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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE Gabriel Alonso Guimarães PAISAGEM, TEMPO E MEMÓRIA NA VIAGEM À ITÁLIA DE GOETHE NITERÓI 2017

PAISAGEM, TEMPO E MEMÓRIA NA VIAGEM À ITÁLIA DE … - Gabriel... · cidades e regiões, como Veneza, Nápoles e a Sicília, ... – como afirma em sua biografia de Winckelmann,

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

    Gabriel Alonso Guimares

    PAISAGEM, TEMPO E MEMRIA NA VIAGEM ITLIA DE GOETHE

    NITERI

    2017

  • 2

    UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

    Gabriel Alonso Guimares

    PAISAGEM, TEMPO E MEMRIA NA VIAGEM ITLIA DE GOETHE

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-

    Graduao em Estudos da Literatura da Faculdade

    de Letras da Universidade Federal Fluminense,

    como requisito para obteno do ttulo de Mestre.

    Orientadora: Profa. Dra. Susana Kampff Lages

    NITERI

    2017

  • 3

    GABRIEL ALONSO GUIMARES

    PAISAGEM, TEMPO E MEMRIA NA VIAGEM ITLIA DE GOETHE

    BANCA EXAMINADORA

    Titulares

    ___________________________________________________________

    Prof. Dra. Ida Maria Santos Ferreira Alves

    Universidade Federal Fluminense

    ___________________________________________________________

    Prof. Dra. Carlinda Fragale Pate Nuez

    Universidade do Estado do Rio de Janeiro

    ___________________________________________________________

    Prof. Dra. Susana Kampff Lages

    Universidade Federal Fluminense

    Suplentes

    ___________________________________________________________

    Prof. Dra. Olga Donata Guerizoli Kempinska

    Universidade Federal Fluminense

    ___________________________________________________________

    Prof. Dr. Andrea Lombardi

    Universidade Federal do Rio de Janeiro

    Niteri

    2017

  • 4

    A Luciene (1966-2016), que partiu antes do tempo.

  • 5

    AGRADECIMENTOS

    famlia, meu apoio fundamental e constante. Aos meus pais, a quem devo a existncia. Aos

    irmos, companheiros de toda hora.

    A Gabriela, meu locus amoenus, fonte de minha sade. A voc, que tanto escutou acerca das

    agruras e das alegrias de minhas buscas.

    orientadora, por conselhos, livros e pela confiana, no s durante o mestrado, mas por toda

    minha formao acadmica.

    Aos colegas e professores, pelas valiosas sugestes, presentes aqui e acol pelo texto. Em

    especial, ao colega Fernando Miranda, pela introduo fenomenologia e pelo texto de Kurt

    Gerstenberg, e colega Clarissa Rocha, pela companhia nesses dois anos. Aos professores

    Eurdice Figueiredo, Johannes Kretschmer, Olga Kempinska e Susana Lages, pelo aprendizado

    nas disciplinas cursadas. s professoras Carlina Nuez e Ida Alves, pelos comentrios nas

    defesas do projeto e da dissertao, muito importantes para a reconduo da pesquisa.

    Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico, pela bolsa de pesquisa,

    sem a qual nada disso seria possvel.

  • 6

    Nosso objetivo uma fenomenologia da cultura humana. Devemos, portanto, tentar ilustrar e

    elucidar a questo com exemplos tirados da vida cultural do homem. Uma ilustrao clssica

    a vida e a obra de Goethe. A memria simblica o processo pelo qual o homem no s repete

    sua experincia passada, mas tambm reconstri essa experincia. A imaginao torna-se um

    elemento necessrio da verdadeira lembrana. Foi por essa razo que Goethe intitulou sua

    autobiografia de Poesia e Verdade (Dichtung und Wahrheit).

    (E. Cassirer, Ensaio sobre o homem, p. 89, trad. Toms Rosa Bueno)

    Que alegrias e conhecimentos no me trar o Sul, provendo-me de novos resultados! Com as

    coisas da natureza d-se o mesmo que ocorre com a arte: j se escreveu tanto a respeito e, no

    entanto, cada um que as contempla capaz de combin-las de uma forma nova.

    (Goethe, Viagem Itlia, p. 202, trad. Srgio Tellaroli)

  • 7

    RESUMO

    O presente trabalho procura relacionar trs tpicos conceituais paisagem, tempo e memria na Viagem Itlia

    de Goethe. Nossa inteno , primeiramente, mapear nas descries paisagsticas a presena do tempo

    fenomenolgico do olhar, do corpo e da viagem, pensando assim a memria em sua forma primria, isto , como

    estrutura retentiva. Para isso, recorremos ao pensamento husserliano das Lies de 1905 e da doutrina mereolgica

    nas Investigaes lgicas, levado adiante pela Fenomenologia da percepo de M. Merleau-Ponty e pelos

    trabalhos de Paul Ricoeur, buscando relacion-lo com a forma testemunhal da experincia de paisagem na Viagem.

    Nossa anlise visa demonstrar os diferentes ritmos da vivncia e de sua descrio, e a impossibilidade de separar

    os elementos do quadro visto e os momentos da percepo total. Alm disso, queremos investigar, num segundo

    percurso, o pertencimento de Goethe tradio da mnemotcnica antiga, na qual a memria pensada, por um

    lado, como impresso anmica e, por outro, como espao interior. Aqui, a paisagem ser vista a partir do seu

    elemento sublime, a fora pattica pela qual ela se inscreve no texto memorativo. Servem como guia, nessa parte

    da pesquisa, as fontes clssicas: os dilogos platnicos, dois trabalhos aristotlicos e algumas retricas latinas, bem

    como as exposies sobre o sublime, do retor Longino ao contemporneo e amigo de Goethe, Friedrich Schiller.

    Tal empreitada, cujo objetivo pr em contato a paisagem italiana com um tempo memorativo individual, aparenta

    ser novidade em meio aos estudos goethianos, tendo em vista que a paisagem relacionada tradicionalmente, na

    crtica, ao tempo histrico e memria cultural.

    Palavras-chave: Goethe; Viagem; Itlia; Paisagem; Memria.

  • 8

    ABSTRACT

    This master thesis tries to relate three concepts landscape, time and memory in Goethes Italian Journey. Our

    first goal is to uncover the phenomenological time of sight, body and travel in landscape descriptions, thus

    conceiving memory in its primary form, namely as retention. In order to do this, we use as basis the 1905

    Husserlian Lessons on time and his mereology in the Logical Investigations, both of which were later developed

    by Merleau-Pontys Phenomenology of perception and by Paul Ricoeurs works on narrative and memory, and we

    relate them to the testimonial form of landscape experience on the Journey. Our analysis aims at demonstrating

    the different rhythms of experience and its description and also the impossibility of separating the elements of a

    landscape "picture" and the moments of its perception. In addition, as second goal, we investigate Goethe's

    belonging to the ancient tradition of mnemonics, in which memory is conceived, on the one hand, as an impression

    on the soul and, on the other, as an interior space or palace. At this stage of our research, landscape is considered

    from the point of view of its sublimity, that is, the pathetic force through which it inscribes itself in the memory

    text. The classical sources, which serve as guide, are the Platonic dialogues, two Aristotelian works and some

    Latin rhetoric treatises, as well as some expositions on the sublime, from the Longinus through Burke to Goethes

    contemporary and personal friend Friedrich Schiller. Our thesis, whose aim is to establish contact between

    landscape and individual recollection, appears to be a new contribution in the field of studies on Goethe,

    considering that Italian and classical landscape in the Journey is traditionally referred to historical time and cultural

    memory.

    Keywords: Goethe; Italy; Journey; Landscape; Memory.

  • 9

    SUMRIO

    1. INTRODUO .................................................................................................................. 11

    2. DEFINIES DA PAISAGEM ...................................................................................... 15

    2.1 Conceituao fenomenolgica da paisagem ....................................................................... 15

    2.2 Breve conceituao histrica da paisagem ......................................................................... 27

    2.3 Paisagem, trnsito, narrativa .............................................................................................. 32

    2.4 Excurso: Goethe e as condies de viagem ........................................................................ 41

    3. A VIAGEM FENOMENOLGICA ............................................................................... 46

    3.1 A teoria fenomenolgica do tempo e da memria .............................................................. 46

    3.2 A relao imediata com a experincia na Viagem Itlia .............................................. 56

    3.3 Caracterizao do olhar goethiano ..................................................................................... 64

    3.4 As palavras e os modelos de paisagem ............................................................................... 73

    3.5 Referncias e influncias da viso goethiana ..................................................................... 77

    3.6 A tripartio da obra: tendncias gerais, ritmos da paisagem ............................................. 86

    3.7 Passagens/ paisagens mais relevantes: anlise densa .......................................................... 95

    3.7.1 De Karlsbad a Verona .................................................................................................... 95

    3.7.2 De Verona a Veneza ...................................................................................................... 98

    3.7.3 De Ferrara a Roma ....................................................................................................... 102

    3.7.4 De Npoles Siclia ..................................................................................................... 105

    3.8 O fruchtbarer Augenblick: anlise de um tempo esttico .................................................. 110

    4. A VIAGEM RETRICA ................................................................................................. 117

    4.1 A memria na Antiguidade ............................................................................................. 117

    4.1.1 Plato e a metafsica da memria e da imagem .............................................................. 117

    4.1.2 Aristteles e a psicologia da memria e da imagem ...................................................... 122

    4.1.3 Trs retricos latinos: Ccero, Quintiliano e o texto Ad Herennium ........................... 126

    4.2 A tradio do sublime em Longino, Burke, Kant e Schiller ........................................... 131

    4.3 As paisagens italianas no palcio goethiano da memria ............................................... 141

    4.3.1 A experincia do sublime na Viagem ............................................................................. 141

    4.3.2 A sobrevivncia da arte da memria na Viagem ............................................................ 147

  • 10

    4.3.3 Paisagens indescritveis: o sublime vs. a descrio qua memria .................................. 152

    5. CONCLUSO .................................................................................................................. 159

    6. BIBLIOGRAFIA ............................................................................................................. 162

    7. ANEXO ............................................................................................................................. 169

  • 11

    1. INTRODUO

    Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832) j era famoso por seu Werther quando viajou

    para a Itlia em 1786. Com quase quarenta anos de idade, Goethe j est maduro, estabelecido

    na corte de Weimar, mas vive um momento de crise, principalmente como poeta. A fuga para

    o Sul , nesse contexto, decisiva: cinde sua trajetria em um pr- e um ps-Itlia, como a

    data do [seu] segundo nascimento, de um verdadeiro renascimento (GOETHE, 1999: 175). De

    setembro de 1786 a abril de 1788, circula pelo pas estrangeiro, visitando algumas grandes

    cidades e regies, como Veneza, Npoles e a Siclia, passando tambm por outras menores,

    como Citt Castellana e SantAgata, e permanecendo cerca de um ano em Roma. Seu objetivo

    principal aplicar[-se] no estudo das grandes coisas, aprender e [se] desenvolver (GOETHE,

    1999: 160), e o escopo de seus interesses vai do clima e da geologia, pelos costumes do povo,

    at as obras de arte da Antiguidade clssica. Selbstausbildung: formao de si pelo outro, pois

    como afirma em sua biografia de Winckelmann, tambm um alemo apaixonado pela Itlia

    a autolimitao sempre o nosso destino (GOETHE, 2000d: 118).

    Fazendo convergir alguns pontos de seu interesse formativo, Goethe confere bastante

    espao textual paisagem italiana, esse solo clssico e palco decisivo no qual se

    desenrolaram os grandes feitos do passado (GOETHE, 1999: 143). Ela o grande Outro,

    irrepresentvel em sua sublimidade, e, ainda assim, tantas vezes descrito em vrias passagens.

    Sua onipresena em meio s descries de obras plsticas pictricas, esculturais e

    arquitetnicas , sua repercusso nas centenas de desenhos goethianos feitos in loco e

    coletados no segundo volume do Corpus der Goethe-Zeichnungen (FEMMEL, 1983) , bem

    como ainda a companhia e a influncia dos pintores de paisagem Philipp Hackert e Christoph

    H. Kniep ao longo de sua viagem, demonstram o teor artstico e (en)formador desse olhar

    contemplativo e a importncia de tentar pensar a relao dele com o prprio texto. Levando em

    conta que se trata, em primeiro lugar, de um relato memorativo originalmente, a Italienische

    Reise [Viagem Itlia] foi publicada como parte do programa autobiogrfico de Goethe ,

    encontramos o ponto de partida da presente dissertao.

    Ponto de partida, dissemos. Sim, porque tentaremos, no esprito da fidelidade potica ao

    prprio objeto, transformar nossa investigao numa espcie de trnsito pelo texto goethiano,

    numa contemplao terica com o perdo dessa redundncia! das paisagens italianas e de

    sua recordao. Assim, tomaremos como guia tambm o princpio que, segundo pensa o terico

    e professor alemo Peter-Andr Alt (2007: 21-22), constitui o cerne da arqueologia filolgica:

  • 12

    no a sorte inesperada de uma memoire involontaire ou o forte impulso de uma associao que

    surge repentinamente e subjuga, mas o esforo de uma longa viagem de aproximao, que

    levada pela persistncia e pela tenacidade possibilita a evidentia do ver claramente. Ou para

    repetir o mesmo com uma outra voz, dessa vez mais clssica: [o] observador deve ser um

    ertico, nenhum trao, nenhum momento pode ser indiferente para ele; mas, por outro lado, ele

    deve [...] auxiliar o fenmeno a se manifestar completamente (KIERKEGAARD, 2013: 25).

    Aproximar-se para desnudar as camadas temporais, para disseminar sentidos, para pr diante

    dos olhos posito velamine, como diz Ovdio. Jogar com os tempos, indo para frente e para

    trs na Histria, em busca de fontes para fecundar a pesquisa, sendo desse modo fiel tarefa

    nietzschiana: pois no saberia dizer que sentido a filologia clssica teria em nosso tempo seno

    o de, nele, agir intempestivamente isto , contra o tempo e assim sobre o tempo e, oxal!, em

    proveito de um tempo vindouro (NIETZSCHE, 1988: 247).

    Sem mais delongas retricas, faamos um pequeno resumo do itinerrio. Comearemos,

    no primeiro captulo, com as definies de paisagem com as quais vamos operar ao longo do

    trabalho. Em primeiro lugar, conceituaremos a paisagem fenomenolgica, isto , a experincia

    do mundo a partir do corpo tal como caracterizada por Maurice Merleau-Ponty (2011) e outros

    filsofos contemporneos. Em seguida, elaboraremos um breve esboo do desenvolvimento

    histrico do gnero pictrico da paisagem, base necessria, por um lado, para explicar a

    modernidade desse conceito e, por extenso, sua existncia nas prxis artstica e literria, bem

    como, por outro, para comentar depois as vises pictrica e geogrfica que servem de modelo

    ao olhar goethiano sobre a natureza italiana. Mais adiante, na continuao da definio

    histrica, abordaremos um tpico que antecipar um tema central do segundo captulo, isto , a

    relao de condicionamento entre paisagem e viagem, para, enfim, concluir o captulo com um

    primeiro incurso no texto de Goethe.

    O captulo dois, o mais extenso de todos, comear com uma nova partida terica, dessa

    vez para definir o conceito fenomenolgico de tempo e memria retentiva. Veremos, assim,

    como paisagem e temporalidade se disponibilizam a uma conscincia encarnada no modo da

    doao imediata ou para falar a linguagem husserliana originria. Da, chegaremos ao texto

    goethiano, finalmente, debruando-nos nas quatro primeiras subsees sobre uma pr-anlise

    dos seguintes temas: a) como o relato revela seu fundo fenomenolgico-testemunhal, apesar de

    ser uma composio tardia; b) qual o tipo de olhar praticado sobre os objetos e a natureza

    clssico-italianos; c) quais modelos (imagticos) de paisagem transparecem nas descries

    goethianas e com quais palavras se traduzem; e, por fim, d) o que j disse a crtica especializada

  • 13

    sobre a formao do [seu] olhar, para usarmos a expresso de Kurt-Heinz Weber (2010: 175),

    isto , sobre os pintores com que teve contato e como isso afetou sua viso de paisagem.

    Concluiremos ento com a parte analtica, que se divide tambm em trs subsees: a primeira

    promove uma vista geral da obra, separando dois ritmos (ou seja, tempos) de contemplao

    paisagstica; a segunda se debrua densamente sobre as cfrases da paisagem italiana,

    analisando seu desdobramento de fundo temporal; e a terceira possui um carter de excurso e

    toma como seu objeto o fruchtbarer Augenblick, isto , o momento fecundo da representao

    esttica, tal qual elaborado por Lessing (2011) e Goethe (2008). Tentaremos aplicar esse

    conceito s descries de paisagem na Viagem, bem como desenvolver a tese de uma dupla

    temporalidade do sublime. Ambos, assim nos parece, ainda no foram defendidos por ningum.

    O terceiro e ltimo captulo ser um pouco mais breve que o anterior, j que no precisar

    incluir nenhuma pr-anlise do texto goethiano. Aqui, partiremos igualmente de outra teoria

    mnemnica, aquela da Antiguidade, conforme formulada primeiramente pelos filsofos gregos

    Plato e Aristteles e, depois, aplicada ao uso artificial da memria entre os retricos latinos

    Ccero, o annimo autor da Rhetorica ad Herennium e Quintiliano. Na segunda parte terica,

    faremos tambm um esboo das reflexes sobre o fenmeno do sublime, de Longino por Burke

    at Kant e Schiller. Nosso objetivo defender a seguinte tese: para a memorizao das imagens

    paisagsticas, o elemento pattico de impresso para falarmos nos moldes da mnemotcnica

    antiga, qual Goethe ainda pertence a fora excedente e indizvel do sublime. Na Viagem

    Itlia, nosso autor parecer, assim, combinar o pthos das imagines agentes e sua ordenao

    em loci com a grandiosidade paisagstica e sua disposio em determinadas passagens textuais.

    O relato, ao final da tripla anlise que faremos, tomar a forma de um palcio da memria

    como o thesaurus de que fala Santo Agostinho (1984) , onde o poeta de Weimar coleciona

    suas relquias italianas.

    Esperamos, com essa dissertao, abrir uma nova veia nos estudos goethianos. At agora,

    paisagem, tempo e memria parecem ter sido somente investigados no texto da Viagem a partir

    de um ponto de vista coletivo, isto , a partir da caracterizao da paisagem italiana por Goethe

    em sua relao com o tempo histrico e a memria cultural. Nossa empreitada ser mostrar a

    presena do individual: como a paisagem aparece via tempo fenomenolgico para esse sujeito-

    corpo que v e descreve, ou como a paisagem se imprime via pthos sublime no palcio da

    memria desse indivduo viajante.1 O objetivo um s provar a relao da paisagem com o

    1 Alm da monumentalidade de nossa empresa, que implica a seleo (memorativa!) de um estreito corpus terico,

    esse elemento do individual que justifica, por exemplo, a excluso de uma pesquisa fundamental, mas divergente

  • 14

    tempo e a memria individuais , mas os caminhos so dois e inversos: no primeiro, o tempo

    retentivo sustenta o surgimento dos elementos paisagsticos; no segundo, o sublime paisagstico

    d fora memria. O resultado, assim tambm esperamos, pretende ser igualmente um

    trabalho terico e uma contribuio para os estudos da cfrase e para os estudos literrios de

    inspirao fenomenolgica.

    Antes de adentrar a investigao, uma ltima palavra preparatria sobre a escolha do

    corpus e sobre os procedimentos de traduo. Utilizamo-nos de uma edio de praxe das obras

    de Goethe a chamada Hamburger Ausgabe , cujo dcimo primeiro volume contm a

    Italienische Reise e os respectivos comentrios de Herbert von Einem. Para as citaes em

    portugus, escolhemos a boa traduo de Srgio Tellaroli, publicada em 1999, cujo (talvez)

    nico defeito sua incompletude: somente duas das trs partes da obra original foram vertidas.

    Isso, porm, no ofereceu problemas para nosso trabalho, uma vez que como justificamos

    mais frente a seleo do material de anlise contemplou quase exclusivamente o que foi

    traduzido naquela edio. A razo simples: a terceira e ltima parte da Viagem relata a segunda

    estada romana de Goethe, quando o poeta j no mais transitava e, portanto, no se lhe

    ofereciam novas paisagens. Quando modificamos a traduo existente de algum texto,

    apusemos uma nota. Quando foi necessrio citar alguma passagem original que no estivesse

    j traduzida, fizemos ns mesmos a verso, sem, contudo, apr a tradicional expresso minha

    ou nossa traduo. Achamos que o texto ficaria mais limpo dessa maneira e consideramos que,

    alm disso, o leitor saber, pela consulta bibliografia final, distinguir o que traduo alheia

    sempre referida pelo nome do que prpria todo texto em lngua estrangeira sem

    referncia a tradutores. O nico caso que constituiria uma espcie de exceo so os clssicos

    greco-latinos, que foram consultados em edies bilngues em lngua inglesa e vertidos com o

    auxlio das tradues, mas sempre como ficar evidente com um intenso olhar no texto

    original. nessa ateno etimolgica que encontraremos, muitas vezes, o detalhe fundamental

    da anlise.

    em relao ao nosso propsito: o livro Paisagem e Memria (1995), de Simon Schama. Ali, os dois conceitos so

    investigados a partir de um olhar histrico, amplo e coletivo.

  • 15

    2. DEFINIES DA PAISAGEM

    2.1 Conceituao fenomenolgica da paisagem

    O conceito de paisagem assume, dentro da fenomenologia de Merleau-Ponty, um espao

    central. Oriundo talvez de seu interesse pela pintura de Czanne, ali a paisagem funciona,

    entretanto, no como uma criao reflexiva, pensada, mas como um sinnimo do fenomnico,

    do tipo de relao que o ser humano mantm com o mundo por seu corpo. Na esteira do filsofo

    francs caminham outros como Bernhard Waldenfels, Edward Casey, Michel Collot e Paul

    Ricoeur, todos ligados tradio do pensamento fenomenolgico. Prximo tambm est Georg

    Simmel, que, num pequeno texto sobre a Filosofia da paisagem, de 1913, desenvolve ideias

    bastante semelhantes abordagem de seu contemporneo Husserl. A seguir, tentaremos fazer

    um pequeno sketch desse conceito em algumas obras desses autores.

    O ponto de partida de Merleau-Ponty (2011) sempre o corpo. O corpo prprio, aquilo

    que Ricoeur (2014) chama de carne (chair) e os alemes de Leib, essa montagem geral pela

    qual sou adaptado ao mundo (MERLEAU-PONTY, 2011: 283). Trata-se de uma condio

    fundamental de nossa existncia, de um existencirio, para usar a nomenclatura heideggeriana.2

    O corpo o mediador entre a conscincia subjetiva e o mundo exterior, o veculo de nosso

    ser no mundo, o instrumento primordial de nosso conhecimento. Com ele, a fenomenologia

    supera a diviso cartesiana entre a coisa pensante e a coisa extensa, entre a distenso temporal

    da conscincia e a extenso temporal das coisas, na medida em que ns somos essa parte do

    mundo que chamamos estrutura corporal. Qualquer espacialidade, bem como qualquer

    temporalidade, s possvel a partir da ancoragem no aqui e no agora vividos pelo corpo.

    assim que paisagem e memria comeam a se imbricar.

    diferena de Descartes ainda, o corpo no uma coisa entre coisas, alienado no reino

    da extenso. O que o impede de ser alguma vez objeto [...] o fato de ele ser aquilo por que

    existem objetos (MERLEAU-PONTY, 2011: 136). Sua possibilidade de conhecer outros

    corpos, bem como sua reflexividade, isto , sua condio de si (self) a mo que a afaga a si

    prpria, a inerncia [...] do senciente ao sentido (MERLEAU-PONTY, 2013: 20) , fazem

    com que difira da coisa dada. Ainda assim, sua constituio participa da textura comum de

    todos os objetos (MERLEAU-PONTY, 2013: 315), do tecido do mundo: como que uma

    2 Heidegger, entretanto, no elaborou a noo de carne como existencial distinto, diz Ricoeur (2014: 387).

  • 16

    parte da Natureza que nos invade e que assumimos pr-reflexivamente. Nenhum cogito

    cartesiano, nenhum kantiano Eu transcendental, possvel sem esse prvio estar-dado-a-si-

    mesmo que o corpo, condio muito bem traduzvel pela categoria heideggeriana do estar-

    lanado-a, a Geworfenheit do Dasein (RICOEUR, 2014: 386).

    O corpo a existncia pr-lgica, pr-consciente, existncia annima e geral do

    biolgico (MERLEAU-PONTY, 2011: 125) que retomada, acolhida na subjetividade pessoal,

    a forma humana de existir. Viver (leben) uma operao primordial a partir da qual se torna

    possvel viver (erleben) tal ou tal mundo, isto , vivenciar (MERLEAU-PONTY, 2011:

    221).3 Essa distncia do animal, o homem a consegue pela sublimao de sua relao com o

    meio circundante (Umwelt) em um mundo (Welt), e correlativamente, pela subsuno do corpo

    atual, preso s determinaes do ambiente, em corpo habitual, engajado no mundo por certas

    pr-disposies cotidianas, por uma espcie de memria pr-reflexiva.4 Com seu saber

    originrio, o corpo como um outro eu que j tomou partido pelo mundo (MERLEAU-

    PONTY, 2011: 291), um alter ego na origem, isto , uma alteridade preliminar a toda identidade

    (RICOEUR, 2014: 383).

    A remisso a uma origem j constituda, cujo representante a carne, recorrente nos

    desdobramentos da fenomenologia de Merleau-Ponty. Quando explora, por exemplo, os

    terrenos da sensao, em busca de uma definio que supere tanto o pensamento objetivo o

    sensvel como quale em si quanto o intelectualismo idealista a sensao como pensamento

    , ele pe a sensibilidade aqum da conscincia, num horizonte pr-pessoal que, como o

    nascimento, sempre j est l, na periferia de meu ser (MERLEAU-PONTY, 2011: 290). A

    sensao uma con-naissance: um conhecimento que co-nasce em um certo meio de

    existncia ou se sincroniza com ele (MERLEAU-PONTY, 2011: 285), uma comunho do

    sujeito com o mundo via corpo. A coisa sensvel solicita e questiona, o corpo se pr-dispe e

    responde. Perceber interagir com a natureza, nosso interlocutor em uma espcie de dilogo

    (MERLEAU-PONTY, 2011: 429) e, nessa troca, corpo e mundo se imiscuem. Citando Czanne

    indiretamente, Merleau-Ponty (2011: 289) diz: sou o prprio cu que se rene, recolhe-se e

    3 O francs no tem equivalentes para a dupla de palavras alemes citadas por Merleau-Ponty, que encontra,

    entretanto, bons equivalentes em portugus. Jorge Semprun (1995: 139), que estudou filosofia na Frana na poca

    de Merleau-Ponty, lamenta, em A escrita ou a vida, essa mesma falta. 4 No custa lembrar a importncia do cotidiano na ontologia de Ser e Tempo. Alm disso, cabe aqui referir um

    pequeno trecho de Michel Henry (2012: 126-127): [e]ssa unidade de meu ser atravs do tempo, que constitui a

    memria, exige um fundamento. Este o hbito, ou, se preferirem, o ser mesmo de meu corpo, que precisamente

    torna possvel o ato de rememorao [...]. Assim, porque corpo memria, uma memria, verdade, na qual a

    ideia de passado ainda no aparece, que ele pode ser tambm uma memria que se recorda do passado, fazendo

    deste o tema de seu pensamento (grifos no original).

  • 17

    pe-se a existir para si, o sensvel me restitui aquilo que lhe emprestei, mas que dele mesmo

    [...] eu o obtivera. A sensao uma retomada, a reconstituio de algo j previamente

    constitudo: no um em-si objetivo e independente de todo para-ns, mas o corpo como

    estrutura do mundo.5

    O espao tambm aparece como algo sempre j constitudo. Na busca tambm de uma

    via media, uma terceira espacialidade, igualmente distante do espao objetivo de um Descartes

    e do espao espacializante de um Kant, afirma Merleau-Ponty (2011: 339) que ser sinnimo

    de ser situado. A orientao no pode ser em si no h alto nem baixo por si mesmos , ela

    pressupe sempre o ato global da ancoragem: meu corpo est ali onde ele tem algo a fazer

    (MERLEAU-PONTY, 2011: 336), onde encontra uma tarefa que a situao lhe solicita. A

    ancoragem se d em um nvel espacial que se coloca na juno entre o corpo enquanto potncia/

    poder sobre o mundo e o espetculo-ambiente enquanto convite a habitar, e que, como toda

    percepo, pode ser reavaliado, reajustado conforme as circunstncias. O reajuste, por sua vez,

    se opera sempre sobre um nvel anterior, mas a remisso no infinita: o nvel primordial no

    se ancora, est no horizonte de todas as nossas percepes, mas em um horizonte que por

    princpio nunca pode ser alcanado ou tematizado em uma percepo expressa (MERLEAU-

    PONTY, 2011: 341). Tal horizonte dos horizontes o compromisso entre o corpo e o mundo

    natural, um pacto sempre j selado e que, esquecido, nunca vem conscincia.

    esse compromisso que garante a unidade da experincia e, analogamente, a unidade da

    coisa e do mundo. Os vrios sentidos, enquanto modalidades de fixao no mundo, abrem

    diferentes espaos: o visual, o ttil, o auditivo, mas tambm o afetivo, o onrico, o geomtrico,

    etc. (MERLEAU-PONTY, 2011: 382). Entretanto, sua distino se opera sempre sobre o

    fundo de um mundo comum, tanto quanto a partir da mesma perspectiva invarivel que o

    corpo prprio, e todos partilham da mesma pretenso ao ser total (MERLEAU-PONTY,

    2011: 304). O comrcio natural do corpo com o mundo envolve uma atitude global de adeso,

    de aposta e f originria [Urglaube] no percebido. A percepo sinestsica a regra, diz

    Merleau-Ponty (2011: 308), e a cincia, uma viso secundria ou crtica (MERLEAU-

    PONTY, 2011: 305), que distingue a experincia em sentidos, que fixa o olhar localmente e se

    5 Waldenfels (2013) fornece um interessante aporte a essa questo, mas por outro vis: a alteridade em ns mesmos,

    como origem da identidade. Acerca do nascimento da Europa e de seus constantes Renascimentos, comenta

    Waldenfels (2013: 138), por exemplo, que um passado, que para mim ou para ns nunca foi presente, permite

    somente que a ele voltemos na forma de uma determinada reprise, que retoma, continua a prise original, sem

    nunca a esgotar, e que, portanto, est exposta a uma surprise.

  • 18

    interroga analiticamente sobre o objeto. 6 O corpo como uma caixa de ressonncia, que traduz,

    sem mediao, seus campos sensoriais uns nos outros (MERLEAU-PONTY, 2011: 207), que

    possui o mundo imediatamente e a coisa, intersensorialmente. A percepo natural como um

    sentido latente, difuso atravs da paisagem (MERLEAU-PONTY, 2011: 378), como a vida

    total do espetculo (MERLEAU-PONTY, 2011: 305). 7

    Assim, comeamos a caminhar em direo paisagem, que toma, em Merleau-Ponty,

    essa significao muito prxima do fenomnico. Importando a terminologia da psicologia da

    Gestalt, a paisagem torna-se, na Fenomenologia da percepo, o fundo sobre o qual os objetos

    se destacam maneira de figuras. S vejo um objeto quando o fixo, quando me ancoro nele,

    quando com um nico movimento fecho a paisagem e abro o objeto (MERLEAU-PONTY,

    2011: 104). Inversamente, ver a paisagem implica sobrevoar os objetos sem se deixar fixar, sem

    desdobr-los em sua nitidez. Essa estrutura perspectiva da percepo aquilo que assegura a

    identidade do objeto no decorrer da explorao (MERLEAU-PONTY 2011: 105). Sem a

    abertura do horizonte, o olhar no poderia fluir de uma sensao ou uma coisa a outra, e os

    objetos estariam reduzidos a blocos incognoscveis. A paisagem , dessa maneira, a condio

    fenomenal e a estrutura fenomnica da percepo, e, em sua abertura e transcendncia, garante

    a constncia das coisas. Ela correlata ao corpo, o qual, sendo a origem da perspectiva, o ponto-

    zero de onde olho o mundo, uma permanncia absoluta que serve de fundo permanncia

    relativa dos objetos (MERLEAU-PONTY, 2011: 136).

    A proximidade da paisagem com o fenomnico aparece em outros momentos do texto.

    Por exemplo, quando Merleau-Ponty (2011: 324) comenta sobre o campo originrio da

    experincia e afirma que no h uma multiplicidade de dados que uma conscincia unifica em

    sntese pois no h nem sujeito nem objeto a postos , mas sim uma configurao total que

    distribui os valores funcionais segundo a exigncia do conjunto, isto , uma configurao de

    6 A anlise pressupe uma sntese original: quando, assumindo a atitude analtica, decomponho a percepo em

    qualidades e em sensaes [...], sou obrigado a supor um ato de sntese que no seno a contrapartida de minha

    anlise (MERLEAU-PONTY, 2011: 319). Tal sntese j est dada percepo na estrutura do ser-no-mundo pelo

    corpo. No se trata, por isso, de uma sntese kantiana, que Merleau-Ponty (2011: 357) renega porque (su)pe

    termos discretos, mas de uma sntese de transio (MERLEAU-PONTY, 2011: 358; 442), pela qual cada

    perspectiva, cada sensao flui em outra. V-se aqui a estrutura espao-temporal de horizonte, i.e., de paisagem,

    prpria existncia humana, qual voltaremos mais adiante. 7 A oposio entre uma atitude de adeso originria, global, centrada na paisagem-espetculo, e uma interpretao

    crtica, local, voltada para o objeto, fundamenta para ns duas maneiras diversas e complementares de

    contemplao da paisagem real, isto , no mais como conceito-metfora da fenomenologia, mas enquanto

    natureza vista como quadro por um viajante. Num primeiro momento, tem-se a impresso do todo, o choque

    instantneo da imensido sublime; num segundo, o percurso do olhar sobre os objetos dispostos, sua fixao

    temporria e escorrida num fluxo lento. Algo semelhante afirma Weber (2010: 148): depois da vaga impresso

    geral, procura-se por pontos de apoio e informaes, isto , analisam-se os elementos, rumo formao de

    uma imagem coesa. Voltaremos a essa dupla diviso mais algumas vezes no presente trabalho.

  • 19

    paisagem. Igualmente, a paisagem se encontra em relao direta com o corpo fenomenal

    porque nosso corpo no seno [nossa situao em um certo ambiente fsico e humano]

    enquanto ela efetiva e realizada (MERLEAU-PONTY, 2011: 455). Por fim, a palavra

    tambm aparece numa outra acepo da perspectiva e do fenmeno, mais prxima da ideia de

    limitao, quando o filsofo trata do esquizofrnico e do doente alucinado e diz que ambos

    vivem no espao da paisagem, isto , num mundo privado, em que no h mundo geogrfico,

    no existe comunicao de horizontes: sejam eles espaciais (aqui-ali), temporais (passado-

    presente-futuro) ou intersubjetivos (eu-outrem) (MERLEAU-PONTY, 2011: 386; 457).8

    Ao todo, Michel Collot (2013: 21) conta que a palavra paisagem no aparece menos que

    85 vezes na Fenomenologia da percepo. , entretanto, nesses momentos em que est

    relacionada perspectiva, ao aparecimento do fenmeno e abertura comunicante ausente no

    alucinado que est a chave do conceito. Porque se na paisagem, como se expressa Edward

    Casey (2011: 103), encontra-se o convite a olhar sempre mais para diante, mais para longe do

    espao-prximo que , de certa maneira, um espao-prprio , ento h um elemento de

    alteridade intrnseco sua definio, correlato da carne enquanto alteridade primria. Ele se

    mostra, em primeiro lugar, numa solicitao dos fenmenos: [s]ou eu quem tem a experincia

    da paisagem, mas tenho conscincia, nessa experincia, de assumir uma situao de fato, de

    reunir um sentido esparso (MERLEAU-PONTY, 2011: 355). O mundo aparece como que

    objetivamente dado e nessa falcia cai, inocentemente, o pensamento objetivo. Isso porque

    meu ato [perceptivo] no originrio ou constituinte, ele solicitado ou motivado

    (MERLEU-PONTY, 2011: 356) por esse outro chamado natureza, porque toda percepo

    uma comunicao ou comunho, a retomada ou o acabamento, por ns, de uma inteno alheia

    (MERLEAU-PONTY, 2011: 429; grifo nosso). As coisas perguntam, o corpo responde com a

    atitude adequada.

    Quem diz alteridade diz tambm alterao. aqui que se encontra a problemtica da

    unidade: do corpo, da coisa, do mundo. Como pensar num mundo comum ou numa coisa

    intersensorial, se no tenho o objeto em sua plenitude (MERLEAU-PONTY, 2011: 107) e, a

    cada perspectiva, a cada momento, ele se multiplica em novas formas? A soluo est na

    estrutura da paisagem: o horizonte que garante uma unidade presuntiva, tanto do sujeito

    quanto do objeto (MERLEAU-PONTY, 2011: 296). Toda constncia perceptiva remete-nos ao

    8 Conta tambm, nessa aproximao de paisagem e fenomnico, a definio que Merleau-Ponty (2011: 345) d

    para a profundidade como a dimenso mais existencial, uma vez que a distncia condio sine qua non da

    paisagem.

  • 20

    sistema da experincia, inerncia a um ponto de vista que torna possvel ao mesmo tempo a

    finitude de minha percepo e sua abertura ao mundo total (MERLEAU-PONTY, 2011: 408;

    grifo nosso).9 As coisas so e permanecem o que so justamente porque possvel, pelo

    horizonte, desdobr-las mais adiante, retom-las mais para trs. A coexistncia espacial

    pressupe o pertencimento das coisas a uma mesma contemporaneidade, a um mesmo ritmo de

    existncia, a um mesmo campo de presena [...] que se estende segundo duas dimenses: a

    dimenso aqui-ali e a dimenso passado-presente-futuro (MERLEAU-PONTY, 2011: 357).10

    A condio da percepo est na passagem de cada perspectiva a outra, na sntese de transio,

    a qual opera antes de tudo no tempo: reconheo aquela rvore distante na paisagem como a

    mesma de perto porque sei que, partindo daqui, chegaria l e a veria tal como ela . Para

    resumir: a percepo do mundo apenas uma dilatao do meu campo de presena

    (MERLEAU-PONTY, 2011: 408), da minha inerncia a um corpo, a uma paisagem e ao tempo.

    A superposio de espao e tempo, ou melhor, a redutibilidade daquele a este, permite

    um incurso na relao entre paisagem e memria. Diz Merleau-Ponty (2011: 442):

    Quando observo o horizonte, ele no me faz pensar nesta outra paisagem que eu veria

    se estivesse ali, esta em uma terceira paisagem e assim por diante, eu no me

    represento nada, mas todas as paisagens j esto ali no encadeamento concordante e

    na infinidade aberta de suas perspectivas.

    Isso quer dizer que, em ltima instncia, no h interveno mediadora no acesso

    distncia, seja ela aquela que j foi proximidade, seja aquela que ainda ser. Acontece com a

    memria o mesmo que com a paisagem: no est disponvel na posse de certos contedos ou

    recordaes, traos presentes [...] do passado abolido (MERLEAU-PONTY, 2011: 358), mas

    como uma posse direta, por assim dizer mo. A historicidade, como a profundidade, a

    espessura de um medium sem coisa (MERLEAU-PONTY, 2011: 359). Como o ser no

    longnquo que a distncia esse estar-l-pelo-aqui-do-corpo , a memria uma passagem

    contnua, um fluxo de instantes que se encaixam e se desdobram um no outro, criando a

    espessura do tempo.

    No pretendemos confrontar, nesse momento, essa posio de Merleau-Ponty. Certo

    que a estrutura da paisagem e da memria se coincidem nas suas formas de distncia e de

    horizonte: no s nas respectivas caractersticas de abertura, indeterminao11 e possibilidade

    9 Meu ponto de vista para mim muito menos uma limitao de minha experincia do que uma maneira de me

    introduzir no mundo inteiro, sublinha ainda Merleau-Ponty (2011: 442). Finitude e abertura. 10 O termo Prsenzfeld e importado de Husserl, como consta numa nota (MERLEAU-PONTY, 2011: 643). 11 Indeterminao pela apreenso esboada que caracteriza o ver-ao-longe, em contraposio apreenso

    completa, ntida e precisa da proximidade (MERLEAU-PONTY, 2011: 352).

  • 21

    de desdobramento, mas tambm na condio de algo limitado do lado espacial, pela linha em

    que cu e terra, cu e mar se esposam; do lado temporal, pelo esquecimento. Se, entretanto, h

    ou no rastros ou indcios, deixados pelo tempo sobre a pele, o crtex ou a cera da alma, e

    que medeiam nosso acesso ao passado como um aide-mmoire desperta uma recordao, trata-

    se de um questionamento a ser abordado num prximo captulo. Parece, assim afirma Paul

    Ricoeur (2007: 26) em sua fenomenologia da memria e da imaginao, que a volta da

    lembrana pode fazer-se somente no modo do tornar-se-imagem. Deixaremos esse ponto

    aportico em suspenso para caminhar rumo a outro autor que permitir um novo relacionamento

    entre os conceitos de paisagem e memria.

    Michel Collot (2013) parte, principalmente, das contribuies de Merleau-Ponty para

    elaborar sua potica da paisagem. Seu trabalho busca, como o presente, uma fundamentao

    filosfica para um conceito a ser operacionalizado na experincia da literatura, em especial na

    francesa desde o Romantismo, quando ocorreu um segundo boom paisagstico no Ocidente.

    Essa sua escolha no sem consequncias, uma vez que a produo artstica desde o XIX

    claramente marcada pela reflexo crtica e por uma potica da evocao de matiz musical

    distante da retrica descritiva, que se pautava pela pintura e imperou at o XVIII, inclusive

    na obra de Goethe (COLLOT, 2013: 53). Essas diferenas parte, suas reflexes trazem um

    aporte interessante para a conceituao da paisagem, inclusive em sua relao com o elemento

    literrio.

    Tambm Collot (2013) parte da diferena entre homem e animal. O viver em um ambiente

    pertence a ambos, mas, ao contrrio dos animais, por sua postura ereta o homem abre seu meio

    para uma viso de conjunto, para um mundo comum, e se torna um ser de distncias. A

    orientao bsica no espao, aquilo que se chama de ancoragem, deriva seus eixos do

    cruzamento entre o vertical da silhueta humana e a linha do horizonte (COLLOT, 2013: 20).

    Alto e baixo, duas regies do espao humano essenciais paisagem basta pensar no cu cinza-

    azul contra a terra verde nas Ziehende Wolken (1821), de Caspar David Friedrich , surgem da

    verticalidade ereta, pela qual o homem contrape, de forma tensiva, o sub-strato [Unter-lage]

    seguro, o cho qua fundamento, sobre-viso [ber-sicht] orientadora, viso de paisagem

    (WALDENFELS, 2009: 70).

    A estrutura do horizonte, j ressaltada exaustivamente por Merleau-Ponty (2011) como

    condio ou componente do fenomnico, aparece aqui tambm em uma tripla ambiguidade.

    Primeiramente, retomando o mestre em citao, Collot (2013: 24) reafirma a dialtica de

    ocultao e desvelamento: uma extenso de paisagem s se deixa ver na medida em que

  • 22

    esconde, no espao, no tempo e entre sujeitos, outras partes ao olhar. Alm disso, o horizonte

    concomitantemente subjetivo, porque uma linha imaginria, nunca encontrvel em mapas,

    traada por uma viso perspectiva, e objetivo, porque seu traado se faz sobre elementos fsicos,

    presentes no mundo exterior (COLLOT, 2013: 51; 83).12 Por fim, nele se ope tambm o par

    finitude-abertura, j que sua configurao limita a vista e, ao mesmo tempo, oferece a melhor

    imagem do infinito (COLLOT, 2013: 110).13

    A questo do limite nos leva, momentaneamente, a outro terico importante da paisagem.

    Edward Casey (2011) se prope analisar, dentro do campo de uma disciplina emergente a

    liminologia , os possveis limites da paisagem. Se, por um lado, esta passvel de um

    desdobramento infinito (CASEY, 2011: 91) aquilo que, em outra obra, chama de a tentao

    da representao de se estender em manifestaes panormicas (CASEY, 2002: 8) , sua

    finitude necessria uma vez que toma parte na infraestrutura do [nosso] mundo-limiar [edge-

    world] (CASEY, 2011: 95).14 Dos quatro tipos de limiar que Casey (2011) levanta e estuda

    rim, gap, border, boundary [borda, intervalo, fronteira, limite] , a paisagem est mais prxima

    do limite, poroso por natureza e aberto ao trfego. H, entretanto, uma dupla duplicidade que a

    caracteriza. Por um lado, existe um limite superior, o horizonte e o cu, e um inferior, a Terra

    (ou o mar sobre a Terra, no caso de paisagens martimas); por outro, um externo, por exemplo,

    um conjunto de arbustos na borda de uma floresta, e um interno, representado, por exemplo,

    pela copa das rvores ou por caminhos abertos no interior de um bosque.15

    O horizonte mais uma banda do que uma linha e, tambm para Casey (2011: 98), uma

    condio de percepo das coisas, uma vez que aquela parte do mundo vivido que se recusa

    12 Tambm Weber (2010: 191) nota essa ambiguidade, mas tomando como paradigma a perspectiva geomtrica

    renascentista. Ela subjetiva, porque pe tudo em relao com o contemplador, e tambm no , porque subjuga

    a tica a um modelo objetivo [i.e. grade de retas, ao ponto de fuga, etc.]. Em outro ponto, Weber (2010: 170)

    diz, com tonalidades fenomenolgicas, que a paisagem devedora de uma esttica do olhar, isto , de um

    contemplador formado para ver dessa e daquela forma, mas tambm no surge somente de um ato de olhar

    individual, j que a realidade mesma se apresenta como campo fenomnico estruturado (WEBER, 2010: 175). 13 Sobre isso, tambm Weber (2010: 194): [o] que fundamental para a paisagem, quer dizer, a viso perspectiva,

    contm j em si a direo para o infinito. Ele se encontra, portanto, em cada uma de suas realizaes. Como foi

    demonstrado, a perspectiva faz com que a obra de arte traga o espao infinito para dentro do finito; poder-se-ia

    dizer tambm, um pouco exageradamente, que ela torna visvel o que em si invisvel. A questo da

    (in)visibilidade pertence primeira ambiguidade mencionada, a do desvelamento e da ocultao. 14 Essa formulao, de tonalidade heideggeriana, no deixa de afirmar, agora por uma perspectiva ontolgica, o

    que afirma Merleau-Ponty (2011) sobre a dialtica fenomenolgica do desvelamento e da ocultao. Em outro

    momento, Casey (2011: 107) fica mais prximo da fenomenologia, ao reconhecer que esses limiares limtrofes

    so, efetivamente, estruturas visuais e cinticas a priori da vida humana neste planeta. 15 Para a impresso total da paisagem, diz Weber (2010: 175) que imprescindvel estabelecer uma moldura,

    isto , um limite. Isso pode acontecer pela escolha de um determinado ponto de vista pelo contemplador, pode j

    estar como que pronto na natureza pela disposio do todo, por exemplo, em um vale circundado de montanhas,

    ou pode, ainda, ocorrer simplesmente por causa das molduras reais de um quadro.

  • 23

    a ser um objeto.16 O cu mais como uma zona, infinitamente porosa, o limite de todos os

    limites, circum-ambiente como o horizonte. A Terra, por sua vez, escapa viso em sua

    opacidade, ainda mais em paisagens martimas; mesmo assim, ela o fundamento incondicional

    sob os ps, o substrato que no desaparece, [mesmo] quando nos elevamos no ar

    (WALDENFELS, 2009: 69). Como sublinha Casey (2002: 37) ao tratar da estrutura elementar

    da paisagem, o elemento terra o tpico dos tpicos, ou melhor, o tpico supremo da pintura

    de paisagem, seu assunto primeiro e ltimo, e isso duplamente: porque d profundidade, como

    o que est, como fundo, sob gua, cu, ar e luz; e porque regionaliza o espao visto maneira

    de uma matriz topolgica, servindo de suporte a todos os limites delineados sobre a paisagem.17

    Para alm de uma caracterizao dos limites externos e internos, fundamentais para a

    percepo da paisagem basta pensar nas estradas [chausses] que cortam as regies, como

    veremos numa seo mais abaixo e no prprio texto de Goethe , a questo liminolgica deve

    ser desdobrada aqui em suas consequncias para o pensamento humano. Porque, como insiste

    Casey (2011: 106), a conservao das paisagens ameaada em nosso capitalismo tardio

    uma questo no s de sobrevivncia fsica, mas tambm de vises abertas e libertadoras que

    terra e mar trazem consigo no nvel da experincia e do pensamento. a estrutura aberta e

    infinita do horizonte que d ao ser humano o sentido de espao expansivo, sem o qual ele

    estaria confinado a um inferno de passagens artificiais e corredores sem ar (CASEY, 2011:

    106), como num escrito de Kafka. Paradoxalmente, a liberdade da prospeco e expectativa

    impossvel sem os confinamentos proporcionados pelos limiares (CASEY, 2011: 107), isto

    , pela linha-limite do horizonte.

    nesse mesmo sentido que caminha Collot (2013), quando elabora uma teoria do

    pensamento-paisagem. Para o autor, trata-se da comunho entre corpo e mundo, da estrutura

    dialgica j esboada por Merleau-Ponty (2011), isto , de um pensamento partilhado, do qual

    participam o homem e as coisas (COLLOT, 2013: 30), numa estrutura quiasmtica que faz

    lembrar a defesa, por Bernhard Waldenfels (2013: 66ss.), de um cruzamento [Verschrnkung]

    originrio e contnuo entre identidade e alteridade. O pensamento-paisagem a relao

    recproca e reversvel de suas partes: a concepo do pensamento como paisagem da

    conscincia e da paisagem como pensamento do mundo. Remete, em ltima instncia,

    caracterstica fundamental da estrutura existencial do ser humano, que Collot (2013: 31) chama

    16 Aqui igualmente, como em Merleau-Ponty (2011: 106), cabe uma referncia estrutura contextual (de horizonte)

    do tempo, sem a qual os acontecimentos histricos no so discernveis. 17 Sobre a questo dos elementos da paisagem e sua relao com a doutrina (grega) dos elementos, ver a prxima

    seo.

  • 24

    de espaamento do sujeito: somos seres que ek-sistem, que esto postos para fora, jogados no

    mundo como projeto ou trajeto. Somos Da-sein, ser-a, como joga Martin Heidegger (2012). O

    pensamento e o espao so, assim, duas modalidades desse espaamento, de nossa abertura

    essencial ao ser e disso do testemunho tanto a paisagem, com seu horizonte infinito, quanto

    a linguagem, com suas metforas espaciais.18

    A condio do estar-fora da ek-sistncia, que pressupe, por sua vez, um ipse corporal

    o dentro s tem sentido para um si que se encontra aqui (WALDENFELS, 2009: 77) , remete

    a um outro jogo lingustico, que Heidegger (2012) faz ao expor os caracteres da espacialidade

    do Dasein: trata-se da Ent-fernung, isto , do des-afastamento. O ser humano faz que o ente

    venha-de-encontro cada vez no prximo (HEIDEGGER, 2012: 307), isto , suspende (ent) a

    distncia (Ferne) no seu trato cotidiano com o mundo e as coisas. isso que, para ns, quer

    dizer o ser no longnquo de que fala Merleau-Ponty (2011: 358) e que, mais do que definir a

    estrutura do horizonte, demonstra o modo de vivenciar a experincia da paisagem. Pelo olhar

    em perspectiva, por uma espcie de caminhada imaginria (ou mesmo real), desdobramos a

    lonjura, aproximamo-nos do distante, colocamos nosso corpo l. A paisagem real, mas tambm

    o quadro de paisagem, oferece um campo a ser habitado virtualmente por nosso corpo e nos

    convida a sair momentaneamente do aqui em que ele est ancorado e atravessar o espetculo.19

    A pedra voa no ar, o que significam estas palavras seno que nosso olhar, instalado e ancorado

    no jardim, solicitado pela pedra e, por assim dizer, puxa suas ncoras?, pergunta-se Merleau-

    Ponty (2011: 373).

    Essa articulao entre distncia e proximidade, essencial para (vi)ver a paisagem, para

    (mo)ver-se nela20, est inscrita na polaridade da perspectiva. O que Kurt-Heinz Weber (2010)

    comenta acerca da perspectiva geomtrica o que j foi mencionado na nota 12 vale, em

    primeiro lugar, para a experincia fenomenolgica. paisagem necessria uma distncia que

    permita organizar as impresses visuais conforme o clculo estereomtrico (WEBER, 2010:

    192), ou dito de outra forma, segundo uma disposio total rumo ao horizonte. Ao mesmo

    tempo, h uma proximidade que se expressa, principalmente, no sentimento de ser tocado

    18 A prpria palavra metfora, que, em seu timo, remete ao deslocamento, ao transporte de sentido e de local, ,

    por isso mesmo, uma metfora (COLLOT, 2013: 36; WALDENFELS, 2009: 122). Joseph Vogl (2007: 82)

    comenta sobre essa remisso de segunda ordem na metfora da ponte, que, inclusive, torna-se em Heidegger (2000:

    154) um ponto central da anlise sobre o ser, o construir e o habitar, e tambm, por que no?, uma metfora da

    existncia humana. 19 Sobre a palavra atravessar, no custa lembrar a etimologia de per-spectiva (espacial!), olhar atravs de, e de

    ek-spectativa (temporal!), olhar para fora. Ver ainda Cauquelin (2007: 36): a perspectiva [...] passagem atravs,

    abertura (per-scapere). 20 Esses jogos etimolgicos no so fortuitos. Voir, avoir e mouvoir so palavras que circulam e se intercambiam

    em Merleau-Ponty (2013).

  • 25

    imediatamente pela paisagem e que tem sua origem no fato de que o contemplador relaciona

    consigo o que est diante de si, incorpora-o de alguma maneira (WEBER, 2010: 192; grifo

    nosso). Em sua conceituao da paisagem, por sinal, Weber (2010: 170) enumera cinco

    caractersticas bsicas: 1) ela compreende uma multiplicidade de fenmenos; 2) abre-se ao

    longe do horizonte; 3) compe um todo, uma formao fechada; 4) suas partes revelam uma

    relao de afinidade geral [Zusammenstimmen]; e 5) a paisagem surge da distncia de um ponto

    de vista. Todos os pontos j foram exaustivamente desdobrados acima, dentro da abordagem

    fenomenolgica. A particularidade de Weber (2010), entretanto, est em sua relao com a

    reflexo filosfica de Georg Simmel (2009), que parte principalmente da experincia pictrica

    da paisagem, ou seja, de um olhar formado por hbitos culturais historicamente determinados.

    Ainda assim, sua visada possui semelhanas com o que aqui se explica, como se ver.

    O ponto de partida de Simmel (2009: 6) que a paisagem no algo dado, mas concebido

    a partir de um ato espiritual do homem, ao mesmo tempo contemplativo e afectivo

    (SIMMEL, 2009: 17). A natureza a ininterrupta parturio e aniquilao das formas, que

    no se decompe em partes discretas, mas a unidade de um todo [...] sem fronteiras

    (SIMMEL, 2009: 5; 6). A paisagem, pelo contrrio, surge justamente de uma demarcao, que

    a transforma num ser-para-si, parcialmente alienado da origem.21 Se, por um lado, o produto

    resultante deve ser considerado como uma unidade fechada em si, por outro, transferido para

    um estrato inteiramente novo, se reabre ento, por assim dizer, de per si vida universal,

    acolhendo o ilimitado nos seus limites inviolados (SIMMEL, 2009: 8), isto : pela estrutura

    do horizonte, a paisagem aponta para o infinito natural do qual proveio.

    O ato pelo qual ocorre essa separao em paisagem tem no trabalho do artista o seu

    modelo mais puro. Trata-se, porm, de um processo que comea na vida emprica, isto , na

    experincia vivida fenomenologicamente, no cotidiano (SIMMEL, 2009: 10), de tal modo que

    [q]uando realmente vemos uma paisagem, e j no uma soma de objectos naturais, temos uma

    obra de arte in statu nascendi (SIMMEL, 2009: 11). A paisagem surge de uma distncia a

    partir da qual o contemplador junta os diferentes fenmenos (ausgebreitetes Nebeneinander)

    num tipo particular de unidade, cujo suporte a Stimmung, a atmosfera, a disposio anmica

    (SIMMEL, 2009: 12-13; SIMMEL, 2016). Entre a Stimmung que interpenetra os objetos e a

    totalidade intuda, no h, entretanto, uma relao de causa e efeito: elas so o nico e mesmo

    ato. A comparao levantada por Simmel (2009: 15) com a leitura de um poema, a cujas

    21 Mais uma vez, a paisagem ligada ao fenmeno da Entfremdung, da alienao no seu sentido mais primitivo de

    tornar alheio, tornar estrangeiro, isto , ser (de) outro.

  • 26

    palavras no se reduz o sentimento lrico (Empfindung), apesar de nelas encontrar sua razo,

    seu motivo. Nesse smile, o pensador no se distancia de Merleau-Ponty (2011: 208), para quem

    o corpo como uma obra de arte, um ser em que no se pode distinguir a expresso do

    expresso.22

    Assim como no se pode decompor a Stimmung em sensaes discretas, a paisagem a ela

    relacionada no se deixaria apreender a partir de seus elementos particulares. Esse pensamento

    encontra em Casey (2002) uma formulao muito parecida. Para ele, o que caracteriza a

    paisagem o que Sartre chama de totalidade destotalizada, quer dizer, algo que, ao passo

    que experimentado como um todo singular, no , ainda assim, redutvel soma de suas

    partes (CASEY, 2002: 6). A paisagem transcende seus elementos como uma atmosfera

    nebulosa, como um ter espalhado sobre o todo. Como continua Casey (2002: 6), ela

    panperceptual, circum-ambiental, apela a todo sensorium corporal humano e, se pode ser

    chamado de um objeto, um objeto de ordem superior. Da sua sublimidade, da tambm a

    dificuldade de obter um isomorfismo mimtico na sua representao.23

    Com essa minuciosa definio da paisagem na experincia fenomenolgica, queremos

    finalizar retomando o conceito de pensamento-paisagem de Collot (2013). Com ele, possvel

    fazer uma (j antes prometida) conexo entre memria e paisagem. Falaremos aqui, ento, de

    uma memria-paisagem e, analogamente, de uma paisagem-memria. Tendo em mente a

    recproca traduo entre temporalidade e espacialidade via estrutura de horizonte, ou melhor, a

    redutibilidade de toda experincia de coexistncia espacial possibilidade de desdobramento

    no tempo e ao pertencimento a uma mesma vaga temporal24, constatamos ainda que a noo do

    limite do horizonte implica uma delimitao, a qual, no presente caso, se d na forma de uma

    seleo. Assim como a paisagem pressupe uma seleo de elementos a serem emoldurados

    pelo todo da Stimmung, uma determinada ordem de coisas que lhe prpria (apud COLLOT,

    2013: 56) como afirma Jean-Pierre Richard sobre a paisagem individual de cada escritor ,

    22 Igualmente prximo de Merleau-Ponty (2011) est o questionamento da relao causa e efeito na experincia.

    Para o filsofo francs, esta no pode ter causas porque ela vivida. O que pode haver so motivos ou razes, isto

    , antecedente[s] que s age[m] por seu sentido (MERLEAU-PONTY, 2011: 348), sentido, por sua vez, que tem

    de ser assumido e validado numa deciso. 23 No por acaso que o grande boom paisagstico no Ocidente maior, inclusive, do que aquele inicial do ps-

    Renascimento se d justamente no perodo do Romantismo, quando as poticas clssicas, pautadas pela imitao

    da natureza, foram suplantadas (CASEY, 2002: 5; CLARK, 1952: 133; COLLOT, 2013: 53). 24 Dissemos que as partes do espao segundo a largura, a altura ou a profundidade no so justapostas, que elas

    coexistem porque esto todas envolvidas no poder nico de nosso corpo sobre o mundo, e essa relao j se

    iluminou quando mostramos que ela era temporal antes de ser espacial. As coisas coexistem no espao porque

    esto presentes ao mesmo sujeito perceptivo e envolvidas na mesma onda temporal (MERLEAU-PONTY, 2011:

    371).

  • 27

    assim tambm a memria seleciona lembranas quando chega a seu estgio declarativo. Se o

    horizonte demarca o fim aberto da paisagem, o esquecimento, seja intencional ou

    contingente, corta o fluxo proustianamente infinito da rememorao. A razo de ser desse limite

    comum a ambas o existir encarnado num ponto de vista, a percepo, que , desde sempre,

    seletiva (COLLOT, 2013: 57). Se tambm Ricoeur (2002) consegue cruzar arquitetura e

    narrativa, espao construdo e tempo condensado, demonstrando sua estrutura comum,

    acreditamos poder ler, na memria de Goethe, as suas paisagens, tanto quanto, nas paisagens,

    a sua rememorao.

    2.2 Breve conceituao histrica da paisagem

    Tentaremos uma reentrada, paralela e complementar anterior, no conceito de paisagem.

    Agora no nos interessa tanto a experincia fenomenolgica, fundada na descrio do modo de

    nosso ser-no-mundo, quanto as experincias histricas que, como dobras, se acumulam sob

    nosso olhar e determinam seus limites, seus elementos, sua sintaxe (CAUQUELIN, 2007: 26).

    O objeto de investigao agora a paisagem enquanto criao reflexiva, representao

    mimtica, principalmente pelas artes plsticas, mas tambm por extenso pela literatura. Se

    a Natureza sempre esteve a, de onde veio nossa ideia de paisagem? Por que o primeiro grande

    boom ocidental da pintura de paisagem ocorreu nos sculos do Renascimento? As respostas

    para essas e outras perguntas a razo do breve esboo genealgico que se segue.

    A condio fundamental para o surgimento da representao da paisagem e, portanto,

    para a sua prpria conceituao, o fenmeno da alienao da Natureza. Como os tericos no

    cansam de insistir, s mediante um afastamento, uma distncia adequada contemplao do

    todo pelo olhar, pode o conjunto dos elementos geogrficos tomar a forma de uma paisagem.

    Falamos anteriormente, dentro da perspectiva dos fenomenlogos, da posio ereta humana e

    do aparecimento do horizonte. Aqui, porm, por um vis histrico-sociolgico, temos de pensar

    numa distncia como alienao (Entfremdung), i.e., num sentimento humano de estranhamento

    em relao vida conjunta com a Natureza. por isso que o historiador da arte Heinrich

    Ltzeler (1950: 217), num texto importante para a crtica alem, afirma de maneira categrica:

    Quem est na Natureza no pinta paisagens. Um campons, que vive mergulhado nos ritmos

    de seu Umwelt e para o qual as coisas naturais so ou teis conservao ou perigosas e

    selvagens, no pode experimentar o gozo paisagstico. Sua preocupao no se expande para o

    desinteresse do belo ou para a racionalidade sublime para nos referirmos nomenclatura

  • 28

    esttica de Kant (2016) , mas permanece nos limites da sobrevivncia e da dependncia.25

    Como escreveu Kenneth Clark (1952: 2), os trabalhadores da agricultura hoje em dia so quase

    a nica classe da comunidade que no se entusiasma com a beleza natural.

    Isso significa que a paisagem uma experincia citadina, uma criao da urbanidade

    (WEBER, 2010: 179). Uma lista dos grandes pintores desse gnero, da Renascena at hoje,

    torna isso bem claro. Ltzeler (1950: 217) enumera: Drer e Breughel, Giorgione, Ticiano e

    Tintoretto, Claude Lorrain e Nicolas Poussin foram habitantes de cidade, complementando a

    lista com a informao de que a pintura holandesa de paisagem do sculo XVII surge nas

    cidades para seus habitantes. Somente l possvel que, distante fsica e sociologicamente da

    Natureza, o sujeito moderno sinta uma nostalgia pelo retorno ao seio (por assim dizer) materno

    do natural. Essa diferena fundamental e foi bem captada por Friedrich Schiller (1991: 56)

    quando este ops a vivncia dos antigos dos modernos: Eles sentiam naturalmente; ns

    outros sentimos o natural. Para que se descortine a paisagem, a conexo original do campons,

    do pastor e do poeta ingnuo para os quais a Natureza se apresenta na condio de parceiro

    com o qual se trabalha e luta (BHME, 1985: 29) tem de dar lugar a uma separao, prpria

    do poeta sentimental, pela qual a Natureza se torna um Outro, um Estranho, abrindo assim a

    possibilidade de uma demanda: o poeta ou natureza ou a buscar (SCHILLER, 1991: 60).

    s na cidade que aparecem tambm o processo de produo e o mercado necessrios a

    esse distanciamento. Ali, como analisa Weber (2010: 57; 180) a partir de formulaes de Hegel,

    o producente determina seu produto o material, a forma, etc. e no est sujeito a foras

    naturais e fortuitas, como por exemplo o campons. A Natureza se torna, assim, matria-prima

    modelvel, objeto manipulvel inclusive, esteticamente. no ambiente urbano igualmente

    onde o trabalho e o mercado, pelo princpio da individualizao, se dividem em especialidades,

    onde se encontram os conhecedores e amantes da arte, que precisam [dos artistas] para suas

    pinturas diferenciadas (LTZELER, 1950: 217). A importncia desses fenmenos foi

    ressaltada num texto-chave de Ernst H. Gombrich (1990), apoiado, por sua vez, na pesquisa de

    M. J. Friedlnder: o artista [...] no mais executa encomendas variadas feitas por um patrono

    especfico, mas obras para um mercado de consumidores annimos, na esperana de que seus

    25 O prprio Kant (2016: 114) deixa isso claro na seguinte passagem: Na verdade aquilo que ns, preparados pela

    cultura, chamamos sublime, sem desenvolvimento de ideias morais, apresentar-se- ao homem inculto

    simplesmente de um modo terrificante. Ele ver, nas demonstraes de violncia da natureza em sua destruio e

    na grande medida de seu poder, contra o qual o seu anulado, puro sofrimento, perigo e privao, que envolveria

    o homem que fosse banido para l. Assim, o bom campons savoiano, alis, dotado de bom-senso (como narra o

    Sr. de Saussure), sem hesitar chamava de loucos todos os amantes das geleiras. Veremos melhor, no captulo 3,

    a importncia da distncia segura na experincia do sublime.

  • 29

    produtos obtenham a aprovao do pblico, sendo essa competio aberta o estmulo para a

    profissionalizao do artista e o desenvolvimento de novas especialidades, entre as quais a

    do gnero de paisagem (GOMBRICH, 1990: 143-144).

    No contexto europeu da dissoluo do sistema feudal, do desenvolvimento da sociedade

    de corte e da expanso do capitalismo, surge o projeto colonizador do mundo, de dominao

    tcnico-cientfica da Natureza e de outros povos, estudado, entre outros, pelos irmos Hartmut

    e Gernot Bhme (1985). Atravs dessa nova relao com o espao, o homem moderno

    primeiramente, o barroco, mas depois o iluminista procura reduzir tudo ao controle racional,

    domesticando a natureza e disciplinando o corpo sensitivo (Leib) em corpo anatmico (Krper),

    o contato humano em etiqueta. Nos sculos XVI e XVII, desenvolvem-se os geomtricos

    jardins franceses, as colees e os museus de naturalia, e tambm o prprio conceito de

    paisagem, que, do significado original de regio ou provncia de um pas, passa a designar um

    gnero pictrico autnomo (BHME, 1985: 45-46).26 Contemporaneamente a Francis Bacon e

    Ren Descartes, os gegrafos europeus do total impulso conquista cientfica do espao

    atravs da cartografia, que ento, pela constante melhora das tcnicas de medida e projeo,

    tinha o valor de mtodo exato de descrio, o qual no deixava lugar para segredos, como

    explica Tanja Michalsky (2002: 437-438). A aposio dos nomes dos filsofos e dos cartgrafos

    no fortuita: eles representam como tambm os pintores de paisagem aquilo que Martin

    Heidegger (2002), num texto sobre a cincia moderna, classificou de tempo da imagem do

    mundo (Weltbild). O processo fundamental da modernidade a conquista do mundo como

    imagem (HEIDEGGER, 2002: 117), isto , a representao (Vor-stellung) como um trazer

    para diante de si o que-est-perante [das Vorhandene] enquanto algo contraposto

    [Entgegenstehendes] e remet-lo a si, ao que representa [den Vorstellenden] (HEIDEGGER,

    1977: 91; HEIDEGGER, 2002: 114). E essa repraesentatio pressupe que o homem seja

    26 Esse ponto problemtico, pois a origem da palavra e, portanto, do conceito parece ser dupla e envolta em

    contradies. Nas lnguas romnicas, h paisagem, paesaggio (it.), paysage (fr.), paisaje (esp.), formadas a partir

    da base pas e surgidas no sculo XVI para designar, inicialmente, um quadro com paisagem, mas logo em seguida

    com a acepo de uma regio abarcada pelo olhar (COLLOT, 2013: 49). Nas germnicas, h Landschaft (al.),

    landskip/ landscape (ing.), landschap (hol.), de origem medieval, cujo significado original o das palavras latinas

    regio ou provncia (v. GRIMM, 2016), tendo adquirido na Renascena o sentido de representao artstica de

    uma regio (WEBER, 2010: 167). Gombrich (1990: 144), contrapondo tambm Norte e Sul, fala que foi em

    Veneza, e no em Anturpia, que pela primeira vez aplicou-se o termo paisagem a uma pintura especfica,

    citando, com exemplo, os usos de tavolette de paesi e paesetto em textos do incio do sculo XVI. Preferimos,

    nesse sentido, a opinio de Jean-Marc Besse (2014a: 21), que ope a paisagem geogrfico-pictrica do XVI

    tipicamente nrdica e designadora do espao objetivo da existncia, da regio corogrfica paisagem esttica

    do XVII viso abarcada por um sujeito e formulada magistralmente nas pinturas dos franceses Poussin e

    Lorrain. Complementemos essa viso com a posio de Desportes (2005: 60; 66), qual retornaremos em breve:

    a palavra francesa paysage, no sculo XVIII, passa da designao de um gnero pictrico para a expresso da

    vivncia subjetiva de um local. No se trata aqui de uma volta ao sentido de regio ou provincia, mas de uma nova

    experincia da natureza: a esttico-sentimentalista, de inspirao rousseaniana.

  • 30

    subjectum, isto , fundamento do todo, razo ltima qual se refere a prpria entidade do ente.27

    Individualismo e antropocentrismo.28

    A ligao [Verbundenheit] com a natureza impossibilidade a pintura de paisagem, o

    encontro [Begegnung] com ela a possibilita, resume Ltzeler (1950: 218), utilizando-se para

    isso de um termo cognato do algo contraposto heideggeriano: Begegnung, o en-contrar, o ir-

    de-encontro-a. A tcnica e a cincia modernas so, por um lado, aquilo que reduz e reifica a

    natureza, mas, por outro, aquilo que conforme demonstrado por Schiller (1991) no conceito

    da reflexividade sentimental abre o horizonte de um novo contato, marcado pela saudade:

    Onde muitos se comprimem entre os muros da cidade, surge o desejo de fugir da estreiteza

    [...]. A natureza se torna refgio, lugar no qual o homem pode se encontrar (WEBER, 2010:

    181). Num contramovimento s tendncias objetificantes e dominadoras mas, ironicamente,

    sendo tambm expresso da mesma relao de estranheza [Fremdheit] (BHME, 1985: 45)

    , a pintura de paisagem se levanta como um corretivo, tentando combater a tendncia cientfica

    de anlise e isolamento com sua intuio (Anschauung) totalizante, como defende Weber (2010:

    192), ou para falar com Michalsky (2002: 439) opondo-se conquista cartogrfica como

    seu complemento, ao se ocupar com a apario [Erscheinung] do mundo para o homem, e no

    com sua mensurabilidade abstrata. Para todos esses tericos, que seguem de perto a tese da

    artializao, a paisagem observada e pintada o caminho subjetivo, individual, de acesso ao

    mundo.

    Assim, chegamos definitivamente ao tpico da pintura paisagstica. Precisamos notar,

    antes de tudo, que sua apario no Ocidente no sculo XV se deve a uma nova ideia de espao

    e uma nova percepo da luz (CLARK, 1952: 14). Na passagem da Idade Mdia para o perodo

    renascentista, especificamente na transformao do que Clark (1952) chama de paisagem de

    smbolos para a nova paisagem dos fatos, os artistas passam, no que se refere ao nexo dos

    elementos pictricos, de sua unio pela superfcie do suporte fsico para uma mediante o espao

    fechado (enclosed space). A nova organizao espacial se d, no caso dos naturalistas

    holandeses, como um produto secundrio da percepo da luz, isto , por via emprica, e, no

    caso dos italianos, por meio da perspectiva cientfica, inventada por Brunellesco e levada a

    27 Sobre isso, ver Weber (2010: 185): A determinao das coisas tornou-se incerta agora. Elas no se encaixam

    mais numa moldura vlida objetivamente e no deixam entender de si mesmas o que querem dizer. Est, assim,

    no ser humano o poder de inventar [sich zurecht zu legen] o sentido que elas tm. 28 Sobre esse projeto de dominao, valeria a pena notar ainda que o segundo grande boom paisagstico no fim do

    sculo XVIII e no incio do XIX contemporneo no s das trs Crticas de Immanuel Kant, mas tambm do

    panptico de Jeremy Bentham. A paisagem no deixa de ser um anlogo natural para a sociedade disciplinar do

    XVIII, assim como o sublime kantiano , segundo Hartmut Bhme (2004), uma tentativa de a razo se afirmar

    ante a face rebelde da natureza.

  • 31

    cabo por Piero della Francesca (CLARK, 1952: 20). Da perspectiva semntica das pinturas

    medievais, chega-se ao espao geomtrico formado pela interao de um olhar com um ponto

    de fuga no horizonte (WEBER, 2010: 189-190). Esse novo imperativo da perspectiva, cujo

    modelo obtido pela estrutura da janela, subtrai a natureza do poder do lgos discursivo isto

    , do sentido mitolgico, histrico etc. e coloca como tarefa para o artista mostrar o que se

    v, iniciando assim o longo processo da construo de uma autonomia da pintura, de seu

    distanciamento do relato (CAUQUELIN, 2007: 81; 87). Da Fte Champtre (1508) de

    Giorgione, pelos quadros de Claude Lorrain, at chegar ao Monge Beira-mar (1808-1810) de

    Caspar David Friedrich, constri-se uma narrativa que empurra o divino e o humano objetos

    centrais das pinturas medieval e ainda renascentista cada vez mais para a margem.

    Limitada no princpio a ser fundo ou cenrio, aos poucos a paisagem se liberta e toma a

    frente do quadro, at se firmar como um tema autnomo e um gnero prprio. Assim, nas

    palavras de Gombrich (1990: 142), as paisagens naturalistas em segundo plano engoliam, por

    assim dizer, o primeiro plano, at chegar ao ponto em que [...] o tema religioso ou mitolgico

    se reduz a um mero pretexto. Esse recalcamento do elemento lgico-discursivo em proveito

    do natural por si mesmo o que constata o crtico Altcappenberg (1986: 8) quando fala de um

    encolhimento do figural, citando, em seu favor, o texto de Goethe (2000d: 220) sobre a

    histria da paisagem: Essas regies circunstantes prevaleceram [berhandnehmen] cada vez

    mais no futuro, comprimiram as figuras rumo estreiteza e pequenez, at que, por fim, estas

    se contraram naquilo que chamamos de Staffage. Paulatinamente, da Renascena at ao

    Romantismo, caminha-se da apresentao da natureza como cenrio para um acontecimento

    como ainda em Poussin e Lorrain, dois artistas admirados por Goethe rumo autonomizao

    do olhar: a narrativa, ento, no mais figurada, pintada no quadro, mas, ao contrrio, quer ser

    figurante, isto , se tornar o prprio vagar contemplativo sobre o quadro-mundo. assim que

    parece interpretar Anne Cauquelin (2007: 91) a Fte de Giorgione: [o] tema do quadro bem

    que poderia ser a prpria pintura.29

    Esse caminho futuro, por assim dizer, da pintura de paisagem a perspectiva como

    abertura no s do horizonte, mas tambm de uma prpria auto-tematizao da natureza pela

    viso humana. Sua ligao com o passado se mostra muito claramente na linguagem que usa: a

    29 Esse percurso histrico da pintura paisagstica compreendido por Ltzeler (1950: 215) em cinco fases, nas

    quais se v tambm a paulatina autofigurao da natureza: 1) Natureza como casual, mero acidente ou substrato

    inevitvel aos eventos representados; 2) Natureza como existncia provisria margem do acontecimento central;

    3) surgimento da profundidade espacial e abertura para a vagncia do olhar na pintura nrdica; 4) recuo da figura

    humana e sua reduo a Staffage; 5) aparecimento da paisagem autnoma, enquanto imagem da vida da Terra,

    no dizer de C. G. Carus.

  • 32

    doutrina dos quatro elementos da filosofia pr-socrtica. Cauquelin (2007: 146) dedica um

    captulo de seu trabalho para explorar essa sobrevivncia que compe, segundo a autora, uma

    gramtica da paisagem. Os elementos forneceriam no s os vetores de nosso comportamento

    o alto e o baixo, o horizontal e a vertical , mas tambm os opostos com os quais devemos

    contar: o quente e o frio, a sombra e a claridade, o mido e o seco, sendo, por isso, essenciais

    imagem paisagstica, que se fundamenta justamente sobre esses eixos e categorias

    (CAUQUELIN, 2007: 144). A mesma tese defende Hartmut Bhme (s.d.) quando elabora uma

    pequena esttica da paisagem a partir de trs tpicos a nuvem, a gua e a pedra , bem como

    quando pensa o ptreo como fonte do sublime a partir da tradio romntica (BHME, 2004).

    So os quatro elementos e suas caractersticas ou cinco, se incluirmos o ter/ a luz (BHME,

    s.d.: 6) que se combinam esquematicamente para conformar os mais variados quadros, do

    Paraso (ca. 1620) de Hendrick de Clerck ao Mar de Gelo (1824) de Caspar David. Veremos

    depois alguns exemplos disso nas paisagens escritas de Goethe.30

    Nesse curto percurso histrico, tentamos esboar as razes modernas da paisagem. Apesar

    de sua origem poder remontar subida do Monte Ventoux por Petrarca (1336) ou at mesmo,

    como sugerem alguns e como veremos na prxima seo, Antiguidade clssica,

    principalmente no contexto da descoberta do mundo e da tentativa de sua dominao racional

    que devemos situar a emergncia de uma concepo de paisagem operacionalizada em nosso

    trabalho. l, no sculo XVI, entre os corgrafos e cartgrafos holandeses, que essa nova forma

    de representao pictrica e literria vem luz, tomando como sua tarefa evidencia[r] aquilo

    de que trata a geografia, ou seja, a experincia sensvel da Terra como espao aberto, espao a

    ser percorrido e descoberto (BESSE, 2014a: 40). Comunicar o mundo e o espao, mas sempre

    falando do homem, do seu lugar, dos seus deslocamentos. Mesmo quando se torna autnoma,

    dele seu contraposto (Gegenber) de que trata a paisagem (LTZELER, 1950: 216), e de

    seu encontrar-se (Befindlichkeit).

    2.3 Paisagem, trnsito, narrativa

    O que fizemos at aqui foi tentar delimitar, pela fenomenologia e pelos estudos histricos

    da arte, o conceito de paisagem, evidentemente moderno. Faremos agora uma pesquisa da

    relao dessa vivncia e de sua expresso com a noo de viagem e de deslocamento narrativo,

    30 Remetemos o leitor tambm s pginas 22 e 23 dessa dissertao, em que se comenta sobre o mesmo assunto a

    partir de Edward Casey (2011).

  • 33

    em preparao para o prximo captulo que se debruar sobre as marcas do tempo do trnsito

    nas descries paisagsticas. Comecemos, porm, com um recuo no tempo.

    No seu texto sobre o crontopo, Mikhail Bakhtin (2010: 260), comentando acerca das

    autobiografias da Antiguidade, afirma que trs modificaes especficas das formas pblico-

    retricas [ento] existentes foram responsveis pelo processo gradual de privatizao do

    homem e pelo consequente surgimento de uma autoconscincia solitria. A vida ntima

    encontra, no gnero epistolar principalmente, um espao de expresso menos regido pela

    conveno, e certas categorias biogrficas, antes ligadas imagem do homem pblico, passam

    para o plano privado. Nesse novo mundo, a Natureza tambm se metamorfoseia. Nasce uma

    paisagem, isto , a natureza como horizonte (objeto de viso) e ambiente (fundo, cenrio) do

    homem totalmente privado, solitrio e passivo, afirma Bakhtin (2010: 261). Essa no a

    chamada paisagem ideal, que comea em Homero, atinge seus expoentes na Siclia de Tecrito

    e na Arcdia de Virglio, e se resume no tpos do locus amoenus: uma rvore ou um bosque;

    uma fonte borbulhante ou o frescor de um regato; a maciez da relva ou o refgio de uma gruta

    (CURTIUS, 2013: 244). Nessa nova literatura do homem privado, a natureza penetra por

    fragmentos pitorescos nas horas de passeio, de descanso, nos momentos de um vislumbre

    fortuito sobre uma paisagem (BAKHTIN, 2010: 261; grifo nosso). A paisagem algo que se

    descortina a quem anda sem buscar e acaba por encontrar. a natureza que surge no otium da

    vida campestre, no passeio distrado pelo ager, no descanso afastado do negotium urbano.31

    Exemplo dessa modificao privada so, para Bakhtin (2010), as cartas de Ccero a tico.

    As cartas de Sneca a Luclio, ele as inclui como modelo do tipo estoico de biografia, mais

    voltado consolao pela filosofia. Michel Foucault (2006: 158), que ope, por sua vez, estas

    epstolas senequianas s de Ccero, cita um trecho da carta 55 em que o movimento do passeio

    conduz Sneca da impresso de paisagem meditao que uma forma da vida ociosa.

    Revela-se, tambm nesse estoico, a estrutura acima descrita:

    Acabei de chegar de um passeio em liteira [gestatio], to cansado como viria se tivesse

    feito a p todo o trajecto. Afinal, tambm cansa andar s costas dos outros, e talvez

    ainda canse mesmo mais por ser antinatural: a natureza no nos deu os ps para

    andarmos, assim como nos deu os olhos para vermos por ns prprios? [...] [S]entia

    necessidade de dar algum movimento ao corpo [...]. E por isso mesmo fui prolongando

    um passeio que a prpria paisagem tornava convidativo [invitante ipso litore]: entre

    Cumas e a vila [villa] de Servlio Vtia a costa faz uma curva e forma uma estreita

    passagem [iter], como que um istmo limitado a um lado pelo mar e do outro pelo lago.

    [...] Segundo o meu hbito [ex consuetudine] ia procurando ao redor [circumspicere]

    alguma coisa que suscitasse qualquer meditao proveitosa. Acabei por dar com os

    31 A natureza como refgio do mundo agitado do trabalho, como um tesouro da paz, da beleza e da felicidade,

    desde a Antiguidade um componente do sentimento da vida urbana (WEBER, 2010: 182).

  • 34

    olhos na vila que em tempos foi propriedade de Vtia (SNECA, 2004: 187;

    SNECA, 1979: 364-366).32

    O mar e o lago como o elemento aquoso, o caminho da praia arenosa tornada espessa

    pela tempestade recente como o elemento rochoso, a villa ao fundo no ponto de fuga, como

    presena humana e smbolo da ociosidade: eis um simples quadro de paisagem. Esta surge a

    partir do passeio no caso, por transporte em liteira , como um convite da Natureza

    circunstante ao olhar de quem viaja. pelos ps que caminham que os olhos podem ver, no

    processo de movimento [que] a paisagem se revela e se desdobra diante do observador [...], e o

    ato de se mover pode ser to importante quanto o de chegar (TILLEY, 1994: 31). A viagem

    condio para o aparecimento da paisagem.

    As reflexes de Michel de Certeau (1998) podem ajudar a analisar as implicaes dessa

    afirmao. A proposta de sua pesquisa observar, nas prticas cotidianas, formas de resistncia

    do homem ordinrio moderno s ordens impostas por estruturas como o planejamento estatal

    e a economia capitalista. Sua visada multifacetada, mas inclui tambm uma comparao

    lingustica: prescrio gramatical da ordem corresponde um desvio ou torneio retrico do

    indivduo e de grupos. Seria, assim, possvel fazer uma leitura do texto social a partir das tticas

    microscpicas e invisveis de subverso, a partir da produo annima do consumidor, que

    produtor em sua prtica, na maneira de seu consumo. Nessa anlise das artes de fazer, como

    afirma o subttulo de A Inveno do Cotidiano, h uma parte dedicada s prticas de espao e,

    naturalmente, viagem.

    De Certeau (1998: 169ss.) parte de uma paisagem: a do World Trade Center. De l de

    cima, a cidade se oferece como panorama e mapa, como ordem e planejamento urbansticos.33

    O corpo se encontra alienado do cho da terra firme como a habitao adequada ao homem

    (BLUMENBERG, 1979: 14) , tendo trocado a opaca mobilidade l de baixo pela transparncia

    do texto visto de cima. Essa posio sublime (porque superior), condio para o surgimento

    de uma imagem esttica/ exttica de paisagem, implica uma distncia da vida cotidiana, um

    32 O tradutor omite, no perodo seguinte, uma interessante informao de Sneca. A verso portuguesa diz, sendo

    [a]ntigo pretor, podre de rico, Vtia aqui se instalou at uma extrema velhice e tanto bastou para ser considerado

    um homem feliz (SNECA, 2004: 187-188). O original, entretanto, afirma que [i]n hac ille praetorius dives,

    nulla alia re quam otio notus, consenuit et ob hoc unum felix habebatur (SENECA, 1979: 366), isto , que Vtia

    devia sua fama acima de tudo ao seu cio, cujo signo maior era, obviamente, sua vida rural na villa. Otium, oposto

    do negotium. 33 A pintura de paisagem e o mapa so formas alternativas mas altamente compatveis de representar a paisagem

    (CASEY, 2002: XV). Alm disso, diz Tilley (1994: 24) que um interesse pela paisagem um de controle patrcio

    manifestado na pintura, na escrita e no jardim paisagsticos e na arquitetura. O controle do territrio pela exatido

    do registro , em primeiro lugar, prerrogativa do mapa.

  • 35

    afastamento da caminhada contingente e fortuita pelas ruas. Para ver o horizonte, h que se

    viajar: seja ao Monte Ventoux, como Petrarca, seja ao 110 andar, como De Certeau.

    A viso de paisagem, entretanto, no se limita viso panptica. O trem a revela de

    maneira exemplar. Se, do alto do prdio, a cidade se oferece como um todo organizado,

    controlado por cartgrafos e urbanistas, tambm o trem possui, como condio de circulao,

    determinada ordem: poltronas, vages, estaes, etc. Como passagem entre lugares, porm, ele

    um no-lugar, que permite, similarmente ponte, a [t]ransgresso do limite, [...] a traio

    de uma ordem (DE CERTEAU, 1998: 215). Esse carte