so indiferentemente distintas. Que importam, ento, os locais e as datas? Importam porque no se tratam de agrantes do Gnesis, mas efeitos de uma longussima durao, do mais longo dos processos de acumulao e sedimentao.
Em uma entrevista, de 1994, Sugimoto disse que as pessoas no se concentram mais. Elas no olham para uma coisa por muito tempo. Nossos olhares esto sempre se movendo por alguma outra coisa... (MELLO 2009: 18) Depois de registrar em um s fotograma toda a histria de um lme, Sugimoto es-tendeu sua espera at o m dos tempos, at quando por via da sedimentao, da acumulao e super-posio innita de seus movimentos, todos os lugares e todas as datas teriam convergido. Ao contrrio das nuvens equivalentes de Stieglitz, os mares de Sugimoto, no so resultado de uma comunicao imediata do esprito, mas da insistncia das vagas sobre a retina, que acolhe todo o movimento das ondas at que ele tenha se tornado uma s linha no horizonte de toda a histria humana.
FOTO 13Hiroshi Sugimoto. Mar Egeu, 1990.
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CATSTROFE: O CALEIDOSCPIO DE JOHN DAVIES
Os estratos podem oferecer o testemunho da lenta acumulao dos sedimentos, mas podem igualmente
colocar-nos em contato com as poderosas foras telricas de transformao: as brutais catstrofes que
distorcem a face do mundo como uma careta. A expresso destas foras conformadoras da paisagem
j era buscada desde os primrdios da prtica fotogrca. A expedio de OSullivan tinha carter geo-
lgico e visava sobretudo documentar as formaes rochosas que denunciavam sua origem vulcnica.
Refotografadas mais de um sculo depois por Rick Dingus, descobrimos como OSullivan tinha aprendido
a valorizar seu ponto de vista: em Witches Rock # 5, 1869, um pequeno desvio de nove graus no hori-
zonte, restabelece algo da fora eruptiva das rochas em um vale de Utah.
FOTO 14John Davies. Ffestiniog Railway, Blaenau Ffestiniog, Snowdonia, 1994.
Essa reviso do trabalho de OSullivan e de sua gerao de fotgrafos deu-se no contexto da descoberta
das Novas Topograas, uma exposio em 1975 que se volta ento para paisagens alteradas pelos
homens. Mas as imagens de Robert Adams, Nicholas Nixon e Henry Wessel Jr entre outros parti-
cipantes desta exposio conseguem apenas nos colocar em contato com estranhas superposies
de formas e texturas incompatveis. As tenses da paisagem estavam ali em estado latente, prestes a
explodir, talvez, mas ainda resultavam de uma acomodao mais ou menos cuidadosa no terreno.
Com John Davis e suas paisagens britnicas (FOTO 14), porm, o que temos so os cacos de um mun-
do ps-catstrofe. Uma estranha paisagem que parece ter sido interrompida no meio de uma mutao.
Um comentarista referiu-se fotograa de Davies como sendo uma freada brusca em uma montanha
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russa. (GLANCEY 2006: 6) Se o olhar de Sugimoto como a retina onde se sedimentam, era aps era,
todas as mudanas da histria, o olhar de Davies um caleidoscpio que ele sacode diante do mundo
de modo a agrar, no olho do ciclone, o brutal desarranjo de suas formas.
5.CONCLUSO: A PAISAGEM COMO GESTO FOSSILIZADO
No fssil, espao e matria so percebidos como memria do devir. Hiroshi Sugimoto no foi o primeiro
a relacionar sua atividade artstica com a produo de fsseis. Giuseppe Penone j o havia feito. Deve-
mos nos admirar que tenha sido um escultor? De modo algum, pois se o retrato fotogrco o teatro,
condicionando a espera ao ajuste interminvel da pose, a paisagem escultura, condicionando a expec-
tativa ao cinzelamento do espao ilimitado.
Sobre a escultura, Penone escreveu:
O espao nos precede. O espao precedeu nossos antepassados. O es-
pao seguir depois de ns. Fossilizar os gestos [...] reduz o uso possvel
do espao, mas marca o prprio espao. [...] Criar uma escultura um
gesto vegetal: o rastro, o percorrido, a aderncia em potncia, o fssil
do gesto feito, ao imvel, a espera [...] nada de vida e nada de morte.
(DIDI-HUBERMAN 2009: 69-70)
Didi-Huberman chama ateno que, para Penone, a escultura trabalha com rastros, mais do que com
objetos: seu objeto de fato seria o rastro, no duplo sentido de vestgio e de estado nascente (a pista,
o indcio). (75) No mesmo sentido, procuramos seguir aqui os rastros na paisagem, e este breve per-
curso nos levou a este entroncamento onde o tempo devm espao e o espao devm tempo. Desco-
brimos, com os fotgrafos devotados ela, que no corao da paisagem habita um problema de difcil
soluo: o que isso no espao que prov os lugares?
Pois h um ponto neste entroncamento de tempo e espao que conhecemos pelo nome de cardeal:
um ponto na linha que se estende at ns, perpendicularmente junta onde se encontram cu e terra,
cu e mar. Ali se localiza a dobradia da porta que temos frente nos momentos mais decisivos de nos-
sas vidas. para esta direo que aponta a cmera de Sugimoto, orientando-se para o mesmo ponto
visado pelo agrimensor de Kafka, personagem que Benjamin viu como a alma exilada em seu prprio
corpo (BENJAMIN 1985: 151) e Agamben como aquele que aspira colocar em questo as fronteiras e
tornar ociosos os limites. (AGAMBEN 2010: 48)
Na busca incessante para encontrar, na junta do cu, o ponto cardeal de onde todos os lugares provm,
fotgrafos-agrimensores construram as mais variadas guras da paisagem. Em cada uma destas gu-
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ras, em cada um destes aspectos, inscreve-se a expectativa deste lugar ainda por vir, ora partida, ora
regresso, ora sedimento, ora catstrofe. Ora acolhimento que reconcilia corpo e alma, ora restituio
que suspende fronteiras. Lugar que, paradoxalmente, ao mesmo tempo prprio e ilimitado.
Benjamin uma vez nos descreveu esse lugar. Ficava, para ele, nos conns do Zoolgico de Berlim. Era a
casa da lontra: o animal sagrado das guas da chuva. Dela, nos dizia:
To dcil como uma garotinha, a lontra inclinava a risca da cabea sob aquele pente cinzento. Ento no me cansava de olhar para ela. Esperava... Naquela chuva boa, sentia-me totalmente protegido. E meu futuro vinha a meu encontro rumorejando semelhana da cantiga de ninar entoada ao lado do bero.
(BENJAMIN 1987: 94-5)
Signo das coisas fugidias, de seu obscuro canto no parque, a lontra estende seus domnios pelo territ-rio mais vasto: a todos os lugares que tm o poder de nos fazer ver o futuro, e onde parece ser coisa do passado tudo o que nos espera. (93-4) De olho no poo da lontra, o menino espera:
E assim, amide, deixava-me car numa espera inndvel em frente daquela profundeza escura e insondvel a m de descobrir a lontra nalgum ponto. Se, por m, conseguia, certamente era apenas por um momento, pois logo o reluzente habitante daquela cisterna sumia de novo para dentro da noite aquosa. (94)
Mas o menino ali permanecia, atento ao menor indcio do retorno da lontra, porque aprendera com o pequeno animal que a chuva fazia crescer. Esse local de desaparecimento e de prenncio do retorno, esse redemoinho de espao e tempo que o vestgio de uma leve ondulao assinala, esse ponto de onde toda paisagem provm, tambm o lugar de origem de toda espera.
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Artigo recebido em: 22 de maio de 2011.
Aprovado em: 05 de julho de 2011.
ISSN: 18099386
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