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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
Gabriel Alonso Guimares
PAISAGEM, TEMPO E MEMRIA NA VIAGEM ITLIA DE GOETHE
NITERI
2017
2
UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
Gabriel Alonso Guimares
PAISAGEM, TEMPO E MEMRIA NA VIAGEM ITLIA DE GOETHE
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-
Graduao em Estudos da Literatura da Faculdade
de Letras da Universidade Federal Fluminense,
como requisito para obteno do ttulo de Mestre.
Orientadora: Profa. Dra. Susana Kampff Lages
NITERI
2017
3
GABRIEL ALONSO GUIMARES
PAISAGEM, TEMPO E MEMRIA NA VIAGEM ITLIA DE GOETHE
BANCA EXAMINADORA
Titulares
___________________________________________________________
Prof. Dra. Ida Maria Santos Ferreira Alves
Universidade Federal Fluminense
___________________________________________________________
Prof. Dra. Carlinda Fragale Pate Nuez
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
___________________________________________________________
Prof. Dra. Susana Kampff Lages
Universidade Federal Fluminense
Suplentes
___________________________________________________________
Prof. Dra. Olga Donata Guerizoli Kempinska
Universidade Federal Fluminense
___________________________________________________________
Prof. Dr. Andrea Lombardi
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Niteri
2017
4
A Luciene (1966-2016), que partiu antes do tempo.
5
AGRADECIMENTOS
famlia, meu apoio fundamental e constante. Aos meus pais, a quem devo a existncia. Aos
irmos, companheiros de toda hora.
A Gabriela, meu locus amoenus, fonte de minha sade. A voc, que tanto escutou acerca das
agruras e das alegrias de minhas buscas.
orientadora, por conselhos, livros e pela confiana, no s durante o mestrado, mas por toda
minha formao acadmica.
Aos colegas e professores, pelas valiosas sugestes, presentes aqui e acol pelo texto. Em
especial, ao colega Fernando Miranda, pela introduo fenomenologia e pelo texto de Kurt
Gerstenberg, e colega Clarissa Rocha, pela companhia nesses dois anos. Aos professores
Eurdice Figueiredo, Johannes Kretschmer, Olga Kempinska e Susana Lages, pelo aprendizado
nas disciplinas cursadas. s professoras Carlina Nuez e Ida Alves, pelos comentrios nas
defesas do projeto e da dissertao, muito importantes para a reconduo da pesquisa.
Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico, pela bolsa de pesquisa,
sem a qual nada disso seria possvel.
6
Nosso objetivo uma fenomenologia da cultura humana. Devemos, portanto, tentar ilustrar e
elucidar a questo com exemplos tirados da vida cultural do homem. Uma ilustrao clssica
a vida e a obra de Goethe. A memria simblica o processo pelo qual o homem no s repete
sua experincia passada, mas tambm reconstri essa experincia. A imaginao torna-se um
elemento necessrio da verdadeira lembrana. Foi por essa razo que Goethe intitulou sua
autobiografia de Poesia e Verdade (Dichtung und Wahrheit).
(E. Cassirer, Ensaio sobre o homem, p. 89, trad. Toms Rosa Bueno)
Que alegrias e conhecimentos no me trar o Sul, provendo-me de novos resultados! Com as
coisas da natureza d-se o mesmo que ocorre com a arte: j se escreveu tanto a respeito e, no
entanto, cada um que as contempla capaz de combin-las de uma forma nova.
(Goethe, Viagem Itlia, p. 202, trad. Srgio Tellaroli)
7
RESUMO
O presente trabalho procura relacionar trs tpicos conceituais paisagem, tempo e memria na Viagem Itlia
de Goethe. Nossa inteno , primeiramente, mapear nas descries paisagsticas a presena do tempo
fenomenolgico do olhar, do corpo e da viagem, pensando assim a memria em sua forma primria, isto , como
estrutura retentiva. Para isso, recorremos ao pensamento husserliano das Lies de 1905 e da doutrina mereolgica
nas Investigaes lgicas, levado adiante pela Fenomenologia da percepo de M. Merleau-Ponty e pelos
trabalhos de Paul Ricoeur, buscando relacion-lo com a forma testemunhal da experincia de paisagem na Viagem.
Nossa anlise visa demonstrar os diferentes ritmos da vivncia e de sua descrio, e a impossibilidade de separar
os elementos do quadro visto e os momentos da percepo total. Alm disso, queremos investigar, num segundo
percurso, o pertencimento de Goethe tradio da mnemotcnica antiga, na qual a memria pensada, por um
lado, como impresso anmica e, por outro, como espao interior. Aqui, a paisagem ser vista a partir do seu
elemento sublime, a fora pattica pela qual ela se inscreve no texto memorativo. Servem como guia, nessa parte
da pesquisa, as fontes clssicas: os dilogos platnicos, dois trabalhos aristotlicos e algumas retricas latinas, bem
como as exposies sobre o sublime, do retor Longino ao contemporneo e amigo de Goethe, Friedrich Schiller.
Tal empreitada, cujo objetivo pr em contato a paisagem italiana com um tempo memorativo individual, aparenta
ser novidade em meio aos estudos goethianos, tendo em vista que a paisagem relacionada tradicionalmente, na
crtica, ao tempo histrico e memria cultural.
Palavras-chave: Goethe; Viagem; Itlia; Paisagem; Memria.
8
ABSTRACT
This master thesis tries to relate three concepts landscape, time and memory in Goethes Italian Journey. Our
first goal is to uncover the phenomenological time of sight, body and travel in landscape descriptions, thus
conceiving memory in its primary form, namely as retention. In order to do this, we use as basis the 1905
Husserlian Lessons on time and his mereology in the Logical Investigations, both of which were later developed
by Merleau-Pontys Phenomenology of perception and by Paul Ricoeurs works on narrative and memory, and we
relate them to the testimonial form of landscape experience on the Journey. Our analysis aims at demonstrating
the different rhythms of experience and its description and also the impossibility of separating the elements of a
landscape "picture" and the moments of its perception. In addition, as second goal, we investigate Goethe's
belonging to the ancient tradition of mnemonics, in which memory is conceived, on the one hand, as an impression
on the soul and, on the other, as an interior space or palace. At this stage of our research, landscape is considered
from the point of view of its sublimity, that is, the pathetic force through which it inscribes itself in the memory
text. The classical sources, which serve as guide, are the Platonic dialogues, two Aristotelian works and some
Latin rhetoric treatises, as well as some expositions on the sublime, from the Longinus through Burke to Goethes
contemporary and personal friend Friedrich Schiller. Our thesis, whose aim is to establish contact between
landscape and individual recollection, appears to be a new contribution in the field of studies on Goethe,
considering that Italian and classical landscape in the Journey is traditionally referred to historical time and cultural
memory.
Keywords: Goethe; Italy; Journey; Landscape; Memory.
9
SUMRIO
1. INTRODUO .................................................................................................................. 11
2. DEFINIES DA PAISAGEM ...................................................................................... 15
2.1 Conceituao fenomenolgica da paisagem ....................................................................... 15
2.2 Breve conceituao histrica da paisagem ......................................................................... 27
2.3 Paisagem, trnsito, narrativa .............................................................................................. 32
2.4 Excurso: Goethe e as condies de viagem ........................................................................ 41
3. A VIAGEM FENOMENOLGICA ............................................................................... 46
3.1 A teoria fenomenolgica do tempo e da memria .............................................................. 46
3.2 A relao imediata com a experincia na Viagem Itlia .............................................. 56
3.3 Caracterizao do olhar goethiano ..................................................................................... 64
3.4 As palavras e os modelos de paisagem ............................................................................... 73
3.5 Referncias e influncias da viso goethiana ..................................................................... 77
3.6 A tripartio da obra: tendncias gerais, ritmos da paisagem ............................................. 86
3.7 Passagens/ paisagens mais relevantes: anlise densa .......................................................... 95
3.7.1 De Karlsbad a Verona .................................................................................................... 95
3.7.2 De Verona a Veneza ...................................................................................................... 98
3.7.3 De Ferrara a Roma ....................................................................................................... 102
3.7.4 De Npoles Siclia ..................................................................................................... 105
3.8 O fruchtbarer Augenblick: anlise de um tempo esttico .................................................. 110
4. A VIAGEM RETRICA ................................................................................................. 117
4.1 A memria na Antiguidade ............................................................................................. 117
4.1.1 Plato e a metafsica da memria e da imagem .............................................................. 117
4.1.2 Aristteles e a psicologia da memria e da imagem ...................................................... 122
4.1.3 Trs retricos latinos: Ccero, Quintiliano e o texto Ad Herennium ........................... 126
4.2 A tradio do sublime em Longino, Burke, Kant e Schiller ........................................... 131
4.3 As paisagens italianas no palcio goethiano da memria ............................................... 141
4.3.1 A experincia do sublime na Viagem ............................................................................. 141
4.3.2 A sobrevivncia da arte da memria na Viagem ............................................................ 147
10
4.3.3 Paisagens indescritveis: o sublime vs. a descrio qua memria .................................. 152
5. CONCLUSO .................................................................................................................. 159
6. BIBLIOGRAFIA ............................................................................................................. 162
7. ANEXO ............................................................................................................................. 169
11
1. INTRODUO
Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832) j era famoso por seu Werther quando viajou
para a Itlia em 1786. Com quase quarenta anos de idade, Goethe j est maduro, estabelecido
na corte de Weimar, mas vive um momento de crise, principalmente como poeta. A fuga para
o Sul , nesse contexto, decisiva: cinde sua trajetria em um pr- e um ps-Itlia, como a
data do [seu] segundo nascimento, de um verdadeiro renascimento (GOETHE, 1999: 175). De
setembro de 1786 a abril de 1788, circula pelo pas estrangeiro, visitando algumas grandes
cidades e regies, como Veneza, Npoles e a Siclia, passando tambm por outras menores,
como Citt Castellana e SantAgata, e permanecendo cerca de um ano em Roma. Seu objetivo
principal aplicar[-se] no estudo das grandes coisas, aprender e [se] desenvolver (GOETHE,
1999: 160), e o escopo de seus interesses vai do clima e da geologia, pelos costumes do povo,
at as obras de arte da Antiguidade clssica. Selbstausbildung: formao de si pelo outro, pois
como afirma em sua biografia de Winckelmann, tambm um alemo apaixonado pela Itlia
a autolimitao sempre o nosso destino (GOETHE, 2000d: 118).
Fazendo convergir alguns pontos de seu interesse formativo, Goethe confere bastante
espao textual paisagem italiana, esse solo clssico e palco decisivo no qual se
desenrolaram os grandes feitos do passado (GOETHE, 1999: 143). Ela o grande Outro,
irrepresentvel em sua sublimidade, e, ainda assim, tantas vezes descrito em vrias passagens.
Sua onipresena em meio s descries de obras plsticas pictricas, esculturais e
arquitetnicas , sua repercusso nas centenas de desenhos goethianos feitos in loco e
coletados no segundo volume do Corpus der Goethe-Zeichnungen (FEMMEL, 1983) , bem
como ainda a companhia e a influncia dos pintores de paisagem Philipp Hackert e Christoph
H. Kniep ao longo de sua viagem, demonstram o teor artstico e (en)formador desse olhar
contemplativo e a importncia de tentar pensar a relao dele com o prprio texto. Levando em
conta que se trata, em primeiro lugar, de um relato memorativo originalmente, a Italienische
Reise [Viagem Itlia] foi publicada como parte do programa autobiogrfico de Goethe ,
encontramos o ponto de partida da presente dissertao.
Ponto de partida, dissemos. Sim, porque tentaremos, no esprito da fidelidade potica ao
prprio objeto, transformar nossa investigao numa espcie de trnsito pelo texto goethiano,
numa contemplao terica com o perdo dessa redundncia! das paisagens italianas e de
sua recordao. Assim, tomaremos como guia tambm o princpio que, segundo pensa o terico
e professor alemo Peter-Andr Alt (2007: 21-22), constitui o cerne da arqueologia filolgica:
12
no a sorte inesperada de uma memoire involontaire ou o forte impulso de uma associao que
surge repentinamente e subjuga, mas o esforo de uma longa viagem de aproximao, que
levada pela persistncia e pela tenacidade possibilita a evidentia do ver claramente. Ou para
repetir o mesmo com uma outra voz, dessa vez mais clssica: [o] observador deve ser um
ertico, nenhum trao, nenhum momento pode ser indiferente para ele; mas, por outro lado, ele
deve [...] auxiliar o fenmeno a se manifestar completamente (KIERKEGAARD, 2013: 25).
Aproximar-se para desnudar as camadas temporais, para disseminar sentidos, para pr diante
dos olhos posito velamine, como diz Ovdio. Jogar com os tempos, indo para frente e para
trs na Histria, em busca de fontes para fecundar a pesquisa, sendo desse modo fiel tarefa
nietzschiana: pois no saberia dizer que sentido a filologia clssica teria em nosso tempo seno
o de, nele, agir intempestivamente isto , contra o tempo e assim sobre o tempo e, oxal!, em
proveito de um tempo vindouro (NIETZSCHE, 1988: 247).
Sem mais delongas retricas, faamos um pequeno resumo do itinerrio. Comearemos,
no primeiro captulo, com as definies de paisagem com as quais vamos operar ao longo do
trabalho. Em primeiro lugar, conceituaremos a paisagem fenomenolgica, isto , a experincia
do mundo a partir do corpo tal como caracterizada por Maurice Merleau-Ponty (2011) e outros
filsofos contemporneos. Em seguida, elaboraremos um breve esboo do desenvolvimento
histrico do gnero pictrico da paisagem, base necessria, por um lado, para explicar a
modernidade desse conceito e, por extenso, sua existncia nas prxis artstica e literria, bem
como, por outro, para comentar depois as vises pictrica e geogrfica que servem de modelo
ao olhar goethiano sobre a natureza italiana. Mais adiante, na continuao da definio
histrica, abordaremos um tpico que antecipar um tema central do segundo captulo, isto , a
relao de condicionamento entre paisagem e viagem, para, enfim, concluir o captulo com um
primeiro incurso no texto de Goethe.
O captulo dois, o mais extenso de todos, comear com uma nova partida terica, dessa
vez para definir o conceito fenomenolgico de tempo e memria retentiva. Veremos, assim,
como paisagem e temporalidade se disponibilizam a uma conscincia encarnada no modo da
doao imediata ou para falar a linguagem husserliana originria. Da, chegaremos ao texto
goethiano, finalmente, debruando-nos nas quatro primeiras subsees sobre uma pr-anlise
dos seguintes temas: a) como o relato revela seu fundo fenomenolgico-testemunhal, apesar de
ser uma composio tardia; b) qual o tipo de olhar praticado sobre os objetos e a natureza
clssico-italianos; c) quais modelos (imagticos) de paisagem transparecem nas descries
goethianas e com quais palavras se traduzem; e, por fim, d) o que j disse a crtica especializada
13
sobre a formao do [seu] olhar, para usarmos a expresso de Kurt-Heinz Weber (2010: 175),
isto , sobre os pintores com que teve contato e como isso afetou sua viso de paisagem.
Concluiremos ento com a parte analtica, que se divide tambm em trs subsees: a primeira
promove uma vista geral da obra, separando dois ritmos (ou seja, tempos) de contemplao
paisagstica; a segunda se debrua densamente sobre as cfrases da paisagem italiana,
analisando seu desdobramento de fundo temporal; e a terceira possui um carter de excurso e
toma como seu objeto o fruchtbarer Augenblick, isto , o momento fecundo da representao
esttica, tal qual elaborado por Lessing (2011) e Goethe (2008). Tentaremos aplicar esse
conceito s descries de paisagem na Viagem, bem como desenvolver a tese de uma dupla
temporalidade do sublime. Ambos, assim nos parece, ainda no foram defendidos por ningum.
O terceiro e ltimo captulo ser um pouco mais breve que o anterior, j que no precisar
incluir nenhuma pr-anlise do texto goethiano. Aqui, partiremos igualmente de outra teoria
mnemnica, aquela da Antiguidade, conforme formulada primeiramente pelos filsofos gregos
Plato e Aristteles e, depois, aplicada ao uso artificial da memria entre os retricos latinos
Ccero, o annimo autor da Rhetorica ad Herennium e Quintiliano. Na segunda parte terica,
faremos tambm um esboo das reflexes sobre o fenmeno do sublime, de Longino por Burke
at Kant e Schiller. Nosso objetivo defender a seguinte tese: para a memorizao das imagens
paisagsticas, o elemento pattico de impresso para falarmos nos moldes da mnemotcnica
antiga, qual Goethe ainda pertence a fora excedente e indizvel do sublime. Na Viagem
Itlia, nosso autor parecer, assim, combinar o pthos das imagines agentes e sua ordenao
em loci com a grandiosidade paisagstica e sua disposio em determinadas passagens textuais.
O relato, ao final da tripla anlise que faremos, tomar a forma de um palcio da memria
como o thesaurus de que fala Santo Agostinho (1984) , onde o poeta de Weimar coleciona
suas relquias italianas.
Esperamos, com essa dissertao, abrir uma nova veia nos estudos goethianos. At agora,
paisagem, tempo e memria parecem ter sido somente investigados no texto da Viagem a partir
de um ponto de vista coletivo, isto , a partir da caracterizao da paisagem italiana por Goethe
em sua relao com o tempo histrico e a memria cultural. Nossa empreitada ser mostrar a
presena do individual: como a paisagem aparece via tempo fenomenolgico para esse sujeito-
corpo que v e descreve, ou como a paisagem se imprime via pthos sublime no palcio da
memria desse indivduo viajante.1 O objetivo um s provar a relao da paisagem com o
1 Alm da monumentalidade de nossa empresa, que implica a seleo (memorativa!) de um estreito corpus terico,
esse elemento do individual que justifica, por exemplo, a excluso de uma pesquisa fundamental, mas divergente
14
tempo e a memria individuais , mas os caminhos so dois e inversos: no primeiro, o tempo
retentivo sustenta o surgimento dos elementos paisagsticos; no segundo, o sublime paisagstico
d fora memria. O resultado, assim tambm esperamos, pretende ser igualmente um
trabalho terico e uma contribuio para os estudos da cfrase e para os estudos literrios de
inspirao fenomenolgica.
Antes de adentrar a investigao, uma ltima palavra preparatria sobre a escolha do
corpus e sobre os procedimentos de traduo. Utilizamo-nos de uma edio de praxe das obras
de Goethe a chamada Hamburger Ausgabe , cujo dcimo primeiro volume contm a
Italienische Reise e os respectivos comentrios de Herbert von Einem. Para as citaes em
portugus, escolhemos a boa traduo de Srgio Tellaroli, publicada em 1999, cujo (talvez)
nico defeito sua incompletude: somente duas das trs partes da obra original foram vertidas.
Isso, porm, no ofereceu problemas para nosso trabalho, uma vez que como justificamos
mais frente a seleo do material de anlise contemplou quase exclusivamente o que foi
traduzido naquela edio. A razo simples: a terceira e ltima parte da Viagem relata a segunda
estada romana de Goethe, quando o poeta j no mais transitava e, portanto, no se lhe
ofereciam novas paisagens. Quando modificamos a traduo existente de algum texto,
apusemos uma nota. Quando foi necessrio citar alguma passagem original que no estivesse
j traduzida, fizemos ns mesmos a verso, sem, contudo, apr a tradicional expresso minha
ou nossa traduo. Achamos que o texto ficaria mais limpo dessa maneira e consideramos que,
alm disso, o leitor saber, pela consulta bibliografia final, distinguir o que traduo alheia
sempre referida pelo nome do que prpria todo texto em lngua estrangeira sem
referncia a tradutores. O nico caso que constituiria uma espcie de exceo so os clssicos
greco-latinos, que foram consultados em edies bilngues em lngua inglesa e vertidos com o
auxlio das tradues, mas sempre como ficar evidente com um intenso olhar no texto
original. nessa ateno etimolgica que encontraremos, muitas vezes, o detalhe fundamental
da anlise.
em relao ao nosso propsito: o livro Paisagem e Memria (1995), de Simon Schama. Ali, os dois conceitos so
investigados a partir de um olhar histrico, amplo e coletivo.
15
2. DEFINIES DA PAISAGEM
2.1 Conceituao fenomenolgica da paisagem
O conceito de paisagem assume, dentro da fenomenologia de Merleau-Ponty, um espao
central. Oriundo talvez de seu interesse pela pintura de Czanne, ali a paisagem funciona,
entretanto, no como uma criao reflexiva, pensada, mas como um sinnimo do fenomnico,
do tipo de relao que o ser humano mantm com o mundo por seu corpo. Na esteira do filsofo
francs caminham outros como Bernhard Waldenfels, Edward Casey, Michel Collot e Paul
Ricoeur, todos ligados tradio do pensamento fenomenolgico. Prximo tambm est Georg
Simmel, que, num pequeno texto sobre a Filosofia da paisagem, de 1913, desenvolve ideias
bastante semelhantes abordagem de seu contemporneo Husserl. A seguir, tentaremos fazer
um pequeno sketch desse conceito em algumas obras desses autores.
O ponto de partida de Merleau-Ponty (2011) sempre o corpo. O corpo prprio, aquilo
que Ricoeur (2014) chama de carne (chair) e os alemes de Leib, essa montagem geral pela
qual sou adaptado ao mundo (MERLEAU-PONTY, 2011: 283). Trata-se de uma condio
fundamental de nossa existncia, de um existencirio, para usar a nomenclatura heideggeriana.2
O corpo o mediador entre a conscincia subjetiva e o mundo exterior, o veculo de nosso
ser no mundo, o instrumento primordial de nosso conhecimento. Com ele, a fenomenologia
supera a diviso cartesiana entre a coisa pensante e a coisa extensa, entre a distenso temporal
da conscincia e a extenso temporal das coisas, na medida em que ns somos essa parte do
mundo que chamamos estrutura corporal. Qualquer espacialidade, bem como qualquer
temporalidade, s possvel a partir da ancoragem no aqui e no agora vividos pelo corpo.
assim que paisagem e memria comeam a se imbricar.
diferena de Descartes ainda, o corpo no uma coisa entre coisas, alienado no reino
da extenso. O que o impede de ser alguma vez objeto [...] o fato de ele ser aquilo por que
existem objetos (MERLEAU-PONTY, 2011: 136). Sua possibilidade de conhecer outros
corpos, bem como sua reflexividade, isto , sua condio de si (self) a mo que a afaga a si
prpria, a inerncia [...] do senciente ao sentido (MERLEAU-PONTY, 2013: 20) , fazem
com que difira da coisa dada. Ainda assim, sua constituio participa da textura comum de
todos os objetos (MERLEAU-PONTY, 2013: 315), do tecido do mundo: como que uma
2 Heidegger, entretanto, no elaborou a noo de carne como existencial distinto, diz Ricoeur (2014: 387).
16
parte da Natureza que nos invade e que assumimos pr-reflexivamente. Nenhum cogito
cartesiano, nenhum kantiano Eu transcendental, possvel sem esse prvio estar-dado-a-si-
mesmo que o corpo, condio muito bem traduzvel pela categoria heideggeriana do estar-
lanado-a, a Geworfenheit do Dasein (RICOEUR, 2014: 386).
O corpo a existncia pr-lgica, pr-consciente, existncia annima e geral do
biolgico (MERLEAU-PONTY, 2011: 125) que retomada, acolhida na subjetividade pessoal,
a forma humana de existir. Viver (leben) uma operao primordial a partir da qual se torna
possvel viver (erleben) tal ou tal mundo, isto , vivenciar (MERLEAU-PONTY, 2011:
221).3 Essa distncia do animal, o homem a consegue pela sublimao de sua relao com o
meio circundante (Umwelt) em um mundo (Welt), e correlativamente, pela subsuno do corpo
atual, preso s determinaes do ambiente, em corpo habitual, engajado no mundo por certas
pr-disposies cotidianas, por uma espcie de memria pr-reflexiva.4 Com seu saber
originrio, o corpo como um outro eu que j tomou partido pelo mundo (MERLEAU-
PONTY, 2011: 291), um alter ego na origem, isto , uma alteridade preliminar a toda identidade
(RICOEUR, 2014: 383).
A remisso a uma origem j constituda, cujo representante a carne, recorrente nos
desdobramentos da fenomenologia de Merleau-Ponty. Quando explora, por exemplo, os
terrenos da sensao, em busca de uma definio que supere tanto o pensamento objetivo o
sensvel como quale em si quanto o intelectualismo idealista a sensao como pensamento
, ele pe a sensibilidade aqum da conscincia, num horizonte pr-pessoal que, como o
nascimento, sempre j est l, na periferia de meu ser (MERLEAU-PONTY, 2011: 290). A
sensao uma con-naissance: um conhecimento que co-nasce em um certo meio de
existncia ou se sincroniza com ele (MERLEAU-PONTY, 2011: 285), uma comunho do
sujeito com o mundo via corpo. A coisa sensvel solicita e questiona, o corpo se pr-dispe e
responde. Perceber interagir com a natureza, nosso interlocutor em uma espcie de dilogo
(MERLEAU-PONTY, 2011: 429) e, nessa troca, corpo e mundo se imiscuem. Citando Czanne
indiretamente, Merleau-Ponty (2011: 289) diz: sou o prprio cu que se rene, recolhe-se e
3 O francs no tem equivalentes para a dupla de palavras alemes citadas por Merleau-Ponty, que encontra,
entretanto, bons equivalentes em portugus. Jorge Semprun (1995: 139), que estudou filosofia na Frana na poca
de Merleau-Ponty, lamenta, em A escrita ou a vida, essa mesma falta. 4 No custa lembrar a importncia do cotidiano na ontologia de Ser e Tempo. Alm disso, cabe aqui referir um
pequeno trecho de Michel Henry (2012: 126-127): [e]ssa unidade de meu ser atravs do tempo, que constitui a
memria, exige um fundamento. Este o hbito, ou, se preferirem, o ser mesmo de meu corpo, que precisamente
torna possvel o ato de rememorao [...]. Assim, porque corpo memria, uma memria, verdade, na qual a
ideia de passado ainda no aparece, que ele pode ser tambm uma memria que se recorda do passado, fazendo
deste o tema de seu pensamento (grifos no original).
17
pe-se a existir para si, o sensvel me restitui aquilo que lhe emprestei, mas que dele mesmo
[...] eu o obtivera. A sensao uma retomada, a reconstituio de algo j previamente
constitudo: no um em-si objetivo e independente de todo para-ns, mas o corpo como
estrutura do mundo.5
O espao tambm aparece como algo sempre j constitudo. Na busca tambm de uma
via media, uma terceira espacialidade, igualmente distante do espao objetivo de um Descartes
e do espao espacializante de um Kant, afirma Merleau-Ponty (2011: 339) que ser sinnimo
de ser situado. A orientao no pode ser em si no h alto nem baixo por si mesmos , ela
pressupe sempre o ato global da ancoragem: meu corpo est ali onde ele tem algo a fazer
(MERLEAU-PONTY, 2011: 336), onde encontra uma tarefa que a situao lhe solicita. A
ancoragem se d em um nvel espacial que se coloca na juno entre o corpo enquanto potncia/
poder sobre o mundo e o espetculo-ambiente enquanto convite a habitar, e que, como toda
percepo, pode ser reavaliado, reajustado conforme as circunstncias. O reajuste, por sua vez,
se opera sempre sobre um nvel anterior, mas a remisso no infinita: o nvel primordial no
se ancora, est no horizonte de todas as nossas percepes, mas em um horizonte que por
princpio nunca pode ser alcanado ou tematizado em uma percepo expressa (MERLEAU-
PONTY, 2011: 341). Tal horizonte dos horizontes o compromisso entre o corpo e o mundo
natural, um pacto sempre j selado e que, esquecido, nunca vem conscincia.
esse compromisso que garante a unidade da experincia e, analogamente, a unidade da
coisa e do mundo. Os vrios sentidos, enquanto modalidades de fixao no mundo, abrem
diferentes espaos: o visual, o ttil, o auditivo, mas tambm o afetivo, o onrico, o geomtrico,
etc. (MERLEAU-PONTY, 2011: 382). Entretanto, sua distino se opera sempre sobre o
fundo de um mundo comum, tanto quanto a partir da mesma perspectiva invarivel que o
corpo prprio, e todos partilham da mesma pretenso ao ser total (MERLEAU-PONTY,
2011: 304). O comrcio natural do corpo com o mundo envolve uma atitude global de adeso,
de aposta e f originria [Urglaube] no percebido. A percepo sinestsica a regra, diz
Merleau-Ponty (2011: 308), e a cincia, uma viso secundria ou crtica (MERLEAU-
PONTY, 2011: 305), que distingue a experincia em sentidos, que fixa o olhar localmente e se
5 Waldenfels (2013) fornece um interessante aporte a essa questo, mas por outro vis: a alteridade em ns mesmos,
como origem da identidade. Acerca do nascimento da Europa e de seus constantes Renascimentos, comenta
Waldenfels (2013: 138), por exemplo, que um passado, que para mim ou para ns nunca foi presente, permite
somente que a ele voltemos na forma de uma determinada reprise, que retoma, continua a prise original, sem
nunca a esgotar, e que, portanto, est exposta a uma surprise.
18
interroga analiticamente sobre o objeto. 6 O corpo como uma caixa de ressonncia, que traduz,
sem mediao, seus campos sensoriais uns nos outros (MERLEAU-PONTY, 2011: 207), que
possui o mundo imediatamente e a coisa, intersensorialmente. A percepo natural como um
sentido latente, difuso atravs da paisagem (MERLEAU-PONTY, 2011: 378), como a vida
total do espetculo (MERLEAU-PONTY, 2011: 305). 7
Assim, comeamos a caminhar em direo paisagem, que toma, em Merleau-Ponty,
essa significao muito prxima do fenomnico. Importando a terminologia da psicologia da
Gestalt, a paisagem torna-se, na Fenomenologia da percepo, o fundo sobre o qual os objetos
se destacam maneira de figuras. S vejo um objeto quando o fixo, quando me ancoro nele,
quando com um nico movimento fecho a paisagem e abro o objeto (MERLEAU-PONTY,
2011: 104). Inversamente, ver a paisagem implica sobrevoar os objetos sem se deixar fixar, sem
desdobr-los em sua nitidez. Essa estrutura perspectiva da percepo aquilo que assegura a
identidade do objeto no decorrer da explorao (MERLEAU-PONTY 2011: 105). Sem a
abertura do horizonte, o olhar no poderia fluir de uma sensao ou uma coisa a outra, e os
objetos estariam reduzidos a blocos incognoscveis. A paisagem , dessa maneira, a condio
fenomenal e a estrutura fenomnica da percepo, e, em sua abertura e transcendncia, garante
a constncia das coisas. Ela correlata ao corpo, o qual, sendo a origem da perspectiva, o ponto-
zero de onde olho o mundo, uma permanncia absoluta que serve de fundo permanncia
relativa dos objetos (MERLEAU-PONTY, 2011: 136).
A proximidade da paisagem com o fenomnico aparece em outros momentos do texto.
Por exemplo, quando Merleau-Ponty (2011: 324) comenta sobre o campo originrio da
experincia e afirma que no h uma multiplicidade de dados que uma conscincia unifica em
sntese pois no h nem sujeito nem objeto a postos , mas sim uma configurao total que
distribui os valores funcionais segundo a exigncia do conjunto, isto , uma configurao de
6 A anlise pressupe uma sntese original: quando, assumindo a atitude analtica, decomponho a percepo em
qualidades e em sensaes [...], sou obrigado a supor um ato de sntese que no seno a contrapartida de minha
anlise (MERLEAU-PONTY, 2011: 319). Tal sntese j est dada percepo na estrutura do ser-no-mundo pelo
corpo. No se trata, por isso, de uma sntese kantiana, que Merleau-Ponty (2011: 357) renega porque (su)pe
termos discretos, mas de uma sntese de transio (MERLEAU-PONTY, 2011: 358; 442), pela qual cada
perspectiva, cada sensao flui em outra. V-se aqui a estrutura espao-temporal de horizonte, i.e., de paisagem,
prpria existncia humana, qual voltaremos mais adiante. 7 A oposio entre uma atitude de adeso originria, global, centrada na paisagem-espetculo, e uma interpretao
crtica, local, voltada para o objeto, fundamenta para ns duas maneiras diversas e complementares de
contemplao da paisagem real, isto , no mais como conceito-metfora da fenomenologia, mas enquanto
natureza vista como quadro por um viajante. Num primeiro momento, tem-se a impresso do todo, o choque
instantneo da imensido sublime; num segundo, o percurso do olhar sobre os objetos dispostos, sua fixao
temporria e escorrida num fluxo lento. Algo semelhante afirma Weber (2010: 148): depois da vaga impresso
geral, procura-se por pontos de apoio e informaes, isto , analisam-se os elementos, rumo formao de
uma imagem coesa. Voltaremos a essa dupla diviso mais algumas vezes no presente trabalho.
19
paisagem. Igualmente, a paisagem se encontra em relao direta com o corpo fenomenal
porque nosso corpo no seno [nossa situao em um certo ambiente fsico e humano]
enquanto ela efetiva e realizada (MERLEAU-PONTY, 2011: 455). Por fim, a palavra
tambm aparece numa outra acepo da perspectiva e do fenmeno, mais prxima da ideia de
limitao, quando o filsofo trata do esquizofrnico e do doente alucinado e diz que ambos
vivem no espao da paisagem, isto , num mundo privado, em que no h mundo geogrfico,
no existe comunicao de horizontes: sejam eles espaciais (aqui-ali), temporais (passado-
presente-futuro) ou intersubjetivos (eu-outrem) (MERLEAU-PONTY, 2011: 386; 457).8
Ao todo, Michel Collot (2013: 21) conta que a palavra paisagem no aparece menos que
85 vezes na Fenomenologia da percepo. , entretanto, nesses momentos em que est
relacionada perspectiva, ao aparecimento do fenmeno e abertura comunicante ausente no
alucinado que est a chave do conceito. Porque se na paisagem, como se expressa Edward
Casey (2011: 103), encontra-se o convite a olhar sempre mais para diante, mais para longe do
espao-prximo que , de certa maneira, um espao-prprio , ento h um elemento de
alteridade intrnseco sua definio, correlato da carne enquanto alteridade primria. Ele se
mostra, em primeiro lugar, numa solicitao dos fenmenos: [s]ou eu quem tem a experincia
da paisagem, mas tenho conscincia, nessa experincia, de assumir uma situao de fato, de
reunir um sentido esparso (MERLEAU-PONTY, 2011: 355). O mundo aparece como que
objetivamente dado e nessa falcia cai, inocentemente, o pensamento objetivo. Isso porque
meu ato [perceptivo] no originrio ou constituinte, ele solicitado ou motivado
(MERLEU-PONTY, 2011: 356) por esse outro chamado natureza, porque toda percepo
uma comunicao ou comunho, a retomada ou o acabamento, por ns, de uma inteno alheia
(MERLEAU-PONTY, 2011: 429; grifo nosso). As coisas perguntam, o corpo responde com a
atitude adequada.
Quem diz alteridade diz tambm alterao. aqui que se encontra a problemtica da
unidade: do corpo, da coisa, do mundo. Como pensar num mundo comum ou numa coisa
intersensorial, se no tenho o objeto em sua plenitude (MERLEAU-PONTY, 2011: 107) e, a
cada perspectiva, a cada momento, ele se multiplica em novas formas? A soluo est na
estrutura da paisagem: o horizonte que garante uma unidade presuntiva, tanto do sujeito
quanto do objeto (MERLEAU-PONTY, 2011: 296). Toda constncia perceptiva remete-nos ao
8 Conta tambm, nessa aproximao de paisagem e fenomnico, a definio que Merleau-Ponty (2011: 345) d
para a profundidade como a dimenso mais existencial, uma vez que a distncia condio sine qua non da
paisagem.
20
sistema da experincia, inerncia a um ponto de vista que torna possvel ao mesmo tempo a
finitude de minha percepo e sua abertura ao mundo total (MERLEAU-PONTY, 2011: 408;
grifo nosso).9 As coisas so e permanecem o que so justamente porque possvel, pelo
horizonte, desdobr-las mais adiante, retom-las mais para trs. A coexistncia espacial
pressupe o pertencimento das coisas a uma mesma contemporaneidade, a um mesmo ritmo de
existncia, a um mesmo campo de presena [...] que se estende segundo duas dimenses: a
dimenso aqui-ali e a dimenso passado-presente-futuro (MERLEAU-PONTY, 2011: 357).10
A condio da percepo est na passagem de cada perspectiva a outra, na sntese de transio,
a qual opera antes de tudo no tempo: reconheo aquela rvore distante na paisagem como a
mesma de perto porque sei que, partindo daqui, chegaria l e a veria tal como ela . Para
resumir: a percepo do mundo apenas uma dilatao do meu campo de presena
(MERLEAU-PONTY, 2011: 408), da minha inerncia a um corpo, a uma paisagem e ao tempo.
A superposio de espao e tempo, ou melhor, a redutibilidade daquele a este, permite
um incurso na relao entre paisagem e memria. Diz Merleau-Ponty (2011: 442):
Quando observo o horizonte, ele no me faz pensar nesta outra paisagem que eu veria
se estivesse ali, esta em uma terceira paisagem e assim por diante, eu no me
represento nada, mas todas as paisagens j esto ali no encadeamento concordante e
na infinidade aberta de suas perspectivas.
Isso quer dizer que, em ltima instncia, no h interveno mediadora no acesso
distncia, seja ela aquela que j foi proximidade, seja aquela que ainda ser. Acontece com a
memria o mesmo que com a paisagem: no est disponvel na posse de certos contedos ou
recordaes, traos presentes [...] do passado abolido (MERLEAU-PONTY, 2011: 358), mas
como uma posse direta, por assim dizer mo. A historicidade, como a profundidade, a
espessura de um medium sem coisa (MERLEAU-PONTY, 2011: 359). Como o ser no
longnquo que a distncia esse estar-l-pelo-aqui-do-corpo , a memria uma passagem
contnua, um fluxo de instantes que se encaixam e se desdobram um no outro, criando a
espessura do tempo.
No pretendemos confrontar, nesse momento, essa posio de Merleau-Ponty. Certo
que a estrutura da paisagem e da memria se coincidem nas suas formas de distncia e de
horizonte: no s nas respectivas caractersticas de abertura, indeterminao11 e possibilidade
9 Meu ponto de vista para mim muito menos uma limitao de minha experincia do que uma maneira de me
introduzir no mundo inteiro, sublinha ainda Merleau-Ponty (2011: 442). Finitude e abertura. 10 O termo Prsenzfeld e importado de Husserl, como consta numa nota (MERLEAU-PONTY, 2011: 643). 11 Indeterminao pela apreenso esboada que caracteriza o ver-ao-longe, em contraposio apreenso
completa, ntida e precisa da proximidade (MERLEAU-PONTY, 2011: 352).
21
de desdobramento, mas tambm na condio de algo limitado do lado espacial, pela linha em
que cu e terra, cu e mar se esposam; do lado temporal, pelo esquecimento. Se, entretanto, h
ou no rastros ou indcios, deixados pelo tempo sobre a pele, o crtex ou a cera da alma, e
que medeiam nosso acesso ao passado como um aide-mmoire desperta uma recordao, trata-
se de um questionamento a ser abordado num prximo captulo. Parece, assim afirma Paul
Ricoeur (2007: 26) em sua fenomenologia da memria e da imaginao, que a volta da
lembrana pode fazer-se somente no modo do tornar-se-imagem. Deixaremos esse ponto
aportico em suspenso para caminhar rumo a outro autor que permitir um novo relacionamento
entre os conceitos de paisagem e memria.
Michel Collot (2013) parte, principalmente, das contribuies de Merleau-Ponty para
elaborar sua potica da paisagem. Seu trabalho busca, como o presente, uma fundamentao
filosfica para um conceito a ser operacionalizado na experincia da literatura, em especial na
francesa desde o Romantismo, quando ocorreu um segundo boom paisagstico no Ocidente.
Essa sua escolha no sem consequncias, uma vez que a produo artstica desde o XIX
claramente marcada pela reflexo crtica e por uma potica da evocao de matiz musical
distante da retrica descritiva, que se pautava pela pintura e imperou at o XVIII, inclusive
na obra de Goethe (COLLOT, 2013: 53). Essas diferenas parte, suas reflexes trazem um
aporte interessante para a conceituao da paisagem, inclusive em sua relao com o elemento
literrio.
Tambm Collot (2013) parte da diferena entre homem e animal. O viver em um ambiente
pertence a ambos, mas, ao contrrio dos animais, por sua postura ereta o homem abre seu meio
para uma viso de conjunto, para um mundo comum, e se torna um ser de distncias. A
orientao bsica no espao, aquilo que se chama de ancoragem, deriva seus eixos do
cruzamento entre o vertical da silhueta humana e a linha do horizonte (COLLOT, 2013: 20).
Alto e baixo, duas regies do espao humano essenciais paisagem basta pensar no cu cinza-
azul contra a terra verde nas Ziehende Wolken (1821), de Caspar David Friedrich , surgem da
verticalidade ereta, pela qual o homem contrape, de forma tensiva, o sub-strato [Unter-lage]
seguro, o cho qua fundamento, sobre-viso [ber-sicht] orientadora, viso de paisagem
(WALDENFELS, 2009: 70).
A estrutura do horizonte, j ressaltada exaustivamente por Merleau-Ponty (2011) como
condio ou componente do fenomnico, aparece aqui tambm em uma tripla ambiguidade.
Primeiramente, retomando o mestre em citao, Collot (2013: 24) reafirma a dialtica de
ocultao e desvelamento: uma extenso de paisagem s se deixa ver na medida em que
22
esconde, no espao, no tempo e entre sujeitos, outras partes ao olhar. Alm disso, o horizonte
concomitantemente subjetivo, porque uma linha imaginria, nunca encontrvel em mapas,
traada por uma viso perspectiva, e objetivo, porque seu traado se faz sobre elementos fsicos,
presentes no mundo exterior (COLLOT, 2013: 51; 83).12 Por fim, nele se ope tambm o par
finitude-abertura, j que sua configurao limita a vista e, ao mesmo tempo, oferece a melhor
imagem do infinito (COLLOT, 2013: 110).13
A questo do limite nos leva, momentaneamente, a outro terico importante da paisagem.
Edward Casey (2011) se prope analisar, dentro do campo de uma disciplina emergente a
liminologia , os possveis limites da paisagem. Se, por um lado, esta passvel de um
desdobramento infinito (CASEY, 2011: 91) aquilo que, em outra obra, chama de a tentao
da representao de se estender em manifestaes panormicas (CASEY, 2002: 8) , sua
finitude necessria uma vez que toma parte na infraestrutura do [nosso] mundo-limiar [edge-
world] (CASEY, 2011: 95).14 Dos quatro tipos de limiar que Casey (2011) levanta e estuda
rim, gap, border, boundary [borda, intervalo, fronteira, limite] , a paisagem est mais prxima
do limite, poroso por natureza e aberto ao trfego. H, entretanto, uma dupla duplicidade que a
caracteriza. Por um lado, existe um limite superior, o horizonte e o cu, e um inferior, a Terra
(ou o mar sobre a Terra, no caso de paisagens martimas); por outro, um externo, por exemplo,
um conjunto de arbustos na borda de uma floresta, e um interno, representado, por exemplo,
pela copa das rvores ou por caminhos abertos no interior de um bosque.15
O horizonte mais uma banda do que uma linha e, tambm para Casey (2011: 98), uma
condio de percepo das coisas, uma vez que aquela parte do mundo vivido que se recusa
12 Tambm Weber (2010: 191) nota essa ambiguidade, mas tomando como paradigma a perspectiva geomtrica
renascentista. Ela subjetiva, porque pe tudo em relao com o contemplador, e tambm no , porque subjuga
a tica a um modelo objetivo [i.e. grade de retas, ao ponto de fuga, etc.]. Em outro ponto, Weber (2010: 170)
diz, com tonalidades fenomenolgicas, que a paisagem devedora de uma esttica do olhar, isto , de um
contemplador formado para ver dessa e daquela forma, mas tambm no surge somente de um ato de olhar
individual, j que a realidade mesma se apresenta como campo fenomnico estruturado (WEBER, 2010: 175). 13 Sobre isso, tambm Weber (2010: 194): [o] que fundamental para a paisagem, quer dizer, a viso perspectiva,
contm j em si a direo para o infinito. Ele se encontra, portanto, em cada uma de suas realizaes. Como foi
demonstrado, a perspectiva faz com que a obra de arte traga o espao infinito para dentro do finito; poder-se-ia
dizer tambm, um pouco exageradamente, que ela torna visvel o que em si invisvel. A questo da
(in)visibilidade pertence primeira ambiguidade mencionada, a do desvelamento e da ocultao. 14 Essa formulao, de tonalidade heideggeriana, no deixa de afirmar, agora por uma perspectiva ontolgica, o
que afirma Merleau-Ponty (2011) sobre a dialtica fenomenolgica do desvelamento e da ocultao. Em outro
momento, Casey (2011: 107) fica mais prximo da fenomenologia, ao reconhecer que esses limiares limtrofes
so, efetivamente, estruturas visuais e cinticas a priori da vida humana neste planeta. 15 Para a impresso total da paisagem, diz Weber (2010: 175) que imprescindvel estabelecer uma moldura,
isto , um limite. Isso pode acontecer pela escolha de um determinado ponto de vista pelo contemplador, pode j
estar como que pronto na natureza pela disposio do todo, por exemplo, em um vale circundado de montanhas,
ou pode, ainda, ocorrer simplesmente por causa das molduras reais de um quadro.
23
a ser um objeto.16 O cu mais como uma zona, infinitamente porosa, o limite de todos os
limites, circum-ambiente como o horizonte. A Terra, por sua vez, escapa viso em sua
opacidade, ainda mais em paisagens martimas; mesmo assim, ela o fundamento incondicional
sob os ps, o substrato que no desaparece, [mesmo] quando nos elevamos no ar
(WALDENFELS, 2009: 69). Como sublinha Casey (2002: 37) ao tratar da estrutura elementar
da paisagem, o elemento terra o tpico dos tpicos, ou melhor, o tpico supremo da pintura
de paisagem, seu assunto primeiro e ltimo, e isso duplamente: porque d profundidade, como
o que est, como fundo, sob gua, cu, ar e luz; e porque regionaliza o espao visto maneira
de uma matriz topolgica, servindo de suporte a todos os limites delineados sobre a paisagem.17
Para alm de uma caracterizao dos limites externos e internos, fundamentais para a
percepo da paisagem basta pensar nas estradas [chausses] que cortam as regies, como
veremos numa seo mais abaixo e no prprio texto de Goethe , a questo liminolgica deve
ser desdobrada aqui em suas consequncias para o pensamento humano. Porque, como insiste
Casey (2011: 106), a conservao das paisagens ameaada em nosso capitalismo tardio
uma questo no s de sobrevivncia fsica, mas tambm de vises abertas e libertadoras que
terra e mar trazem consigo no nvel da experincia e do pensamento. a estrutura aberta e
infinita do horizonte que d ao ser humano o sentido de espao expansivo, sem o qual ele
estaria confinado a um inferno de passagens artificiais e corredores sem ar (CASEY, 2011:
106), como num escrito de Kafka. Paradoxalmente, a liberdade da prospeco e expectativa
impossvel sem os confinamentos proporcionados pelos limiares (CASEY, 2011: 107), isto
, pela linha-limite do horizonte.
nesse mesmo sentido que caminha Collot (2013), quando elabora uma teoria do
pensamento-paisagem. Para o autor, trata-se da comunho entre corpo e mundo, da estrutura
dialgica j esboada por Merleau-Ponty (2011), isto , de um pensamento partilhado, do qual
participam o homem e as coisas (COLLOT, 2013: 30), numa estrutura quiasmtica que faz
lembrar a defesa, por Bernhard Waldenfels (2013: 66ss.), de um cruzamento [Verschrnkung]
originrio e contnuo entre identidade e alteridade. O pensamento-paisagem a relao
recproca e reversvel de suas partes: a concepo do pensamento como paisagem da
conscincia e da paisagem como pensamento do mundo. Remete, em ltima instncia,
caracterstica fundamental da estrutura existencial do ser humano, que Collot (2013: 31) chama
16 Aqui igualmente, como em Merleau-Ponty (2011: 106), cabe uma referncia estrutura contextual (de horizonte)
do tempo, sem a qual os acontecimentos histricos no so discernveis. 17 Sobre a questo dos elementos da paisagem e sua relao com a doutrina (grega) dos elementos, ver a prxima
seo.
24
de espaamento do sujeito: somos seres que ek-sistem, que esto postos para fora, jogados no
mundo como projeto ou trajeto. Somos Da-sein, ser-a, como joga Martin Heidegger (2012). O
pensamento e o espao so, assim, duas modalidades desse espaamento, de nossa abertura
essencial ao ser e disso do testemunho tanto a paisagem, com seu horizonte infinito, quanto
a linguagem, com suas metforas espaciais.18
A condio do estar-fora da ek-sistncia, que pressupe, por sua vez, um ipse corporal
o dentro s tem sentido para um si que se encontra aqui (WALDENFELS, 2009: 77) , remete
a um outro jogo lingustico, que Heidegger (2012) faz ao expor os caracteres da espacialidade
do Dasein: trata-se da Ent-fernung, isto , do des-afastamento. O ser humano faz que o ente
venha-de-encontro cada vez no prximo (HEIDEGGER, 2012: 307), isto , suspende (ent) a
distncia (Ferne) no seu trato cotidiano com o mundo e as coisas. isso que, para ns, quer
dizer o ser no longnquo de que fala Merleau-Ponty (2011: 358) e que, mais do que definir a
estrutura do horizonte, demonstra o modo de vivenciar a experincia da paisagem. Pelo olhar
em perspectiva, por uma espcie de caminhada imaginria (ou mesmo real), desdobramos a
lonjura, aproximamo-nos do distante, colocamos nosso corpo l. A paisagem real, mas tambm
o quadro de paisagem, oferece um campo a ser habitado virtualmente por nosso corpo e nos
convida a sair momentaneamente do aqui em que ele est ancorado e atravessar o espetculo.19
A pedra voa no ar, o que significam estas palavras seno que nosso olhar, instalado e ancorado
no jardim, solicitado pela pedra e, por assim dizer, puxa suas ncoras?, pergunta-se Merleau-
Ponty (2011: 373).
Essa articulao entre distncia e proximidade, essencial para (vi)ver a paisagem, para
(mo)ver-se nela20, est inscrita na polaridade da perspectiva. O que Kurt-Heinz Weber (2010)
comenta acerca da perspectiva geomtrica o que j foi mencionado na nota 12 vale, em
primeiro lugar, para a experincia fenomenolgica. paisagem necessria uma distncia que
permita organizar as impresses visuais conforme o clculo estereomtrico (WEBER, 2010:
192), ou dito de outra forma, segundo uma disposio total rumo ao horizonte. Ao mesmo
tempo, h uma proximidade que se expressa, principalmente, no sentimento de ser tocado
18 A prpria palavra metfora, que, em seu timo, remete ao deslocamento, ao transporte de sentido e de local, ,
por isso mesmo, uma metfora (COLLOT, 2013: 36; WALDENFELS, 2009: 122). Joseph Vogl (2007: 82)
comenta sobre essa remisso de segunda ordem na metfora da ponte, que, inclusive, torna-se em Heidegger (2000:
154) um ponto central da anlise sobre o ser, o construir e o habitar, e tambm, por que no?, uma metfora da
existncia humana. 19 Sobre a palavra atravessar, no custa lembrar a etimologia de per-spectiva (espacial!), olhar atravs de, e de
ek-spectativa (temporal!), olhar para fora. Ver ainda Cauquelin (2007: 36): a perspectiva [...] passagem atravs,
abertura (per-scapere). 20 Esses jogos etimolgicos no so fortuitos. Voir, avoir e mouvoir so palavras que circulam e se intercambiam
em Merleau-Ponty (2013).
25
imediatamente pela paisagem e que tem sua origem no fato de que o contemplador relaciona
consigo o que est diante de si, incorpora-o de alguma maneira (WEBER, 2010: 192; grifo
nosso). Em sua conceituao da paisagem, por sinal, Weber (2010: 170) enumera cinco
caractersticas bsicas: 1) ela compreende uma multiplicidade de fenmenos; 2) abre-se ao
longe do horizonte; 3) compe um todo, uma formao fechada; 4) suas partes revelam uma
relao de afinidade geral [Zusammenstimmen]; e 5) a paisagem surge da distncia de um ponto
de vista. Todos os pontos j foram exaustivamente desdobrados acima, dentro da abordagem
fenomenolgica. A particularidade de Weber (2010), entretanto, est em sua relao com a
reflexo filosfica de Georg Simmel (2009), que parte principalmente da experincia pictrica
da paisagem, ou seja, de um olhar formado por hbitos culturais historicamente determinados.
Ainda assim, sua visada possui semelhanas com o que aqui se explica, como se ver.
O ponto de partida de Simmel (2009: 6) que a paisagem no algo dado, mas concebido
a partir de um ato espiritual do homem, ao mesmo tempo contemplativo e afectivo
(SIMMEL, 2009: 17). A natureza a ininterrupta parturio e aniquilao das formas, que
no se decompe em partes discretas, mas a unidade de um todo [...] sem fronteiras
(SIMMEL, 2009: 5; 6). A paisagem, pelo contrrio, surge justamente de uma demarcao, que
a transforma num ser-para-si, parcialmente alienado da origem.21 Se, por um lado, o produto
resultante deve ser considerado como uma unidade fechada em si, por outro, transferido para
um estrato inteiramente novo, se reabre ento, por assim dizer, de per si vida universal,
acolhendo o ilimitado nos seus limites inviolados (SIMMEL, 2009: 8), isto : pela estrutura
do horizonte, a paisagem aponta para o infinito natural do qual proveio.
O ato pelo qual ocorre essa separao em paisagem tem no trabalho do artista o seu
modelo mais puro. Trata-se, porm, de um processo que comea na vida emprica, isto , na
experincia vivida fenomenologicamente, no cotidiano (SIMMEL, 2009: 10), de tal modo que
[q]uando realmente vemos uma paisagem, e j no uma soma de objectos naturais, temos uma
obra de arte in statu nascendi (SIMMEL, 2009: 11). A paisagem surge de uma distncia a
partir da qual o contemplador junta os diferentes fenmenos (ausgebreitetes Nebeneinander)
num tipo particular de unidade, cujo suporte a Stimmung, a atmosfera, a disposio anmica
(SIMMEL, 2009: 12-13; SIMMEL, 2016). Entre a Stimmung que interpenetra os objetos e a
totalidade intuda, no h, entretanto, uma relao de causa e efeito: elas so o nico e mesmo
ato. A comparao levantada por Simmel (2009: 15) com a leitura de um poema, a cujas
21 Mais uma vez, a paisagem ligada ao fenmeno da Entfremdung, da alienao no seu sentido mais primitivo de
tornar alheio, tornar estrangeiro, isto , ser (de) outro.
26
palavras no se reduz o sentimento lrico (Empfindung), apesar de nelas encontrar sua razo,
seu motivo. Nesse smile, o pensador no se distancia de Merleau-Ponty (2011: 208), para quem
o corpo como uma obra de arte, um ser em que no se pode distinguir a expresso do
expresso.22
Assim como no se pode decompor a Stimmung em sensaes discretas, a paisagem a ela
relacionada no se deixaria apreender a partir de seus elementos particulares. Esse pensamento
encontra em Casey (2002) uma formulao muito parecida. Para ele, o que caracteriza a
paisagem o que Sartre chama de totalidade destotalizada, quer dizer, algo que, ao passo
que experimentado como um todo singular, no , ainda assim, redutvel soma de suas
partes (CASEY, 2002: 6). A paisagem transcende seus elementos como uma atmosfera
nebulosa, como um ter espalhado sobre o todo. Como continua Casey (2002: 6), ela
panperceptual, circum-ambiental, apela a todo sensorium corporal humano e, se pode ser
chamado de um objeto, um objeto de ordem superior. Da sua sublimidade, da tambm a
dificuldade de obter um isomorfismo mimtico na sua representao.23
Com essa minuciosa definio da paisagem na experincia fenomenolgica, queremos
finalizar retomando o conceito de pensamento-paisagem de Collot (2013). Com ele, possvel
fazer uma (j antes prometida) conexo entre memria e paisagem. Falaremos aqui, ento, de
uma memria-paisagem e, analogamente, de uma paisagem-memria. Tendo em mente a
recproca traduo entre temporalidade e espacialidade via estrutura de horizonte, ou melhor, a
redutibilidade de toda experincia de coexistncia espacial possibilidade de desdobramento
no tempo e ao pertencimento a uma mesma vaga temporal24, constatamos ainda que a noo do
limite do horizonte implica uma delimitao, a qual, no presente caso, se d na forma de uma
seleo. Assim como a paisagem pressupe uma seleo de elementos a serem emoldurados
pelo todo da Stimmung, uma determinada ordem de coisas que lhe prpria (apud COLLOT,
2013: 56) como afirma Jean-Pierre Richard sobre a paisagem individual de cada escritor ,
22 Igualmente prximo de Merleau-Ponty (2011) est o questionamento da relao causa e efeito na experincia.
Para o filsofo francs, esta no pode ter causas porque ela vivida. O que pode haver so motivos ou razes, isto
, antecedente[s] que s age[m] por seu sentido (MERLEAU-PONTY, 2011: 348), sentido, por sua vez, que tem
de ser assumido e validado numa deciso. 23 No por acaso que o grande boom paisagstico no Ocidente maior, inclusive, do que aquele inicial do ps-
Renascimento se d justamente no perodo do Romantismo, quando as poticas clssicas, pautadas pela imitao
da natureza, foram suplantadas (CASEY, 2002: 5; CLARK, 1952: 133; COLLOT, 2013: 53). 24 Dissemos que as partes do espao segundo a largura, a altura ou a profundidade no so justapostas, que elas
coexistem porque esto todas envolvidas no poder nico de nosso corpo sobre o mundo, e essa relao j se
iluminou quando mostramos que ela era temporal antes de ser espacial. As coisas coexistem no espao porque
esto presentes ao mesmo sujeito perceptivo e envolvidas na mesma onda temporal (MERLEAU-PONTY, 2011:
371).
27
assim tambm a memria seleciona lembranas quando chega a seu estgio declarativo. Se o
horizonte demarca o fim aberto da paisagem, o esquecimento, seja intencional ou
contingente, corta o fluxo proustianamente infinito da rememorao. A razo de ser desse limite
comum a ambas o existir encarnado num ponto de vista, a percepo, que , desde sempre,
seletiva (COLLOT, 2013: 57). Se tambm Ricoeur (2002) consegue cruzar arquitetura e
narrativa, espao construdo e tempo condensado, demonstrando sua estrutura comum,
acreditamos poder ler, na memria de Goethe, as suas paisagens, tanto quanto, nas paisagens,
a sua rememorao.
2.2 Breve conceituao histrica da paisagem
Tentaremos uma reentrada, paralela e complementar anterior, no conceito de paisagem.
Agora no nos interessa tanto a experincia fenomenolgica, fundada na descrio do modo de
nosso ser-no-mundo, quanto as experincias histricas que, como dobras, se acumulam sob
nosso olhar e determinam seus limites, seus elementos, sua sintaxe (CAUQUELIN, 2007: 26).
O objeto de investigao agora a paisagem enquanto criao reflexiva, representao
mimtica, principalmente pelas artes plsticas, mas tambm por extenso pela literatura. Se
a Natureza sempre esteve a, de onde veio nossa ideia de paisagem? Por que o primeiro grande
boom ocidental da pintura de paisagem ocorreu nos sculos do Renascimento? As respostas
para essas e outras perguntas a razo do breve esboo genealgico que se segue.
A condio fundamental para o surgimento da representao da paisagem e, portanto,
para a sua prpria conceituao, o fenmeno da alienao da Natureza. Como os tericos no
cansam de insistir, s mediante um afastamento, uma distncia adequada contemplao do
todo pelo olhar, pode o conjunto dos elementos geogrficos tomar a forma de uma paisagem.
Falamos anteriormente, dentro da perspectiva dos fenomenlogos, da posio ereta humana e
do aparecimento do horizonte. Aqui, porm, por um vis histrico-sociolgico, temos de pensar
numa distncia como alienao (Entfremdung), i.e., num sentimento humano de estranhamento
em relao vida conjunta com a Natureza. por isso que o historiador da arte Heinrich
Ltzeler (1950: 217), num texto importante para a crtica alem, afirma de maneira categrica:
Quem est na Natureza no pinta paisagens. Um campons, que vive mergulhado nos ritmos
de seu Umwelt e para o qual as coisas naturais so ou teis conservao ou perigosas e
selvagens, no pode experimentar o gozo paisagstico. Sua preocupao no se expande para o
desinteresse do belo ou para a racionalidade sublime para nos referirmos nomenclatura
28
esttica de Kant (2016) , mas permanece nos limites da sobrevivncia e da dependncia.25
Como escreveu Kenneth Clark (1952: 2), os trabalhadores da agricultura hoje em dia so quase
a nica classe da comunidade que no se entusiasma com a beleza natural.
Isso significa que a paisagem uma experincia citadina, uma criao da urbanidade
(WEBER, 2010: 179). Uma lista dos grandes pintores desse gnero, da Renascena at hoje,
torna isso bem claro. Ltzeler (1950: 217) enumera: Drer e Breughel, Giorgione, Ticiano e
Tintoretto, Claude Lorrain e Nicolas Poussin foram habitantes de cidade, complementando a
lista com a informao de que a pintura holandesa de paisagem do sculo XVII surge nas
cidades para seus habitantes. Somente l possvel que, distante fsica e sociologicamente da
Natureza, o sujeito moderno sinta uma nostalgia pelo retorno ao seio (por assim dizer) materno
do natural. Essa diferena fundamental e foi bem captada por Friedrich Schiller (1991: 56)
quando este ops a vivncia dos antigos dos modernos: Eles sentiam naturalmente; ns
outros sentimos o natural. Para que se descortine a paisagem, a conexo original do campons,
do pastor e do poeta ingnuo para os quais a Natureza se apresenta na condio de parceiro
com o qual se trabalha e luta (BHME, 1985: 29) tem de dar lugar a uma separao, prpria
do poeta sentimental, pela qual a Natureza se torna um Outro, um Estranho, abrindo assim a
possibilidade de uma demanda: o poeta ou natureza ou a buscar (SCHILLER, 1991: 60).
s na cidade que aparecem tambm o processo de produo e o mercado necessrios a
esse distanciamento. Ali, como analisa Weber (2010: 57; 180) a partir de formulaes de Hegel,
o producente determina seu produto o material, a forma, etc. e no est sujeito a foras
naturais e fortuitas, como por exemplo o campons. A Natureza se torna, assim, matria-prima
modelvel, objeto manipulvel inclusive, esteticamente. no ambiente urbano igualmente
onde o trabalho e o mercado, pelo princpio da individualizao, se dividem em especialidades,
onde se encontram os conhecedores e amantes da arte, que precisam [dos artistas] para suas
pinturas diferenciadas (LTZELER, 1950: 217). A importncia desses fenmenos foi
ressaltada num texto-chave de Ernst H. Gombrich (1990), apoiado, por sua vez, na pesquisa de
M. J. Friedlnder: o artista [...] no mais executa encomendas variadas feitas por um patrono
especfico, mas obras para um mercado de consumidores annimos, na esperana de que seus
25 O prprio Kant (2016: 114) deixa isso claro na seguinte passagem: Na verdade aquilo que ns, preparados pela
cultura, chamamos sublime, sem desenvolvimento de ideias morais, apresentar-se- ao homem inculto
simplesmente de um modo terrificante. Ele ver, nas demonstraes de violncia da natureza em sua destruio e
na grande medida de seu poder, contra o qual o seu anulado, puro sofrimento, perigo e privao, que envolveria
o homem que fosse banido para l. Assim, o bom campons savoiano, alis, dotado de bom-senso (como narra o
Sr. de Saussure), sem hesitar chamava de loucos todos os amantes das geleiras. Veremos melhor, no captulo 3,
a importncia da distncia segura na experincia do sublime.
29
produtos obtenham a aprovao do pblico, sendo essa competio aberta o estmulo para a
profissionalizao do artista e o desenvolvimento de novas especialidades, entre as quais a
do gnero de paisagem (GOMBRICH, 1990: 143-144).
No contexto europeu da dissoluo do sistema feudal, do desenvolvimento da sociedade
de corte e da expanso do capitalismo, surge o projeto colonizador do mundo, de dominao
tcnico-cientfica da Natureza e de outros povos, estudado, entre outros, pelos irmos Hartmut
e Gernot Bhme (1985). Atravs dessa nova relao com o espao, o homem moderno
primeiramente, o barroco, mas depois o iluminista procura reduzir tudo ao controle racional,
domesticando a natureza e disciplinando o corpo sensitivo (Leib) em corpo anatmico (Krper),
o contato humano em etiqueta. Nos sculos XVI e XVII, desenvolvem-se os geomtricos
jardins franceses, as colees e os museus de naturalia, e tambm o prprio conceito de
paisagem, que, do significado original de regio ou provncia de um pas, passa a designar um
gnero pictrico autnomo (BHME, 1985: 45-46).26 Contemporaneamente a Francis Bacon e
Ren Descartes, os gegrafos europeus do total impulso conquista cientfica do espao
atravs da cartografia, que ento, pela constante melhora das tcnicas de medida e projeo,
tinha o valor de mtodo exato de descrio, o qual no deixava lugar para segredos, como
explica Tanja Michalsky (2002: 437-438). A aposio dos nomes dos filsofos e dos cartgrafos
no fortuita: eles representam como tambm os pintores de paisagem aquilo que Martin
Heidegger (2002), num texto sobre a cincia moderna, classificou de tempo da imagem do
mundo (Weltbild). O processo fundamental da modernidade a conquista do mundo como
imagem (HEIDEGGER, 2002: 117), isto , a representao (Vor-stellung) como um trazer
para diante de si o que-est-perante [das Vorhandene] enquanto algo contraposto
[Entgegenstehendes] e remet-lo a si, ao que representa [den Vorstellenden] (HEIDEGGER,
1977: 91; HEIDEGGER, 2002: 114). E essa repraesentatio pressupe que o homem seja
26 Esse ponto problemtico, pois a origem da palavra e, portanto, do conceito parece ser dupla e envolta em
contradies. Nas lnguas romnicas, h paisagem, paesaggio (it.), paysage (fr.), paisaje (esp.), formadas a partir
da base pas e surgidas no sculo XVI para designar, inicialmente, um quadro com paisagem, mas logo em seguida
com a acepo de uma regio abarcada pelo olhar (COLLOT, 2013: 49). Nas germnicas, h Landschaft (al.),
landskip/ landscape (ing.), landschap (hol.), de origem medieval, cujo significado original o das palavras latinas
regio ou provncia (v. GRIMM, 2016), tendo adquirido na Renascena o sentido de representao artstica de
uma regio (WEBER, 2010: 167). Gombrich (1990: 144), contrapondo tambm Norte e Sul, fala que foi em
Veneza, e no em Anturpia, que pela primeira vez aplicou-se o termo paisagem a uma pintura especfica,
citando, com exemplo, os usos de tavolette de paesi e paesetto em textos do incio do sculo XVI. Preferimos,
nesse sentido, a opinio de Jean-Marc Besse (2014a: 21), que ope a paisagem geogrfico-pictrica do XVI
tipicamente nrdica e designadora do espao objetivo da existncia, da regio corogrfica paisagem esttica
do XVII viso abarcada por um sujeito e formulada magistralmente nas pinturas dos franceses Poussin e
Lorrain. Complementemos essa viso com a posio de Desportes (2005: 60; 66), qual retornaremos em breve:
a palavra francesa paysage, no sculo XVIII, passa da designao de um gnero pictrico para a expresso da
vivncia subjetiva de um local. No se trata aqui de uma volta ao sentido de regio ou provincia, mas de uma nova
experincia da natureza: a esttico-sentimentalista, de inspirao rousseaniana.
30
subjectum, isto , fundamento do todo, razo ltima qual se refere a prpria entidade do ente.27
Individualismo e antropocentrismo.28
A ligao [Verbundenheit] com a natureza impossibilidade a pintura de paisagem, o
encontro [Begegnung] com ela a possibilita, resume Ltzeler (1950: 218), utilizando-se para
isso de um termo cognato do algo contraposto heideggeriano: Begegnung, o en-contrar, o ir-
de-encontro-a. A tcnica e a cincia modernas so, por um lado, aquilo que reduz e reifica a
natureza, mas, por outro, aquilo que conforme demonstrado por Schiller (1991) no conceito
da reflexividade sentimental abre o horizonte de um novo contato, marcado pela saudade:
Onde muitos se comprimem entre os muros da cidade, surge o desejo de fugir da estreiteza
[...]. A natureza se torna refgio, lugar no qual o homem pode se encontrar (WEBER, 2010:
181). Num contramovimento s tendncias objetificantes e dominadoras mas, ironicamente,
sendo tambm expresso da mesma relao de estranheza [Fremdheit] (BHME, 1985: 45)
, a pintura de paisagem se levanta como um corretivo, tentando combater a tendncia cientfica
de anlise e isolamento com sua intuio (Anschauung) totalizante, como defende Weber (2010:
192), ou para falar com Michalsky (2002: 439) opondo-se conquista cartogrfica como
seu complemento, ao se ocupar com a apario [Erscheinung] do mundo para o homem, e no
com sua mensurabilidade abstrata. Para todos esses tericos, que seguem de perto a tese da
artializao, a paisagem observada e pintada o caminho subjetivo, individual, de acesso ao
mundo.
Assim, chegamos definitivamente ao tpico da pintura paisagstica. Precisamos notar,
antes de tudo, que sua apario no Ocidente no sculo XV se deve a uma nova ideia de espao
e uma nova percepo da luz (CLARK, 1952: 14). Na passagem da Idade Mdia para o perodo
renascentista, especificamente na transformao do que Clark (1952) chama de paisagem de
smbolos para a nova paisagem dos fatos, os artistas passam, no que se refere ao nexo dos
elementos pictricos, de sua unio pela superfcie do suporte fsico para uma mediante o espao
fechado (enclosed space). A nova organizao espacial se d, no caso dos naturalistas
holandeses, como um produto secundrio da percepo da luz, isto , por via emprica, e, no
caso dos italianos, por meio da perspectiva cientfica, inventada por Brunellesco e levada a
27 Sobre isso, ver Weber (2010: 185): A determinao das coisas tornou-se incerta agora. Elas no se encaixam
mais numa moldura vlida objetivamente e no deixam entender de si mesmas o que querem dizer. Est, assim,
no ser humano o poder de inventar [sich zurecht zu legen] o sentido que elas tm. 28 Sobre esse projeto de dominao, valeria a pena notar ainda que o segundo grande boom paisagstico no fim do
sculo XVIII e no incio do XIX contemporneo no s das trs Crticas de Immanuel Kant, mas tambm do
panptico de Jeremy Bentham. A paisagem no deixa de ser um anlogo natural para a sociedade disciplinar do
XVIII, assim como o sublime kantiano , segundo Hartmut Bhme (2004), uma tentativa de a razo se afirmar
ante a face rebelde da natureza.
31
cabo por Piero della Francesca (CLARK, 1952: 20). Da perspectiva semntica das pinturas
medievais, chega-se ao espao geomtrico formado pela interao de um olhar com um ponto
de fuga no horizonte (WEBER, 2010: 189-190). Esse novo imperativo da perspectiva, cujo
modelo obtido pela estrutura da janela, subtrai a natureza do poder do lgos discursivo isto
, do sentido mitolgico, histrico etc. e coloca como tarefa para o artista mostrar o que se
v, iniciando assim o longo processo da construo de uma autonomia da pintura, de seu
distanciamento do relato (CAUQUELIN, 2007: 81; 87). Da Fte Champtre (1508) de
Giorgione, pelos quadros de Claude Lorrain, at chegar ao Monge Beira-mar (1808-1810) de
Caspar David Friedrich, constri-se uma narrativa que empurra o divino e o humano objetos
centrais das pinturas medieval e ainda renascentista cada vez mais para a margem.
Limitada no princpio a ser fundo ou cenrio, aos poucos a paisagem se liberta e toma a
frente do quadro, at se firmar como um tema autnomo e um gnero prprio. Assim, nas
palavras de Gombrich (1990: 142), as paisagens naturalistas em segundo plano engoliam, por
assim dizer, o primeiro plano, at chegar ao ponto em que [...] o tema religioso ou mitolgico
se reduz a um mero pretexto. Esse recalcamento do elemento lgico-discursivo em proveito
do natural por si mesmo o que constata o crtico Altcappenberg (1986: 8) quando fala de um
encolhimento do figural, citando, em seu favor, o texto de Goethe (2000d: 220) sobre a
histria da paisagem: Essas regies circunstantes prevaleceram [berhandnehmen] cada vez
mais no futuro, comprimiram as figuras rumo estreiteza e pequenez, at que, por fim, estas
se contraram naquilo que chamamos de Staffage. Paulatinamente, da Renascena at ao
Romantismo, caminha-se da apresentao da natureza como cenrio para um acontecimento
como ainda em Poussin e Lorrain, dois artistas admirados por Goethe rumo autonomizao
do olhar: a narrativa, ento, no mais figurada, pintada no quadro, mas, ao contrrio, quer ser
figurante, isto , se tornar o prprio vagar contemplativo sobre o quadro-mundo. assim que
parece interpretar Anne Cauquelin (2007: 91) a Fte de Giorgione: [o] tema do quadro bem
que poderia ser a prpria pintura.29
Esse caminho futuro, por assim dizer, da pintura de paisagem a perspectiva como
abertura no s do horizonte, mas tambm de uma prpria auto-tematizao da natureza pela
viso humana. Sua ligao com o passado se mostra muito claramente na linguagem que usa: a
29 Esse percurso histrico da pintura paisagstica compreendido por Ltzeler (1950: 215) em cinco fases, nas
quais se v tambm a paulatina autofigurao da natureza: 1) Natureza como casual, mero acidente ou substrato
inevitvel aos eventos representados; 2) Natureza como existncia provisria margem do acontecimento central;
3) surgimento da profundidade espacial e abertura para a vagncia do olhar na pintura nrdica; 4) recuo da figura
humana e sua reduo a Staffage; 5) aparecimento da paisagem autnoma, enquanto imagem da vida da Terra,
no dizer de C. G. Carus.
32
doutrina dos quatro elementos da filosofia pr-socrtica. Cauquelin (2007: 146) dedica um
captulo de seu trabalho para explorar essa sobrevivncia que compe, segundo a autora, uma
gramtica da paisagem. Os elementos forneceriam no s os vetores de nosso comportamento
o alto e o baixo, o horizontal e a vertical , mas tambm os opostos com os quais devemos
contar: o quente e o frio, a sombra e a claridade, o mido e o seco, sendo, por isso, essenciais
imagem paisagstica, que se fundamenta justamente sobre esses eixos e categorias
(CAUQUELIN, 2007: 144). A mesma tese defende Hartmut Bhme (s.d.) quando elabora uma
pequena esttica da paisagem a partir de trs tpicos a nuvem, a gua e a pedra , bem como
quando pensa o ptreo como fonte do sublime a partir da tradio romntica (BHME, 2004).
So os quatro elementos e suas caractersticas ou cinco, se incluirmos o ter/ a luz (BHME,
s.d.: 6) que se combinam esquematicamente para conformar os mais variados quadros, do
Paraso (ca. 1620) de Hendrick de Clerck ao Mar de Gelo (1824) de Caspar David. Veremos
depois alguns exemplos disso nas paisagens escritas de Goethe.30
Nesse curto percurso histrico, tentamos esboar as razes modernas da paisagem. Apesar
de sua origem poder remontar subida do Monte Ventoux por Petrarca (1336) ou at mesmo,
como sugerem alguns e como veremos na prxima seo, Antiguidade clssica,
principalmente no contexto da descoberta do mundo e da tentativa de sua dominao racional
que devemos situar a emergncia de uma concepo de paisagem operacionalizada em nosso
trabalho. l, no sculo XVI, entre os corgrafos e cartgrafos holandeses, que essa nova forma
de representao pictrica e literria vem luz, tomando como sua tarefa evidencia[r] aquilo
de que trata a geografia, ou seja, a experincia sensvel da Terra como espao aberto, espao a
ser percorrido e descoberto (BESSE, 2014a: 40). Comunicar o mundo e o espao, mas sempre
falando do homem, do seu lugar, dos seus deslocamentos. Mesmo quando se torna autnoma,
dele seu contraposto (Gegenber) de que trata a paisagem (LTZELER, 1950: 216), e de
seu encontrar-se (Befindlichkeit).
2.3 Paisagem, trnsito, narrativa
O que fizemos at aqui foi tentar delimitar, pela fenomenologia e pelos estudos histricos
da arte, o conceito de paisagem, evidentemente moderno. Faremos agora uma pesquisa da
relao dessa vivncia e de sua expresso com a noo de viagem e de deslocamento narrativo,
30 Remetemos o leitor tambm s pginas 22 e 23 dessa dissertao, em que se comenta sobre o mesmo assunto a
partir de Edward Casey (2011).
33
em preparao para o prximo captulo que se debruar sobre as marcas do tempo do trnsito
nas descries paisagsticas. Comecemos, porm, com um recuo no tempo.
No seu texto sobre o crontopo, Mikhail Bakhtin (2010: 260), comentando acerca das
autobiografias da Antiguidade, afirma que trs modificaes especficas das formas pblico-
retricas [ento] existentes foram responsveis pelo processo gradual de privatizao do
homem e pelo consequente surgimento de uma autoconscincia solitria. A vida ntima
encontra, no gnero epistolar principalmente, um espao de expresso menos regido pela
conveno, e certas categorias biogrficas, antes ligadas imagem do homem pblico, passam
para o plano privado. Nesse novo mundo, a Natureza tambm se metamorfoseia. Nasce uma
paisagem, isto , a natureza como horizonte (objeto de viso) e ambiente (fundo, cenrio) do
homem totalmente privado, solitrio e passivo, afirma Bakhtin (2010: 261). Essa no a
chamada paisagem ideal, que comea em Homero, atinge seus expoentes na Siclia de Tecrito
e na Arcdia de Virglio, e se resume no tpos do locus amoenus: uma rvore ou um bosque;
uma fonte borbulhante ou o frescor de um regato; a maciez da relva ou o refgio de uma gruta
(CURTIUS, 2013: 244). Nessa nova literatura do homem privado, a natureza penetra por
fragmentos pitorescos nas horas de passeio, de descanso, nos momentos de um vislumbre
fortuito sobre uma paisagem (BAKHTIN, 2010: 261; grifo nosso). A paisagem algo que se
descortina a quem anda sem buscar e acaba por encontrar. a natureza que surge no otium da
vida campestre, no passeio distrado pelo ager, no descanso afastado do negotium urbano.31
Exemplo dessa modificao privada so, para Bakhtin (2010), as cartas de Ccero a tico.
As cartas de Sneca a Luclio, ele as inclui como modelo do tipo estoico de biografia, mais
voltado consolao pela filosofia. Michel Foucault (2006: 158), que ope, por sua vez, estas
epstolas senequianas s de Ccero, cita um trecho da carta 55 em que o movimento do passeio
conduz Sneca da impresso de paisagem meditao que uma forma da vida ociosa.
Revela-se, tambm nesse estoico, a estrutura acima descrita:
Acabei de chegar de um passeio em liteira [gestatio], to cansado como viria se tivesse
feito a p todo o trajecto. Afinal, tambm cansa andar s costas dos outros, e talvez
ainda canse mesmo mais por ser antinatural: a natureza no nos deu os ps para
andarmos, assim como nos deu os olhos para vermos por ns prprios? [...] [S]entia
necessidade de dar algum movimento ao corpo [...]. E por isso mesmo fui prolongando
um passeio que a prpria paisagem tornava convidativo [invitante ipso litore]: entre
Cumas e a vila [villa] de Servlio Vtia a costa faz uma curva e forma uma estreita
passagem [iter], como que um istmo limitado a um lado pelo mar e do outro pelo lago.
[...] Segundo o meu hbito [ex consuetudine] ia procurando ao redor [circumspicere]
alguma coisa que suscitasse qualquer meditao proveitosa. Acabei por dar com os
31 A natureza como refgio do mundo agitado do trabalho, como um tesouro da paz, da beleza e da felicidade,
desde a Antiguidade um componente do sentimento da vida urbana (WEBER, 2010: 182).
34
olhos na vila que em tempos foi propriedade de Vtia (SNECA, 2004: 187;
SNECA, 1979: 364-366).32
O mar e o lago como o elemento aquoso, o caminho da praia arenosa tornada espessa
pela tempestade recente como o elemento rochoso, a villa ao fundo no ponto de fuga, como
presena humana e smbolo da ociosidade: eis um simples quadro de paisagem. Esta surge a
partir do passeio no caso, por transporte em liteira , como um convite da Natureza
circunstante ao olhar de quem viaja. pelos ps que caminham que os olhos podem ver, no
processo de movimento [que] a paisagem se revela e se desdobra diante do observador [...], e o
ato de se mover pode ser to importante quanto o de chegar (TILLEY, 1994: 31). A viagem
condio para o aparecimento da paisagem.
As reflexes de Michel de Certeau (1998) podem ajudar a analisar as implicaes dessa
afirmao. A proposta de sua pesquisa observar, nas prticas cotidianas, formas de resistncia
do homem ordinrio moderno s ordens impostas por estruturas como o planejamento estatal
e a economia capitalista. Sua visada multifacetada, mas inclui tambm uma comparao
lingustica: prescrio gramatical da ordem corresponde um desvio ou torneio retrico do
indivduo e de grupos. Seria, assim, possvel fazer uma leitura do texto social a partir das tticas
microscpicas e invisveis de subverso, a partir da produo annima do consumidor, que
produtor em sua prtica, na maneira de seu consumo. Nessa anlise das artes de fazer, como
afirma o subttulo de A Inveno do Cotidiano, h uma parte dedicada s prticas de espao e,
naturalmente, viagem.
De Certeau (1998: 169ss.) parte de uma paisagem: a do World Trade Center. De l de
cima, a cidade se oferece como panorama e mapa, como ordem e planejamento urbansticos.33
O corpo se encontra alienado do cho da terra firme como a habitao adequada ao homem
(BLUMENBERG, 1979: 14) , tendo trocado a opaca mobilidade l de baixo pela transparncia
do texto visto de cima. Essa posio sublime (porque superior), condio para o surgimento
de uma imagem esttica/ exttica de paisagem, implica uma distncia da vida cotidiana, um
32 O tradutor omite, no perodo seguinte, uma interessante informao de Sneca. A verso portuguesa diz, sendo
[a]ntigo pretor, podre de rico, Vtia aqui se instalou at uma extrema velhice e tanto bastou para ser considerado
um homem feliz (SNECA, 2004: 187-188). O original, entretanto, afirma que [i]n hac ille praetorius dives,
nulla alia re quam otio notus, consenuit et ob hoc unum felix habebatur (SENECA, 1979: 366), isto , que Vtia
devia sua fama acima de tudo ao seu cio, cujo signo maior era, obviamente, sua vida rural na villa. Otium, oposto
do negotium. 33 A pintura de paisagem e o mapa so formas alternativas mas altamente compatveis de representar a paisagem
(CASEY, 2002: XV). Alm disso, diz Tilley (1994: 24) que um interesse pela paisagem um de controle patrcio
manifestado na pintura, na escrita e no jardim paisagsticos e na arquitetura. O controle do territrio pela exatido
do registro , em primeiro lugar, prerrogativa do mapa.
35
afastamento da caminhada contingente e fortuita pelas ruas. Para ver o horizonte, h que se
viajar: seja ao Monte Ventoux, como Petrarca, seja ao 110 andar, como De Certeau.
A viso de paisagem, entretanto, no se limita viso panptica. O trem a revela de
maneira exemplar. Se, do alto do prdio, a cidade se oferece como um todo organizado,
controlado por cartgrafos e urbanistas, tambm o trem possui, como condio de circulao,
determinada ordem: poltronas, vages, estaes, etc. Como passagem entre lugares, porm, ele
um no-lugar, que permite, similarmente ponte, a [t]ransgresso do limite, [...] a traio
de uma ordem (DE CERTEAU, 1998: 215). Esse carte