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4O COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016 PAISAGEM E MEMÓRIA NA CONSTRUÇÃO DO CIRCUITO DA HERANÇA AFRICANA 1 CRUZ, ALAN G. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Departamento de Geografia Centro de Ciências Matemáticas e da Natureza - CCMN Instituto de Geociências IGEO [email protected] RESUMO O presente artigo compreende o estudo sobre uma das políticas urbanas desenvolvidas na cidade do Rio de Janeiro. Recentemente, a área do porto da cidade sofreu alterações justificadas pelos megaeventos da Copa do Mundo de 2014 e as Olímpiadas de 2016. Dentro do arcabouço de intervenções responsáveis por transformar a paisagem da cidade surge aquela de construir uma memória africana para região do porto, materializada pelo Circuito da Herança Africana. Constituindo assim lugares de memória apropriados por grupos que compartilham dessa identidade. Dentro deste contexto é que surge o Cais do Valongo, com uma paisagem ressignificada. Entender o processo de como as narrativas produzidas por atores do cenário da cidade transformam materialmente a paisagem, mas também seu significado, numa construção dialética, torna-se o objetivo deste trabalho. Palavras-chave: Paisagem; Cais do Valongo; Circuito da Herança Africana; Memória; Cidadania. 1 Este artigo é parte do Trabalho de Conclusão de Curso para a obtenção do grau de Licenciatura em Geografia pela UFRJ.

PAISAGEM E MEMÓRIA NA CONSTRUÇÃO DO CIRCUITO DA ... · 4O COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016 PAISAGEM

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4O COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016

PAISAGEM E MEMÓRIA NA CONSTRUÇÃO DO CIRCUITO DA HERANÇA AFRICANA1

CRUZ, ALAN G.

Universidade Federal do Rio de Janeiro. Departamento de Geografia

Centro de Ciências Matemáticas e da Natureza - CCMN Instituto de Geociências – IGEO

[email protected]

RESUMO

O presente artigo compreende o estudo sobre uma das políticas urbanas desenvolvidas na cidade do Rio de Janeiro. Recentemente, a área do porto da cidade sofreu alterações justificadas pelos megaeventos da Copa do Mundo de 2014 e as Olímpiadas de 2016. Dentro do arcabouço de intervenções responsáveis por transformar a paisagem da cidade surge aquela de construir uma memória africana para região do porto, materializada pelo Circuito da Herança Africana. Constituindo assim lugares de memória apropriados por grupos que compartilham dessa identidade. Dentro deste contexto é que surge o Cais do Valongo, com uma paisagem ressignificada. Entender o processo de como as narrativas produzidas por atores do cenário da cidade transformam materialmente a paisagem, mas também seu significado, numa construção dialética, torna-se o objetivo deste trabalho.

Palavras-chave: Paisagem; Cais do Valongo; Circuito da Herança Africana; Memória; Cidadania.

1 Este artigo é parte do Trabalho de Conclusão de Curso para a obtenção do grau de Licenciatura em Geografia

pela UFRJ.

4O COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016

INTRODUÇÃO

Nosso estudo se insere a partir de três observações notadas em várias cidades do mundo.

A primeira abordada por Abreu (1998) destacando a valorização do passado das cidades

pelas sociedades modernas. Existe uma busca incessante atrás de vínculos identitários

colocando as memórias dos lugares, das paisagens e das instituições de memória como

algo impreterível à preservação. Nora (1993) preocupa-se com esse fenômeno alertando

para “síndrome arquivística”, quando preservarmos através de instâncias protetoras

qualquer vestígio do passado. Ainda assim, a memória é seletiva passando sempre por um

processo de escolha – o que quer e o que não quer se lembrar –, por isso é extremamente

volátil e, portanto, política. Por isso, apesar de crescer as ações para preservar o passado

não estamos retratando que não haja conflito. Pelo contrário, diferentes memórias coletivas,

não raramente, se justapõem ao longo dos anos sobre o mesmo espaço, gerando embates

de cunho identitários difíceis de solucionar.

A segunda observação é palco frequentemente da primeira. Existem atualmente

preocupações nas cidades de recuperar áreas centrais noticiadas como “vazias”,

“degradadas”, “marginalizadas”, e que precisariam da “revitalização”. Estes espaços

costumam configurar pontos nodais da cidade, sendo alvo de diversos interesses: grupos,

empreiteiras, imobiliárias, instituições e residentes. Neste sentido, a Zona Portuária da

cidade do Rio de Janeiro torna-se alvo de grandes transformações e de conflitos.

Impulsionada pelos megaeventos da Copa do Mundo de 2014 e as Olímpiadas de 2016, a

região passou por intensas mudanças gerando consequências: enobrecimento da área,

remoção de moradores, criação de lugares de memória, cultura e lazer. Entretanto, essa

parte da cidade contém um substrato social da época da escravidão no Brasil com forte

apelo. Mobilizando grupos dentro da região a participarem da criação do Circuito Histórico e

Arqueológico da Celebração da Herança Africana – espaços voltados para a valorização da

memória afrodescendente da cidade, dentre eles o Cais do Valongo.

Nossa terceira observação encontra-se na valorização do conceito de paisagem dentro e

fora da Geografia. Revivida pela renovada Geografia Cultural, ela ganha novos ares e novas

aplicações. Duncan (2004) trata a paisagem como um texto, ou seja, passível de ser “lida”

de acordo com o “olhar” do observador, portanto, apta a possuir múltiplos sentidos. No

campo do patrimônio, tratando-se da paisagem cultural, as possibilidades de sentidos

desperta o eventual problema: qual sentido privilegiar? Essa questão gerou e continua

causando bastante alarme. Não obstante, percebemos a paisagem como uma ferramenta

de gestão do território (RIBEIRO, 2011; 2012). Atribuir novos sentidos a espaços com pouca

visibilidade está se tornando uma estratégia chave na gestão das cidades. Sendo

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apropriadas por políticas urbanas como ferramenta de controle pelos governantes e alvo de

interesses por grupos em busca de visibilidade, de cidadania, ou como a bibliografia sugere

pelo “direito à cidade”.

Enquanto a sociedade experimenta esses fenômenos, o Cais do Valongo é “redescoberto”

em 2011. Um dos maiores portos de escravos do mundo, em apenas vinte anos, recebeu

cerca de quinhentos mil africanos. Honorato (2008) auxilia entender as diversas

transformações que ocorreram no Cais. A história começa com o Vice-Rei Marquês de

Lavradio transferindo o mercado de escravos para a região do Valongo em 1779. Fazendo

os escravos desembarcarem na Alfândega (atual Praça XV) para depois serem

transportados em canoas até o novo mercado de escravos. Somente em 1811, já com a

corte portuguesa no Brasil, a Intendência-Geral de Polícia da Corte da Cidade do Rio de

Janeiro ergueu o Cais do Valongo facilitando o tráfego. Destinado para a chegada dos

escravos torna-se um lugar de penúria e desprezo como bem relata viajantes da época. O

significado perdurou até 1843, quando o cenário político do Brasil ganhou novos ares com a

chegada da Imperatriz Teresa Cristina de Bourbon Duas-Sicílias. Nesse ano, o Cais do

Valongo é rebatizado de Cais da Imperatriz, sendo todo reformado e embelezado para

construir um novo significado. O clima abolicionista e pressões externas já criticavam a

escravidão, o Cais da Imperatriz ressignificou o Cais do Valongo, antes um local de

escravos tornava-se um símbolo da realeza. No início do século XX, a região portuária

sofreu uma série de aterros devido à lógica de ordenamento da cidade. O Cais é aterrado

remanescendo somente o Obelisco da Imperatriz – que referência o local do antigo Cais –

ressignificando e colocando em ostracismo a memória vinculada ao antigo Valongo. Como

problematiza Pollak (1989) o esquecimento e o silêncio das memórias são processos

presente nas ressignificações.

No contexto favorável a valorização da memória afrodescendente, dentro da zona turbulenta

de mudanças e conflitos, a paisagem do Cais do Valongo ressurge sendo alvos de possíveis

narrativas. É a paisagem do Cais do Valongo fruto de novas narrativas, e seus novos

significados construídos a partir da redescoberta em 2011 até 2015 que o trabalho foca seus

esforços. Nosso objetivo é entender a ressignificação da paisagem do Cais do Valongo a

partir da criação do Circuito Histórico e Arqueológico da Celebração da Herança Africana no

Rio de Janeiro. Essa valorização sob o substrato material da cidade escravocrata não

estava previsto no projeto original do Porto Maravilha, o local estava destinado às obras de

infraestrutura. A mobilização de intelectuais e grupos que se identificam com os vestígios da

memória africana proporcionou sua criação. O que não sugere a ausência de conflitos,

outros esquecimentos e alguns silêncios (POLLAK, 1989). Após duzentos anos, ressurgem

em 2011 as antigas formas do Cais do Valongo e da Imperatriz, evidenciando dois

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momentos distintos, ou seja, resquícios de duas paisagens de diferentes épocas sobre o

mesmo espaço.

AS MÚLTIPLAS NARRATIVAS DA PAISAGEM E A GESTÃO DO

TERRITÓRIO

Paisagem: Do conceito a um instrumento de gestão

Melo (2001) aponta a falta de unidade na nova Geografia Cultural como um ganho. Não

existe uma “estrutura taxonômica” responsável por guiar os trabalhos e a forma como o

conceito é aplicado. Por outro lado, existe um objetivo comum perceptível nas obras desses

geógrafos: uma “elucidação do processo cultural por meio dos estudos das paisagens”

(DUNCAN, 1990, p4, apud MELO 2001). A abordagem que eu proponho é o trato da

paisagem que valoriza as transformações materiais e simbólicas, uma vez que são

indissociáveis. Também fujo de análises reducionistas, se por um lado criticam o

economicismo das transformações das paisagens da cidade, por outro tropeçam no

culturalismo. A paisagem dentro da metodologia de uma Geografia Política, no qual

elaboramos este trabalho, é trabalhada como um dispositivo (AGAMBEN, 2005) valioso

instrumento da gestão do território da cidade (RIBEIRO, 2011,2012).

Cosgrove (2012) destaca o papel da paisagem como meio pelos quais sentimentos, ideias e

valores são expressos. As interpretações geográficas das paisagens elucidam “textos” os

quais transmitem significados repletos de simbolismo. Não podemos esquecer que

Cosgrove baseia a análise através do horizonte do materialismo dialético. Logo, categorias

de analises generalizantes e dicotômicas surgem - paisagens da cultura dominante e

paisagens alternativas. Entretanto, o simbolismo e todo poder simbólico (no sentido

Buordieano) pressuposto na paisagem é fruto da grande gama de instituições e grupos que

disputam seus significados em arenas políticas. Portanto, existem múltiplas possíveis

paisagens, que não necessariamente é fruto somente do grupo dominante ou aquelas que

não representam seus “valores” e “sentidos”. A paisagem que o presente trabalho propõe a

estudar é fruto de um processo complexo de decisões envolvendo vários atores, e se

inserindo dentro de um contexto espacial específico. Ao ignorarmos a multiplicidade

deixamos de entender os processos fundamentais que compõem os significados espalhados

por uma cidade. Neste trabalho, apesar de apropriarmos do conceito oriundo da Geografia

Cultural, queremos elucidar os processos políticos responsáveis pelo reordenamento dos

elementos – materiais e simbólicos – da paisagem do Cais do Valongo. Portanto, estamos

trabalhando a paisagem não como conceito, pois assim ele é polissêmico e pouco funcional,

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mas sim como categoria - que surge no campo do patrimônio até chegar na preocupação do

desenvolvimento e gestão das cidades.

No âmbito da cidade a paisagem torna-se objeto de interesse dos modeladores urbanos, no

qual o poder simbólico é essencial para influenciar os citadinos. Ora, se a paisagem permite

criar significados que banham nosso cotidiano, não é difícil conceber o interesse de atores

políticos em reformular seu significado ou construí-lo. Duncan (2004) problematiza as

potencialidades da paisagem como retórica. Para o autor as ideologias impregnam-se na

paisagem, utilizando-a como normalizadora da sociedade. Na visão de Duncan (2004) a

paisagem é como um texto, o significado adquirido mudará de acordo com o observador.

Sua interpretação, portanto, varia o sentido segundo olhar do “escritor” ou do próprio “leitor”.

Sendo assim, a paisagem não é um dado pronto da realidade, é algo construído, por isso

podemos remeter à ideia do cenário cujo recorte dá sentido para obra. O espaço sempre

esteve lá, são as narrativas associadas às formas que irão criar novos arranjos sociais e/ou

novas visibilidades. Para alguns, essas narrativas tendem a ser influenciadas pelos regimes

de visibilidade, que domestica nosso olhar sobre os espaços (GOMES, 2013). Para outros,

não há necessariamente um regime, as possibilidades são amplas e não restrita a um

horizonte somente. Para Berque (1998) a paisagem, se por um lado, reflete uma

determinada condição socioespacial marcando o espaço da cidade, por outro é matriz,

possibilitando a construção de novas concepções. Neste sentido, a possibilidade de

construir olhares multiplica. A paisagem não é somente a forma, é viva, devido as suas

possíveis ressignificações (RIBEIRO, 2011).

Recentemente no Brasil, a paisagem está sendo apropriada pelas políticas de patrimônio, e

não raro, por políticas urbanas – as duas não são excludentes. Conscientemente ou não, a

categoria de paisagem é apropriada pelos governantes inserindo-a no cerne de políticas

urbanas em grandes cidades brasileiras. Destacamos a cidade do Rio de Janeiro, a qual

impulsionada pela visibilidade dos megaeventos sofre múltiplas transformações em ritmo

intenso. Estopim para implantação da discussão sobre as paisagens são as candidaturas de

cidades brasileiras a Lista de Patrimônio Mundial da UNESCO, progredindo com o Rio de

Janeiro entrando em 2012 dentro da tipologia paisagem abrangendo uma grande área

urbana - um feito inédito até então. Apesar das vantagens do ponto de vista turístico, a

inscrição também implica numa gestão e preservação da paisagem urbana, principalmente

da esfera municipal. Desde então, a paisagem começa a ser pensada como instrumento de

gestão do território incorporada nas políticas das cidades (RIBEIRO, 2012).

Portanto, a paisagem ressurge no século XXI junto com a discussão renovada de patrimônio

cultural no contexto da UNESCO, seguida pela apropriação por políticas urbanas. Essas

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apresentam uma preocupação com a estética da cidade, como o recente caso da demolição

das principais vias do centro da cidade do Rio de Janeiro – Elevado da Perimetral. A

preocupação com a estética tem agitado diversos exemplos de políticas que transformam as

paisagens das cidades, alguns denominam esse processo de “estetização do mundo

contemporâneo” (LIPOVETSKY e SERROY, 2013). Se a motivação é estética na elaboração

de novas paisagens, outros elementos presentes no substrato espacial também sofrerão

transformações – no caso do Cais do Valongo a memória é este elemento. Por essas

perspectivas a categoria de paisagem torna-se um instrumento de análise valioso para as

transformações que ocorrem na cidade. Sempre pelo viés das novas narrativas obstinadas a

transformar, materialmente e imaterialmente, as paisagens.

Paisagens Disputadas

Deste trabalho não podemos excluir as memórias, visto que as paisagens compõem-se

delas. Schama (1995) problematiza esta relação entre memória e paisagem. O Rio Tâmisa,

na Inglaterra, é visto por Schama como local onde os navios se movimentam, além de uma

área de antigos mitos. Entretanto, alguns outros, se lembram do Tâmisa com o “ar

condensado de melancolia”. Dois olhares, duas memórias diferentes, duas paisagens

distintas, embora o mesmo espaço concreto. A possibilidade da multiplicidade de

significados deve-se as diversas bagagens culturais dos indivíduos. Para Schama (1995) o

“lugar-comum” está infestado de mistérios que a história não conta, logo, “cavar” a procura

deles emergirá as memórias, objeto de incomensurável valor para as sociedades

contemporâneas. Portanto, os espaços possuem distintas camadas de memória, a

paisagem é uma forma de enquadrá-las. O enquadramento da memória é a seleção de

alguns elementos e a exclusão de outros. “Todo trabalho de enquadramento de uma

memória de grupo tem limites, pois ela não pode ser construída arbitrariamente” (POLLACK,

1989, p.7). Considerar os substratos espaciais, entendido neste trabalho pela dimensão

concreta do espaço geográfico é compreender os limites e as possibilidades da criação de

significados. Neste sentido, paisagem e memória se relacionam. Como o próprio Schama

(1995, p.17) coloca: “antes de poder ser um repouso para os sentidos, a paisagem é obra da

mente. Compõe-se tanto de camadas de lembranças quanto de estratos de rochas”.

As memórias estão em todas as partes. Algumas são subjetivas, individuas e simples,

retratam experiências desoladas e não necessitam de conexões. Outras são coletivas,

compartilhadas através das redes de relacionamento dos grupos. Halbwachs (1990) ajuda a

entender as memórias coletivas, todas precisam de um espaço concreto e um grupo para

existir. Os grupos vão ler o espaço de maneira exclusiva. Indivíduos, não possuindo vínculos

identitários com aquele grupo, ao entrarem naquele espaço terão outros olhares, outros

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sentidos. Halbwachs (1990) ressalta que caso algum dos dois – espaço ou grupo – se

altere, modificam também a memória coletiva. Interessante transportar esta noção para os

mais de duzentos anos da existência do Cais do Valongo. Os escravos vincularam uma

memória coletiva ao Cais. Portanto, para aquele grupo existia determinados significados –

sofrimento, penúria, dor –, porém, não era o único. Os traficantes e os compradores de

escravos também eram um grupo, compartilhavam naquele local outras memórias, outros

sentidos – dinheiro, lucro, poder. As memórias coletivas se justapõem – e por vezes se

sobrepõem – gerando diversos significados no mesmo espaço, porém os dois grupos

significam o espaço de formas diferentes. Em outras palavras, são paisagens distintas

apesar do mesmo espaço concreto, pois as atribuições de significados partiram de olhares

díspares. Não raro poderá existir uma disputa pela paisagem mais autêntica e pela

legitimação oficial sobre determinados sentidos.

A memória do Valongo é coletiva, ou seja, necessita de um espaço e um grupo que se

aproprie dela para existir (HALBWACHS, 2003). As memórias coletivas – fruto das

experiências compartilhadas pelos grupos nos espaços – torna palatável a criação de

determinados significados. Neste sentido, não é difícil entender o seu potencial político.

Como diz Schama (1995, p.26): “As paisagens podem ser conscientemente concebidas para

expressar as virtudes de uma determinada comunidade política e social”. Entretanto, qual

sentido escolher diante das possibilidades? No campo do patrimônio essa questão sempre é

urgente. A decisão sobre patrimonializar significa legitimar frente à sociedade determinado

sentido, enfatizar certas memórias em detrimento de outras. A busca pela comprovação pela

“verdadeira” memória coloca os grupos e as instituições em conflitos. Guimarães (2014), em

A Utopia da Pequena África, mostra a disputa dos grupos que lutam dentro do Morro da

Conceição na Zona Portuária do Rio de Janeiro. Defendem o patrimônio “negro”,

“franciscano”, “hispânico” e “português”, todos com a bandeira da autenticidade e do

tradicional. Na complexa “Geografia da autenticidade” sobressai a mais valorizada pelo

Estado, que mobiliza recursos a seu favor – devido aos instrumentos de poder que dispõe –

em pró de algum interesse alcançado ao legitimar tal memória.

No campo da legitimação as disputas não se prendem somente as memórias coletivas, mas

também, aos espaços e suas visibilidades. Determinadas narrativas irão proporcionar a

valorização de elementos constituintes de certas paisagens. No Cais do Valongo queremos

entender a criação dos novos sentidos, que proporciona e exalta uma nova paisagem em

detrimento de outras. Para Duncan (2004), na perspectiva da Geografia Cultural não seria

uma nova paisagem, mas novas retóricas para uma paisagem já conhecida. As duas

concepções não são excludentes, pelo contrário, nas duas há uma reorganização simbólica

e material dos elementos da paisagem, fruto de um ordenamento criterioso. Por isso a

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importância de entender as transformações materiais e imateriais do Cais. Os grupos

urbanos se apegam ao arranjo espacial onde vivem, não conseguindo perceber qualquer

mudança sem que ocorra alteração no espaço (HALBWACHS, 1990).

“É preciso antes de tudo considerar que os habitantes são levados a prestar uma atenção muito desigual àquilo que chamamos o aspécto material da cidade, ainda que a maioria, sem dúvida, seria bem mais sensível ao desaparecimento de tal rua, de tal edifício, de tal casa do que aos acontecimentos nacionais, religiosos, políticos mais graves. É por isso que o efeito da agitação, que abala a sociedade sem alterar a fisionomia da cidade, atenua-se quando passamos àquelas categorias do povo que se apegam mais às pedras do que aos homens” (HALBWACHS, 1990, p.93)

Quem se apropria do Cais do Valongo hoje não ocupava e nem realizava seus ritos no local,

mesmo sabendo a localização, graças ao Obelisco da Imperatriz que sinalizava a possível

localização do porto. A decisão de expor o Cais do Valongo como museu a céu aberto

invoca grande visibilidade e a materialidade é importante para formar os signos. Permitem,

também, práticas espaciais como trabalho de campo, pesquisa e rituais religiosos. Portanto,

a disputa gira em torno da paisagem, a (re)elaboração dela que será responsável por novos

significados, cujo grupos e instituições buscam, e nas quais as memórias coletivas são

matrizes.

Pollak (1989) ressalta que o cerne das disputas são as memórias. O autor coloca a memória

coletiva nacional e as memórias de grupos marginalizados em constante embate. Não

defendemos que a memória não tenha carater político e conflituoso, entretanto, o objetivo da

luta é a visibilidade proporcionada a cada memória. Visibilidade que exige um componente

espacial. Halbwachs (1990) enfatiza o papel do espaço para as memórias coletivas:

“[...] não há memória coletiva que não se desenvolva num quadro espacial. Ora, o espaço é uma realidade que dura: nossas impressões se sucedem, uma à outra, nada permanece em nosso espírito, e não seria possível compreender que pudéssemos recuperar o passado, se ele não se conservasse, com efeito, no meio material que nos cerca. É sobre o espaço, sobre o nosso espaço -aquele que ocupamos, por onde sempre passamos, ao qual sempre temos acesso, e que em todo o caso, nossa imaginação ou nosso pensamento é a cada momento capaz de reconstruir - que devemos voltar nossa atenção; é sobre ele que nosso pensamento deve se fixar, para que reapareça esta ou aquela categoria de lembranças” (HALBWACHS, 1990, p.99-100)

De certa forma as memórias coletivas dos grupos urbanos se justapõem e sobrepõem uma

as outras na cidade. O que irá gerar o conflito é a busca pela visibilidade dentro do discurso

oficial das políticas públicas que coordenam a cidade em sua ordem material e simbólica. As

recentes obras na Zona Portuária do Rio de Janeiro é palco da disputa por visibilidade, que

em tese, permite grupos atingirem uma novo papel dentro da urbe. Em outras palavras,

poderia indagar se grupos com pouca visiblidade adquirem um tipo de cidadania ao se

tornarem visíveis. Na medida em que começam a pertencer e a serem vistos pela cidade. O

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processo que cria novos significados gerando novas territorialidades, constituíndo novos

lugares de memória, segregando espaços e, por ventura, podendo gerar cidadanias, são

fruto de novas perspectivas e demandas que se impõe a cidade. Neste sentido, a paisagem

entendida com um recorte de significados no espaço pode servir como um dispositivo

político-espacial, pois permite a gestão dos sentidos da cidade, e por isso, transforma a

ordem simbólica dos territórios. O referente trabalho busca explicar como a transformação

material e simbólica do Cais do Valongo ocorreu, fruto de um recorte possível sobre aquele

espaço, que devido ao seu substrato espacial poderia constituir diversas paisagens – como

valorizar a memória da imperatriz. Neste sentido, a paisagem também é um instrumento de

gestão das memórias.

OS NOVOS SENTIDOS DA PAISAGEM DO CAIS DO VALONGO

A Zona Portuária e o Circuito da Herança Africana

O mundo observa uma competição global entre as cidades. Dentro das estratégias de atrair

novos capitais, criar novas representações confeccionando imagens autênticas torna-se um

método eficiente (ROSSI e VANOLO, 2011.). Os megaeventos desempenham papel

importante para impulsionar transformações urbanas. A cidade do Rio de Janeiro se insere

neste quadro. A Copa do Mundo de 2014 e as Olímpiadas de 2016 permitirão

ressignificações em diversos bairros das cidades. Antigos espaços ganharão novos

sentidos, possibilitando usos e ocupações antes não proporcionados. O centro da cidade

sofrerá um dos processos mais intensos. A Zona Portuária do Rio de Janeiro merece

destaque, não só ganha equipamentos urbanos pautados nas melhorias dos transportes,

das áreas residenciais, mas, adota novas narrativas sobre a paisagem carioca. A região

portuária há décadas se encontrava desgastada e ignorada pelo poder público, apesar da

localização próxima ao centro da cidade. Incorporá-la de forma a criar novas imagens e

significados enquadra-se nas estratégias das cidades contemporâneas – tampouco é uma

característica peculiar dos cariocas.

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Figura 1: Circuito da Herança Africana

Fonte: www.portomaravilha.com.br

A Operação Urbana Porto Maravilha vem ocasionando mudanças em vários segmentos

através de programas que subdividem as tarefas. Apesar do Museu do Amanhã e o Museu

de Arte do Rio (MAR), localizados na região, serem dois ícones das atuais intervenções

culturais, não representam, a priori, as memórias dos grupos locais. Esta tarefa recai sobre

Circuito Histórico e Arqueológico da Celebração da Herança Africana que possui atualmente

seis pontos. Um: O Cais do Valongo, principal porto de desembargue de escravos do

mundo. Dois: Pedra do Sal, lugar de memória dos escravos que trabalhavam duras horas

nos trapiches da cidade e procuravam no samba o refúgio e o lazer. Três: Jardins

Suspensos do Valongo, construído no período Pereira Passos, na época as valiosas

estátuas do Cais da Imperatriz foram transportadas para lá – este alvo de polêmicas por não

possuir vínculo direto com a memória africana. Quatro: Largo do Depósito, os armazéns

essenciais para o comércio dos escravos. Cinco: Cemitério dos Pretos Novos, cova dos

escravos recém-chegados que sucumbiram as adversidades do período. O último: Centro

Cultural José Bonifácio, inaugurado por Dom Pedro II foi o primeiro colégio público da

América do Sul. Portanto, os pontos são vinculados, de alguma forma, a Diáspora Africana.

Nesse contexto, há uma vontade de enfatizar memórias afrodescendentes da cidade

observada nas novas intervenções urbanas. Prova dessa vontade é a criação do Grupo de

Trabalho Curatorial do Projeto Urbanístico e Arquitetônico do Circuito Histórico e

Arqueológico de Celebração da Herança Africana (GT), pelo Decreto Municipal 34.803 de 29

de novembro de 2011 - que já instituía preliminarmente o circuito. O objetivo era criar um

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fórum responsável por formular diretrizes para implementação de políticas de valorização da

memória e proteção deste patrimônio cultural (PREFEITURA DO RIO DE JANEIRO, 2012).

Vassalo & Cicalo (2015) ao citar a entrevista concedida em junho de 2013 da arqueóloga

Tânia Andrade Lima, uma das responsáveis pela nova narrativa, indica a impossibilidade da

realização das obras de escavação sem a verba do poder público. O Porto Maravilha não

previa o Circuito da Herança Africana, obras de infraestrutura de saneamento básico (redes

de esgoto e cabos de eletricidade) ocupariam o local que hoje é o Cais do Valongo. Devido

à luta dos pesquisadores finalmente escavam a Praça do Commércio e “descobrem” em

2011 os vestígios materiais e simbólicos significantes da diáspora africana. O Cais do

Valongo é mais valorizado em detrimento do Cais da Imperatriz – que representa a nobreza,

a dominação racial e o domínio europeu (VASSALO & CICALO, 2015). A arqueóloga Tânia

desempenhou papel importante na comunicação com grupos vinculados à memória negra

sobre a riqueza histórica do lugar, auxiliando-os como atores importantes na construção da

nova narrativa sobre o cais.

Preocupado com o processo de institucionalização da memória da diáspora africana no

Porto do Rio de Janeiro, Vassallo & Cicalo (2015) indagam o porquê de somente em 2011, o

processo de patrimonialização ter conseguido se efetivar – visto que no passado outros

momentos existiram como a prórpia descoberta do Cemitério dos Pretos Novos. Milton

Guram, em entrevista concedida aos autores, descreveria o processo como uma

‘conspiração do bem’. Vassallo & Cicalo (2015) descordam e evocam o contexto favorável

que vinha se desdobrando dos anos 1990 até o século XXI: o multiculturalismo; o

reconhecimento das compensações aos africanos pela escravidão por diversos países; a

própria Rota de Escravos da UNESCO levantando o debate; medidas locais e globais do

resgate da memória africana; e sobretudo, reformas urbanas preocupadas em revitalizar

antigas áreas em cartões postais das cidades.

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Figura 2: Obelisco da Imperatriz na Praça Jornal do Commércio

Fonte: https://ssl.panoramio.com

Figura 3: Cais do Valongo e da Imperatriz.

Fonte: http://www.embarquenaviagem.com

Na Figura 2, podemos observar a Praça Jornal do Commércio sobre o Cais do Valongo

antes das obras do Porto Maravilha. A área era uma antiga região comercial da cidade. Na

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Figura 3, já constatamos o atual Cais do Valongo e da Imperatriz, no chão há duas texturas

de piso diferentes. O primeiro nível encontra-se as marcas do Cais do Valongo de formato

em “L” e o calçamento paralelo com desenhos geométricos. No nível acima o Cais da

imperatriz em formato em “T”, com grandes blocos de granito utilizados para soterrar o piso

no qual os escravos desembarcavam. Ambas as estruturas extremamente conservadas.

Atualmente, o Cais do Valongo recebe múltiplos eventos, trabalhos de campo escolares e

ritos de grupos, configurando um novo lugar de lazer e cultura para a cidade do Rio de

Janeiro. As “Rodas Dos Saberes & Fazeres” cria eventos desde após a reinauguração,

sendo computadas até início de 2015 mais de trinta Rodas dos Saberes.

Na entrevista com Júlio Crystor Mendes – ex-diretor cultural do grupo Afoxé Filhos de

Gandhi Rio – quando indagado sobre a realização de eventos, ou qualquer tipo de

apropriação antes da “descoberta”, a resposta foi negativa (MENDES, 2014). Somente com

a criação do museu a céu aberto os cariocas começam a se apropriar do espaço. Isso é

fundamental. Mesmo sabendo a localização do Cais, devido ao Obelisco da Imperatriz

sinalizá-lo, os grupos não realizavam rodas de capoeira, encontros, ou festas na Praça

Jornal do Commércio. . Não obstante, ao responder se o governo procurou o diálogo com os

movimentos negros quando acharam os vestígios, não demonstrou relutância em dizer que

entraram em contato com a mãe de santo Celina Rodrigues, presidente do Centro Cultural

Pequena África. Entretanto, a prefeitura realizou um pré-projeto sem nenhuma consulta aos

grupos, o que gerou um desconforto. A reportagem de Daflon (2011) mostra as

características do projeto que inclusive teria um espelho d’água, duas arquibancadas, duas

salas com informações sobre os dois cais, mobiliário urbano expondo linhas do tempo,

segundo como afirma o próprio Washington Fajardo – subsecretário do patrimônio cultural

na época - em entrevista.

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Figura 4 – Afoxé Filhos de Gandhi Rio, lavagem do Cais.

Fonte: Redes sociais do grupo Afoxé Filhos de Gandhi

O Centro Cultual Pequena África (CCPA) e o Afoxé Filhos da Paz foram responsáveis pela

lavagem do Cais do Valongo. Sempre nos dias 6 de julho. Segundo a mãe de santa Celina

Rodrigues, presidente do CCPA e participante do GT, a pedido dos orixás a lavagem ocorre

nessa data – e é recomendado na própria carta entregue ao prefeito (Recomendações do

Valongo). Reivindicações já foram enviadas à prefeitura, desejando transformar o dia em

feriado oficial da cidade (CANDIDA, 2013). Algo notável do evento é como os grupos podem

entrar e esfregar o chão de um sítio arqueológico que, em tese, foca na preservação. A

materialidade tem um apelo grande no Cais. Nas intervenções da Operação Urbana Porto

Maravilha, a criação do circuito não estava prevista. Mesmo sabendo da grande

possibilidade de encontrar vestígios. Quando fizeram as obras de drenagem, acharam

praticamente intactos os vestígios do Cais do Valongo e da Imperatriz. Os vestígios nesse

caso tem tal apelo que conseguiu, junto com demandas da sociedade, alterar o projeto

original. Portanto, consideramos a escavação do Cais do Valongo como o estopim para

criação do Circuito da Herança Africana.

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Figura 5: Instituições dos membros do GT

.

Fonte: Relatório final do GT (PREFEITURA DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO, 2012).

Na Figura 5 temos a computação de todas as instituições que participaram das reuniões do

grupo de trabalho. O GT reuniu-se entre dezembro de 2011 até 13 de junho de 2012.

Participaram mais de 50 pessoas de diversas procedências ao final dos encontros. Não

obstante, foram realizadas quatro Câmaras de Consulta Públicas e visitas de campo,

algumas delas registradas em vídeo. Fruto dos encontros, o texto “Recomendações do

Valongo” direciona a forma como será tratado o raríssimo patrimônio. Por fim, realizaram

uma audiência pública com mais de 150 participantes, incluindo membros da sociedade civil,

no dia 26 de junho de 2012 (FONSECA e OAKIM, 2012). Segue abaixo as recomendações

sugeridas do GT sobre o projeto urbanístico do Cais do Valongo:

“[...] que este não deverá ser um Circuito voltado exclusivamente ao

turismo, apesar de, inevitavelmente, englobar este aspecto em sua atuação.

De modo que é recomendação consensual do Grupo de Trabalho Curatorial

que o Circuito Histórico e Arqueológico de Celebração da Herança Africana

se torne instrumento e subsídio para projetos educativos e culturais,

atraindo a atenção de estudiosos, pesquisadores, estudantes e público em

geral” (PREFEITURA DO RIO DE JANEIRO, 2012, p.9).

E continua:

“É recomendação [...] que o projeto urbanístico do Cais do Valongo intervenha o mínimo possível no sítio arqueológico, de maneira que seu significado social seja construído progressivamente, de acordo com a dinâmica das relações sociais que ali se estabelecerão a partir da reinauguração da Praça Jornal do Commércio. [...] atenta, ainda, para a

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possibilidade de que o local seja, no futuro, apropriado como espaço de manifestações religiosas e culturais; de modo que sugere o acesso ao sítio apenas em festividades importantes” (retirado do texto “Recomendações do Valongo” em: PREFEITURA DO RIO DE JANEIRO, 2012).

Nitidamente o Grupo de Trabalho sugere que os significados ali criados tenham como

protagonistas os próprios frequentadores. Porém, não seria possível a participação sem um

arranjo espacial palatável para os grupos e indivíduos. Os novos significados criados pela

ressignificação da paisagem do Cais do Valongo, através das mudanças materiais e

simbólicas sob a luz da nova narrativa da zona portuária, são os condicionantes para as

novas práticas realizadas lá.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As memórias por si só não são portadoras de visibilidade sem que ocorra uma reordenação

material e simbólica dos elementos do espaço. A paisagem é o recorte desses elementos do

espaço, dependendo dos elementos selecionados algumas memórias adquirão visibilidade,

outras serão silenciadas. Nesta perspectiva, as memórias coletivas são elas próprias

elementos de cunho espacial. A memória do Cais da Impertatriz não seria descartada pela

prefeitura, que segue a tendencia das políticas de patrimonialização em dissolver as

diversidades na unidade, porém os grupos, intelectuais e instituições que compartilham a

atual memória coletiva contestaram em prol da valorização do Valongo. Portanto, não existia

a vontade de memória (NORA, 1993) nas novas intervenções urbanas da Operação Urbana

Porto Maravilha, uma vez que o projeto não abarcava a criação de um circuito. A vontade de

memória partiu de alguns intelectuais, instituições e grupos que compartilham de um desejo

em comum. Desta forma, a paisagem foi ressignificada de acordo com o interesse da

narrativa construída e do reordenamento de elementos materiais – como o mobiliário urbano

e o projeto urbanístico –, e simbólicos – reforçado pelos textos e histórias contadas nos

totens, pelos grupos e agentes que ressignificaram o Cais do Valongo.

O processo de construção do Cais do Valongo foi marcado por divergências e conflitos,

dado a grande riqueza histórico-cultural entorno da memória africana da cidade do Rio de

Janeiro. Nem todos os grupos participaram. O que participaram não tiveram alguns desejos

contemplados. O recorte dentro da perspectiva da categoria de paisagem exaltam versões e

silenciam outras. Esse processo quando situado em um substrato sócioespacial permeado

de diferentes memórias conflitantes, privilegiará uma delas. O contexto histórico no qual a

ressignificação ocorre não pode ser desconsiderado, uma vez que o Cais do Valongo só

ressurgiu devido a concepções e tendências atuais: seja o multiculturalismo ou a estratégia

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de construção de novos brandings para o desenvolvimento das cidades. A demanda das

cidades pela construção de novas representações é um dos importantes fatores que

justificam as atuais intervenções.

Concluímos destacando que a atual ressignificação é fruto do atual momento, ou seja, nada

impede que futuras ressignificações ocorram atreladas a outros contextos como sugere

Vassallo e Cicalo (2015). A memória coletiva atual precisa da constante presença dos

grupos que ali a cultivam. Sejam os que realizam eventos culturais ou aqueles que o utilizam

como espaço da prática religiosa. No futuro novas paisagens podem surgir destacando

diferentes memórias. Se o processo de criação de sentidos já é permeado de conflitos, a

permanência de significados dentro dos atuais contextos urbanos precisará ser negociada

no futuro, seus novos signos refém da capacidade de articulação das instituições e grupos à

época. Portanto, dentro das transformações das paisagens nas cidades alguns elementos

podem ser descartados, enquanto outros adquirem grande visibilidade.

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