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Afrânio José Fonseca Nardy Paisagens Culturais e Substantivação Democrático- Participativa do Princípio da Precaução no Procedimento de Estudo de Impacto Ambiental: Uma Abordagem Exploratória da Relação Transdisciplinar entre Geografia e Direito Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Geografia – Tratamento da Informação Espacial, como requisito parcial à obtenção do Título de Mestre. Área de Concentração: Análise Espacial Orientador: Prof. Dr. Oswaldo Bueno Amorim Filho PUC-MG Belo Horizonte Novembro – 2002

Paisagens Culturais e Substantivação Democrático ... · Paisagens Culturais e Substantivação ... o abandono do dualismo entre esquema conceitual e ... Breve descrição do procedimento

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Afrânio José Fonseca Nardy

Paisagens Culturais e Substantivação Democrático-Participativa do Princípio da Precaução no

Procedimento de Estudo de Impacto Ambiental: Uma Abordagem Exploratória da Relação Transdisciplinar

entre Geografia e Direito

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação

em Geografia – Tratamento da Informação Espacial,

como requisito parcial à obtenção do Título de Mestre.

Área de Concentração: Análise Espacial Orientador: Prof. Dr. Oswaldo Bueno Amorim Filho

PUC-MG Belo Horizonte

Novembro – 2002

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Nardy, Afrânio José Fonseca N224p Paisagens culturais e substantivação democrático-participativa do princípio da precaução no procedimento de estudo de impacto ambiental : uma abordagem exploratória da relação transdiscipli- nar entre geografia e direito / Afrânio José Fonseca Nardy. – 2002. Orientador: Oswaldo Bueno Amorim Filho Dissertação (mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Geografia – Análise Espacial Inclui bibliografia 1. Geografia – Teses 2. Paisagens – Aspectos ambientais 3. Espaço geográfico 4. Direito ambiental – Brasil 5. Impacto ambiental I. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais II. Título CDU: 911.53:349.6 349.6:911.53

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À Bárbara Bela, misto de força e ternura, que dia a dia reforça minha convicção de

que este mundo ‘é incompreensível, mas é bom’.

A meus pais, que sempre me ensinaram que não há Justiça se o direito, sobretudo o

direito dos excluídos, “se emaranhar na Lei, como um peixe se embaraça

na rede de pescar”.

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AGRADECIMENTOS

Quando um trabalho de pesquisa se entrelaça com as angústias pessoais

do pesquisador, ao seu final, há muitas pessoas que devem ser lembradas, para

agradecer e, ao mesmo tempo, pedir desculpas.

Apesar de ter prometido a Bárbara não fazê-lo, não posso deixar de

agradecer-lhe, bem como a meus pais, Helena e Afrânio, a meus irmãos, Liliana e

Eduardo, e ao Zé, Marisa, Taís e Alexandre, a paciência pelas “horas de convívio

roubadas”, o apoio incondicional e as orações nas horas mais difíceis.

A meu orientador, Professor Dr. Oswaldo Bueno Amorim Filho, com quem

aprendi que o espírito geográfico é, ao mesmo tempo, dócil e perspicaz, que me

ensinou que é preciso calar, para escutar “as pessoas, os animais, as pedras, as

plantas e o vento”, e compreender que “todos os conhecimentos têm uma profunda

sedução”, não tenho palavras para agradecer o estímulo para a elaboração desta

pesquisa, os diversos apontamentos e correções de rumo, a infinita paciência com

minhas inquietudes de “chinês recém-chegado à França” e as muitas lições da

Geografia e da vida, destiladas sempre com um cândido sorriso, em nossos muitos

encontros.

Da mesma forma, fica uma dívida impagável de gratidão com o Professor

Dr. João Francisco de Abreu e com os demais professores e servidores que

resolveram acolher, no ninho interdisciplinar do Programa de Tratamento da

Informação Espacial da PUCMINAS, este filhote de uma ave desengonçada e feia

que é o jurista.

Com Professora Juliane Fernandes Queiroz (NPJ/PUCMINAS) e o

Professor Alessandro Moreira Lima (IES/FUNCEC), tenho também uma grande

dívida, pela compreensão com os muitos sacrifícios necessários à conciliação das

atividades de docente e mestrando.

Agradeço ainda “ao amigo e companheiro de luta”, Professor Dr. José

Adércio Leite Sampaio, e a toda a equipe da Procuradoria da República em Minas

Gerais envolvida na tutela do meio ambiente e do patrimônio histórico e cultural

(Cláudia, Célia, Bernadete, Sônia, Ludmila, Patrícia, Carlos e servidores da SOTC)

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que, diuturnamente, muitas vezes no mais completo anonimato, se esforçam para

fazer deste mundo um lugar melhor para se viver. Foram incontáveis as pequenas e

grandes contribuições para este trabalho extraídas de tão intenso convívio. Não

poderia, entretanto, deixar de destacar de toda essa equipe do Parquet Federal,

minha amiga Ana Flávia Moreira Santos. Devo a seu olhar antropológico, a

advertência de que sempre temos que “deixar um copo para saciar a sede daqueles

que foram abandonados pela linguagem [oficial]”.

Não poderia deixar de registrar também meus agradecimentos pelos

estímulos que recebi, para realização deste trabalho, de muitos de meus amigos, de

um modo ou de outro, envolvidos com a afirmação de um estilo verdadeiramente

democrático-participativo de adoção de medidas de política socioambiental. Destaco,

em particular, as palavras de incentivo da Professora Andréa Zhouri, do

Departamento de Sociologia da UFMG, e do Professor Chris Wold, da Northwestern

School of Law/Lewis & Clark College.

Por fim, gostaria de fazer uma menção especial a todos os membros das

comunidades atingidas pela UHE Irapé com os quais pude, mesmo efemeramente,

travar contato na Procuradoria da República em Minas Gerais. Posso afirmar, sem

sombra de dúvidas, que meus horizontes geográficos nunca mais serão os mesmos,

depois que neles pude avistar paisagens culturais assim tão belas e fortes!

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It is only when we integrate our different kinds of knowledge that the

people without history emerge as actors in their own right. When we parcel them out

among several disciplines, we render them invisible.

Eric R. Wolf

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SUMÁRIO

BREVE INTRODUÇÃO..................................................................................

Capítulo I – A VALORIZAÇÃO EPISTEMOLÓGICA DO ESPAÇO VIVIDO

NA GEOGRAFIA CULTURAL PÓS-FUNCIONALISTA............

1.1. Nova Geografia, funcionalismo e a explicitação teórico-metodológica

do pensamento geográfico.....................................................................

1.1.1. Antecedentes próximos da explicitação teórico-metodológica do

pensamento geográfico: os primeiros tempos da Nova Geografia......

1.1.2. Os avanços do processo de teorização, o surgimento de uma

epistemologia geográfica explícita e a funcionalização do

pensamento geográfico.......................................................................

1.1.3. Os efeitos terapêuticos da Nova Geografia.........................................

1.2. O papel das teorias científicas revisitado: críticas às pressuposições

epistêmicas da Nova Geografia.............................................................

1.2.1. “A indução não existe”: o racionalismo crítico de Popper e o “novo

espírito científico” de Bachelard...........................................................

1.2.2. As teorias científicas como estruturas: as “revoluções científicas” de

Kuhn e os “programas de pesquisa” de Lakatos.................................

1.2.3. A impossibilidade de justificação autônoma do conhecimento

científico, o abandono do dualismo entre esquema conceitual e

conteúdo empírico, e a relação intrínseca entre ciência e

democracia..........................................................................................

1.2.4. O surgimento de uma nova epistemologia geográfica fundada na

inclusão das Geografias vernaculares nos jogos conversacionais da

Geografia acadêmica...........................................................................

1.3. A última terrae incognitae.......................................................................

1.3.1. O espaço como topos e como chôra....................................................

1.3.2. Limites e desafios impostos ao estudo do espaço vivido pela

racionalidade cognitivo-instrumental e pelo “fenômeno urbano”.........

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1.3.3. As estratégias para reconciliação da atividade geográfica com o

espaço vivido sugeridas pela Geografia Cultural pós-funcionalista.....

Capítulo II – “GEOJURISPRUDÊNCIA”: UM NOVO OLHAR SOBRE AS

RELAÇÕES ENTRE O ESPAÇO E O DIREITO.....................

2.1. As perspectivas abertas pelo estudo das paisagens culturais para a

renovação do diálogo entre a Geografia e o Direito..............................

2.1.1. A origem comum das práticas significantes do discurso jurídico e da

atividade geográfica.............................................................................

2.1.2. A conexão entre geograficidade e juridicidade que desponta do

sentido substantivo das paisagens culturais........................................

2.1.3. Construindo os alicerces de uma ponte transdisciplinar entre

Geografia e Direito: a relação complementar entre a afirmação do

princípio da precaução e o resgate do espaço como chora................

2.2. A recuperação da geograficidade dos grupos sociais como

pressuposto de plena afirmação do princípio da precaução...............

2.2.1. As variantes de sentido do princípio da precaução encontradas no

processo de sua adoção como linha mestra do direito ambiental.......

2.2.1.1. Primeiras formulações......................................................................

2.2.1.2. Mediação política e atenuação do princípio da precaução: o

exemplo da Convenção-Quadro sobre Mudanças Climáticas...........

2.2.1.3. Mediação jurídico-constitucional e atenuação do princípio da

precaução: o exemplo norte-americano............................................

2.2.1.4. A interpenetração entre a atenuação do princípio da precaução e

os contornos da política de riscos nas sociedades pós-industriais...

2.2.3. Geograficidade e substantivação democrático-participativa do

princípio da precaução......................................................................

2.2.3.1. Perspectivas geojurisprudenciais para uma nova modelagem do

princípio da precaução: uma proposta à luz do direito ambiental

brasileiro............................................................................................

2.2.3.2. As bases geojurisprudenciais da democracia socioambiental e seu

papel na interlocução transdisciplinar entre Geografia e Direito.......

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Capítulo III – ANOTAÇÕES PARA UMA EXPLORAÇÃO

GEOJURISPRUDENCIAL DO DIREITO AMBIENTAL

BRASILEIRO: GEOGRAFICIDADE, HEURÍSTICA DOS

RISCOS SOCIOAMBIENTAIS E AFIRMAÇÃO DO

PRINCÍPIO DA PRECAUÇÃO NO PROCEDIMENTO DE

ESTUDO DE IMPACTO AMBIENTAL.......................................

3.1. Breve descrição do procedimento de estudo de impacto ambiental.......

3.1.1. Estrutura metodológica das avaliações de impacto ambiental e sua

inserção no licenciamento ambiental de obras ou atividades

modificadoras do meio ambiente.........................................................

3.1.2. O regulamento brasileiro do procedimento de estudo de impacto

ambiental.............................................................................................

3.2. Os limites à reconstrução dialógica de paisagens culturais existentes

no procedimento de estudo de impacto ambiental................................

3.2.1. A restrição decorrente da inserção do EIA no procedimento de

licenciamento ambiental......................................................................

3.2.2. As restrições metodológicas................................................................

3.2.2.1. O distanciamento entre o projeto avaliado e a realidade regional

promovido pela segmentação metodológica do EIA.......................

3.2.2.2. Compartimentação do diagnóstico ambiental em meios de

avaliação estanques e fragmentação da análise regional pela

adoção de técnicas merológicas.....................................................

3.2.3. Procurando contornar as restrições metodológicas: a opção por

técnicas holísticas................................................................................

3.2.3.1. O papel dos estudos integrados do meio ambiente..........................

3.2.3.2. A contribuição fundamental dos Sistemas de Informações

Geográficas.....................................................................................

3.2.4. Limites geojurisprudenciais ao reconhecimento de comunidades

geoinformacionais e política de verdade no procedimento de estudo

de impacto ambiental...........................................................................

3.3. Comprometimentos geoinformacionais e definição de impactos

socioambientais no licenciamento prévio da UHE Irapé........................

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CONSIDERAÇÕES FINAIS...........................................................................

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...............................................................

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RESUMO

Para muitos, Geografia e Direito tem tantos pontos de contato como a Astronomia e a Neurologia. De fato, uma análise retrospectiva demonstra que as duas disciplinas sempre mantiveram uma separação relativamente rígida entre suas respectivas orientações teórico-metodológicas. Essa separação reflete-se não apenas na escassez de literatura específica sobre seus pontos de contato, mas também na falta de um vocabulário teorético e analítico comum, bem como na existência de estruturas disciplinares e institucionais nos dois campos que apresentam uma natureza aparentemente antitética, tornando-os mutuamente excludentes. O presente trabalho pretende, contudo, sugerir que bases para uma interlocução transdisciplinar entre Geografia e Direito podem ser alcançadas, a partir do reconhecimento de uma profunda interconexão entre os fatores de produção do espaço e do direito, facilitado, de um lado, pelas novas perspectivas abertas ao estudo da paisagem pela Geografia Cultural pós-funcionalista e, de outro, pela recente emergência, na Sociologia Jurídica, de uma concepção do direito em que o fenômeno jurídico não se desconecta dos múltiplos lugares e espaços da vida social. O centro de gravidade da pesquisa, por conseguinte, reside no reconhecimento de uma epistemologia geográfica contextual, que não reconhece solução de continuidade entre os processos de conhecimento e produção do espaço, dirigindo seus esforços para a afirmação da imprescindibilidade da inclusão das diferentes Geografias vernaculares nos “jogos conversacionais” da Geografia acadêmica. Com seu auxílio, procura-se explicitar o caráter comum das práticas significantes que conformam os discursos jurídicos e a atividade geográfica, bem como procura-se revelar as conexões profundas entre geograficidade e juridicidade postas em evidência pela reconstrução dialógica de paisagens culturais. O trabalho se encerra com uma análise exploratória dos limites existentes à substantivação democrático-participativa do princípio da precaução, revelados em uma “leitura geojurisprudencial” das regras que regulam, no direito brasileiro, a realização do procedimento de estudo de impacto ambiental de obras ou atividades modificadoras do meio ambiente. Dada a filiação da pesquisa a uma concepção anti-representacionalista do conhecimento científico, entretanto, esse estudo não tem pretensões maiores do que convidar geógrafos e juristas para estabelecerem, no futuro, uma conversação mais profunda e, talvez, mais fecunda sobre os pontos de contato entre suas respectivas disciplinas.

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ABSTRACT

For many, Geography and Law have about as much in common as Astronomy and Neurology. In fact, a retrospective analysis demonstrates that the two disciplines have always maintained a relatively rigid separation in terms of their respective theoretical-methodological orientations. This separation is reflected not only by the scarcity of specific literature concerning their contact points, but also in the lack of a common theoretical and analytical vocabulary, as well as the existence of disciplinary and institutional structures in both fields that present an apparently antithetical nature, causing them to be mutually excluding. The present work, however, intends to suggest that the groundwork for an interdisciplinary dialogue between Geography and Law can be attained, starting with the admission of a profound interconnection between the factors of production of space and of law, facilitated, on one hand, by the new perspectives open to the study of landscape by post-functionalistic Cultural Geography and, on the other hand, by the recent emergence, in the Sociology of Law, of an understanding of the law in which the juridical phenomenon is not disconnected from the multiple places and spaces of social life. The center of gravity of this research, consequently, abides in the recognition of a contextual geographic epistemology that does not acknowledge a solution of continuity between the processes involved in the knowledge and the production of space, directing its efforts to the affirmation of the indispensable inclusion of different vernacular Geographies in the “conversational games” of academic Geography. With its support, this work then aims to make explicit the common character of the signifying social practices that shape juridical discourse and geographic activities, as well as strive to reveal the profound connections between the nature of geographic and legal experiences, placed in evidence by the dialogic reconstruction of cultural landscapes. The work closes with an exploratory analysis of the existing limits to the democratic-participative rendering of the principle of precaution, revealed in a “geo-jurisprudential reading” of the rules that regulate, in Brazilian law, the environmental impact assessment procedure. Nonetheless, given the relationship of the research to an anti-representational concept of scientific knowledge, this study has no greater intentions than to invite geographers and jurists to establish, in the future, a more profound and, perhaps, a more productive conversation about the contact points between their respective disciplines.

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BREVE INTRODUÇÃO

No final de sua carreira, o artista saragoçano Francisco José de Goya y

Lucientes, cuja obra sempre buscou inspiração em temas sociais, pintou um óleo

sobre parede denominado “Duelo a garrotazos ou la riña” (1820-1821), que se

destaca pela simetria de seus elementos pictóricos.

A obra, custodiada atualmente no Museu do Prado, em Madri, descreve

uma luta de bastões entre dois robustos camponeses, que se postam defronte um

ao outro, de modo que, a cada golpe de um dos contentores, um contragolpe de

igual intensidade parece estar sendo desferido pelo opositor. Por mais que se

procure, não há como estabelecer vantagem ou preponderância de um dos

lutadores sobre o outro. A impressão que se tem é de que ambos se espatifarão:

não há sinais de desistência ou de composição, lutarão até a morte, se isso for

necessário para a improvável vitória sobre o oponente.

Com esses traços fortes, constrói o pintor uma alegoria extremamente

viva, que representa com maestria as antinomias que cercam as relações humanas.

Seus duelistas, entretanto, não desenvolvem o embate em um lugar ou cenário

qualquer. Ao contrário, a peleja se desenrola sobre um “ambiente” movediço: ambos

os contentores encontram-se plantados, até os joelhos, na lama. Em decorrência,

como bem aponta SERRES (1991:11), “a cada movimento, um buraco viscoso os

engole de modo que eles se enterrem juntos, aos poucos”. Toda a disputa,

magistralmente retratada, demonstra-se, portanto, revestida de profunda inutilidade.

Não haverá vencido, nem vencedor. O pântano, certamente, engolirá os

beligerantes, bem antes que se possa declarar o knock-out de um ou de outro.

Se a mensagem ecopolítica inscrita na obra, talhada para a hora

presente, deixa-se capturar de maneira relativamente simples — os lugares em que

se desenvolvem os processos sociais não constituem mero cenário, mas compõem

uma inescapável dimensão espacial da existência do homem — seu desafio àqueles

que se preocupam com o provável resultado trágico do embate retratado pelo artista

é mais sutil, mas não menos contundente. Ele aponta, com a mesma contundência

com que os golpes são desferidos, para a urgente necessidade de se reconhecer

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que tanto a compreensão quanto a formação de juízos de valor sobre os fatores

causais, a direção e a magnitude das intervenções antrópicas nos sistemas

socioambientais só podem ser feitas com esteio em um estilo de reflexão que seja

capaz de captar o sentido profundo dos processos que conectam o homem ao

mundo (AMORIM FILHO,1996:139; SIMMONS, 1993:01)

Um tal estilo de reflexão, apesar de integrar a própria tradição da

Geografia, vem assumindo papel de relevo na peculiar valorização do espaço vivido

pela Geografia Cultural pós-funcionalista, a qual põe a reconstrução dialógica de

paisagens culturais no centro de uma nova epistemologia geográfica. De índole

contextual, porque não reconhece solução de continuidade entre os processos de

conhecimento e produção do espaço, essa nova epistemologia se constrói pelo

reconhecimento de geograficidades individuais e coletivas, formadas pela fusão de

nexos cognitivos, normativos e expressivos presentes em multifárias vivências

geográficas.

Dessa maneira, sua consistência gnoseológica não se desconecta de sua

relevância deôntica, o que a situa em posição privilegiada para lançar um novo olhar

sobre as relações entre o espaço e o direito, um olhar em que a Geografia deixa de

ser compreendida como mera ferramenta auxiliar da Ciência Jurídica, para ser

reconhecida como campo do conhecimento imprescindível para o entendimento do

sentido profundo das práticas significantes de que se compõem os diferentes

discursos jurídicos de uma maneira geral e, em particular, de que se compõem

aqueles discursos jurídicos que procuram dar conta da totalidade do quadro

desenhado por Goya: os discursos do Direito Ambiental.

O presente trabalho pretende revelar as linhas mais gerais, esboçar, por

assim dizer, um mapa, ou melhor, um croqui dos contornos teórico-metodológicos

dessa nova perspectiva de reflexão, a qual põe em relevo a íntima conexão entre

geograficidade e juridicidade, entre vivência geográfica e construção plural do

direito. Para sua elaboração, entretanto, será necessário preliminarmente descrever

as condições de emergência dessa nova epistemologia geográfica contextual, cujos

esforços se dirigem para a afirmação da imprescindibilidade da inclusão das

diferentes Geografias vernaculares nos “jogos conversacionais” da Geografia

acadêmica. Condições de emergência que se manifestam no âmbito do próprio

processo de explicitação teórico-metodológica do pensamento geográfico.

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Com auxílio dessa descrição, que acentua a relevância das estratégias

contemporâneas de reconciliação entre a Ciência Geográfica e o espaço vivido, será

possível lançar os alicerces de uma ponte transdisciplinar, ainda um tanto quanto

precária e provisória deve-se admitir, a conectar Geografia e Direito. Voltada para

revelar a origem comum das práticas significantes do discurso jurídico e da atividade

geográfica, tais alicerces se constituem a partir da compreensão das perspectivas

ditas “geojurisprudenciais” reveladas pelo estudo de paisagens culturais, mais

especificamente pelo entendimento de sua natureza trajetiva (BERQUE, 2000) e de

seu sentido substantivo (OLWIG, 1994).

Fixadas as bases para uma tentativa de interlocução transdisciplinar entre

a Geografia e o Direito, procurar-se-á indicar, em estudo de índole exploratória, sua

validez e relevância, a partir da análise dos limites existentes à substantivação

democrático-participativa do princípio da precaução, revelados em uma “leitura

geojurisprudencial” das regras que regulam, no direito brasileiro, a realização do

procedimento de estudo de impacto ambiental de obras ou atividades modificadoras

do meio ambiente.

É preciso salientar, contudo, que o presente trabalho lança suas âncoras

metateóricas em uma concepção anti-representacionalista do conhecimento

científico, a qual reconhece que não existe a possibilidade de o sujeito cognoscente

“alcançar uma posição vantajosa para a comparação de esquemas conceituais,

desprendendo temporariamente de si mesmo” (DAVIDSON, 2001a:185). Dessa

maneira, por razões que serão explicitadas adiante, ele não compreende a ciência

“como um lugar onde a mente humana enfrenta o mundo”, e admite, de outra parte,

que a idéia de objetividade, tão presente nos cânones tradicionais que regem a

atividade científica, pode ser substituída pelas noções de solidariedade e

“concordância não-forçada” (RORTY, 1997:57-58). Em conseqüência, a despeito de

sua natureza exploratória e tentativa, a análise geojurisprudencial da substantivação

do princípio da precaução aqui empreendida não tem pretensões maiores do que

convidar geógrafos e juristas para estabelecerem, no futuro, uma conversação mais

profunda e, quem sabe, mais fecunda sobre os pontos de contato entre suas

respectivas disciplinas.

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Capítulo I

A VALORIZAÇÃO EPISTEMOLÓGICA DO ESPAÇO VIVIDO NA GEOGRAFIA CULTURAL PÓS-FUNCIONALISTA

1.1. NOVA GEOGRAFIA, FUNCIONALISMO E A EXPLICITAÇÃO TEÓRICO-

METODOLÓGICA DO PENSAMENTO GEOGRÁFICO 1.1.1. Antecedentes próximos da explicitação teórico-metodológica do

pensamento geográfico: os primeiros tempos da Nova Geografia

Durante a primeira metade do século XX, o ambiente epistemológico da

Geografia encontrou-se dominado pelos influxos decorrentes de dois planos distintos

de reflexão. De um lado, a comunidade acadêmica assistia à realização, em toda

sua plenitude, do potencial reflexivo expresso pela Geografia Regional de matriz

vidaliana e hartshorneana.1 De outro, em vários países europeus, bem como do

outro lado do Atlântico, nos Estados Unidos, tinham início os esforços no sentido de

integrar a reflexão geográfica nos processos de planificação econômica, abrindo à

participação dos geógrafos diversos grupos técnicos dedicados ao planejamento

espacial.2

1 Utiliza-se aqui a expressão geografia ou escola vidaliana para se referir à Geografia científica ou acadêmica que teve origem na França, organizada segundo os princípios teórico-metodológicos derivados da obra de Paul Vidal de la Blache. Deve-se ressaltar, contudo, que esse particular modo de reflexão geográfica, apesar de ter em Vidal de la Blache seu centro de coesão epistemológica, assenta suas raízes profundas em antecedentes derivados da denominada “escola clássica alemã”, encontrados, em particular, nas obras de Carl Ritter, Friederich Ratzel e Alfred Hettner (AMORIM FILHO, 1982:08-09, para uma revisão recente dos fatores de formação da escola francesa de geografia, consultar CLAVAL, 1993; BERDOULAY, 1995). É nessas raízes tedescas que as correntes regionalistas francesa e norte-americana encontram solo comum. Com efeito, segundo JOHNSTON (1986:63), é em Hettner que HARTSHORNE (1939) busca embasamento teórico-metodológico para argumentar “firmemente que o foco de interesse da Geografia é a diferenciação de áreas, o mosaico de paisagens distintas na superfície da terra”. 2 O surgimento de ações de planificação espacial, durante as décadas de 1920 e 1930, tem lugar, especialmente, na Grã-Bretanha e nos EUA, como resposta à aguda crise de suas economias

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À medida que os geógrafos se engajavam nessa nova forma de Geografia

“utilitária” ou “aplicada”, constatavam, contudo, que sua formação mostrava-se

limitada em termos de capacidade de oferecer respostas aos novos desafios postos

pelo desempenho de funções de aconselhamento técnico, realizadas,

invariavelmente, no âmbito de processos de formulação de políticas públicas de

planificação regional.

Com efeito, os esforços reflexivos, desenvolvidos segundo os

pressupostos epistemológicos implícitos da escola vidaliana, encontravam-se

voltados para a análise da peculiaridade regional e dos específicos genres de vie

associados às diferentes regiões e pays. Assim, por ter natureza essencialmente

regionalista, esse modo peculiar de pensar o espaço geográfico, apesar de não

abandonar uma necessária preocupação com a construção de conceitos e modelos

de comparação3, voltou-se, em sua essência, para a explicação “daquilo que não se

pode ver duas vezes”. Em outras palavras, seu pleno desenvolvimento exigiu

necessariamente uma ênfase fundamental sobre a análise da interação dos

fenômenos geográficos na formação de regiões concretamente consideradas, como

maneira de explicitar sua essência singular e identificar seu locus excepcional no

panorama do globo terrestre4.

Nessa perspectiva, o meio privilegiado de construção do conhecimento

sobre o espaço consistia na elaboração das denominadas teses regionalistas,

obras monográficas volumosas, fruto de longos períodos de pesquisa em contato

direto e permanente com a realidade estudada, que se tornaram a quintessência da

reflexão geográfica desenvolvida pela escola vidaliana (AMORIM FILHO, 1985). Tais

liberais; na Alemanha nazista, como parte do processo de reestruturação política destinado a promover uma melhor integração dos territórios periféricos do país, transformados em espaços de amortecimento, sujeitos a controle internacional, após a Primeira Guerra Mundial; e na URSS, como expressão geográfica das premissas de seu modelo de planificação econômica (CLAVAL, 2001a:94-95). 3 Segundo JOHNSTON (1986:56-57), a preocupação com a formulação de conceitos e modelos de comparação permeia toda a fase de formação inicial da Geografia acadêmica, o período de florescimento das escolas “clássicas” alemã e francesa, pois o estudo acadêmico da Geografia “envolvia mais do que a coleta e comparação de dados fatuais: estes tinham que ser interpretados, e os métodos e finalidades de tal interpretação definiam os primeiros paradigmas de desenvolvimento da disciplina”. 4 Como se verá, essa postura epistemológica pode ser entendida como parte significativa do esforço de pôr a salvo a Geografia acadêmica dos problemas profundos decorrentes da fissura metodológica ocorrida, no final do século XIX, em razão da contribuição de Wilhelm Dilthey para a explicitação da natureza específica da fundamentação das ciências do espírito ou ciências histórico-sociais (Geisteswissenschaften), em contraposição à fundamentação de índole positivista que presidia as ciências naturais (Naturwissenschaften).

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18

estudos, entretanto, por se encontrarem voltados para a apresentação das

peculiaridades da área em investigação, não apresentavam estrutura compatível

com sua integração em iniciativas de planificação, destinadas a intervir ativamente

na realidade, moldando suas estruturas espaciais (AMORIM FILHO, 1982), pois a

intervenção no espaço pressupunha a formulação de leis gerais, que permitissem a

realização de previsões sobre a evolução dos fenômenos geográficos (CLAVAL,

2001a:95).

Como era de esperar, essa incapacidade de atender às novas demandas

apresentadas pela planificação regional promoveu a gestação de uma profunda crise

no seio da comunidade geográfica. Os geógrafos, cada vez mais, passaram a

reconhecer que sua parcela de contribuição na solução dos problemas propostos

pelas tarefas de organização do espaço não se apresentava tão relevante como

aquela oferecida por membros de outras comunidades científicas. A consciência da

crise, entretanto, veio a tomar corpo de modo particularmente intenso com o advento

da Segunda Guerra Mundial.

Valorizando sobremaneira a pesquisa de cunho operacional, as

necessidades estratégicas desse conflito sem precedentes na história da

humanidade exigiram a estruturação de sofisticados serviços de informação

geográfica, para os quais, paradoxalmente, os geógrafos de formação regionalista

pouco puderam contribuir, como bem demonstra o exemplar relato de ACKERMAN

(1945). Tomando por base sua própria experiência como geógrafo a serviço do

esforço de guerra norte-americano, suas observações constituem um vívido

diagnóstico da fragilidade dos trabalhos produzidos por seus colegas, atribuida à

falta de maior treino e pesquisa nas especializações sistemáticas de que se compõe

a Geografia Geral (Climatologia, Geomorfologia, Hidrografia, Biogeografia, Geografia

Urbana, Geografia Agrária, dentre outras).

A participação de geógrafos em equipes de trabalho de caráter

multidisciplinar, destinadas a oferecer subsídios para o planejamento de ações

estratégicas e tomadas de decisões nos campos econômico e militar, provocou,

assim, um profundo sentimento de frustração na comunidade geográfica. Por seu

intermédio evidenciava-se a inaptidão de seu aparato conceitual e de seu

instrumental metodológico para “solucionar problemas que se acreditava pudessem

ser resolvidos pela geografia”. Por outro lado, a interação com os membros dessas

mesmas equipes com treino em outras disciplinas científicas realçaram o sentimento

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de que “a organização e os resultados das pesquisas geográficas se mostravam

cada vez mais distanciados da produção da maior parte das outras ciências.”

(AMORIM FILHO, 1985)5.

A insatisfação com o potencial reflexivo da disciplina se apresentava

marcadamente aguda no contexto da Geografia anglo-americana, que, no final da

década de 1940, se caracterizava como um setor do conhecimento em fase de

aguda crise epistemológica, em que se manifestavam profundos sinais de

insatisfação com o modo como a disciplina era ensinada e praticada. Essa

insatisfação, aliada a uma crescente preocupação, presente em determinados

círculos acadêmicos, de explicitar os fundamentos epistemológicos da reflexão

geográfica, incentivaram, no início da década de 1950, a experimentação de novas

propostas metodológicas, ainda que um tanto quanto frágeis sob o aspecto de sua

fundamentação filosófica. Não obstante, o paradigma regionalista continuava,

sobretudo no ambiente intelectual francês, no qual a orientação vidaliana lhe

conferia forte coesão teórico-metodológica, a produzir seus frutos, de sorte que o

quadro geral da atividade geográfica em meados do século XX pode ser traçado,

com apoio em AMORIM FILHO (1982), da seguinte maneira:

Nas principais universidades e instituições tradicionais, continuavam a

ser produzidos trabalhos sob orientação dos princípios teórico-metodológicos

desenvolvidos pela escola vidaliana, sobretudo por meio da elaboração das teses

regionais, as quais, apesar de toda sua relevância acadêmica, pouco contribuíam

para a resolução dos problemas e demandas do planejamento regional.

Nas agências governamentais e institutos de planejamento regional,

grupos de geógrafos procuravam desenvolver uma geografia aplicada, pela adoção

de técnicas quantitativas e elaboração de novas metodologias capazes de “tornar

mais eficiente e rápida a realização de suas pesquisas”.

5 Em particular, esses resultados se mostravam substancialmente aquém daqueles obtidos pela Economia Espacial, disciplina cujo referencial teórico-metodológico consolidou-se, gradativamente, a partir dos trabalhos de Johann-Heinrich von Thünen para a agricultura (1826-1851), Alfred Weber para a indústria (1909) e Walter Christaller (1933) e August Lösch (1938) para as atividades de serviço. As sensíveis transformações experimentadas pelos países industrializados na primeira metade do século XX fizeram da “distância econômica”, medida em termos de fatores de atração e custos de localização, o fator preponderante no equacionamento de problemas locacionais. A maior adaptação da Economia Espacial a esse novo cenário socioeconômico, permitiu-lhe nutrir os esforços de planificação regional com um conjunto de conceitos e leis generalizáveis de que não dispunha a Geografia Regional de então (CLAVAL, 2001b:154-155).

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Em alguns círculos acadêmicos, a princípio bastante restritos, mas que

já obtinham razoável ressonância para suas posições, grupos de geógrafos se

voltavam para o estudo da Epistemologia, passando a manifestar um crescente

sentimento de que tanto as pesquisas monográficas regionais, quanto a atividade

imediata e exclusivamente utilitária poderiam não se encontrar aptas a fornecer à

Geografia o “embasamento teórico necessário ao seu amadurecimento como

ciência”.

Foi nessa conjuntura de grave crise epistemológica que um novo modo de

refletir sobre os fenômenos espaciais, assumindo-se como fundamentalmente

diferenciado dos pressupostos teórico-metodológicos implícitos da Geografia

vidaliana, tomou corpo e deu ensejo ao surgimento de uma nova corrente do

pensamento geográfico, ao mesmo tempo teorética e quantitativa, a qual se

convencionou denominar “Nova Geografia”6. A determinação de um marco

fundamental para seu florescimento, contudo, não constitui tarefa das mais fáceis,

pois, como salienta JOHNSTON (1986:72),

datar a origem de uma mudança na orientação de uma disciplina, ou mesmo de uma parte dela, é difícil. Vários fragmentos, que contêm o cerne das novas idéias, podem ser, usualmente, encontrados na literatura publicada, mas freqüentemente derivam de ensinamentos de outros, cujos pontos de vista jamais foram publicados. Além disso, é possível que uma transformação emane de vários núcleos separados (embora, comumente, não inteiramente independentes) à medida que vários iconoclastas introduzem estímulos para a mudança.

No caso específico do surgimento e afirmação da Nova Geografia, a

dispersão de seus elementos estruturadores pode ser considerada mesmo como

uma decorrência natural de sua inserção no contexto das profundas e aceleradas

mudanças experimentadas pelos países industrializados nos setores científico,

tecnológico, social e econômico, a partir da Segunda Guerra Mundial. Essa

vinculação a transformações tão complexas imprimiu certo caráter, ao mesmo tempo

urgente e tentativo, às novas experimentações, promovidas, em um primeiro

6 Apesar de já utilizada em certos círculos científicos na década de 1960, a expressão “Nova Geografia” popularizou-se a partir de seu emprego no artigo de divulgação “The New Geography”, escrito, em 1968, por Peter Gould para a Harper’s Magazine (BAILLY & FERRAS, 1997:37; CLAVAL, 2001a:100).

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momento, no plano das técnicas ou procedimentos operacionais de pesquisa, pelos

geógrafos engajados nas atividades de planejamento regional. Várias foram, por

conseguinte, as contribuições iniciais que podem ser reconduzidas ao ambiente

renovador que se instalava na disciplina.

Sem embargo, entretanto, do fato de os antecedentes históricos e

primeiras manifestações da nova corrente remontarem, de maneira um tanto quanto

difusa, à década de 1940 e início da década de 1950, pode-se afirmar, com amparo

em CHRISTOFOLETTI (1985a:16), que o artigo de Fred Schaefer, Exceptionalism in

Geography: a Methodological Examination, publicado em 1953, “marca

cronologicamente a tomada de consciência dessas novas tendências”. Sua

relevância particular reside em seu propósito específico de promover, no plano

específico da reflexão epistemológica, uma revisão dos princípios metateóricos

norteadores de uma obra essencial na fundamentação metodológica da Geografia

anglo-americana de então: The Nature of Geography, trabalho monográfico

elaborado por Richard Hartshorne, em 1939.

Nessa obra, HARTSHORNE (1939), muito embora não subscrevesse em

sua integridade os pressupostos metodológicos da perspectiva regionalista,

afirmava, como preocupação central da reflexão geográfica, a descrição e a

interpretação cuidadosas, ordenadas e racionais do caráter variável da superfície

terrestre. Para tanto, a Geografia teria como escopo fundamental a elaboração de

sínteses destinadas a oferecer a descrição total de uma região, a partir da

integração de suas características relevantes, levantadas com o auxílio da análise

de dados fornecidos pelas denominadas “geografias adjetivais” (representadas pelos

diversos ramos em que se dividia a geografia geral) e por outros setores do

conhecimento (JOHNSTON, 1986:65). Desse enfoque centrado na descrição de

fenômenos únicos por intermédio de trabalhos de síntese, decorreria, em

conseqüência, o caráter singular da atividade geográfica, que não compartilharia da

metodologia das outras ciências, extraindo sua natureza científica de sua peculiar

capacidade integradora.

No Exceptionalism in Geography, artigo publicado pouco tempo depois de

sua morte, SCHAEFER (1953/1977) procurou formular uma crítica coerente àquelas

proposições de Hartshorne que considerou excepcionalistas, por pretenderem

afirmar que a Geografia diferiria em seu método das demais ciências. Para o autor,

não haveria nada de extraordinário na perspectiva de síntese encontrada na

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atividade dos geógrafos, não se podendo afirmar que estes se distinguem dos

demais cientistas “pela integração que conseguem de fenômenos heterogêneos”,

pois nem a complexidade com que se confronta o geógrafo regional é algo fora do

comum, nem as demais disciplinas científicas, em seus esforços experimentais,

deixam de realizar importante trabalho integrativo, o qual pode, inclusive, ser mais

extenso do que aquele realizado pela Geografia. A integração consistiria, assim, em

um momento presente em toda atividade científica, no qual as leis, modelos e teorias

que formam o corpo sistemático de uma disciplina se submetem ao teste empírico,

pois, em todos os campos da ciência, a “aplicação conjunta das leis disponíveis é a

única maneira de expor e explicar o que é o caso”.

Dessa maneira, como lembra GUELKE (apud JONHSTON, 1986:82),

Schaefer estendia a idéia do único a tudo e removia “uma objeção lógica maior à

possibilidade de uma Geografia baseada na procura de leis”, demonstrando que a

concepção de Hartshorne do único como um problema especial (perspectiva

idiográfica), “era insustentável para qualquer um que aceitasse o modelo científico

de explicação”. Em outros termos, a procura e aplicação de leis importava em

reconhecer que o caso singular não deveria ser estudado unicamente em si mesmo,

mas sim compreendido como teste de validação de modelos e teorias, no qual se

ressaltariam as condições e aspectos semelhantes com as formulações gerais, e

não as particularidades únicas do evento em análise (perspectiva nomotética, cf.

CRISTOFOLETTI, 1985b).

Esse artigo póstumo de Schaefer, apesar de não ter produzido muita

reação direta na literatura impressa, “provocou uma resposta considerável de

Hartshorne”, primeiro sob a forma de uma carta ao editor do periódico que o publicou

originalmente, o Annals of the Association of American Geographers, e, em seguida,

sob a forma de três estudos específicos sobre a metodologia da Ciência Geográfica

(JOHNSTON, 1986:77). O último destes consistiu em uma alentada monografia,

intitulada Perspective on The Nature of Geography (HARTSHORNE, 1959), na qual

seu autor procurou não só responder à argumentação expendida por Schaefer,

como também discutir as questões teórico-metodológicas surgidas, no seio do

paradigma regionalista, durante as duas décadas que se seguiram à publicação do

The Nature of Geography.

Em Perspective, Hartshorne, preocupando-se com uma explicação

metodológica mais assentada naquilo que os geógrafos de seu tempo faziam do que

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naquilo que deveriam fazer, argumentou em favor da perspectiva idiográfica,

pontuando as dificuldades de se estabelecerem leis por intermédio da investigação

geográfica, pois esta, ao contrário da atividade desenvolvida em outras ciências, não

se voltava para a construção, a partir da observação de casos singulares, de uma

base empírica suficiente para generalizações; antes, se voltava para o estudo das

integrações complexas em lugares únicos. Essa particularidade, porém, não impedia

a qualificação da atividade geográfica como científica, pois o estabelecimento de leis

não constituía o único modo de compreensão da realidade. Dessarte, segundo sua

concepção, a Geografia procurava,

com base na observação empírica, tão independente quanto possível da parte do observador, (1) descrever os fenômenos com o máximo de exatidão e de certeza; fundamentada nisso, (2) classificar os fenômenos, o quanto seja permitido pela realidade, em termos de conceitos genéricos, ou ‘universais’; através da consideração racional dos fatos, assim assegurada, e pelos processos lógicos de análise e de síntese, incluindo-se aí a construção e uso, onde possível dos princípios gerais ou leis de relações genéricas, (3) atingir a compreensão máxima das inter-relações científicas dos fenômenos; e (4) organizar esses resultados em sistemas ordenados de modo que o que é conhecido conduza diretamente às margens do desconhecido (HARTSHORNE, 1959:169-170).

Note-se, portanto, que, em sua resposta à polêmica suscitada por

Schaefer, Hartshorne acaba por estabelecer para a Geografia escopos muito

próximos do objetivo geral propugnado pelo primeiro. Sua insistência no enfoque

centrado na singularidade da realidade regional, entretanto, não lhe permitiu

assimilar integralmente a postura epistemológica antiexcepcionalista, a qual se

fundamentava na aceitação de que o estudo de realidades únicas constituía “um

problema geral da ciência” (JOHNSTON, 1986:82).

Seja como for, a adoção da perspectiva nomotética importava em uma

mudança radical de ênfase na reflexão geográfica, deslocando seu enfoque primário

da ordenação de dados, muitos dos quais fornecidos por outras disciplinas

científicas, para o desenvolvimento da análise espacial, elaborada a partir da

construção de um instrumental metodológico adequado à formulação de

generalizações sobre a estrutura e a organização do espaço (AMEDEO &

GOLLEDGE, 1986:02-03). Essa mudança de ênfase teria por conseqüência a

estruturação de um programa de pesquisa fundamentado, essencialmente: a) na

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revitalização e desenvolvimento de teorias, b) no emprego privilegiado de técnicas

estatísticas e matemáticas, c) no uso de modelos espaciais. (CHRISTOFOLETTI,

1985a:16-20).

No ambiente da Nova Geografia, a teorização é vista como veículo

fundamental de sistematização do conhecimento geográfico. As teorias são, assim,

concebidas como estruturas do pensamento geográfico capazes de permitir a

superação do caráter eminentemente descritivo e factual dos relatos realizados sob

a égide da perspectiva idiográfica, uma vez que possibilitam a explicitação dos

processos, funções e formas relevantes para a compreensão da organização do

espaço. Essa propriedade sistematizadora decorreria, segundo AMEDEO &

GOLLEDGE (1986:39), do fato de serem as teorias corpos de conhecimento

capazes de:

a) interconectar logicamente um grande número de proposições sobre

determinado fenômeno espacial, inicialmente obtidas de forma isolada por

intermédio do teste de hipóteses geográficas singulares;

b) oferecer uma explicação para as proposições geográficas assim

sistematizadas;

c) servir de veículo para a formulação, com grau crescente de

complexidade, de novas hipóteses geográficas referentes ao mesmo fenômeno em

consideração.

A construção do arcabouço teórico necessário ao desenvolvimento do

programa de pesquisa da Nova Geografia não se apresentou, todavia, em um

primeiro momento, como um esforço de elaboração de teorias novas, de caráter

eminentemente geográfico. Reconhecendo as dificuldades próprias da tarefa de

dotar a disciplina de um instrumental teórico de reflexão, o movimento de teorização

promovido pelos adeptos da nova tendência voltou-se, em um primeiro momento,

para o emprego de teorias já disponíveis na própria Geografia e em outras ciências.

Dada a conexão entre o surgimento da Nova Geografia e a disseminação

da atividade de planejamento espacial, esse movimento teve lugar, primeiramente,

no campo da Geografia Humana. CLAVAL (2001a:98; 2001b:159) identifica sua

gênese, mais especificamente, no fascínio exercido sobre os novos geógrafos pelas

teorias locacionais formuladas no seio da Economia Espacial alemã, que receberam

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ampla divulgação nos meios acadêmicos anglo-americanos, a partir do trabalho de

síntese de Edgar M. Hoover: The Location of Economic Activity (1948).

Nos Estados Unidos em particular, esse fascínio assumiu um papel

fundamental na afirmação da perspectiva nomotética, em virtude da revisão crítica

promovida por Edward Ullman, na década de 1950, dos trabalhos de dois geógrafos

cujas obras contêm a matriz teórico-metodológica implícita da perspectiva

idiográfica: Friederich Ratzel e Paul Vidal de La Blache. Para ULLMAN (1980),

Ratzel e Vidal de La Blache enfatizaram que a Geografia deveria dedicar-se tanto às

relações que os grupos desenvolvem com seu meio circundante, formadoras de

específicos quadros de vida, quanto aos fenômenos espaciais de circulação, por

intermédio dos quais esses mesmos grupos se engajam em relações com outras

células sociais, estabelecidas em outros ambientes. Sem embargo dessa

advertência de cunho epistemológico, os trabalhos dedicados à análise da

circulação como fenômeno espacial apresentavam caráter muito limitado, no âmbito

das “escolas clássicas” alemã e francesa.

O avanço do processo de teorização esbarrava, contudo, na falta de

hábito dos geógrafos de manipular conceitos abstratos, como faziam os economistas

espaciais (CLAVAL, 2001b:160). Em especial, as profundas diferenças entre os

ambientes acadêmicos da Economia, onde foram gestadas e se aperfeiçoavam as

teorias locacionais, e da Geografia, em que se empreendiam esforços de sua

aplicação, obstavam uma adequada explicitação dos fundamentos epistemológicos

que serviam de alicerce aos trabalhos dos “novos geógrafos”. O papel e, sobretudo,

o valor relativo das teorias, na construção do conhecimento geográfico, não

constituíam, assim, objeto de reflexão específica.7

7 Não por outro motivo, nos primeiros momentos do movimento de teorização, não se identificaram contribuições decisivas para a reformulação das construções teóricas tomadas de empréstimo em novos corpos de teorias verdadeiramente geográficas. É certo que o artigo de SCHAFFER (1977), originalmente publicado em 1953, adotando expressamente pressupostos epistemológicos neopositivistas, continha ricos subsídios para a construção de uma reflexão metateórica, centrada no papel e valor assumido pelas teorias na construção do conhecimento geográfico. Como já observado, entretanto, sua repercussão se deu, primordialmente, no campo da crítica à perspectiva idiográfica hartshorniana, a partir da valorização dos estudos sistemáticos, não se fazendo sentir, em mesma intensidade, no campo do debate sobre como se deveriam dar a procura e a aplicação de leis gerais necessárias à consecução dos esforços de teorização. Dessa maneira, em meados da década de 1950, faltava ainda aos adeptos da perspectiva nomotética a compreensão de que sua realização pressupunha uma tomada de consciência sobre os processos que conduzem à elaboração, desenvolvimento e modificação das teorias científicas (JOHNSTON, 1986:84).

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Em conseqüência, os estudos dos padrões de distribuição dos fenômenos

espaciais realizados não se faziam com a devida verificação crítica dos limites e

deficiências das construções teóricas tomadas de empréstimo, propiciando o

afloramento de certa tendência inicial de se considerar a renovação metodológica,

promovida pela Nova Geografia, como resultado da simples aplicação de técnicas e

procedimentos estatísticos e matemáticos. É nesse sentido que ACKERMAN

(1958:30) afirmou ser a quantificação o pilar fundamental sobre o qual se deveria

apoiar, em seu mais alto grau, a investigação geográfica, procurando com tal

afirmação sublinhar não apenas “que qualquer investigação útil em Geografia deve

ser investigação quantificada, mas também que uma análise realmente significativa

dos processos que determinam a evolução do conteúdo espacial deve apoiar-se na

quantificação”.

Essa fase inicial, na qual se manifestou de maneira retumbante a “magia

do número”, todavia, logo deixou transparecer seus limites e insuficiências,

demonstrando que a quantificação não se apresentava como o verdadeiro substrato

metodológico sobre o qual se poderia levantar o edifício da perspectiva nomotética.

Como indica CHRISTOFOLETTI (1985b:93), paulatinamente,

foi-se percebendo que a quantificação levantava inúmeros problemas, era um meio e não um fim em si mesma. O mais importante era a noção e o conceito que se possuía dos fenômenos – era a perspectiva teórica. O uso indiscriminado e abusivo das técnicas estatísticas gerou insatisfação, o que levou Brian Berry a denominá-la de geografia estatística tradicional.

Construiu-se, assim, gradativamente, nos círculos mais dinâmicos da

Nova Geografia, uma consciência do caráter instrumental da análise quantitativa e

da necessidade de assentar a reflexão geográfica em construções conceituais mais

estruturadas. Construções hábeis a promover a adequada sistematização das

hipóteses em investigação e, assim, melhor orientar a definição das variáveis

relevantes e dos procedimentos de análise a serem utilizados, bem como articular a

concatenação das leis sobre a distribuição espacial em corpos teóricos de matriz

verdadeiramente geográfica. Essa consciência foi, em grande medida, estimulada

pela “redescoberta” de uma teoria locacional elaborada no próprio ambiente

acadêmico da Geografia científica: a teoria dos lugares centrais.

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Para a compreensão da importância singular assumida por essa teoria no

processo de refinamento da perspectiva nomotética, deve-se recordar que a análise

regional, própria dos esquemas conceituais insinuados pela Geografia vidaliana,

tende a pôr em destaque as relações de pertinência entre as cidades

individualmente consideradas e os sistemas urbanos regionais. Nessa perspectiva,

enfocado o fenômeno urbano sob o prisma de sua distribuição regional e

conseqüente interação entre os diversos núcleos, assume papel de relevo o estudo

das funções urbanas.8

Tais funções podem ser compreendidas como as atividades urbanas que

justificam a existência e o desenvolvimento das cidades (BEAUJEU-GARNIER &

CHABOT, 1963:105). Dessa maneira, nem toda atividade desenvolvida no contexto

de um núcleo urbano qualifica suas funções na rede de relações engendradas com

seu entorno e com outros núcleos. Somente aquelas atividades que designam a

razão de ser de uma cidade, porque propiciam relações interurbanas consistentes e

duradouras, são relevantes para a pesquisa de suas funções (RONCAYOLO,

1997:52). Elas se distinguem, por conseguinte, daquelas atividades executadas, tão-

somente, “no interesse dos habitantes da cidade”, voltadas apenas para um

consumo interno como “conseqüências do agrupamento urbano” (BEAUJEU-

GARNIER & CHABOT, 1963:104).9

Essa preocupação com a explicitação das funções da cidade, no âmbito

dos estudos regionais próprios da escola vidaliana, associa-se ao fato de a

perspectiva idiográfica aderir, a partir dos trabalhos seminais de Friederich Raztel,

ao ambiente, existente na segunda metade do século XIX, de repulsa às categorias

mecanicistas de explicação da realidade e de sua substituição por categorias

biológicas, em razão do prestígio assumido pelas idéias evolucionistas de Charles

Darwin (RUSSELL, 1995:727). A principal dessas categorias intelectuais consistia na

8 Não por outra razão, ULLMAN (1980) observou, conforme já destacado, que nas obras de Ratzel e Vidal de la Blache a reflexão geográfica não se assenta, tão-somente, sobre a explicitação dos termos em que se desenvolve a relação entre o homem e seu meio: a definição dos quadros ou gêneros de vida, a partir de uma perspectiva darwinista (Ratzel) ou possibilista (Vidal de la Blache). Nestas, também comparece, como elemento de explicação da realidade regional, as relações desenvolvidas entre os centros urbanos, a partir da integração de suas respectivas funções. Assim, não causa surpresa, nem deixa de ser interessante, notar que a tomada de consciência da importância dos estudos funcionalistas na Geografia vinha se dando também no âmbito da própria “escola francesa”, mesmo antes da Segunda Guerra (CLAVAL, 1998:18). 9 Com esteio nessa distinção é que se forjou, a partir dos estudos pioneiros de Chauncy Harris (1943) e Gunnar Alexandersson (1956), a denominada “teoria básica/não-básica das atividades urbanas” (RONCAYOLO, 1997:58).

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idéia de organismo como uma totalidade, em que as partes encontram-se vinculadas

não por relações de causa e efeito, mas por relações de finalidade, cuja

compreensão exige a explicitação da função por elas exercida no processo de auto-

organização ou de autoprodução da totalidade orgânica. Em outras palavras, o

organismo possui uma causalidade que, em última instância, repousa sobre sua

própria realização, razão por que a compreensão de sua constituição e evolução não

pode ser realizada sem a identificação da contribuição de cada uma de suas partes

na produção e manutenção das demais.10 Essa idéia tornou-se, na virada para o

século XX, uma categoria fundamental da reflexão geográfica, influindo

decisivamente na formação das bases epistemológicas implícitas da obra de Vidal

de La Blache (GOMEZ, 1993:90; BERDOULAY, 1995:212-213). Sua melhor

tradução consiste, exatamente, no desvendamento das funções desempenhadas

pelas cidades no contexto da organização do espaço regional.

Ainda na década de 1930, Walter Christaller, geógrafo que possuía sólida

formação em Economia Espacial, debruçando-se sobre o problema da localização

dos centros urbanos no sul da Alemanha (CHRISTALLER, 1933/1966), destaca que

uma das conseqüências fundamentais do desenvolvimento das funções urbanas

consiste, precisamente, na organização de áreas de influência ao redor das cidades,

cuja dimensão constitui uma expressão da capacidade do núcleo urbano de prover

seu entorno de bens e serviços. Em outras palavras, as cidades, à medida que

exercem funções urbanas, tornam-se pólos irradiadores de bens e serviços segundo

uma dada escala regional, transformando-se, portanto, em lugares centrais. Quanto

maior a complexidade e diversidade das funções desempenhadas por um centro

urbano, maior será seu poder de atração. Dessa maneira, por intermédio da

classificação das funções urbanas segundo sua sofisticação, hierarquias funcionais

podem ser estabelecidas, das quais se extrapolam hierarquias urbanas (hierarquias

urbanas funcionalmente orientadas). Nestas, tendencialmente, centros de mesma

categoria hierárquica exercem, em termos funcionais, poderes de atração

10 A matriz filosófica dessa perspectiva organicista remonta à compreensão kantiana do fenômeno da vida. Para KANT (1790/1946), os organismos vivos distinguem-se das máquinas, porque nestas as partes existem uma para as outras, enquanto naqueles cada parte “produz as outras partes”.

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equivalentes e apresentam áreas de influência de dimensões semelhantes.11

A pesquisa de Christaller tomava, assim, como ponto de partida, trabalhos

já considerados clássicos na Economia Espacial, como os trabalhos de von Thunen

sobre a relação entre áreas agrícolas e seus respectivos mercados (teoria do estado

isolado) e de Weber sobre a localização dos centros de manufaturas (teoria do custo

mínimo). Seus esforços, contudo, expandiam em muito esse arcabouço teórico já

consolidado, fornecendo uma proposta relativamente sofisticada para a

compreensão do tamanho, função e distribuição espacial dos centros urbanos como

centros de mercado (CLARK,1985:129; HARTSHORN:1980:105). Por outro lado,

apesar de se alicerçar na definição de um conjunto de condições iniciais que

eliminavam certas irregularidades do espaço real, transformando-o em uma

superfície homogênea,12 e em certas pressuposições comportamentais dos atores

envolvidos nas trocas relevantes – comerciantes e prestadores de serviços, de um

lado, e consumidores, de outro,13 a proposta teórica de Christaller construía-se como

resultado de um esforço de explicação da organização do espaço regional. Dessa

maneira, ela não só abordava uma questão de há muito incluída no campo das

preocupações dos geógrafos, como o fazia de um modo facilmente assimilável pela

comunidade geográfica, pois se moldava muito bem à perspectiva organicista ainda

prevalecente nos meios acadêmicos de então (CLAVAL, 2001b: 160).

11 Na teoria dos lugares centrais, denomina-se centralidade a medida da capacidade de uma cidade se organizar como pólo de atração da população de sua área de influência. Assim, quanto maior a centralidade de uma cidade, maior sua hierarquia funcional. Evidentemente, nem todas as funções urbanas exprimem a propriedade da centralidade, sendo certo que, em alguns casos, a localização e a dimensão funcional de uma cidade são dadas por fatores extrínsecos à sua aptidão para fazer irradiar suas atividades sobre certa área de influência, como ocorre com os núcleos de mineração. A assimilação do fenômeno urbano à idéia de lugar central, porém, permite a análise da localização, da dimensão e do papel das cidades como centros de serviços. 12 A superfície idealizada por Christaller, designada em Economia Espacial pela expressão plano de transporte isotrópico, apresentava as seguintes características: a) inexistência de obstáculos topográficos; b) uniformidade de recursos; c) distribuição homogênea da população e do poder de compra; d) liberdade de locomoção em todas as direções; e) proporcionalidade entre os custos de transportes e as distâncias percorridas; f) equivalência dos preços básicos das mercadorias e serviços entre os centros em que estes se encontram à venda. 13 A proposta de Christaller assentava-se sobre a pressuposição de que o comportamento dos atores envolvidos seguia o clássico figurino do homem econômico, cujas decisões são adotadas em condições ótimas, seja em relação ao grau de informação necessário para sua adoção, seja em face da liberdade de escolha.

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1.1.2. Os avanços do processo de teorização, o surgimento de uma epistemologia geográfica explícita e a funcionalização do pensamento geográfico

Apesar de formulada na década de 1930, a teoria dos lugares centrais só

alcançaria difusão nos centros promotores da Nova Geografia a partir de meados da

década de 1950. Desde sua “redescoberta”, entretanto, muitos dos esforços dos

“novos geógrafos”, sobretudo no mundo anglo-saxão, voltaram-se para seu teste

empírico.14 O resultado desses trabalhos traduziu-se em pequenos ajustes em sua

formulação original. Não obstante, como proposta de interpretação da realidade

geográfica, a teoria dos lugares centrais, evidentemente, sofria restrições

decorrentes das rígidas imposições de seu conjunto de condições iniciais e de suas

pressuposições comportamentais. Dessa maneira, apesar de seu papel crucial na

difusão da perspectiva nomotética, o desenvolvimento posterior do movimento de

teorização demonstrou a necessidade de revisão crítica das próprias estruturas

conceituais assimiladas nos trabalhos geográficos. Esta revisão só se tornou

possível a partir do momento em que os adeptos da Nova Geografia, dando um

passo atrás, passaram a refletir sobre o próprio processo de construção das teorias

científicas. Ao assim proceder, identificaram, primeiramente, a existência de coesão

interna entre os diversos conceitos de que se compõe cada teoria, de modo que o

sentido de cada formulação pode ser derivado dos demais elementos explicativos

nela encontrados. Em um segundo momento, vislumbraram possuírem as estruturas

teóricas natureza de sistemas conceituais, formados a partir do travejamento e

articulação interna entre as suas próprias proposições.

Para essa categorização das teorias científicas como estruturas

sistêmicas, muito contribuíram os subsídios colhidos a partir do estudo dos princípios

que informam a denominada teoria geral dos sistemas, entendida como reflexão

metateórica que provê um quadro conceitual capaz de relacionar sistemas

individuais e tipos modelares de sistemas em uma estrutura hierarquicamente

unificada, seja a partir da identificação de isomorfismos entre sistemas

14 Para uma relação exaustiva dos estudos de validação empírica da teoria dos lugares centrais, ver CLARK (1985:138).

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concretamente considerados (perspectiva intuitivo-empírica de Von Bertalanffy), seja

por intermédio da explicitação da estrutura sintática geral de que tais sistemas se

compõem (perpectiva analítico-dedutiva de Mesarovic).

Oferecendo, assim, elementos para melhor compreensão do papel

desempenhado pelas teorias na construção do conhecimento científico, a aplicação

da teoria geral dos sistemas aos estudos geográficos “serviu para melhor focalizar

as pesquisas e para delinear com maior exatidão o setor de estudo desta ciência,

além de propiciar oportunidade para considerações críticas de muitos dos seus

conceitos” (CHRISTOFOLETTI, 1985a:19). Pelo seu emprego, os “novos geógrafos”

puderam construir modelos de explicação da realidade geográfica, a partir do

encadeamento de idéias relacionadas com o funcionamento dos sistemas

geográficos, criando estruturas conceituais de nível intermediário, mais adaptadas

aos testes empíricos próprios da perspectiva nomotética.15

Por outro lado, à medida que o movimento de teorização tendeu a se

aprofundar, transcendendo o estágio inicial do simples emprego de teorias prontas e

acabadas, os geógrafos passaram a sentir a necessidade de estabelecer critérios de

validade para estruturação de um instrumental teórico próprio. Em outras palavras, à

medida que avançavam os esforços de teorização, os círculos mais dinâmicos da

Nova Geografia identificaram a necessidade de iniciar um movimento no sentido de

explicitar os fundamentos epistemológicos da disciplina, como forma de se elaborar

metacritérios para a verificação crítica da adequação dos modelos e das teorias

propostos.

No desenvolvimento desse movimento que levaria a Epistemologia da

Geografia do “implícito e pontual ao explícito e generalizado” (AMORIM FILHO,

15 Os modelos podem ser compreendidos como aproximações seletivas destinadas a sumarizar relações complexas encontradas no mundo real (modelos operacionais) ou ilustrar uma teoria (modelos conceituais) (AMEDEO & GOLLEDGE, 1975: 75). Na primeira abordagem, os modelos se estruturam pela eliminação de detalhes e enfoque de aspectos fundamentais, relevantes ou interessantes da realidade, permitindo que estes possam ser organizados em esquemas de apresentação susceptíveis de generalização (CHORLEY & HAGGETT, 1967). Na segunda, posicionam-se como estruturas teóricas intermediárias, hábeis a tornar compreensíveis as relações fundamentais dentro de um dado sistema, por explorar as conexões entre seus elementos principais. Por não se referirem a um setor tão abrangente da realidade nem possuírem o grau de generalização e complexidade das teorias científicas, os modelos funcionam como instrumentos especulativos altamente eficientes, uma vez que revelam padrões perfeitamente identificáveis na porção ou aspecto da realidade sob investigação. Sua aplicação no ambiente teórico-metodológico da Nova Geografia permitiu tanto uma utilização mais crítica das teorias assimiladas de outros campos do conhecimento, quanto a construção de novas teorias eminentemente geográficas, alavancando o desenvolvimento da perspectiva nomotética, em bases científicas mais sólidas.

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1993), os “novos geógrafos” aproximaram-se das teses neopositivistas, elaboradas,

no período entre guerras, pelos pensadores vinculados ao “Círculo de Viena” (Moritz

Schlick, Herbert Feigl, Friedrich Waismann, Hans Hahn, Otto Neurath, Rudolf

Carnap, Gustav Bergmann, dentre outros). Tais teses podem ser assim

sistematizadas (REALE & ANTISERI, 1990: 994):

a) afirmação do princípio da verificação como critério de determinação da

significância das proposições científicas, ou seja, como “critério de distinção entre

proposições sensatas e proposições insensatas”, que permite, por sua vez, a

delimitação entre a esfera da “linguagem sensata”, apta a exprimir a realidade, e

aquela própria da “linguagem sem sentido”, que “leva à expressão o mundo das

nossas emoções e dos nossos medos”;

b) atribuição, por intermédio do princípio acima recortado, do status de

“proposições sensatas” (que apresentam sentido) apenas às proposições passíveis

de verificação empírica e factual;

c) reconhecimento do caráter tautológico da matemática e da lógica, que,

em si mesmas, enquanto conjunto de proposições que concernem a idéias e não a

fatos, apresentam caráter eminentemente convencional, o que as torna “incapazes

de dizer algo sobre o mundo”;

d) compreensão da metafísica, da ética e da religião como conjuntos de

questões aparentes (Scheinfragen) que, por não serem construídas a partir de

proposições factualmente verificáveis, encontram-se baseadas em pseudoconceitos

(Scheinbegriffe);

e) reconhecimento da filosofia não como doutrina, mas como “atividade

clarificadora da linguagem”, cuja tarefa primordial consistiria na “análise da

semântica (relação entre linguagem e realidade à qual a linguagem se refere) e da

sintática (relações dos sinais de uma linguagem entre si) do único discurso

significante, isto é, do discurso científico”.

Já se encontrando presente no artigo pioneiro de SCHAEFER

(1953/1977), a influência dessas teses pode ser muito bem percebida nos principais

trabalhos de fundamentação epistemológica da Nova Geografia, em particular nas

monografias de BUNGE (1962) e HARVEY (1969). Nestas, a explicação científica

constitui uma “espécie de especulação controlada”, que se inicia pela realização de

observações destinadas a perceber a existência de padrões no mundo e a

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conseqüente formulação de explicações para as regularidades encontradas.

Posteriormente, o cientista realiza testes ou experimentações destinados a provar a

veracidade das explicações que ele formula. Nessa perspectiva, somente quando as

idéias conseguem ser testadas com sucesso, tomando-se dados diferentes daqueles

originalmente utilizados para obtê-las, pode-se realizar uma generalização

cientificamente válida (JOHNSTON, 1986:100).

Não se deve, contudo, assimilar essa aproximação das teses

neopositivistas a um simples esforço, empreendido pela Nova Geografia, de

validação do processo de construção de leis espaciais, em particular de leis

explicativas da localização dos fenômenos geográficos. Embora estas tenham

estado no centro de muitos dos trabalhos de revisão das teorias gestadas no seio da

Economia Espacial, próprios da primeira fase de afirmação da perspectiva

nomotética, em certos círculos acadêmicos a preocupação com a formulação de leis

espaciais não alicerçou, em nenhum momento, o movimento de teorização. Assim,

e.g., os trabalhos do grupo fundado por Edward Ullman, na Universidade de

Washington, voltaram-se para o estabelecimento de modelos explicativos da

dinâmica de interação entre os elementos que conformavam a organização do

espaço geográfico. Já as pesquisas de Torstein Hägerstrand e de muitos geógrafos

suecos adeptos da nova perspectiva centraram-se na explicação, segundo modelos

têmporo-espaciais, do papel desempenhado pelos circuitos de informação na

difusão de fenômenos geográficos. Uma visão mais ampla da Nova Geografia

sugere, assim, que a explicitação epistemológica que ela veio a promover organiza-

se ao redor da busca de conformação de uma perspectiva de reflexão geográfica

capaz, sob diferentes enfoques, de explicitar os processos econômicos e sociais de

organização do espaço (CLAVAL, 2001b: 165-176).

Dessa maneira, a adesão dos novos geógrafos às teses neopositivistas

deve ser compreendida como produto da consolidação da análise espacial, como

forma de explicação do papel desempenhado pelo espaço no funcionamento dos

grupos humanos (AMORIM FILHO, 1983:21-22). Essa abordagem geográfica

funcionalista constitui um reflexo das profundas mudanças experimentadas pelas

sociedades industrializadas na primeira metade do século XX, em particular sua

crescente transformação em sociedades marcadas pelo fenômeno urbano e pelo

domínio tecnológico do meio ambiente. Ela se propõe substituir os temas centrais da

Geografia vidaliana, voltados para a explicação dos modos pelos quais os grupos

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humanos se adaptam a diferentes configurações regionais dos sistemas ambientais,

por um programa de pesquisa mais consentâneo com a transformação do espaço

em um elemento relevante nos processos de tomada de decisão de “agentes

geográficos” – Estado, empresa, grupos sociais, indivíduos (CLAVAL, 2001c: s.p.).

Precipuamente, sua atenção se volta, por conseguinte, para as variáveis

econômicas e sociais que interferem nas decisões individuais e coletivas sobre os

modos de apropriação do espaço, bem como para as repercussões dessas decisões

nos processos de interação entre os agentes que procuram implementá-las.

1.1.3. Os efeitos terapêuticos da Nova Geografia

Evidentemente, a funcionalização da reflexão geográfica permitiu à

Geografia formar fileiras com as demais disciplinas científicas que se propunham a

sugerir soluções para os problemas relacionados com a organização do espaço.

Revela-se, assim, um primeiro efeito terapêutico16 da explicitação epistemológica

da Nova Geografia, sentida no plano do estabelecimento de pontes mais sólidas

entre a reflexão promovida nos círculos acadêmicos e a geografia aplicada própria

dos centros e instituições devotados ao planejamento espacial. Uma análise mais

refinada do processo de aproximação entre a Geografia científica e as teses

neopositivistas permite, porém, a revelação de um segundo efeito terapêutico, ou,

em melhores termos, de um efeito terapêutico de segunda ordem, decorrente da

assimilação das teses do Círculo de Viena: a reconstrução da unidade do

conhecimento geográfico.

De fato, os estudos organicistas pioneiros de Friederich Ratzel permitiram

a elaboração, no âmbito da Geográfica científica, dos primeiros rudimentos da

diferenciação entre a geografia humana e a geografia física, alicerçados em suas

16 A expressão efeito terapêutico é aqui utilizada tanto na acepção deweyniana, da aptidão da reflexão filosófica para tornar “a mente dos homens mais sensível à vida que os cerca” (DEWEY, 1946:22), quanto em sua expansão promovida por Richard Rorty, como a orientação negativa conferida por essa mesma reflexão, que a compele a sugerir aqueles problemas que não devem ser discutidos para que essa sensibilidade possa aflorar. Para RORTY (1998:21), “uma maneira de tornar-se mais sensível às conquistas e à promessa de seu próprio tempo é parar de fazer perguntas que foram formuladas em outros tempos”. Dessa forma, “os grandes filósofos do ocidente devem ser lidos como terapêuticos ao invés de construtivos, como nos dizendo que problemas não discutir” (cf., também, RORTY, 1979:5-7).

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pesquisas sobre as relações estabelecidas com o espaço geográfico pelos grupos

humanos intrinsecamente dependentes da natureza (Naturvölker) e as sociedades

tecnicamente mais avançadas (Kulturvölker), que o levaram a esboçar o conceito de

“gênero de vida”, de singular importância para o desenvolvimento da geografia

regionalista francesa (AMORIM FILHO, 1982:08; CAVAL, 2001a:65-66). No final do

século XIX, a perspectiva inaugurada pelos estudos ratzelianos vem a sofrer,

entretanto, profunda revisão, em razão do movimento, operado no seio das ciências

sociais, no sentido de se afirmar a posição epistemológica especial dos estudos do

funcionamento e das mudanças da sociedade.

Influenciados, sobretudo, pelo historicismo de Dilthey e Misch, muitos

programas de pesquisa das ciências sociais passaram a ter por orientação

fundamental a negação da possibilidade de serem formuladas leis universalmente

válidas para a descrição social, com a conseqüente retração da relevância, nos

estudos das sociedades, do princípio da causalidade. Subjacente a essa postura

encontrava-se uma visão dualista da pesquisa científica, que procurava diferenciar o

método próprio das ciências histórico-sociais (Geisteswissenschaften) daquele das

ciências naturais (Naturwissenschaften), a partir de uma distinção metateórica

fundamental: enquanto estas se propunham a promover a explicação (Erklären) dos

fenômenos da natureza, as ciências histórico-sociais se contentavam em entender

(Verstehen) os processos sociais (HABERMAS, 1984:108).

Em decorrência dessa ruptura metodológica, tornou-se assaz complexo

para os geógrafos do final do século XIX, trabalhando sob inspiração dos

pressupostos epistemológicos implícitos da escola clássica alemã, afirmar a unidade

do conhecimento geográfico. A impossibilidade de abordar, de maneira direta, essa

concreta ameaça de cisão da própria Geografia científica, teve por conseqüência o

afloramento do problema de se afirmar a singularidade do método geográfico, com

apelo às relações específicas que se estabelecem entre um corpo de conhecimentos

geográficos gerais e sua aplicação na demarcação e no estudo de unidades

espaciais de investigação geográfica (CLAVAL, 2001a:69).

Tal necessidade pode muito bem ser sentida no esforço de Alfred Hettner

para explicitar o método e o sistema da Geografia como forma de promover uma

ampliação do alcance temático e metodológico das investigações promovidas no

seio da disciplina. HETTNER (1895/1975) não só afirmou ser o método geográfico o

elemento que confere unidade à Ciência Geográfica, como procurou fixar as suas

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linhas retoras fundamentais na relação estabelecida entre a geografia especial ou

regional (Landerkunde) e a geografia geral comparada (allgemeine vergleichende

Landerkunde), a partir da explicação das razões da interdependência dos

fenômenos (Erklarung) que compõem unidades territoriais específicas

(Landschaft)17. Sob esse enfoque metodológico, o objeto privilegiado da Geografia

tornou-se, por conseguinte, o espaço concreto e sua diferenciação regional

(AMORIM FILHO, 1982:09, CLAVAL, 2001a:75).

A estratégia de Hettner permitia à Geografia, assim, reconhecer a si

mesma como uma disciplina científica una, apesar de se debruçar na investigação

tanto de fatores naturais, quanto de fatores humanos de conformação do espaço

geográfico, cada qual sujeito a diferentes modos de análise e compreensão. Sob

essas bases iniciais, a geografia vidaliana faria, então, assentar a unidade teórica da

disciplina em um princípio de conexão entre os diversos fatores naturais e

humanos que interagem reciprocamente na estruturação dos aspectos fundamentais

das paisagens concretas, a partir de um pressuposto metateórico possibilista: dentro

de certos limites, a natureza oferece possibilidades para o desenvolvimento das

sociedades humanas. Estas, por seu turno, ao utilizarem as possibilidades em

questão, por intermédio de meios tais como a cultura e a tecnologia, modificam a

natureza.

Observe-se que essa estratégia se aproximava, e muito, da reação dos

neokantianos Wilhelm Windelband e Heinrich Rickert ao historicismo diltheyano,

fundamentada na negação de uma distinção de base objectual entre as ciências

histórico-sociais e naturais e sua reconstrução em termos, exatamente, da

diferenciação entre ciências nomotéticas e ciências idiográficas (REALI &

ANTISIERI, 1991:460-462), abordagem que, como visto, encontra-se na base dos

princípios teórico-metodológicos hartshorneanos. Malgrado os esforços de

WINDELBAND (1894/1949), o próprio RICKERT (1902/1986; 1910/1943), na virada

para o século XX, já reconhecia a impossibilidade lógica de se construir uma

concepção estritamente idiográfica da atividade científica (HABERMAS, 1988:03-06).

A análise da obra de Hettner sugere que sua proposta teórico-metodológica

17 Evita-se aqui, propositadamente, relacionar o conceito de Landschaft aos de região ou paisagem, não só em virtude da inexistência de perfeita correspondência entre eles (AMORIM FILHO, 1982:09), como em razão do papel que o presente trabalho a ele reserva, no processo de reconstrução do sentido substantivo das paisagens culturais.

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igualmente não tinha por escopo reduzir a Geografia à descrição de acontecimentos

únicos, pois a relação entre a Landerkunde e a allgemeine vergleichende

Landerkunde apresentava uma consistência retroalimentadora. Se a primeira

procurava descrever a singularidade de unidades territoriais, ela também contribuía

inevitavelmente para a construção do arcabouço interpretativo da Geografia geral

comparada.

Para VIDAL DE LA BLACHE (1894/1921), a Geografia também seria

inconcebível como disciplina científica caso se dividisse em “duas partes de valor

desigual: um estudo geral, que seria a ciência da Terra, e uma série de descrições

sem método e sem razão”. Daí ser o problema central da Ciência Geográfica ao

mesmo tempo difícil e belo: “compreender o conjunto dos caracteres que compõem

a fisionomia de um lugar, o encadeamento que os liga e, neste encadeamento, uma

expressão das leis gerais do organismo terrestre”. O recurso a uma categoria de

explicação da realidade geográfica que buscava promover uma síntese de fatores

sujeitos a princípios gnoseológicos tão díspares para a construção de quadros

intelectivos globais, contudo, fazia da realidade regional concreta o locus específico

de superação da tensão entre a explicação dos fenômenos naturais e o

entendimento dos processos sociais.18

Assim estruturada, a perspectiva vidaliana da tensão Erklären/Verstehen,

pela própria necessidade de lançar mão da conjugação de fatores naturais e sociais

na elaboração de sua concepção possibilista, distanciava-se da compreensão que

dela fazia a reflexão epistemológica promovida por Max Weber. Como discípulo de

Rickert, WEBER (1904-1919/1995) entendia que as Geisteswissenschaften não

poderiam reduzir seu interesse ao estudo de regularidades empíricas, mas sua

obtenção, por recurso a explicações causais axiologicamente referenciadas,

constituía um passo necessário, um trabalho preparatório inafastável para a

subseqüente interpretação de realidades histórico-sociais concretas. Em sua obra,

por conseguinte, não há propriamente uma tensão entre os dois processos

gnoseológicos explicitados por Dilthey, mas sim uma designação de seus

específicos papéis teórico-metodológicos (HABERMAS, 1988:10-16).

18 Daí porque, assim como na obra de Hettner, a região apresenta, no pensamento vidaliano, um papel unificador fundamental (BERDOULAY, 1995:206).

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Dessa forma, se de um lado o possibilismo vidaliano permitiu uma

adequada acomodação da dicotomia Erklären/Verstehen na formulação das bases

epistemológicas implícitas da reflexão geográfica, por outro, ele tornou a Geografia

imune à reformulação dos termos da visão dualista das ciências, seja a partir da

perspectiva weberiana, seja em virtude do surgimento dos novos reclames de

especificidade dos métodos das Geisteswissenschaften que esta última suscitou,

associados à recepção pela Sociologia das abordagens fenomenológica de Hurssel

e Schutz, analítico-lingüística de Wittgenstein e Winch, e hermenêutica de Heidegger

e Gadamer (HABERMAS, 1984:108-109, cf., também, APEL, 1984). Em decorrência,

a Geografia acadêmica se distanciou, cada vez mais, tanto da auto-imagem das

ciências naturais, quanto daquelas que, durante a primeira metade do século XX, se

consolidaram como as variantes essenciais da auto-imagem das ciências sociais.

Esse distanciamento, evidentemente, fez pairar sobre a disciplina a ameaça da

perda de seu lugar no rol das atividades intelectuais ditas científicas.

O neopositivismo do Círculo de Viena, entretanto, assentava sua reflexão

epistemológica sobre a defesa do conceito de unidade do método científico, erigido

a partir da aplicação sistemática do princípio da verificação, negando, assim, a

especificidade dos métodos das ciências sociais. Em decorrência, a sua assimilação,

como alicerce metateórico da reflexão promovida pela Nova Geografia, permitia a

aproximação da disciplina de uma nova e unificada auto-imagem das ciências, muito

propícia ao equacionamento do próprio problema da unidade do conhecimento

geográfico.

Não se pode perder de vista, contudo, que a penetração das teses

fundamentais do neopositivismo ou positivismo lógico, no seio da reflexão

epistemológica promovida pela Nova Geografia, também conferiu maior densidade

teórico-metodológica ao movimento, acentuando sua preocupação com o rigor na

construção e utilização de modelos e teorias, e impulsionou a discussão específica,

nos meios acadêmicos, do papel desempenhado pelas elaborações teóricas na

edificação do conhecimento geográfico. A explicitação epistemológica que esse

movimento de assimilação proporcionou permitiu à comunidade geográfica dotar-se

de subsídios para estabelecer uma postura mais reflexiva sobre o próprio arsenal

metodológico que se encontrava à sua disposição e, por via de conseqüência,

posicionar-se criticamente sobre o debate que se instalou, no âmbito da própria

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Filosofia da Ciência, a respeito da adequação das teses advogadas pelos

integrantes do Círculo de Viena.

1.2. O PAPEL DAS TEORIAS CIENTÍFICAS REVISITADO: CRÍTICAS ÀS PRESSUPOSIÇÕES EPISTÊMICAS DA NOVA GEOGRAFIA

1.2.1. “A indução não existe”: o racionalismo crítico de Popper e o “novo espírito científico” de Bachelard

O relato neopositivista sobre a evolução do pensamento científico toma

por base “um modelo de ciência fundado sobre protocolos observáveis e sobre um

sistema de enunciados certos e definitivos”, alicerce fundamental a partir do qual a

aplicação do princípio da verificação permite a construção do edifício do

conhecimento (BODEI, 2000:136). Esse relato seria, entretanto, ainda no período

entre guerras, posto em xeque. Dois filósofos de origem e formação distintas, Karl

Raimund Popper e Gaston Bachelard, em suas respectivas análises do processo de

evolução das ciências, desenvolveram argumentos hábeis a minar precisamente a

solidez dos pilares centrais sobre os quais se escoravam as teses do Círculo de

Viena.

Coube a POPPER (1934/1999) a crítica mais direta ao neopositivismo. As

teses centrais de seu racionalismo crítico apresentam todos os elementos para uma

completa subversão das premissas fundamentais que embasavam a epistemologia

dos circulistas.19 Na perspectiva popperiana, a ciência não é concebida como um

19 De fato, “Popper embaralhou todas as cartas com as quais os neopositivistas estavam jogando o seu jogo: substituiu o princípio de verificação (que é princípio de significância) pelo critério de falseabilidade (que é critério de demarcação entre ciência e não-ciência); substituiu a velha e venerável, mas, em sua opinião, impotente teoria da indução pelo método dedutivo da prova; deu interpretação diferente da interpretação de alguns membros do Kreis a respeito dos fundamentos empíricos da ciência, afirmando que os protocolos não são de natureza absoluta e definitiva; reinterpretou a probabilidade, sustentando que as melhores teorias científicas (enquanto implicam mais e podem ser mais bem verificadas) são as menos prováveis; rejeitou a antimetafísica dos vienenses, considerando-a simples exclamação, e, entre outras coisas, defendeu a metafísica como progenitora de teorias científicas; rejeitou também o desinteresse de muitos circulistas em relação à tradição e releu em novas bases filósofos como Kant, Hegel, Stuart Mill, Berkeley, Bacon, Aristóteles, Platão e Socrátes para chegar a uma estimulante releitura, em bases epistemológicas, dos pré-socráticos, vistos como criadores da tradição de discussão crítica; [...] rejeitou a diferença entre termos teóricos e termos observativos; contra o convencionalismo de Carnap e Neurath, ou seja, a chamada ‘fase sintática’ do Kreis, fez valer, na linha de Tarski, a idéia reguladora da verdade” (REALE & ANTISIERI, 1990:1020).

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corpo de conhecimentos estabelecido por intermédio de generalizações derivadas

de protocolos observáveis, mas é vista como elaborada a partir de sistemas de

hipóteses, ou seja, sistemas de conjecturas e antecipações que não admitem, em

princípio, justificação, sistemas, portanto, cujas hipóteses o cientista não se encontra

em condições de declarar verdadeiras, ou mais ou menos certas ou mesmo

prováveis, mas que ele pode utilizar enquanto puderem sobrepujar os testes a que

forem submetidos.

Essa concepção tem por pressuposto a rejeição do princípio da indução.

Para Popper, a possibilidade de generalizações serem realizadas a partir de um

conjunto finito de proposições de observação não encontra suporte lógico, pois,

independentemente de quão numerosos sejam os enunciados singulares formulados

por intermédio da observação empírica, a inferência de enunciados universais

sempre poderá ser contraditada por uma observação singular futura. Existiria, assim,

uma incontornável assimetria lógico-estrutural entre proposições singulares de

observação e enunciados universais que impediria o reconhecimento da validade de

generalizações produzidas pelo princípio da indução20. Para se usar um exemplo do

próprio Popper, “independentemente de quantos cisnes brancos possamos

observar, isso não justifica a conclusão de que todos os cisnes são brancos”, pois

sempre o próximo cisne a ser observado pode apresentar uma penugem de

coloração diferente (POPPER, 1999:28).

O relato popperiano reconhece, contudo, que a impossibilidade de

justificação do princípio da indução em bases meramente lógicas não é suficiente

para sua decisiva refutação, pois alguns neopositivistas, como CARNAP (1966),

buscam seu fundamento com recurso a inferências probabilísticas. Nesse recuo para

a probabilidade, o princípio da indução deixa de ser fundamento para a formulação

20 Essa impossibilidade lógico-estrutural torna forçoso o recurso à experiência como fundamento do princípio da indução. É dizer, a justificação do princípio repousaria sobre seu repetido sucesso na derivação de diferentes leis e teorias. O argumento apresentaria o seguinte formato: o princípio de indução foi bem-sucedido na derivação da lei A, o princípio da indução foi bem-sucedido na derivação da lei B ...., o princípio da indução foi bem sucedido na derivação da lei Z; logo, o princípio da indução é sempre bem-sucedido. HUME (1739-1740/2000), ainda no século XVIII, demonstrou ser essa forma de justificação inaceitável, pois, em verdade, nela, recorre-se ao próprio princípio que se pretende justificar, para se estabelecer seu fundamento. POPPER (1999:29) observa que faltou a Hume extrair de suas conclusões todo seu potencial epistemológico. De fato, apesar de negar a possibilidade de justificação do princípio da indução, por não haver razão para se extrair da experiência qualquer conclusão que ultrapasse as instâncias passadas, Hume adotou uma posição segundo a qual crenças em leis e teorias nada mais são do que hábitos adquiridos como resultado de repetições das observações relevantes (RUSSELL, 1995:665; MUSGRAVE, 1993:152).

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de generalizações perfeitamente verdadeiras e passa a justificar, tão-somente,

assertivas provavelmente verdadeiras, do tipo: Se um grande números de A’s foi

observado sob uma ampla variedade de condições, e se todos esses A’s

observados, sem exceção, possuíam a propriedade B, então todos os A’s

provavelmente possuem a propriedade B.

No contexto do racionalismo crítico, entretanto, o apelo à probabilidade de

uma hipótese não é capaz de melhorar a precária situação lógica da Lógica indutiva

por duas razões fundamentais. Em primeiro lugar, nega-se a existência de

probabilidades de hipóteses, que não se confundem com probabilidades de eventos

ou de enunciados (POPPER, 1999:279-288). Em segundo, o princípio da indução,

mesmo em termos probabilísticos, apresenta natureza universal: ele implica,

baseado em um número limitado de proposições singulares de observação, “que

todas as aplicações do princípio levarão a conclusões provavelmente verdadeiras”

(CHALMERS, 1999:52). Por conseguinte, as tentativas de sua verificação malogram,

pois conduzem, ou à admissão apriorística de sua verdade, ou a uma regressão ad

infinitum.21

Negando assim, de forma peremptória, que o processo de construção das

ciências tenha como ponto de partida o desenvolvimento de generalizações

derivadas de proposições de observação, Popper admite livremente o caráter

especulativo das teorias científicas, cuja verdade não pode ser estabelecida pelo

princípio da indução. Em decorrência, tais teorias não podem ser verificadas, como

sugerem os neopositivistas, mas devem ser criticadas com o auxílio do teste

empírico, para estabelecer se são corroboradas ou falseadas pela realidade. A

tarefa do cientista, portanto, consiste em averiguar, de modo rigoroso, até que ponto

21 Nesse sentido, adverte POPPER (1999:290), “a maioria dos que aceitam a Lógica probabilística defende o conceito de que se chega à apreciação [enunciado que descreve uma teoria como provável] por meio de um ‘princípio de indução’, que atribui probabilidades às hipóteses induzidas. Se, contudo, por sua vez eles atribuírem uma probabilidade a esse princípio de indução, a regressão infinita continuará. Se, por outro lado, atribuírem ‘verdade’ a esse princípio, ver-se-ão compelidos a escolher entre regressão infinita e apriorismo [...] Dessa maneira, nada se ganha com a substituição da palavra ‘verdadeira’ pela palavra ‘provável’ e da palavra ‘falsa’ pela palavra ‘improvável’. Somente se levarmos em conta a assimetria entre verificação e falseamento – assimetria que resulta da relação lógica entre teorias e enunciados básicos – será possível evitar as dificuldades do problema da indução”.

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uma hipótese teórica é capaz de se manter incólume e resistir aos testes a que

venha a ser submetida.22

Assim formuladas, as teorias são construções provisórias que devem se

expor à possibilidade de refutação por intermédio de testes e experimentos, razão

por que sua estrutura deve ser tal que não haja ambigüidades capazes de protegê-la

do processo de falseamento. A ciência progride sempre por tentativas e erros, por

conjecturas e refutações, sendo seu ponto de partida não a observação sensível,

mas a especulação teórica, razão por que o cientista deve desistir de perseguir o

“ídolo” de um conhecimento absolutamente certo, objetivo e definitivo, cuja

veneração impede não apenas a audácia na formulação das questões a serem

investigadas, como também o rigor lógico dos controles necessários ao processo de

refutação. Nessa ambiência, “a visão errônea da ciência se trai a si mesma na ânsia

de estar correta, pois não é a posse do conhecimento, da verdade irrefutável, que

faz o homem de ciência – o que o faz é a persistente e arrojada procura crítica da

verdade” (POPPER 1999:308).

Essa mesma negação do papel central do princípio da verificação na

construção dos esquemas teóricos sobre os quais se assenta o conhecimento

científico, princípio que constituía o postulado fundamental do neopositivismo

professado pelo Círculo de Viena, pode ser encontrada na epistemologia de Gaston

Bachelard. Procurando dar continuidade à extensa tradição filosófica francesa de

reflexão sobre a ciência (Meyerson, Poincaré, Duhem), suas proposições não

reconhecem, seja no empirismo de índole baconiana, seja no racionalismo idealista,

cujas raízes podem ser traçadas até Locke, a filosofia que o conhecimento científico

merece (REALE & ANTISIERI, 1990:1011). Para o autor, tanto o real absoluto

perseguido pelo primeiro, quanto a razão absoluta que orienta o segundo, são dois

conceitos filosoficamente inúteis para a explicação do “espírito científico”, pois a

22 Sendo as teorias interpretadas, no contexto epistemológico do racionalismo crítico, como “conjecturas especulativas ou suposições criadas livremente pelo intelecto humano no sentido de superar problemas encontrados por teorias anteriores e dar uma explicação adequada do comportamento de alguns aspectos do mundo ou universo” (CHALMERS, 1999:60), Popper admite ser a observação orientada pelas formulações teóricas.

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realidade que é objeto das ciências apresenta sempre um valor convencional, sendo

resultado de uma retomada do mundo em um sistema teórico.23 Em conseqüência, o

cientista nunca parte puramente do real. O conhecimento que produz é construído

“contra um conhecimento anterior, destruindo conhecimentos malfeitos e superando

o que, dentro do próprio espírito, constitui obstáculo à espiritualização”, ou seja,

transcendendo os próprios (pré)conceitos desse mesmo espírito científico

(BACHELARD, 1957:14).

Dessa forma, também segundo Bachelard, a ciência progride por tentativa

e erro. Em seu relato da evolução do conhecimento científico, cujo mecanismo

gerativo sempre se situa no choque entre especulações inovadoras e teorias

estabelecidas no passado, a verdade se constrói como erro retificado, e o “espírito

científico é essencialmente retificação do saber, ampliação dos esquemas do

conhecimento”, que, ao promover a substituição de esquemas conceituais e

metodológicos anteriormente estabelecidos, provoca rupturas (coupures)

epistemológicas (BACHELARD, 1934/1975a:177-183). Tais rupturas, quando

representam a negação dos elementos fundamentais que forneciam suporte à

pesquisa na fase anterior, podem realizar uma completa transformação das

orientações fundamentais de uma disciplina científica.

Note-se, portanto, que tanto no relato de Bachelard quanto na reflexão

epistemológica de Popper, a concepção tradicional que tomava a evolução das

ciências como um processo contínuo, de caráter cumulativo, é afastada em prol de

esquemas interpretativos mais sofisticados, que acentuam a possibilidade de

modificações (no esquema popperiano) e mesmo viragens (na espistemologia

bachelardiana) teórico-metodológicas. No racionalismo crítico, as mudanças teórico-

metodológicas decorrem da refutação ou falsificação de teorias e sua substituição

por novas hipóteses especulativas; no modelo de Bachelard, ela deriva de uma

ruptura com o conhecimento tradicional, uma radical retificação do saber

previamente estabelecido promovida pelo espírito científico.

23 Essa perspectiva reconstrutivista seria, na década de 1960, retomada e avançada por Michel Foucault, na elaboração de seu conceito de episteme como “o conjunto das relações que podem unir, numa dada época, as práticas discursivas que dão lugar às figuras epistemológicas, às ciências, eventualmente a sistemas formalizados”. Nessa perspectiva “a episteme não é uma forma de conhecimento ou um tipo de racionalidade que, atravessando as mais diversas ciências, manifestaria a unidade soberana de um sujeito, de um espírito ou de uma época; é o conjunto das relações que podemos descobrir, para uma época dada, entre as ciências, quando as analisamos ao nível das regularidades discursivas.” (FOUCAULT, 1969:250)

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Sem embargo dessa nota comum, o esquema de refutações sucessivas

de Popper apresenta uma natureza mais linear do que o modelo de rupturas

epistemológicas proposto pelo filósofo francês. Para o racionalismo crítico, o teste

empírico constitui instância privilegiada de definição da operacionalidade de uma

teoria, de modo que, por seu intermédio, sempre se pode definir as elaborações

teóricas hábeis, em dado momento histórico, a oferecer suporte para o trabalho

científico. Essa definição se faz pela corroboração mais ou menos continuada

dessas elaborações, de modo que

uma teoria que mereceu ampla corroboração só pode ceder passo a uma teoria de mais alto grau de universalidade, ou seja, a uma teoria passível de submeter-se a melhores testes e que, além disso, abranja a teoria anterior e bem corroborada – ou, pelo menos algo que lhe aproxime muito. (POPPER, 1999:303)

Dessa maneira, para Popper, o teste empírico tenderia sempre a provocar

a substituição de determinado esquema teórico por outro de grau de refutação

tendencialmente superior ao da teoria substituída, independentemente dos

condicionantes históricos de produção do conhecimento científico.

Muito embora tome como ponto de partida a idéia de que a evolução das

ciências é fruto do descarte de “erros cada vez mais sutis”, a reflexão de Bachelard

situa a retificação do conhecimento científico no devir histórico de sua construção.

Dessa maneira, ela reconhece a existência de resistências ao advento das rupturas

com o conhecimento já estabelecido. Segundo a epistemologia bachelardiana, as

condições psicológicas do progresso científico indicam que existem obstáculos à

transformação teórica. Tais obstáculos não são externos às condições do

conhecimento científico, mas resultam de uma “necessidade funcional” que pode ser

identificada “no próprio interior do ato cognoscitivo”, como a permanência de hábitos

intelectuais cristalizados e a conseqüente dogmatização ideológica de certas

elaborações teóricas (BACHELARD, 1957; 1934/1975a).24

24 Daí por que entender Bachelard que a Filosofia da Ciência se deve deixar instruir pelo caráter mutável do conhecimento científico, transformando-se em uma filosofia do não, uma “filosofia aberta, como a consciência de espírito que se fundamenta trabalhando sobre o desconhecimento e procurando no real o que contradiz conhecimentos anteriores” (BACHELARD, 1940/1975b:09)

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1.2.2. As teorias científicas como estruturas: as “revoluções científicas” de Kuhn e os “programas de pesquisa” de Lakatos

Ao identificar a presença desses “obstáculos epistemológicos”, Bachelard

acaba por reconhecer implicitamente que as teorias científicas apresentam uma

natureza mais complexa do que aquela que deixam transparecer as concepções do

racionalismo crítico. Com efeito, o relato popperiano não é capaz de perceber que as

elaborações teóricas apresentam-se como estruturas complexas, capazes de

desenvolver mecanismos de defesa contra tentativas de refutação, sem

necessariamente reduzir o seu potencial de falseamento, ou seja, sem diminuir sua

capacidade de fornecer explicações especulativas hábeis a serem objeto de testes e

críticas.25 Em outros termos: como estruturas complexas, as teorias se organizam de

modo a permitir que alguns de seus elementos estruturais forneçam coesão teórico-

metodológica suficiente para o desenvolvimento de hipóteses auxiliares, capazes de

absorver o impacto daqueles testes empíricos cujos resultados se apresentem em

aparente contrariedade às explicações derivadas de suas teses centrais. Tais

hipóteses auxiliares impedem, portanto, que tentativas sérias de refutação venham a

pôr abaixo todo o edifício conceitual construído em determinado ambiente teórico, o

25 Um exemplo hipotético oferecido por LAKATOS (1974:100-101) demonstra com clareza esses sofisticados mecanismos de que o cientista pode lançar mão, no intuito de proteger a teoria com que trabalha de tentativas de refutação: “A história é sobre um caso imaginário de mau comportamento planetário. Um físico da era pré-einsteiniana toma a mecânica de Newton e sua lei da gravidade, N, como as condições iniciais aceitas, I, e calcula, com sua ajuda, o percurso de um pequeno planeta recentemente descoberto p. Mas o planeta desvia-se do percurso calculado. Por acaso, nosso físico considera que o desvio era proibido pela teoria de Newton e, portanto, que, uma vez estabelecido, refuta a teoria N? Não. Ele sugere que deve haver um desconhecido planeta p', que perturba o percurso de p. Ele calcula a massa, a órbita etc. de seu hipotético planeta e pede então a um astrônomo experimental que teste sua hipótese. O planeta p' é tão pequeno que mesmo os maiores telescópios disponíveis não podem observá-lo; o astrônomo experimental pede uma verba de pesquisa para construir um ainda maior. Em três anos o novo telescópio está pronto. Se o desconhecido planeta p' for descoberto será uma nova vitória para a ciência newtoniana. Mas não é. E o nosso cientista abandona a teoria de Newton e sua idéia de um planeta perturbador? Não. Ele sugere que uma nuvem de poeira cósmica esconde-nos o planeta. Calcula a localização e as probabilidades dessa nuvem e pede uma verba de pesquisa para mandar um satélite testar seus cálculos. Se os instrumentos do satélite (possivelmente de tipo novo, baseados numa teoria pouco testada) registrarem a existência da nuvem conjectural, o resultado será visto como uma notável vitória para a ciência newtoniana. Mas a nuvem não é descoberta. O nosso cientista abandona a teoria de Newton, junto com sua idéia do planeta perturbador e a idéia da nuvem que o esconde? Não. Ele sugere que há algum campo magnético naquela região do universo que perturbou os instrumentos do satélite. Um novo satélite é enviado. Se o campo magnético for encontrado, os newtonianos celebrarão uma vitória sensacional. Mas ele não é. Isto é visto como uma refutação da física newtoniana? Não. Ou uma outra engenhosa hipótese auxiliar é proposta ou...a história toda é enterrada nos valores empoeirados de publicações periódicas e nunca mais será mencionada.”

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que aponta no sentido da insuficiência do modelo popperiano para a explicação do

processo de evolução do pensamento científico.

Uma proposta alternativa ao racionalismo crítico, que acentua ainda mais

o caráter descontínuo sugerido, na epistemologia bachelardiana, como nota

intrínseca das mudanças de orientação teórico-metodológicas, foi formulada por

Thomas S. Kuhn ao acoplar à historicidade do conhecimento científico uma

compreensão dos aspectos peculiares da sociologia das comunidades acadêmicas,

em obra de grande impacto sobre as concepções em voga, durante a década de

1960, na Filosofia das Ciências de matriz anglo-americana: The structure of scientific

revolutions (orig. 1962).

Para KUHN (1996), a ciência evolui a partir de ciclos, ou sucessões de

fases, historicamente seccionados uns dos outros, por profundas descontinuidades.

Em um primeiro momento, que traduz a pré-história de uma disciplina científica, a

reflexão em determinado campo do conhecimento apresenta-se bastante

desorganizada, porque seus praticantes não se encontram obrigados a assumir um

corpo de crenças comuns, o que lhes exige a permanente reconstrução do seu

campo de estudos desde os seus fundamentos basilares. Eventualmente, essa

atividade metodologicamente amorfa torna-se estruturada, em razão de alguma

realização científica que, tornando-se universalmente reconhecida, passa a fornecer

tanto os problemas quanto as soluções modelares para a comunidade dos

praticantes da ciência em consideração. A essas realizações científicas exemplares,

capazes de fornecer coesão teórico-metodológica a um campo do conhecimento,

transformando-se em “matrizes disciplinares”, KUHN denomina de paradigma. Em

razão de conterem “um conjunto de suposições teóricas gerais e de leis e técnicas

para sua aplicação” (CHALMERS, 1999:108), os paradigmas se impõem à

comunidade científica relevante, criando uma fase de “ciência normal”, ou seja, uma

fase de pesquisa em que os cientistas procuram desenvolver a proposta teórico-

metodológica contida na realização paradigmática.26

26 Como esclarece KUHN (1996:10), “ciência normal significa a pesquisa firmemente baseada em uma ou mais realizações científicas passadas. Essas realizações são reconhecidas durante algum tempo por alguma comunidade científica específica como proporcionando os fundamentos para sua prática posterior.” A coesão teórico-metodológica oferecida por tais realizações decorre de duas características essenciais. De um lado, elas se apresentam como “suficientemente sem precedentes para atrair um grupo duradouro de partidários, afastando-os de outras formas de atividade científica competitivas”. De outra parte, suas realizações se estruturam de forma “suficientemente aberta para deixar toda a espécie de problemas para serem resolvidos pelo grupo redefinido de praticantes da ciência”. Daí existir uma profunda conexão entre as idéias de ciência normal e paradigma, pois o que

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Note-se que, nos períodos de ciência normal, a atitude crítica que Popper

vislumbra como inerente a toda atividade científica não se encontra absolutamente

difundida. Em tais períodos, os cientistas se transformam em solucionadores de

“quebra-cabeças”, ou seja, deixam de criticar os fundamentos teórico-metodológicos

de sua disciplina para se concentrarem, tanto no trabalho de articulação detalhada

do paradigma, quanto no desenvolvimento de sondagens profundas da realidade a

partir do esquema exemplar.

Não se deve, contudo, compreender a pesquisa normal como desprovida

de desafios, um aspecto às vezes negligenciado na análise do relato de Kuhn. Nela

ocorre, simplesmente, uma modificação na natureza da motivação do trabalho

científico, pois o que impele o cientista a se debruçar sobre os problemas propostos

pelo paradigma que domina sua disciplina consiste na “convicção de que, se for

suficientemente habilidoso, conseguirá solucionar um quebra-cabeça que ninguém

até então resolveu ou, pelo menos, não resolveu tão bem” (KUHN, 1996:18). Dessa

forma, a ciência, mesmo nos períodos de forte coesão teórico-metodológica, se

manifesta como uma empresa humana em que seus partícipes se propõem a

resolver não apenas aqueles problemas já resolvidos em etapas anteriores de sua

evolução, mas também problemas novos (RORTY, 1998:23), um aspecto também

ressaltado por POLANYI (1974:102-104).

O sucesso da pesquisa normal levará à ampliação contínua do alcance e

da precisão do conhecimento científico, segundo as regras epistemológicas

propostas pelo paradigma dominante. Ocorre que nem sempre os esforços dos

cientistas normais são bem-sucedidos. Seus insucessos serão, muitas vezes,

interpretados em termos de inaptidão para desenvolver a proposta especulativa

contida no paradigma dominante. Eventualmente, contudo, os fracassos da pesquisa

normal podem levar ao surgimento da consciência de uma anomalia, ou seja, à

consciência de que, “de alguma maneira, a natureza violou as expectativas

paradigmáticas que governam a ciência normal” (KUHN, 1996:78).

A verificação de anomalias induz o “cientista normal” a volver seus olhos

para o campo da realidade em que esta se manifesta, explorando-o de modo a

promover ajustes nas construções teóricas de que se compõe o paradigma

pretende Kuhn sugerir com a introdução deste último é que “alguns exemplos aceitos na prática científica real – exemplos que incluem, ao mesmo tempo, lei, teoria, aplicação e instrumentação – proporcionam modelos dos quais brotam as tradições coerentes e específicas da pesquisa científica.”

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dominante. Também aqui a pesquisa normal deparará com esforços bem-sucedidos

e malsucedidos. Um acúmulo de anomalias, ou mesmo o surgimento de anomalias

particularmente graves, por confrontar regras epistemológicas centrais do paradigma

dominante, associado à tendência inerente aos cientistas normais de procurar reter

os quadros teórico-metodológicos em que trabalham, pode deflagrar, entretanto, um

período de crise no seio da comunidade científica. Esse período produz dois efeitos

fundamentais: “o obscurecimento do paradigma dominante e o conseqüente

relaxamento das regras que orientam a pesquisa normal”. Dessa maneira, a

pesquisa realizada nos períodos de crise “assemelha-se muito à pesquisa pré-

paradigmática, com a diferença de que no primeiro caso o ponto de divergência é

menor e menos claramente definido” (KUHN, 1996:84).

Em seu ápice, tal crise pode dar ensejo ao surgimento de uma nova

realização exemplar, um paradigma emergente, estruturador de uma proposta

teórico-metodológica completamente nova.27 Inicia-se, subseqüentemente, um

movimento de “migração” de cientistas do ambiente epistemológico do antigo

paradigma para aquele que caracteriza a nova proposta. Este, ao ganhar poder de

congregar ao redor de si um número crescente de membros da comunidade

científica, passa a orientar uma nova atividade científica normal, até que esta

“também encontre problemas sérios e o resultado seja uma outra revolução”

(CHALMERS, 1999:108).

A reflexão epistemológica de Kuhn toma a história das ciências como

marcada por profundas descontinuidades entre diversos sistemas teóricos, em

decorrência da superação sucessiva de paradigmas. Dessa forma, no relato

kuhniano, a afirmação de uma nova matriz disciplinar tende a assumir um caráter

hegemônico, marginalizando as realizações levadas a efeito sob a égide do

paradigma superado; de outra parte, as teorias científicas construídas sob a

inspiração de paradigmas distintos constituem construções especulativas

incomensuráveis.

Essa incomensurabilidade das teorias científicas elaboradas segundo

matrizes disciplinares diferentes pode ser considerada um dos traços mais

27 Esta não é, porém, a única resposta possível à crise paradigmática, pois pode ocorrer que, apesar do desespero dos cientistas normais, a pesquisa normal venha a solucionar o problema que a deflagrou, ou, então, este venha a ser posto de lado pela comunidade científica, para que seja solucionado posteriormente, por uma futura geração de cientistas normais, mais bem instrumentalizados para enfrentá-lo (KUHN, 1996:84).

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importantes do relato kuhniano. Para Kuhn, cientistas que trabalham em ambientes

paradigmáticos distintos aderem a conjuntos diferentes de padrões de análise, de

princípios metafísicos e de critérios de desenvolvimento do trabalho científico. Disso

decorre a impossibilidade de se estabelecer, por um critério objetivo, a superioridade

entre dois paradigmas, inexistindo, conseqüentemente, argumentos logicamente

convincentes que façam com que um cientista venha a abandonar determinado

ambiente teórico por outro de inspiração diversa.28 O caráter revolucionário das

viragens teórico-metodológicas, contudo, impede que os adeptos de paradigmas

rivais assumam conscientemente a incomensurabilidade entre suas matrizes

disciplinares, pois o cientista que adere a um novo paradigma o assumirá como uma

matriz disciplinar mais ajustada à pesquisa da realidade. Não se pode esperar, por

conseguinte, que ele confirme suas mudanças perceptuais diretamente. Como

observa KUHN (1996:115),

ao olhar a Lua, o convertido ao copernicismo não diz ‘costumava ver um planeta, mas agora vejo um satélite’. Tal locução implicaria afirmar que em um sentido determinado o sistema de Ptolomeu fora, em certo momento, correto. Em lugar disso, um convertido à nova astronomia diz: ‘Antes eu acreditava que a Lua fosse um planeta (ou via a Lua como um planeta), mas estava enganado’. Esse tipo de afirmação repete-se no período posterior às revoluções científicas, pois, se em geral disfarça uma alteração da visão científica ou alguma outra transformação mental que tenha o mesmo feito, não podemos esperar um testemunho direto sobre essa alteração.

A incomensurabilidade das matrizes disciplinares, entretanto, faz com que

o relato kuhniano aproxime os processos de evolução das ciências, das quais se

esperavam esforços de uma crescente correspondência entre o conhecimento

produzido e a realidade, dos processos, e.g., de transformação política ou de

modificação das tendências da crítica literária, campos em que a noção de

correspondência à realidade parece menos adequada.29 Nessa aproximação, Kuhn

28 Como salienta CHALMERS (1999:116-117), na epistemologia kuhniana “não há um critério único pelo qual um cientista deva julgar o mérito ou a promessa de um paradigma e, ainda mais, proponentes de programas competitivos aderirão a conjuntos diferentes de padrões e verão o mundo de formas diferentes e o descreverão numa linguagem diferente. O objetivo de argumentos e de discussões entre os partidários de paradigmas rivais deve ser antes a persuasão que a compulsão.” 29 Deve-se observar que o relato das revoluções científicas constrói-se a partir de achados da História das Ciências Naturais. Nesse sentido, sua perspectiva sociológica pode ser considerada inovadora, pois, se é verdade que a sociologia do conhecimento, a partir da década de 1920, foi aplicada campo após campo da atividade intelectual, ela não havia ainda ousado penetrar na senda daquela que havia se tornado “a mais prestigiosa, mais ameaçadora e, em meados do século, mais importante

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nega existir qualquer metalinguagem científica que pudesse, de um lado, demarcar a

ciência da não-ciência e, de outro, fosse capaz de reconstruir epistemologicamente o

edifício do conhecimento científico em todos os seus estágios históricos de

elaboração (RORTY, 1979:322-333). Ressalta o autor, dessa maneira, de modo

simultaneamente original e radical, a dependência que as decisões metodológicas

tem das teorias científicas previamente aceitas a partir da adesão a certa matriz

disciplinar.30

Contra essa concepção, insurgiu-se Imre Lakatos, que procurou revisar

alguns do elementos centrais do racionalismo crítico com o propósito de encontrar

fundamentos para “salvar” o projeto epistemológico de se estabelecerem, com rigor,

as fronteiras de demarcação entre a ciência e a não-ciência. Para LAKATOS (1980),

não se pode atribuir um caráter de cientificidade ou acientificidade a uma teoria

singular, mas sim a uma sucessão de teorias, articuladas em torno de um núcleo

fundamental constituído de “assunções pré-analíticas de tipo metafísico, e

conseqüentemente não falsificáveis” (BODEI, 2000:141). Cada sucessão de teorias

científicas assim estruturadas forma um “programa de pesquisa”, o qual fornece

orientação para o desenvolvimento da atividade dos cientistas tanto de modo

negativo quanto positivo.

Em sentido negativo, pode-se dizer que os programas de pesquisa

estimulam a reflexão dos praticantes de determinada ciência, à medida que se

apresentam como estruturas cujas suposições especulativas básicas tornam-se

irrefutáveis, em razão de uma decisão metodológica adotada pelos próprios

atividade intelectual de todas” (GEERTZ, 2001:144). Assim, apesar de muitos leitores de Kuhn terem sido “preparados para admitir que existiam áreas da cultura – por exemplo, a arte e a política – nas quais vocabulários, discursos, epistemes foucaulteanas, substituíam umas as outras; e para conceder que nessas áreas não haveria nenhuma metalinguagem que as cobrisse como um arco, no interior do qual qualquer um desses vocabulários pudesse ser traduzido”, sua sugestão de que estes mesmos processos de substituição se aplicavam a ciências como a física foi considerada ofensiva, pois representava uma ruptura com a própria tradição da epistemologia (RORTY, 1997:71). 30 Saliente-se, entretanto, que a formulação de um relato epistemológico, centrado na precedência das opções por quadros modelares teóricos sobre as decisões metodológicas, deve ser atribuída, de certa maneira, ao próprio empenho dos neopositivistas em procurar estabelecer, com todo rigor, as bases de um relato das ciências exatamente oposto. Como sugere AGUIAR (1998:288), “o antigo programa positivista – com sua ênfase na redução de todo item teórico a itens observacionais e com sua ambiciosa esperança de encontrar um método que opere sem pressupostos teóricos – catalizou a descoberta do fenômeno que é hoje universalmente reconhecido em epistemologia. Trata-se da radical dependência de todos procedimentos ou métodos científicos de teorias previamente aceitas. Notemos que boa parte do mérito desta descoberta deve ser creditada aos próprios positivistas, sobretudo Carnap. De fato, só o empenho positivista em levar a cabo seu programa de forma detalhada e exaustiva permitiu a compreensão da natureza e da magnitude dos obstáculos a serem enfrentados”.

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cientistas que se propõem a desenvolvê-lo. Em outras palavras, os programas

lakatosianos articulam, em torno de seu núcleo fundamental, uma heurística negativa como referencial de orientação dos trabalhos científicos a serem

desenvolvidos em seu âmbito. Essa heurística negativa consiste na assunção

normativa de que as hipóteses teóricas gerais, sobre as quais se edifica todo o corpo

teórico do programa, devem ser defendidas contra tentativas de refutação, por

intermédio do desenvolvimento de hipóteses auxiliares e da elaboração de

propostas de revisão dos procedimentos de verificação utilizados nos trabalhos de

sondagem da realidade.

Ao redor desse núcleo fundamental, por sua vez, constrói-se um conjunto

parcialmente articulado de indicativos ou sugestões de como mudar ou desenvolver

as “variantes refutáveis” do programa de pesquisa, compondo sua heurística positiva (LAKATOS, 1980:49-50). Ela contém, além de uma pauta de problemas

teóricos a serem resolvidos, conjuntos de propostas experimentais destinadas a

permitir os testes necessários à solução das questões teóricas propostas. Ao realizar

tais sugestões teórico-metodológicas, os cientistas constróem, ao redor do núcleo

fundamental do programa de pesquisa a que se encontram vinculados, um

verdadeiro “cinturão protetor”, podendo-se dizer que todo o trabalho que estes

realizam, a partir de então, traduz-se em esforços de expansão e modificação dessa

estrutura de proteção, pela articulação de novas e variadas hipóteses e sua

submissão a testes com propósito de refutação ou corroboração, em moldes muito

semelhantes àqueles sugeridos por Popper.

No contexto de um programa de pesquisa, entretanto, toda proposta

teórica que venha contrariar as premissas gerais de que se compõe o núcleo

fundamental fica excluída, em razão da heurística negativa que o orienta. Dessa

maneira, Lakatos procura superar um dos problemas fundamentais do racionalismo

crítico: sua incapacidade de oferecer uma adequada explicação para os diversos

exemplos históricos de persistência de concepções teóricas não corroboradas. De

fato, por não vislumbrar a natureza estrutural das teorias científicas, Popper tende a

conceber a dinâmica das ciências de um modo em que qualquer desconformidade

entre os testes experimentais realizados pelos cientistas e as teses fundamentais

com que trabalham importam em refutação de todo o arcabouço de conjecturas

edificado sobre tais premissas teóricas fundamentais. A História das Ciências,

todavia, desmente, com copiosos registros, esse efeito virulento das tentativas de

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refutação, demonstrando que, em diversas circunstâncias, os homens de ciência,

ante aparentes transgressões empíricas de suas construções teóricas, optaram não

por descartá-las, mas por conservá-las, em detrimento dos testes experimentais

(LAKATOS, 1980:30-31).

O relato da ciência de Lakatos é suficientemente estruturado para evitar

tal efeito, pois, em um programa de pesquisa, a ordem é mantida, tanto pela

inviolabilidade do núcleo irredutível, quanto pela heurística positiva que o

acompanha, de modo a permitir que a proliferação de conjecturas engenhosas em

seu interior possa levar não ao abandono, mas ao progresso do programa, o qual

pode ser avaliado em termos da produção de previsões inesperadas (progresso

teorético) e sob o prisma da corroboração de algumas dessas previsões inovadoras

(progresso empírico) (LAKATOS, 1980:179).

Por outro lado, dado o caráter estrutural das teorias científicas, a

epistemologia lakatosiana admite a possibilidade da coexistência, em uma mesma

disciplina científica, de diversos programas de pesquisa, com seus respectivos

núcleos fundamentais e cinturões protetores. Seus méritos relativos não podem,

entretanto, ser apreciados de forma direta, mas sim a partir da verificação de seu

progresso teorético e empírico. Em outros termos, os méritos relativos de dois

programas somente podem ser decididos retrospectivamente, avaliando-se o quanto

foram bem-sucedidos em suas previsões e explicações acerca de fenômenos

pertinentes ao setor da realidade que se propõem investigar (CHALMERS,

1999:144). Disso decorrem duas conseqüências importantes: Em primeiro lugar,

nunca se pode afirmar com absoluta certeza que determinado programa assumiu

uma forma absolutamente degenerescente, pois sempre será possível que um futuro

sucesso na previsão venha permitir que este volte a ser considerado em uma fase

progressista, oferecendo contribuições decisivas para a explicação da realidade. Em

segundo, não há nenhum critério de avaliação que permita afirmar, sem qualquer

restrição, que um programa é melhor que outros, o que põe em relevo a importância

de que o ambiente científico seja marcado pela “tolerância metodológica”

(LAKATOS, 1980:71).

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53

1.2.3. A impossibilidade de justificação autônoma do conhecimento científico,

o abandono do dualismo entre esquema conceitual e conteúdo empírico, e a relação intrínseca entre ciência e democracia

Não obstante admitir a coexistência entre programas de pesquisa rivais, a

metodologia lakatosiana, ao afirmar a existência de um índice fundamental para

avaliar o trabalho desenvolvido por determinada comunidade científica, acaba por

fundamentar o processo de evolução das ciências em bases muito próximas do

racionalismo crítico popperiano, restringindo as fortes descontinuidades

revolucionárias que Kuhn utiliza para descrevê-lo. Subjacente a essa posição

encontra-se, evidentemente, a já mencionada explícita preocupação de Lakatos de

estabelecer bases universais para explicação do caráter científico de uma teoria, o

que o leva a combater o princípio de incomensurabilidade formulado por Kuhn,

considerado, em sua reflexão epistemológica, como uma proposta relativista e,

conseqüentemente, incapaz de demarcar uma linha divisória precisa entre a ciência

e a não-ciência.31

É exatamente esta preocupação de Lakatos com o estabelecimento de

um critério objetivo e absoluto para determinação do modo com que a ciência

progride que serve de pano de fundo para a crítica, formulada por FEYERABEND

(1993), à preocupação desencadeada pelo racionalismo crítico com o

estabelecimento de um metadiscurso científico capaz de esclarecer de que modo os

cientistas realizam suas escolhas teórico-metodológicas. Para Feyerabend, “a

prática da ciência é incalculável, rica em inventivas, em estratagemas, não ligada a

nenhum ‘código de honra’, astuta, tal como é a história para Hegel e para Lenin.”

(BODEI, 2000:141). Dessa forma, para além da incomensurabilidade entre teorias

rivais, é preciso admitir a inexistência de parâmetros de avaliação que permitam

estabelecer a superioridade do conhecimento científico ante as demais formas

desenvolvidas pelo homem para sondar e interagir com a realidade (religião, magia,

senso comum, dentre outras), pois não se podem estabelecer “razões ‘objetivas’

31 “Se Kuhn está certo, então não há nenhuma demarcação explícita entre ciência e pseudociência, nenhuma distinção entre progresso científico e decadência intelectual, nenhum padrão objetivo de honestidade.” (LAKATOS, 1980:04).

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para preferir a ciência e o racionalismo ocidental a outras tradições” (FEYERABEND,

1991:346).

De outra parte, sendo a ciência essencialmente um empreendimento

anárquico, a preocupação com a fixação de regras metodológicas deve ser

compreendida como uma manifestação, no seio mesmo dessa particular forma de

apreender a realidade, de estruturas de poder do tipo totalizantes, voltadas para

restringir a liberdade individual, seja na escolha entre propostas teóricas rivais no

corpo do conhecimento científico, seja na opção entre a ciência e as demais

tradições de índole não científica. Conseqüentemente, apenas uma epistemologia

anárquica, dotada de maior preocupação humanística e mais consentânea com o

caráter anormativo das práticas científicas, encontra-se apta para encorajar o

progresso das ciências e permitir a construção de uma sociedade verdadeiramente

livre, em que seus membros possam aprender a decidir de que forma pretendem

contemplar e interagir com a realidade. Disso resulta, segundo o relato

fayerabendiano, o reconhecimento, por quem se propõe a tomar “o rico material da

história, sem preocupação de empobrecê-lo para agradar seus instintos mais baixos,

seu anseio de segurança intelectual na forma de clareza, precisão, objetividade,

verdade”, de que “só há um princípio que pode ser defendido em todas as

circunstâncias e em todos os estágios do desenvolvimento humano. É o princípio:

tudo vale.” (FEYERABEND, 1993:18-19).

Deve-se, observar, entretanto, que o “tudo vale” (anything goes) não se

põe aqui como um princípio, na acepção de formulação de uma declaração a priori

do caráter anárquico das ciências, a qual poderia ser convertida em um parâmetro

normativo, um standard axiológico a ser concretizado, em seu mais elevado grau, na

praxis científica.32 Seu emprego apresenta uma natureza retórica, como instrumento

de constatação de que a História das Ciências demonstra ser impossível a

elaboração de regras de reconstrução do modo como a atividade científica avança,

sejam essas regras racionais, nos moldes propugnados pelo racionalismo crítico e

pelos programas de pesquisa lakatosianos, sejam elas regras sociológicas, como

aquelas subjacentes às revoluções científicas kuhnianas.

32 Curioso observar que o próprio FEYERABEND (1993), na primeira página do prefácio de Against method, adverte para o uso figurativo que faz do vocábulo princípio para se referir ao “tudo vale”, advertindo para sua descrença no emprego de princípios para discutir, sob um prisma externo, situações concretas de pesquisa científica.

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O princípio “tudo vale” consiste, desse modo, em uma radicalização da

concepção anti-fundacional das ciências naturais, adiantada pela

incomensurabilidade das teorias científicas afirmada por Kuhn.33 Para Feyerabend, a

intrínseca dependência existente entre as proposições observacionais, as opções

metodológicas e as estruturas teoréticas não deve ser tomada como mero índice de

que “revoluções científicas” efetivamente ocorrem, tornando irrealizável o projeto de

elaboração de um discurso metateórico sobre a atividade científica. Seu papel é

muito mais profundo, assentando-se na necessidade de se estabelecerem os termos

da relação entre ciência e democracia, entre “programas de pesquisa” e controle

público da atividade científica, termos que devem encontrar-se assentados no

reconhecimento de que a ciência constitui, tão-somente, uma tradição de reflexão e

ação sobre o mundo, dentre outras mais (FEYERABEND, 1991:356-359; 1993:238-

251).

Sua proposta, por conseguinte, põe-se na linha de negação da idéia de

que é possível estabelecer bases para justificação do conhecimento científico

independentes do contexto de sua produção, bases que constituiriam situações

epistêmicas ideais (RORTY, 1999:34). Esse particular aspecto do debate instaurado

grosso modo entre Popper e Lakatos, de um lado, e Kuhn e Feyerabend, de outro,

permitiu a Mary Hesse afirmar que a “interpretação circular” constitui a lógica própria

das ciências, em que as proposições de observação são corrigidas em termos da

teoria aplicável e esta reinterpretada nos termos da formulação das proposições de

observação. O empreendimento científico comungaria, assim, do mesmo caráter

auto-reprodutivo dos seres vivos, constituindo a interpretação o instrumento de sua

auto-organização (HESSE, 1972).

Nessa perspectiva, a visão dualista das ciências dissolve-se em sentido

oposto àquele proposto pelo Círculo de Viena, pois toda atividade científica é

igualmente dependente de processos interpretativos, cuja análise deve ser realizada

à luz do modelo hermenêutico próprio da tradição instaurada pelo historicismo

diltheyano, modelo que tem, em seu centro, a categoria gnoseológica do

“compreender” (Verstehen), e não a do “explicar” (Erklären), e desaguou na

afirmação de HEIDEGGER (1962), de que “o compreender” traduz uma estrutura

33 Como salienta RORTY (1999:35), “embora Kuhn, ao contrário de Feyerabend, não atacasse explicitamente a noção de ‘método científico’, seu livro teve como efeito o desvanecimento silencioso dessa noção”.

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constitutiva do Dasein, uma dimensão intrínseca do homem. Dessa maneira, o

homem se constitui como um “novelo de experiências”, em que cada nova

experiência nasce sobre o pano de fundo das anteriores, reinterpretando-as,

formando um interminável “círculo hermenêutico”. Essa noção seria, posteriormente,

erigida à condição de tema central da hermenêutica filosófica por GADAMER

(1998:401), para quem “a reflexão hermenêutica de Heidegger tem o seu ponto alto

não no fato de demonstrar que aqui esta prejaz um círculo, mas, antes, que este

círculo tem um sentido ontológico positivo”.

Hesse transpõe a ontologia hermenêutica heideggeriana para o plano da

formulação das teorias científicas, negando a existência de um status específico

para as ciências sociais e delas aproximando o método das ciências naturais. Em

oposição a essa nova tentativa de promover uma completa dissolução da dicotomia

entre ciências naturais e sociais, GIDDENS (1993a:151-155) adverte que a reflexão

promovida pelas ciências sociais envolve uma tarefa duplamente hermenêutica, pois

estas lidam com um mundo já pré-interpretado, de modo que a criação e reprodução

de molduras de significado constitui a própria condição de se promover a posterior

análise das condutas sociais do homem. Como salienta INGRAM (1993:250), “essa

distinção presume que há um sentido no qual a observação bruta dá às ciências

naturais uma base de dados que precede qualquer percepção de fatos determinada

teoricamente”, o que indica que Giddens, contrapondo-se à concepção de Kuhn e

Fayerabend, admite indiretamente que, para as ciências naturais, ao menos no

plano observacional, podem ser identificadas bases de justificação independentes

do contexto de produção do conhecimento científico.

Os avanços experimentados pela física quântica, entretanto, parecem

tornar insubsistente o critério de demarcação proposto por Giddens, pois suas

formulações sobre o comportamento das partículas subatômicas demonstram que

“não é possível observar ou medir um objeto sem interferir nele, sem o alterar, e a tal

ponto que o objeto que sai de um processo de medição não é o mesmo que lá

entrou” (SANTOS, 2000:68). A sugestão da interferência estrutural do sujeito

cognoscente no objeto observado (NORTHROP, 1999:24) não constitui, entretanto,

a maior contra-indicação à validez da tese giddensiana oferecida por essa disciplina.

Uma de suas formulações centrais, o princípio da incerteza, segundo o qual não se

podem reduzir simultaneamente os erros de medição da velocidade e da posição de

partículas (HEISENBERG, 1949), indica não apenas a existência de um continuum

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entre sujeito e objeto, como demonstra a dependência das ciências naturais tanto

das convenções pré-teóricas da linguagem ordinária, como das próprias opções

teórico-metodológicas realizadas por seus praticantes, tornando-as tão duplamente

hermenêuticas como as ciências sociais.

Não podendo sustentar a dicotomia entre ciências naturais e sociais, com

recurso ao caráter monádico ou dual de suas tarefas hermenêuticas, HABERMAS

(1984:110-111) procura assentá-la no fato de que o acesso à temática das

Geisteswissenschaften, para além da observação, exige o envolvimento

comunicativo do cientista com a realidade social em investigação. Em outras

palavras, nas ciências sociais o significado das situações observadas só é

alcançado quando se estabelece entre o cientista-intérprete e os atores dessa

mesma situação objeto de investigação um acordo “sobre os fatos em questão, as

expectativas de normatividade aplicável à situação ou a sinceridade dos atores”

(INGRAM, 1993:57).

DAVIDSON (2001a; 2001b), entretanto, abolindo o dualismo entre

esquema conceitual e conteúdo empírico, afirma que todo processo cognitivo se

desenvolve de forma triangular, de modo que a formação de significado é sempre

determinada pelo acoplamento estrutural entre os enunciados do intérprete, o

comportamento lingüístico de sua audiência e as causas extralingüísticas de crenças

comuns ao consórcio humano. A perspectiva davidsoniana, amparada no trabalho

pioneiro de QUINE (1961:20-46; cf. tb. QUINE & ULLIAN, 1978), nega, portanto, que

exista uma realidade bruta, cuja existência se estabelece a priori, preexistente à rede

dos esquemas com os quais se procura capturá-la,34 da mesma maneira que não

existe também “uma alternativa seca entre a intraduzibilidade completa dos nossos

esquemas (ou linguagens que os exprimem) e uma perfeita convergência entre eles,

que consentiria o acesso a um compartilhado mundo único”(BODEI, 2000:144).

34 O resultado mais importante alcançado por Quine consistiu em sua doutrina holística do significado. Fazendo fileira com Sellars e o segundo Wittigenstein, sua reflexão filosófica nega existir uma linha demarcatória rígida entre significado e significação de uma palavra ou frase, contrariando a perspectiva tradicional de que o significado é aquilo que é próprio da coisa de que se fala, algo que lhe é intrínseco. Já a significação constitui algo contingente, aquilo que é atribuído à coisa em virtude de certas relações estabelecidas. Para Quine, “o significado de uma palavra ou frase individual é compreendido única e exclusivamente pelas suas relações com uma trama determinada de conceitos, uma teoria, um complexo de disposições que indicam uma forma de vida e coisas semelhantes” (GHIRALDELLI JÚNIOR, 1999:31). Evidentemente, Quine não chegou a extrair dessa formulação holística toda sua potencialidade antiessencialista, mas sua explicitação permitiu uma renovação expressiva do debate não apenas sobre a teoria do significado e da verdade, mas sobre a própria teoria do conhecimento, da qual Davidson extrai sua concepção contextualista do processo cognitivo.

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A triangulação entre enunciados lingüísticos de diferentes interlocutores e

eventos extralingüísticos que lhes são comuns sugere que nenhum de seus vértices

assume papel preponderante sobre os demais. Assim, toda e qualquer forma de

reflexão, tenha ela por objeto fatos sociais ou fenômenos naturais, concebe-se como

um processo de contínua recontextualização (RORTY, 2000:78-79). Como observa

DAVIDSON (2001b:151),

o que desponta sob a forma do ceticismo global dos sentidos é, segundo meu ponto de vista, o fato de que nós precisamos, nos casos mais plenos e metodologicamente mais básicos, tomar os objetos de uma crença como sendo as causas dessa crença. E o que nós, enquanto intérpretes, precisamos tomar como sendo o seu modo de ser é o que elas de fato são. A comunicação começa onde as causas convergem: sua elocução significa o que a minha significa, se a crença em sua verdade é sistematicamente causada pelos mesmos eventos e objetos.

Desse modo, a renúncia à dependência dos conceitos de uma realidade

não interpretada não se traduz em uma desistência da noção de verdade objetiva.

Na concepção davidsoniana, tal abdicação ocorre, exatamente, quando se procura

reter o dualismo entre esquema e realidade, pois, neste surge a relatividade

conceitual e a verdade relativa a um esquema. Abandonado o dogma, esse tipo de

relatividade fica arruinado. A verdade das sentenças permanece relativa à

linguagem, mas, para DAVIDSON (2001a:198), essa asserção, associada à abolição

da distinção entre esquema conceitual e conteúdo empírico, conduz ao máximo

possível de objetividade, pois, ao se renunciar ao dualismo de esquema e mundo,

não se renuncia ao mundo, mas se restabelece “um toque sem mediação com os

objetos familiares cujas extravagâncias tornam nossas sentenças e opiniões

verdadeiras ou falsas.” Em decorrência, toda atividade científica demanda

envolvimento comunicativo e a construção de um acordo difuso, consolidado sobre

hábitos de ação. Hábitos cuja identificação torna desnecessária, para fins de

demarcação epistemológica, a perquirição se os fatos em investigação constituem

construções sociais ou objetos do mundo natural, exigindo, em seu lugar, a análise

de sua utilidade para os propósitos cognitivos que deflagram os jogos

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conversacionais no âmbito de determinada comunidade de intérpretes.35

Sob essa perspectiva, retoma-se, em novas luzes, uma das questões

centrais do relato fayerabendiano: a da relação entre ciência e democracia. De fato,

se toda atividade científica demanda envolvimento comunicativo, o ponto fulcral de

sua configuração como um empreendimento humano desloca-se da demarcação de

regras metodológicas para a definição da comunidade de intérpretes que

participarão daqueles jogos conversacionais destinados a definir os fenômenos a

serem compreendidos; as hipóteses plausíveis em cada caso; os fenômenos

adicionais, associados aos primeiros, que serão investigados à luz das hipóteses

definidas; e a reaplicação ou não dessas etapas (MAGRO, 1998:181). Este

deslocamento, contudo, não se traduz, tão-somente, em uma exigência de controle

externo da atividade científica, como pensava Feyerabend, mas na própria

precondição de sua realização como uma atividade socialmente dotada de

significado.

1.2.4. O surgimento de uma nova epistemologia geográfica fundada na inclusão das Geografias vernaculares nos jogos conversacionais da Geografia acadêmica

Tendo em vista o contexto acima apresentado, pode-se afirmar que a

principal repercussão para a epistemologia da Geografia dos debates travados, no

35 Como exemplifica RORTY (1999:xxv-xxvi), há uma tendência generalizada de se tratar uma conta bancária como uma construção social e uma girafa como um objeto do mundo natural. Em decorrência, entende-se que contas bancárias são feitas, já as girafas, encontradas. A pressuposição por de trás dessa distinção repousa no fato de que um mundo desprovido de interferência humana pode conter girafas, mas nele não haveria contas bancárias. A independência causal das girafas em relação aos seres humanos, contudo, não significa que são o que são destacadas dos interesses e necessidades humanas, pois “todas as descrições que temos das coisas são descrições adequadas aos nossos propósitos”. Disso decorre que “o limite entre uma girafa e o ar que a cerca é claro o bastante para um ser humano interessado em caçar sua comida [ou proteger a espécie da ameaça de sua extinção]. Mas se você é uma formiga ou uma ameba falante, ou um viajante espacial observando-nos de muito alto, esse limite não é tão claro, e você provavelmente não necessitará ter em sua linguagem uma palavra para ‘girafa’. Em termos mais gerais, não está claro que qualquer um dos milhões de modos de descrever o pedaço de espaço-tempo ocupado por aquilo que chamamos de girafa está mais próximo do modo como as coisas são nelas mesmas, mais do que qualquer um dos outros modos. [Por conseguinte] tanto quanto parece sem sentido perguntar se uma girafa é realmente uma coleção de átomos ou realmente uma coleção de provocações reais e possíveis aos sentidos dos seres humanos, ou realmente alguma coisa mais, assim também a questão ‘nós a estamos descrevendo como ela é realmente?’ é algo que nós nunca precisamos perguntar. Tudo que precisamos saber é se alguma descrição concorrente poderia ser mais útil para alguns de nossos propósitos”.

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âmbito da Filosofia das Ciências, a partir da crítica ao neopositivismo do Círculo de

Viena, não reside na veemente negativa da possibilidade de alicerçar o edifício do

conhecimento geográfico de índole científica sobre um conjunto de protocolos

observáveis, travejado em um sistema de enunciados certos e definitivos. Também

não repousa sob o reconhecimento de que a tolerância metodológica deve constituir-

se em traço característico da comunidade de geógrafos, caso se pretenda o

progresso da Geografia acadêmica. Muito menos, encontra-se no reconhecimento

de que tradições geográficas científicas diferentes superam umas às outras de modo

revolucionário, ou podem coexistir como programas de pesquisa distintos.

Tampouco se apresenta no crescente reconhecimento de que a concepção dualista

das ciências tende a ser superada pela afirmação de que “todo conhecimento

científico-natural é científico-social” (SANTOS, 2000:89).

A principal conseqüência para a epistemologia da Geografia do longo

embate que se estende desde o racionalismo crítico de Popper até as perspectivas

antifundacionais de Kuhn, Feyerabend, Hesse e Davidson consiste no

reconhecimento de que a Geografia científica só se tornará um empreendimento

viável se, em seus jogos conversacionais, ela puder abranger as diferentes

geografias vernaculares, a geograficidade intrínseca aos grupos sociais e à

inescapável dimensão espacial da existência humana. Geograficidade que expõe o

sentido atribuído ao espaço pelos homens e a maneira pela qual eles o utilizam

“para melhor compreender e construir seu ser profundo” (CLAVAL, 1997:89-90).

Curioso, entretanto, é observar que essa necessidade foi, de certa

maneira, pressentida pelos próprios desdobramentos da afirmação da orientação

teórico-metodológica adotada pela Nova Geografia. Seus modelos teóricos põem em

destaque o tema das decisões espaciais, convidando o geógrafo a se perguntar

sobre as modalidades de percepção que os indivíduos e grupos têm do espaço e

seu papel na elaboração de normas e padrões de comportamento que influenciam

os processos decisórios (CLAVAL, 1995:38; 2001b:177). Não por outra razão, o

movimento veio incentivar uma gama de estudos voltados para a pesquisa dos

comportamentos humanos (GOODEY & GOLD, 1986:16).

Destinados a oferecer refinamentos aos modelos de análise espacial e

fundados em premissas neopositivistas de generalização teorética e validação

empírica dos resultados alcançados, tais estudos, ao menos na fase inicial de seu

desenvolvimento, adotaram, entretanto, um modelo etológico para a explicação do

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comportamento espacial do homem (TUAN, 1985:145). Em tempos mais recentes,

essa abordagem do comportamento geográfico humano vem procurando se libertar

de algumas das teses centrais neopositivistas e suas realizações podem ser

apreciadas, dentre outros setores, na construção de bases analíticas mais

sofisticadas para a corroboração de teorias sobre os processos humanos de

deslocamento espacial, bem como na elaboração de campos complementares de

análise espacial, exemplarmente representados pelos estudos dedicados à

explicação da racionalidade das decisões sobre o uso da terra (GOLLEDGE &

COUCLELIS, 1984:179-190; JOHNSTON, 1986:175-186).

Nessa linha de pesquisa comportamental, dentre outras, destacam-se os

estudos sobre modelos para a mensuração e exame de atitudes e expectativas

(WHITE, 1966; SAARINEN, 1966), percepção de riscos (WOLPERT, 1965),

aprendizado e formação de hábitos (GOLLEDGE & BROWN, 1967), decisões e

escolhas (BURNETT, 1973), preferências por lugares (GOULD, 1966; RUSHTON,

1969), mapas cognitivos (DOWNS, 1970; STEA, 1969) e aquisição do conhecimento

espacial (GOLLEDGE & ZANNARAS, 1973). Suas contribuições podem ser

consideradas relevantes não apenas para o alargamento dos horizontes da análise

espacial, mas também para flexibilização de seus pressupostos metateóricos,

levando-o de um plano rigidamente neopositivista para uma posição que poderia ser

melhor designada como analítica (GOLLEDGE & STIMSON, 1997:02). Seus

esforços, contudo, não fornecem descrições adequadas da experiência geográfica,

porque deixam de reconhecer que pessoa e mundo se encontram “engajados em

um só processo, que implica fenômeno perceptivo e não pode ser estudado como

um evento isolado, nem pode ser isolável da vida cotidiana das pessoas”

(MACHADO, 1996:98; cf. tb. RELPH, 1984:209-223).

Dessa maneira, sem embargo de as sugestões que sublinham o papel

das decisões locacionais na organização do espaço terem dirigido os esforços dos

novos geógrafos para abranger, em seus modos específicos de análise espacial, o

tema do comportamento espacial do homem, a abordagem funcionalista

característica da Nova Geografia não permitiu a seus praticantes estender seu

campo de pesquisa à temática da geograficidade dos grupos humanos. Com efeito,

mantendo-se ancorada na pressuposta dualidade entre esquemas conceituais e

conteúdo empírico, tal abordagem não possibilitou que a reflexão geográfica

pudesse debruçar-se sobre a relação entre o mundo exterior e as imagens espaciais

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existentes na alma e no coração dos homens (LOWENTHAL, 1985:103), pois, para

encontrá-la, é mister explorar aquela que seria hoje a última terrae incognitae: o

entre-deux que se revela na experiência do mundo vivido, estabelecendo um

continuum entre o homem e o espaço.

1.3. A ÚLTIMA TERRAE INCOGNITAE 1.3.1. O espaço como topos e como chôra

Ao contrário do que supunham alguns dos defensores da Nova Geografia,

o espaço geográfico não se reduz a mero continente, um “espaço em branco” a ser

preenchido e colorido pela gênese e desenvolvimento de processos bioecológicos e

socioeconômicos (DARDEL, 1952/1990:46). O espaço geográfico compõe uma

inescapável dimensão espacial da existência do homem, bem compreendida por

HEIDEGGER (1962:146), ao afirmar incisivamente que “o espaço não pode ser

encontrado no sujeito, nem o sujeito observa o mundo como se este se encontrasse

em um espaço, mas o sujeito (Dasein), se bem compreendido ontologicamente, é

espacial.”

É exatamente em virtude de sua fundamental dimensão espacial que o

homem sempre deparou com a necessidade de se localizar no mundo, razão por

que a atividade geográfica pode ser concebida como nota intrínseca do humano,

confundindo-se sua origem com a própria origem da humanidade. Já os primeiros

grupos humanos, bem antes de ocorrerem as primeiras divisões de tarefas ou

papéis sociais entre seus membros, depararam com a basilar necessidade “de saber

se localizar e de saber localizar fenômenos, coisas, lugares, etc. em seu espaço vital

imediato, na região, no país, no mundo” (AMORIM FILHO, 1982:06).

Assim, por se constituir em um ser dotado de uma específica

espacialidade, o homem, desde de muito cedo, no desenrolar mesmo do passo

evolutivo em que se tornou agente de cultura, passou a desenvolver intensa

atividade geográfica. O testemunho de tal atividade pode ser encontrado nas

pinturas rupestres voltadas para indicar a localização presumível tanto de recursos

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ambientais essenciais, quanto de locais sagrados ou ritualísticos, hoje ainda

presentes em diversos sítios arqueológicos. Tal testemunho demonstra que a

geografia intuitiva praticada nos primeiros agrupamentos humanos constituiu-se em

intensa experiência do espaço vivido, pois o ato de mapear, como observam

DELEUZE & GUATTARI (1987:12-13), encontra-se completamente voltado para a

experimentação do espaço. O mapa se distingue do mero tracejar de figuras

espaciais exatamente porque, orientado não para a reprodução, mas para a

construção de panos de fundo para a vivência geográfica, apresenta uma dimensão

performativa: não se limita a descrever uma realidade exterior, mas estabelece as

condições para a emergência de novos mundos eidéticos e físicos, pela

reelaboração dos traços recônditos de um contexto vivo (CORNER, 1999:214). Sua

presença na atividade geográfica das primeiras comunidades humanas não deve,

portanto, ser reduzida a mera preocupação de representação do espaço, mas sim

compreendida como elemento de deflagração de um processo de permanente

reconstrução de sua intrínseca geograficidade.

Durante todo esse período inicial, a Geografia desempenhou importante

papel na aquisição de tecnologias pelos grupos humanos caçadores/coletores,

permitindo-lhes desenvolver habilidades específicas de reconhecimento e

reconstrução do espaço. Um dos passos marcantes na evolução desses primeiros

agrupamentos, entretanto, consistiu exatamente na diferenciação de papéis sociais

entre os seus integrantes. Nesse contexto de estruturação de uma organização

social diferenciada e segmentada, ao lado do aparecimento do chefe, do guerreiro e

do religioso, deflagrou-se um processo de especialização da atividade de

reconhecimento do espaço e orientação do grupo em seu território. Assim, no seio

dos grupos caçadores/coletores, já praticantes de uma intensa atividade geográfica

intuitiva, emerge, como ator social específico, o “guia”, membro da comunidade que,

por experienciar o espaço de maneira particularmente intensa, passa a deter

conhecimentos específicos sobre orientação e desenvolve aguçada capacidade de

localização tanto dos recursos ambientais, quanto dos demais grupos humanos,

assumindo o papel e a responsabilidade de situar geograficamente os demais

integrantes de seu grupo. Dessa maneira, como bem acentua AMORIM FILHO

(1982), os diversos guias, que em diferentes agrupamentos humanos desenvolviam

de forma particular e especializada a atividade geográfica, tornaram-se, por assim

dizer, os primeiros geógrafos.

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A “geografia dos guias”, surgida do processo de diferenciação das

atividades de reconhecimento espacial no seio dos grupos caçadores/coletores,

criou, entretanto, uma tradição geográfica intuitiva que se faz ainda presente nos

dias de hoje. Em diversas partes do globo, com os mais diferentes propósitos, as

várias culturas reconhecem a importância do trabalho desempenhado pelos “guias”,

indivíduos que, ao desenvolverem de modo mais intenso sua geograficidade,

aguçam aquele sentido espacial do ser do homem no mundo e são capazes de

resolver intrincados problemas locacionais. As etapas de sua formação podem muito

bem ser recolhidas no relato de MALEK (1979), sobre as reminiscências de Salek,

um guia saaraoui36. A narrativa, de cunho eminentemente pessoal, demonstra de

forma contundente como os guias desenvolvem uma crescente aproximação com a

paisagem circundante, construindo nexos experienciais profundos, que levam

virtualmente à fusão de sua vida com a da região em que desenvolvem intensa

geografia intuitiva.

Para Salek, respeitado por seus companheiros por ser “o livro do deserto”,

antes de mais nada, foi necessário calar, “para melhor escutar” não só as pessoas,

mas também “os animais, as pedras, as plantas, o vento”. Em outras palavras, em

primeiro lugar foi necessário fazer cessar, ou ao menos controlar, o torvelinho de

emoções e impressões que bloqueiam o acesso ao sentido experiencial da

espacialidade e, por conseqüência, embaçam a vivência dos lugares. Em seguida,

os nexos experienciais do guia saaraoui foram aguçados pelo desenvolvimento de

um senso de contemplação da paisagem e pelo reconhecimento de que, para

entendê-la, era fundamental, de um lado, ser paciente para poder captar os ritmos

têmporo-espaciais de suas evoluções e mudanças, e, de outro, impunha-se aceitar

que “o segredo da natureza” constituía “o único problema digno de uma vida”.

36 Salek, na verdade M’Hamed Mahamoud Braim Essalek, nasceu no Saara Ocidental. Membro de uma tribo de pastores seminômades, teve sua educação confiada pelo avô, aos cinco anos de idade, a um comerciante que transitava por toda a África Setentrional, com quem aprendeu a compreender o deserto. Após reencontrar sua tribo em Gueltet Zemmour e Smara, tornou-se aluno da escola do “pastoreio e da paciência”, ingressando, posteriormente, em um dos muitos grupos da “Frente de Libertação Popular de Saguia El Hamra”, movimento guerrilheiro que se opõe à ocupação do Saara Ocidental pelo Marrocos. O relato de MALEK (1979), surpreende o saaraoui já velho, procurando ensinar aos “jovens revolucionários” que para vencer o inimigo no deserto é preciso se aliar “aos ventos, ao frio, à queimaduras mortais do sol, à sede, e ao tempo que passa, que desgasta e que destrói”. Seus olhos já não lhe permitem participar do combate propriamente dito, porque “foram, pouco a pouco, sendo apagados pela intensa luz do sol, nas inumeráveis pistas do deserto”, mas seus dedos ainda lhe dão notícia “sobre quão fina é a areia” que eles tocam.

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Com o passar dos anos, a experiência do deserto permitiu a Salek

compreender as plantas, os animais, as pedras e as estrelas, bem como a dinâmica

destes e de outros elementos que estruturavam seu espaço vivido. O guia

transforma-se, assim, em verdadeiro “aluno do deserto”, a ponto de sua memória,

transcorridos cinqüenta anos do início de seu aprendizado, passar a se encontrar

povoada apenas de “horizontes, de pedras e de areia”. Seu testemunho demonstra,

assim, que os guias, para desenvolverem uma atividade geográfica de caráter

intuitivo e pragmático, muito importante como índice do próprio sentido da

espacialidade do homem, são geógrafos que transformam uma inata habilidade

espacial em íntima experiência dos lugares, a partir de um intenso processo de

despertar para os nexos constitutivos de sua geograficidade.

A crescente complexidade das sociedades humanas, todavia, passou

paulatinamente a exigir a formulação de uma atividade geográfica mais estruturada,

que não se esgotasse em simples recolhimento de informações sobre os lugares e

fenômenos espaciais, mas que se manifestasse como reflexão sobre o espaço, os

fenômenos nele desenvolvidos e os nexos com ele estabelecidos pelas

comunidades humanas. Tem início, por conseguinte, uma longa tradição que faz da

Geografia o setor do conhecimento humano devotado à investigação e análise das

componentes espaciais que conformam a existência do homem.

É interessante notar, entretanto, que a necessidade basilar de

localização, presente em sua origem remota, continua muito presente na Geografia

praticada nos dias atuais, pois a pergunta sobre onde se encontram localizados os

fenômenos no espaço permanece como uma das questões centrais postas à

reflexão de seus praticantes contemporâneos (CLAVAL, 2001b:34). É certo que,

hoje, a investigação geográfica tornou-se extremamente sofisticada, entretanto o

conhecimento geográfico, por se estender desde o âmago do homem, “não se

resolve ou se completa ou se esgota no objeto científico” (MONTEIRO, 1984). Ao

contrário, constitui uma das mais belas formas de realização desse mesmo homem

como sujeito de cultura, razão pela qual sua elaboração pode ser apreendida em

diversas etapas vivenciais: inicia-se pela “experiência” pessoal, consubstanciada na

percepção (espontâneo), desenvolve-se por meio da “aprendizagem” (reflexão

crítica) e se projeta tanto para o passado, por intermédio da “memória”, quanto para

o futuro, com lastro na “imaginação”, traduzindo-se em rico processo sociocultural.

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Tomada em sua riqueza profunda, por conseguinte, a atividade geográfica

evoca uma “eterna bipolaridade complementar da visão ‘para fora’, em direção ao

ambiente (lugar, espaço, mundo) e ‘para dentro’ do homem” (MONTEIRO, 1984),

inarredável quando se tem em mente que, sendo o ser do homem no mundo

eminentemente espacial, todo conhecimento geográfico traduz-se, antes de mais

nada, em autoconhecimento. É de se perguntar, então, com CLAVAL (2001b:188), o

porquê de a Geografia acadêmica ter relegado a segundo plano a preocupação com

a vivência do espaço, depois da transformação do estudo da Terra em uma ciência

moderna.

BERQUE (2000:23) situa o abandono dessa perspectiva da reflexão

geográfica, como estudo da experiência humana da Terra, na individualização

progressiva, no seio do pensamento ocidental, a partir de Aristóteles, de uma

concepção da Geografia que toma por base o espaço como topos: um puro

continente dos processos naturais, dos dramas humanos e das tramas sociais. A

gradativa predominância da concepção do espaço como topos, contudo, não faz juz

à riqueza da tradição geográfica grega pré-aristotélica, pois nesta podem ser

encontrados traços de uma distinção marcante entre o espaço como continente

(topos) e como vivência (chôra). Assim, por exemplo, Platão, no Timeu, ao se referir

ao lugar onde se encontra ou se situa um corpo, a ele se refere como topos, mas

quando procura explicar que toda realidade sensível possui, por definição, um lugar,

encontrando-se dotada de uma espacialidade própria, emprega o termo chôra.

A perspectiva do espaço como continente, como topos, entretanto,

assumiu, a partir de Descartes, uma posição dominante no pensamento ocidental,

oferecendo, desse modo, a matriz epistemológica essencial para uma reflexão

geográfica que deixou de considerá-lo como chôra, como componente íntimo e

necessário de todas as formas de vida. A partir do cartesianismo, o homem ocidental

não se identifica mais com o mundo, pois o supõe como algo que lhe é exterior e

que só encontra suporte em sua razão. É por isso que ilusoriamente se

autoproclama subiectum, ser que apresenta existência em si mesmo e que oferece

sustentáculo à realidade.

O homem deixa, portanto, o mundo para sobre este lançar seu olhar e,

assim, transforma o plano da subjetividade em uma sphaera se ipsam et omnia

continens, uma realidade destacada do mundo que contém a si mesmo e tudo o

mais, uma cópia ou duplicata do mundo dotada de transcendência (LUHMANN,

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1986:319-320). Tal cópia, pelo uso das faculdades da razão, discerne entre os

objetos de que se compõe o mundo e o interstício que os contém. Essa postura, que

tem assento no reconhecimento de uma realidade exterior, septicamente separada

de seu observador, encontrava-se presente, por conseguinte, na démarche

intelectual que permitiu à Geografia transpor os umbrais da academia, no início do

século XIX, com o florescimento da denominada escola clássica alemã. A partir de

então, ela passa a assumir um lugar cada vez mais central em toda a atividade

geográfica científica, até que, em meados do século XX, sua influência se tornaria

onipresente nos trabalhos desenvolvidos no seio da Nova Geografia.

A predominância da concepção do espaço como topos na Geografia

científica, todavia, não impediu que geógrafos de diferentes linhagens se deixassem

enlevar pela experiência dos lugares pesquisados, nem obstou a que outros se

apercebessem da sensibilidade geográfica humana e de sua contribuição para

melhor compreensão dos fenômenos espaciais (CLAVAL, 2001b:185). Assim, e.g.,

AMORIM FILHO (1998) identifica, na reflexão geográfica de Alexander von

Humboldt, dois traços marcantes distintos, mas coexistentes.

O primeiro, que demonstra sua vinculação ao cientificismo próprio da

primeira metade do século XIX, apresenta-o como um geógrafo rigoroso,

preocupado com a meticulosa mensuração, registro e coleta de dados e amostras,

com o uso de metodologias e técnicas adequadas e confiáveis, e com a busca da

compreensão das “conexões entre os elementos que compõem a paisagem, por

mais complexas que possam ser, para alcançar as leis e as totalidades que explicam

a Terra e o Universo” (AMORIM FILHO, 1998:132).

Não obstante ser esta sua face mais conhecida, o contato próximo com as

diferentes realidades espaciais, associado à sua aproximação do movimento

romântico, que se manifesta, sobretudo, em seu intenso intercâmbio de idéias com

Goethe, permitiram a Humboldt desenvolver com marcante sensibilidade a idéia de

meio ambiente e de paisagem não só como objeto de investigação, mas também

como ambiência de contemplação. Essa perspectiva sensível, só alcançada em

razão do contato enriquecedor de um espírito irrequieto e permeado de idéias

humanistas com diferentes realidades regionais, revela uma segunda faceta do

pensamento humboldtiano, inteiramente voltada para a reflexão sobre os valores e

os sentimentos despertados pela natureza, buscada intencionalmente (HUMBOLDT,

1847) como forma de demonstrar que a descrição exata e precisa dos fenômenos

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não é, absolutamente, inconciliável com a descrição animada e viva de “cenas

imponentes da criação”.37

Por outro lado, no final do século XIX, a influência dos trabalhos de

Friederich Ratzel sobre a Geografia alemã, em particular sua ênfase sobre as

relações entre as sociedades e seus ambientes específicos, fizeram surgir uma

corrente do pensamento geográfico que punha em evidência o estudo das relações

entre os fenômenos geográficos e a cultura, na formação de unidades territoriais

específicas (CLAVAL, 1995:13-19). Capitaneada por Otto Schlüter e August Meitzen,

essa vertente da escola alemã procurou debruçar-se sobre o que seus autores

convencionaram denominar de Kulturlandschaft, unidades territoriais38 forjadas pela

ação dos grupos humanos, a partir de suas especificidades culturais. Apesar de sua

ênfase sobre a diferenciação e descrição dos instrumentos e técnicas empregadas

pelos grupos humanos para conferir feição própria aos seus ambientes particulares,

com a conseqüente negligência da matriz cognitiva de aquisição das práticas

sociais, modos de saber fazer e valores dos grupos estudados, um de seus

representantes, Eduard Hahn, recusando os esquemas explicativos então em voga,

pôs em relevo em suas análises uma peculiar preocupação com os aspectos

ritualísticos da organização do espaço (WEST, 1990:27).

Ainda no final do século XIX, a proposta metodológica implícita de Elisée

Reclus, traduzida em sua Nouvelle géographie universelle, encontrava-se permeada

por idéias humanísticas, manifestadas de modo particular e profundo na maneira

como procurava explicar os processos de formação da diferenciação regional,

demonstrando uma compreensão sofisticada e não dualista dos fatores que

influenciam o delineamento das feições peculiares das diferentes realidades

espaciais. De especial relevo na configuração de sua abordagem inovadora, podem

ser consideradas sua sensibilidade à diversidade cultural regional e a importância

conferida à ação das comunidades humanas na conformação do espaço geográfico,

37 Essa mesma preocupação em ressaltar a dimensão estética da intelecção do espaço pode ser encontrada, segundo CLAVAL (2001b:185), nos demais geógrafos alemães da primeira metade do século XIX, em razão da influência exercida sobre a escola clássica alemã pelo naturalismo schellinguiano. 38 Evita-se aqui, uma vez mais, relacionar o termo Landschaft ao de paisagem ou região, em virtude do papel que àquele se reserva no presente trabalho. Deve-se observar, entretanto, que, no contexto da corrente em que assume proeminência a reflexão geográfica de Schlüter e Meitzen, a Geografia passa a ser concebida exatamente como Landschaftskunde, uma ciência voltada precisamente para se estabelecer o sentido substantivo das paisagens culturais (CLAVAL, 1995:14).

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traduzida concretamente em uma extensa preocupação temática com os aspectos

fundamentais da interação entre os processos de evolução das civilizações e as

alterações por estas infligidas ao meio ambiente (CLAVAL, 2001a:77).

Graças a esse modo especial de abordar a estruturação dos fenômenos

geográficos, a obra de Reclus acabou por prefigurar os princípios orientadores da

geografia vidaliana, em particular sua eleição do humano “como fio condutor da

reflexão dos geógrafos (humanismo possibilista) e a valorização suprema das

conexões entre elementos complexos (físico e humanos) da realidade como fator

explicativo das divisões e das entidades regionais” (AMORIM FILHO, 1988:24). Em

seu desenvolvimento posterior, entretanto, essa perspectiva, viria adotar uma

variável que procurava conferir contornos teóricos mais bem delineados à influência

da geograficidade dos grupos humanos nos processos de diferenciação regional.

Trata-se da concepção de genre de vie, retomada por Vidal de La Blache

de seu esboço primeiro ratzeliano. Apesar de, inicialmente, em virtude de ter origem

e justificação nas teses naturalistas de Ratzel, sua afirmação ter posto uma ênfase

maior nos aspectos ecológicos da relação entre os homens e seu meio,

gradativamente, essa categoria gnoseológica assumiu, no pensamento vidaliano, um

papel mais centrado na integração de complexos aspectos do comportamento

espacial humano no processo de conformação da peculiaridade regional (CLAVAL,

1995:25). Assim, profundamente renovado, para abarcar, no marco teórico

possibilista, não apenas a dimensão ecológica da adaptação de um dado grupo

social a seu meio, mas também as formas características de resistência dos hábitos

geográficos desses mesmos grupos, o conceito de genre de vie pode ser tomado

como uma das primeiras tentativas pós-cartesianas de se reafirmar a dimensão

intrinsecamente espacial dos comportamentos humanos (CLAVAL, 1997:90;

GOMEZ 1993:93-94).

Do outro lado do Atlântico, também no início do século XX, um

reconhecimento semelhante da influência exercida pela cultura na elaboração dos

processos de diferenciação espacial pode ser encontrado na obra de Carl Ortwin

Sauer e nos trabalhos da “Escola de Berkeley”. Influenciado, de um lado, pelos

geógrafos alemães da Landschaftskunde e, de outro, pelo modo de compreender a

relação homem-meio próprio da Antropologia norte-americana, SAUER (1925/1996)

se interessa pela reconstrução histórico-social das paisagens culturais, levada a

ensejo por intermédio das “inter-relações dos grupos, ou das culturas, com os sítios”.

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Dessa maneira, sua reflexão geográfica procurou explicar a morfologia da paisagem

como resultado da interação entre o ambiente natural e a cultura, assumindo esta o

papel de agente transformador daquele.

Para Sauer, sob a influência de determinada cultura, uma paisagem

natural (natural landscape) torna-se uma paisagem cultural (cultural landscape),

traduzindo de modo tangível um repositório de esforços sociais específicos de

emolduração do espaço e de adaptação ao meio (GOLD, 1980:34-35). Como os

geógrafos alemães do início do século XX, essa perspectiva punha ênfase maior no

caráter instrumental da cultura, deixando de lado suas dimensões social e imagética.

Paulatinamente, entretanto, na ótica saueriana, a antiga preocupação com os

processos formativos da Kulturlandschaft se funde à ética ecológica de MARSH

(1864/1965), para estender a análise dos modos específicos de diferenciação

cultural do espaço às associações específicas de plantas e animais que as

sociedades mobilizam para promover modificações no ambiente natural (CLAVAL,

1995:20-21). Essa preocupação com a interferência humana nos processos

ecológicos confere à análise das paisagens culturais uma preocupação específica

com os impactos negativos dos processos de interação entre o homem e seu meio,

bem demonstrada no trabalho de CLARK (1949) sobre a destruição dos

ecossistemas naturais da Nova Zelândia pela invasão de plantas e animais

exógenos, trazidos por imigrantes da Europa, dos Estados Unidos ou da Austrália.

Antecipando, assim, de certa forma, muitas das preocupações

conservacionistas atuais, a Escola de Berkeley procurou também escapar do

“determinismo ambiental ingênuo” presente nos trabalhos de geógrafos norte-

americanos que, como William Morris Davis e Ellen Churchil Semple, fizeram do

darwinismo moeda intelectual corrente na Geografia norte-americana do início do

século XX (JOHNSTON, 1986:60; GOUDIE, 1990:05). Dessa maneira, apesar de

seus esforços reflexivos se encontrarem voltados primariamente para a explicação

de traços observáveis da atividade espacial humana, dando ensejo a

impressionantes estudos que se estendem da análise de componentes morfológicos

específicos (como celeiros, pontes e formas vernaculares de arquitetura) a

associações de formas e suas superposições (GOLD, 1980:116), a perspectiva de

reflexão geográfica iniciada por Sauer incutiu na Geografia norte-americana uma

concepção de paisagem como unidade orgânica que funde, de modo incindível,

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povo e natureza, território e comunidade, abrindo o caminho para a compreensão de

seu sentido substancial e de seu significado simbólico (OLWIG, 1996:644-654).

1.3.2. Limites e desafios impostos ao estudo do espaço vivido pela

racionalidade cognitivo-instrumental e pelo “fenômeno urbano”

Se as apreciações estéticas de Humboldt indicaram a inafastabilidade da

concepção do espaço como experiência humana sobre a Terra, mesmo de formas

específicas de reflexão geográfica apoiadas sobre metadiscursos positivistas, e a

perspectiva de análise iniciada pela Landschaftkunde e continuada, à sua peculiar

maneira, pelas escolas vidaliana e saueriana pôs sob as luzes da Geografia

científica o tema da formação e evolução de paisagens culturais, esses indicativos

de uma resistência difusa à redução do espaço à condição de mero continente

preenchido por objetos geográficos não foram suficientes para promover uma

verdadeira reconciliação da atividade geográfica com o tema do espaço como chôra.

Tal fato se deveu a duas razões principais. Em primeiro lugar, as reações emotivas

dos geógrafos profissionais com relação à realidade espacial estudada, vistas sob

lentes de intensa preocupação em não se afastar da objetividade necessária ao

trabalho científico, são assumidas, nesse momento da evolução do pensamento

geográfico, com infinita precaução. De outra parte, as abordagens vidaliana e

saueriana das interações entre o espaço e a cultura permanecem-lhes exterior e “se

recusam a realizar o questionamento das representações e dos valores que levam

as pessoas a agirem de uma certa maneira ao invés de outra, a organizar o espaço

segundo um modelo, ao invés de outro” (CLAVAL, 1997:91).

Essa exterioridade da abordagem cultural presente na avaliação dos

genres de vie da Geografia francesa e na análise morfológica da Escola de

Berkeley, por sua vez, se não tornou os contornos mais amplos de suas

considerações epistemológicas implícitas descompassado em relação ao propósito

geral de resgatar a geograficidade dos grupos humanos, também não lhes permitiu

que se municiassem de um aparato teórico-metodológico adequado seja para bem

compreender a dimensão verdadeiramente experiencial do espaço, seja para

resgatá-la da instrumentalização de que foi alvo, em virtude dos processos cada vez

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mais complexos de diferenciação e racionalização social dos modos de reprodução

material.

De fato, a ênfase de tais abordagens na tradução das interações entre

cultura e meio natural, em termos de explicitação da diferenciação existente entre as

técnicas empregadas pelos grupos sociais para manter seus hábitos espaciais ou se

adaptar às condições naturais, assume que a técnica e o controle tecnológico

constituem categorias sujeitas à livre manipulação do homem, integradas em seu

universo vivencial. Entretanto, essa pressuposição não leva em consideração um

dado marcante na evolução das sociedades modernas: a crescente reificação tanto

da natureza quanto da história, promovidas pela diferenciação estrutural crescente

dos modos de reprodução social e por sua racionalização em torno de objetivos

estratégicos auto-regulatórios dos sistemas político e econômico.39

Na realização desses objetivos, a técnica e sua racionalidade gerativa, a

racionalidade cognitivo-instrumental, assumiram paulatinamente o status de

fenômeno de importância destacada na vida humana, a ponto de as próprias

relações intersubjetivas serem reduzidas a denominadores tecnológicos. O homem

contemporâneo aparece, assim, como um ser que se deixa aprisionar nas redes que

armou para realização de sua pretensa transcendência. Se de um lado o aparato

tecnológico confere à sua relação com o mundo caráter de excludente dominação40,

de outro a técnica que enseja essa artificial sensação de controle não se encontra

mais à disposição do homem, pois deixou de ser instrumentum, um recurso fundado

em formas de conhecimento consolidas e socialmente compartilhadas, que se

subordina à dócil manipulação e viabiliza a organização da realidade, para adquirir,

contemporaneamente, o status de parâmetro de emolduração (Ge-stell) da própria

subjetividade (HEIDEGGER, 1997:5-21). Dessa maneira, a “vida humana, em toda a

39 Destaca ROUANET (1987:340), com amparo em HABERMAS (1984; 1989; 1990), que nas sociedades modernas, concomitantemente à racionalização cultural, da qual derivaram a diferença entre três esferas de valor ou vivenciais: a da ciência, vinculada ao mundo da verdade factual; a da moral, vinculada ao mundo social das normas, e da arte, vinculada ao mundo subjetivo; ocorre uma racionalização social, nas esferas do Estado e da economia. Essas últimas esferas passam, assim, a ser regidas por uma dinâmica crescentemente automática, destacada do plano vivencial e regida por uma lógica própria, instrumental e deslingüistificada (não fundada em processos de compreensão intersubjetiva), que, com o tempo, foi se ampliando cada vez mais, tornando-se “imperialista” e procurando “anexar” seguimentos cada vez mais extensos das três esferas vivenciais, “colonizando-as” com seus imperativos funcionais. 40 “Como outro do homem, o mundo lhe aparece, [...] em primeiro lugar, como material a ser transformado pela subjetividade, em vista de sua auto-realização. Nesse horizonte, o outro da subjetividade emerge como ‘não-subjetividade’, como ser da natureza não-portador de subjetividade” (OLIVEIRA, 1993:123).

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sua dimensionalidade, é cada vez mais submetida a condicionamentos da razão

tecnológica” (OLIVEIRA, 1993:123). A rede se fecha sobre o homem. Este, ao

buscar, pela técnica, transformar o mundo em “uma enorme coleção de coisas

reduzidas ao estatuto de objetos passíveis de apropriação” (SERRES, 1991:48), cria

um sistema de enquadramento da realidade que lhe escapa ao controle,

desprendendo-se da pressuposta dicotomia sujeito-objeto que lhe serve de amparo

ideológico, para, de certa forma, modular a existência humana e, assim, bloquear

significativamente o caminho que permite a compreensão da essência espacial do

próprio homem.

O paradoxo não deixa de ser intrigante. A consciência tecnológica, no seu

afã de (pre)ordenação do “mundo das coisas”, transforma a idéia de transcendência

em grilhão do homem (TRIBE, 1974:1332-1336), que se torna, assim, incapaz de

realizar em plenitude sua intrínseca geograficidade. Como exemplifica HEIDEGGER

(1997:16), a hidrelétrica que transforma o Rio Reno em uma fonte de energia para

satisfação das múltiplas necessidades humanas deixa a ilusão de que o próprio

curso d’água se encontra sob controle do homem. Na verdade, entretanto, também

este tem sua existência condicionada pela usina, que passa a emoldurar as

possibilidades de convivência social. Tal condicionamento impele o homem, por sua

vez, a compreender tendencialmente sua relação com a altersubjetividade – locus

privilegiado de formação de vivências espaciais coletivas, como parte da realidade a

ser tecnicamente dominada e organizada, o que leva à realimentação do conflito

interpessoal, pela adoção de um modo de agir especificamente estratégico, voltado

não para se alcançar a intercompreensão, mas o sucesso (HABERMAS, 1984:285).

O resgate da geograficidade dos grupos sociais, por conseguinte, não

pode ser devidamente realizado por expedientes que tomem a técnica como mero

instrumentum, pois, de muitos modos, seu emprego indica, modernamente, não os

modos de saber e fazer que tornam culturais paisagens naturais, mas sim a

existência de complexos processos de “colonização” da própria experiência espacial

do homem, da realidade simbólica pré-estruturada em que esta se traduz, com o

propósito de lhe retirar os nexos e significados próprios. Para além de revelar essa

dimensão estratégica da técnica, contudo, o resgate da Geografia como experiência

humana da Terra não pode deixar de pôr em causa o “fenômeno urbano” como traço

indicativo de que o espaço não é meramente organizado pelos grupos sociais, mas

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é sim por eles produzido a partir de um repertório de práticas sociais alicerçadas em

crenças, símbolos e utopias comuns (LEFEBVRE, 1974/1991: 11-12).

Evidentemente, o fenômeno do agrupamento humano em cidades não é

novo, constitui mesmo legado cultural comum da humanidade. Sua gênese associa-

se ao surgimento, nas diferentes civilizações antigas, de estruturas econômico-

sociais específicas, marcadas pela especialização de funções administrativas e

militares dissociadas das funções produtivas de índole agrária. Nem essa “cidade

política”, predominante até a Alta Idade Média, nem a “cidade comercial”, resultado

da assunção, na parte final do Medievo, da troca comercial como função urbana,

nem a “cidade industrial”, fruto da afirmação revolucionária do modo capitalista de

produção social, entretanto, podem ser utilizadas como modelos epistemológicos

hábeis a captar as possibilidades abertas à evolução do “fenômeno urbano” nos

últimos cinqüenta anos.

O surgimento da “cidade industrial”, contudo, simultaneamente prenuncia

e induz transformações significativas da realidade urbana, a qual se vê lançada em

uma “zona ou fase crítica” marcada pela superposição do crescimento da produção

industrial sobre o crescimento das trocas comerciais, que se multiplicam, por

conseguinte, para abranger não só produtos, mas também idéias e concepções de

mundo, em escala global. No curso desse processo de generalização, por sua vez, a

realidade urbana, de conseqüência, passa a se configurar em causa e razão; de fato

induzido, torna-se fenômeno indutor, impondo a “problemática urbana” em escala

mundial. Nesse contexto, é de se perguntar se a realidade urbana pode ser definida

como mera “superestrutura”, excretada na superfície da estrutura econômica, ou

destilada de modo discreto por práticas culturais, como simples resultado do

crescimento econômico e das forças produtivas. A resposta de LEFEBVRE

(1999:26-27) é negativa, pois

a realidade urbana modifica as relações de produção, sem, aliás, ser suficiente para transformá-las. Ela torna-se força produtiva, como a ciência. O espaço e a política do espaço ‘exprimem’ as relações sociais, mas reagem sobre elas. Bem entendido, se há uma realidade urbana que se afirma e se confirma como dominante, isso só se dá através da problemática urbana.

Se de um lado a fase crítica do processo de urbanização faz surgir a

problemática urbana, ao mesmo tempo, como elemento condicionante dos modos de

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produção e resultado das transformações por estes impingidas nas novas formas de

manifestação socioculturais; de outro, os fatores catalíticos dessa “revolução urbana”

– concentração urbana, êxodo rural, extensão do tecido urbano, subordinação

completa do agrário ao urbano – sugerem diferentes questões a serem levantadas e

indicam diferentes caminhos reflexivos a serem perseguidos, com o objetivo de

tornar o fenômeno urbano, como fenômeno inscrito na contemporaneidade, um

objeto privilegiado de reflexão.

É somente nesse ambiente multicontextual que o desenvolvimento

urbano, entendido como a afirmação da predominância econômica, social e cultural

das cidades, pode ser considerado como uma característica dominante dos

processos contemporâneos de produção do espaço. Não obstante, é preciso

distinguir-lhe duas variáveis fundamentais (CLARK, 1985:61-62): o crescimento

urbano, que denota a relevância crescente das cidades como centros de afluência

de pessoas, bens e serviços; e a urbanização, “processo social e não espacial que

se refere às mudanças nas relações comportamentais e sociais que ocorrem na

sociedade”, como resultado do crescimento urbano.

O conteúdo dos valores urbanos, contudo, estrutura-se em interação com

modos específicos de organização socioeconômica, os quais deixam indeléveis

marcas tanto nas formas, quanto nas funções da cidade. Nesse sentido,

SALGUEIRO (1999:245-257) observa que a cidade industrial caracteriza-se por

traduzir espacialmente os processos de segregação funcional e social que se

encontram no âmago de sua própria gênese, em termos de áreas social ou

funcionalmente homogeneizadas, interconectadas por relações hierarquizadas de

complementaridade e dependência.

Seu traço mais marcante consiste na relação, relativamente rígida,

estabelecida entre o centro e a periferia, desdobrada na existência de zonas

específicas de desempenho das funções comercial, industrial e residencial, esta

última estratificada socioespacialmente. Essa homogeneidade das áreas sociais,

paulatinamente, passou a traduzir o papel específico desempenhado pelo espaço na

identificação pessoal. Em outras palavras, a mobilidade social própria do capitalismo

industrial tornou a casa e a vizinhança fatores fundamentais no hetero-conhecimento

e no auto-reconhecimento dos grupos sociais. Dessa maneira, a homogeneidade

social dos bairros residenciais adquire, na cidade industrial, tanto conotação

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sociocultural (formação de identidades, defesa do território contra “intrusos”), como

tradução econômica (determinação do valor do solo).

O resultado desse arranjo socioespacial setorizado na morfologia da

cidade consiste em uma forma urbana “arrumada” (SALGUEIRO, 1999:246), “com

os grupos sociais e as atividades econômicas cada um no seu lugar”. Como

resultado, as relações intersetoriais caracterizam-se pelo desenvolvimento de trocas

entre espaços desiguais. Já no plano intra-setorial, tecem-se interdependências e

multiplicam-se solidariedades. Esse arranjo socioespacial, reflete-se nas próprias

políticas urbanas do Estado, cuja ação planificadora tem por base um sistema de

zonas mais ou menos rígidas, o que oferece suporte à constatação de WOOD

(1994:70) sobre a relação existente entre a ideologia norteadora do planejamento

espacial e as forças socioeconômicas subjacentes aos processos de produção do

espaço.

O planejamento funcionalista-zonal assim concebido chega, nos países

desenvolvidos, ao ápice de seu esplendor no período imediatamente posterior à

Segunda Guerra Mundial. A necessidade de reconstrução de redes urbanas inteiras,

associada às exigências de promover novos padrões de bem-estar social como

forma de resgatar a viabilidade do projeto social democrático-liberal, faz com que os

diversos Estados da Europa Ocidental encontrem, entre as diferentes variáveis

ideológicas do urbanismo modernista, das garden towns de Ebenezer Howard, às

propostas de renovação urbana e densificação de Le Corbusier e Frank Lloyd

Wright, o referencial teórico de suas intervenções acentuadas no modelamento do

espaço urbano. Nos EUA, apesar de as ações de planejamento urbano no pós-

guerra não assumirem a mesma feição intervencionista adquirida na Europa, o

financiamento público estratégico de projetos privados de suburbanização e de

renovação de áreas centrais, aliado a massivos investimentos públicos diretos na

infra-estrutura urbana, sobretudo na construção de extensas free ways e obras de

conexão viária (pontes e túneis), contribuíram para a afirmação de uma semelhante

ideologia funcionalista do desenvolvimento urbano (HARVEY, 1990:68-69).

Essas formas de intervenção urbana materializadas pelo ideário

funcionalista-zonal contribuíram de modo significativo, nos países em que foram

adotadas, não apenas para a reconstrução das estruturas urbanas, mas também

para a promoção de uma desejável, e de outro modo não alcançável, ampliação dos

postos de trabalho para a população descomissionada do serviço militar, integrando-

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se ao conjunto das políticas públicas de viés marshaliano e inspiração keynesiana,

que resultaram na melhoria dos níveis gerais de bem-estar social em comparação

com a situação existente no período pré-guerra. Não obstante, sua transformação

em cartilha ortodoxa de um estilo de planejamento cada vez mais identificado tanto

com o autoritarismo de determinas agências estatais, quanto com as necessidades

de reestruturação econômica e administrativa das grandes companhias do setor da

construção civil, fizeram surgir críticas agudas dirigidas igualmente à suas

metodologias e resultados.

Para JACOBS (1962/1992), o planejamento funcionalista ignorava

profundamente os processos de interação social que se encontravam na base da

produção do espaço urbano. Em decorrência, sua ótica era míope aos laços de

solidariedade desenvolvidos nos setores segregados, que os transformavam em

lugares específicos, com modos próprios de vivência, nutrindo estratégias de

diversificação e particularização das maneiras de apropriação cultural da cidade e de

edificação dos valores urbanos. Onde existia um intrincado sistema de organização

espacial, fundado e umbilicalmente dependente da diversidade e da

intrinsecabilidade das relações sociais, bem como da capacidade adquirida pelos

grupos de vizinhança de lidar com o inesperado de maneira controlada, porém

criativa, os órgãos de planejamento e as grandes companhias construtoras só eram

capazes de enxergar desorganização da trama urbana e degradação do ambiente

construído. Nesse sentido, esses atores se punham na contramão dos processos de

autodiversificação do espaço social e, ao invés de promoverem os elementos

catalíticos de construção de ambientes de vivência urbanos sadios, destruíam ou

colonizavam a geograficidade sobre a qual se erigia a convivência espaço-social de

muitas comunidades urbanas.

A partir da década de 1960, contudo, os padrões de organização espacial

da cidade industrial passaram a sofrer também a crescente inflexão de processos de

afirmação do capitalismo pós-industrial, caracterizado por mudanças profundas nas

estruturas econômicas, as quais, de uma parte, deram ensejo à primazia das

atividades financeiras e informacionais sobre as atividades industriais e, de outra,

provocaram uma revolução sem precedentes nas tecnologias de comunicação e

transportes. Evidentemente, esses processos se fizeram sentir de forma desigual

nos países desenvolvidos e em desenvolvimento. No entanto, em termos de linhas

de tendência do desenvolvimento urbano, um traço comum marcante pode ser

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apontado nas transformações da estrutura de muitas áreas metropolitanas de uns e

de outros: o surgimento da redes urbanas policêntricas. De fato, a “explosão-

implosão” da cidade industrial (LEFEBVRE, 1999:27), promovida pelo surgimento de

novos fatores socioeconômicos de organização espacial, como a tecnologia e a

informação, teve por conseqüência a formação, tanto nos países desenvolvidos

como no Terceiro Mundo, de aglomerações urbanas, em que uma miríade de áreas

pericentrais e periféricas, entrelaçadas umas nas outras, estrutura-se ao redor de

diversos centros e subcentros de mercado.

Nessas redes, não só a hierarquia funcional relativamente rígida do

sistema centro-periferia dá lugar a estruturas decentralizadas em áreas

funcionalmente equivalentes, como também as zonas social e funcionalmente

segregadas passam a ser minadas pela formação de “enclaves territoriais distintos e

sem continuidade com a estrutura sócio-espacial que os cerca” (SALGUEIRO,

1999:247). Substitui-se, assim, a setorização da estrutura urbana em zonas pela

fragmentação funcional, com reflexos marcantes na “mentalidade urbana”. Assim, se

de um lado, no tecido urbano da cidade pós-industrial, destacam-se inúmeras

situações de descontinuidade funcional, pela implantação, e.g., de shopping centers

em áreas periféricas residenciais, de “condomínios fechados” de alto luxo em bairros

populares e de equipamentos culturais renovados em centros decadentes, de outro,

a rede de relações urbanas tende a se tornar descontínua e pontual. É dizer: se na

cidade industrial a posição social ditava-se pela pertinência do indivíduo a

determinada vizinhança, na cidade pós-industrial ela se constitui por teias espaciais

de ação, integradas por pontos distantes uns dos outros, sobre os quais exercem

força unificadora diferentes circuitos sociais.

Um índice pitoresco dessa nova realidade urbana pode ser observado no

surgimento de restaurantes e espaços culturais (teatros, casas de show) em áreas

industriais e em bairros populares periféricos. Tais equipamentos não surgem em

razão de demandas localizadas em sua vizinhança, mas como resposta aos novos

valores urbanos, a espelhar outras fragmentações da organização socioespacial,

como as fragmentações das funções residencial e comercial. Os consumidores que

a eles afluem não residem em suas cercanias, mas em outros enclaves, e optam

pelos serviços ali oferecidos, da mesma forma que preferem adquirir bens não no

comércio varejista dos centros de mercado tradicionais, mas em shopping centers

localizados, muitas vezes, em áreas marginais.

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O exemplo, de outra parte, revela como os circuitos de consumo

assumem papel preponderante na formação dos espaços de ação individuais, pois,

na cidade pós-industrial, as pessoas, progressivamente, vêm transferindo “a sua

identidade e identificação para os objetos, serviços e lugares que ‘consomem’,

ostentando riqueza, um estilo de vida particular, uma imagem do ser e do parecer

que o marketing explora com sucesso.” (SALGUEIRO, 1999:255). O fenômeno

relaciona-se a uma nota singular dos reflexos culturais da denominada acumulação

flexível própria da restruturação econômica desindustrializante: a produção do que

BOURDIEU (1977; 1984) denominou de capital simbólico, uma coleção de bens de

luxo capazes de atestar o gosto e a distinção de seu dono, cuja produção serve a

propósitos ideológicos, porque os mecanismos de que utiliza para reprodução da

ordem estabelecida permanecem escondidos.

Como o capital simbólico dos diferentes grupos sociais encontra-se

espacialmente disperso, a integração de seus circuitos de consumo exige

deslocamentos constantes. Uma das características fundamentais da cidade pós-

industrial, portanto, reside na extensão e densidade de seus fluxos, que faz do

automóvel, ao mesmo tempo, fator de integração e de exclusão. Um reflexo evidente

dessa ênfase na construção de espaços fragmentados de ação consiste na

sobrecarga das redes de transporte e no aumento da poluição veicular, fenômenos

que se transformaram em problemas centrais das grandes regiões metropolitanas

contemporâneas.

O surgimento de enclaves territoriais, de outra parte, tende a

retroalimentar a fragmentação socioespacial da cidade pós-industrial, como pode ser

observado pelo resultado de iniciativas de renovação parcial dos centros

tradicionais, ao estilo da promovida nas Docklands, a área portuária da Grande

Londres (WOOD, 1994:71-72). As intervenções pontuais no tecido urbano

decorrentes da implementação desses projetos, ao desconsiderar os contextos de

vivência existentes nas áreas “renovadas”, tendem a intensificar, em vez de mitigar,

os processos de dispersão social nelas em curso. Com efeito, os projetos de

renovação têm demonstrado uma tendência a se fecharem sobre si mesmos,

levando ao surgimento do fenômeno conhecido na geografia anglo-saxã como

gentrification ou elitização puntiforme. Tal fenômeno se caracteriza, de um lado, pela

intensa concentração de população de alta renda e/ou de empreendimentos

quaternários altamente sofisticados, completamente desconectados da rede de bens

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e serviços existentes ao seu redor, em certos pontos da área renovada, e, de outro,

pela disruptura dos circuitos sociais da população de baixa renda nela residente

(HARTSHORN, 1992:267-271).

A fragmentação do fenômeno urbano pós-industrial também se faz sentir

no plano político-institucional. Assumindo em diferentes porções do globo feições

análogas a de megalópoles, nos moldes conceituais empregados por Jean

Gottmann para descrever a região urbanizada do nordeste dos EUA (CLARK,

1985:92-93), a rede urbana policêntrica das grandes regiões urbanas estende-se por

diversas unidades político-administrativas. Essa miríade de centros de poder, além

de reforçar a formação e manutenção de enclaves urbanos, acaba por obstaculizar a

elaboração de abordagens mais abrangentes para enfrentamento dos problemas

metropolitanos. Privilegiam-se, assim, as intervenções desconexas, que, muitas

vezes, destinam-se a tornar mais marcantes os contrastes intra-urbanos.

O caráter tópico de muitas políticas urbanas contemporâneas, contudo,

não deve ser tomado como resultante pura e simples da ausência de estruturas de

planejamento central. WOOD (1994:65-73), analisando as mudanças identificadas

no planejamento urbano britânico entre as décadas de 1960 e 1990, caracteriza-o

como a passagem de modelos tradicionais de planejamento regional, centrados em

políticas de índole keynesiana, para uma forma de “localismo” patrocinado pelas

agências de planejamento do governo central. Tal modelo edifica-se sobre quatro

pilares básicos: a) eliminação das estruturas regionais de planejamento, b) controle

rigoroso sobre o poder decisório dos governos locais; c) eleição de pontos focais de

intervenção; d) emprego de instrumentos de mercado para a concretização dos

objetivos da política urbana.

Ao contrário do que sua linhagem neoliberal sugere, esse novo modelo

não tem como meta primária reduzir a intervenção do Estado nos processos de

desenvolvimento urbano, mas sim explorar as desigualdades espaciais próprias das

estruturas urbanas pós-industriais, como forma de alcançar objetivos econômicos

mais abrangentes. Em particular, ele tem por escopo o encorajamento da mobilidade

dos fatores da produção e a atração de capitais privados, necessários para a

concretização dos processos de reestruturação econômica deflagrados pelo próprio

pós-industrialismo.

HARVEY (1990:91-92) também observa que uma das conseqüências

mais marcantes da restruturação econômica pós-industrial consiste na imposição

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aos grandes centros urbanos da necessidade de se preocuparem com as ações de

citymarketing. Voltadas para criar uma imagem positiva da cidade como centro de

consumo e entretenimento, atraindo, assim, fluxos de capitais financeiros, tais

ações, na medida em que se acirra a competição entre as diversas áreas

metropolitanas, vem se traduzindo em intervenções destinadas a organizar em

pontos da trama urbana, mas desta desconectado, “espaços espetaculares”,

destinados a atender mais às exigências do visitante e do investidor, do que aos

anseios da população local.

1.3.3. As estratégias para reconciliação da atividade geográfica com o espaço

vivido sugeridas pela Geografia Cultural pós-funcionalista

Na ambiência de “revolução urbana” acima descrita, o resgate da

geograficidade dos grupos humanos e a reconciliação da Geografia como atividade

que põe em seu centro o espaço como chôra exigem uma particular atenção com os

aspectos dinâmicos e rapidamente mutáveis do espaço vivido, a partir do

desenvolvimento de abordagens que se assentem sobre três eixos complementares:

a análise dos processos generativos de crenças geográficas comuns por intermédio

da formação de percepções espaciais, a compreensão da construção de redes

culturais têmporo-espaciais por meio dos processos comunicacionais e a apreensão

das identidades individuais e coletivas construídas a partir das dimensões simbólica

e territorial da vivência geográfica do homem contemporâneo (CLAVAL, 1997:92).

O primeiro desses temas remete a investigação geográfica ao estudo dos

sentimentos e valores que conferem ao espaço um sentido específico de lugar, a

partir da exploração da relevância da imaginação geográfica e da identificação

fenomenológica do espaço vivido como o locus por excelência de manifestação da

experiência geográfica. Essa estirpe de investigação já representa uma linha de

reflexão bem consolidada na Geografia acadêmica, cujas primeiras manifestações

podem ser buscadas, nas décadas de 1940 e 1950, dentre outras, na geosofia de

John K. Wright e na geographicité de Eric Dardel (AMORIM FILHO, 1999:78). Sua

evolução, porém, só veio a ganhar momentum, mais tarde, no seio da crise geral

que se abateu sob a disciplina durante o final da década de 1960 e início da de

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1970, com a apresentação de estudos que utilizam conceitos fenomenológicos

elementares, em especial o de mundo da vida, por geógrafos que, para evitar uma

rotulagem por demais estreita, presa a uma matriz epistemológica única, passaram a

se considerar adeptos de uma Geografia humanística.41

A concepção de mundo da vida (Lebenswelt ou lifeworld) adotada pelos

geógrafos humanistas remonta à sua formulação original na fenomenologia

transcendental de Edmund Husserl, como a ontologia geral das experiências

imediatas do homem (PICKLES, 1985:114). É de se salientar, entretanto, que em

virtude da fluidez própria da reflexão filosófica de matriz fenomenológica, essa

concepção se encontra traduzida em linhas de pensamento distintas (BUTTIMER,

1985:169), como a fenomenologia existencial de Maurice Merleau-Ponty, Gabriel

Marcel e Alfred Schultz, a hermenêutica de Paul Ricoeur e Hans Georg Gadamer, e,

mais recentemente, a teoria da ação comunicativa de Jürgen Habermas. A

apropriação do conceito, assim, assume em cada autor os matizes específicos de

sua fonte metateórica. De outra parte, alguns geógrafos humanistas rejeitam uma

vinculação direta de sua reflexão geográfica a uma orientação filosófica específica,

em favor de uma postura mais eclética.42 Tais geógrafos, entretanto, mantêm uma

“atitude fenomenológica”, cujo eixo central repousa, precisamente, no emprego de

alguma variável, implícita ou explícita, da concepção de mundo da vida, como meio

41 Essa preocupação de evitar o aprisionamento dos estudos humanísticos em uma roupagem teórico-metodológica única e rígida pode bem ser percebida na explanação que TUAN (1985:143) oferece dos propósitos do movimento: “A Geografia Humanística reflete sobre os fenômenos geográficos com o propósito de alcançar melhor entendimento do homem e de sua condição. A Geografia Humanística não é, desse modo, uma ciência da terra em seu objetivo final. Ela se entrosa com as Humanidades e Ciências Sociais no sentido de que todas compartilham a esperança de prover uma visão precisa do mundo humano. Qual é a natureza do mundo humano? As humanidades ganham maior esclarecimento desta natureza por focalizarem-se sobre o que o homem faz supremamente bem nas artes e no pensamento lógico. As Ciências Sociais adquirem conhecimento do mundo humano pelo exame das instituições sociais, as quais podem ser vistas tanto como exemplos da criatividade humana e como forças limitadoras da atividade livre dos indivíduos. A Geografia Humana procura um entendimento do mundo humano através do estudo das relações das pessoas com a natureza, do seu comportamento geográfico bem como dos seus sentimentos e idéias a respeito do espaço e do lugar.” 42 Assim, e.g., RELPH (1984:209-223) abandona esquemas teórico-metodológicos predefinidos para se apropriar de elementos presentes no existencialismo de Martin Heidegger e na filosofia da linguagem do “segundo” Wittgenstein.

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de se realizar uma apreciação mais abrangente, não reducionista, dos fatos da

experiência.43

Contrapondo-se à abordagem funcionalista da Nova Geografia e à crítica

radical da Geografia marxista, essa apreciação procura assentar as bases de uma

reflexão geográfica centrada na recuperação de chôra pela explicitação do que os

romanos já denominavam de genius loci, o sentido de lugar conferido pelos homens

ao espaço não a partir de uma perspectiva transcendental e, portanto, destacada do

próprio mundo, mas pelo reconhecimento de que esse processo de significação

apresenta natureza intencional. Dessa maneira, reconhecem que não há um ponto

de vista transmundano disponível para o homem, “a partir do qual ele poderia ver a

si próprio e ao seu mundo em relacionamento”, pois todo homem “é foco de seu

próprio mundo, ainda que possa esquecer de si próprio como centro criativo daquele

mundo” (BUTTIMER, 1985:170). Em decorrência, toda experiência do espaço é

assumida como condição de espacialidade, como fixação do sujeito em dado

ambiente, sendo a percepção espacial “um fenômeno de estrutura”, que só pode ser

compreendido “no interior de um campo perceptivo que inteiro contribui para motivá-

la, propondo ao sujeito concreto uma ancoragem possível” (MERLEAU-PONTY,

1945/1999:377).

Tal perspectiva promove uma espécie de resgate da tradição geográfica

dos estudos da paisagem, compreendida agora de maneira abrangente, para

abarcar suas dimensões estética e axiológica, na qual se inserem os muitos

aspectos valorativos e vivenciais que orientam as atitudes do homem em relação ao

espaço. Da mesma forma, ela salienta a necessidade de se considerar que as

paisagens vividas e valoradas constituem e constroem reciprocamente horizontes

compartilhados, realidades espaciais simbolicamente pré-estruturadas da vida

coletiva, sendo tarefa do geógrafo contribuir para que cada indivíduo, por intermédio

da tomada de consciência de seu horizonte pessoal, aprenda a simpatizar com os

43 Tendo em vista o limitado escopo traçado para o presente trabalho, não se pretende aqui apresentar uma recensão de todas as variantes significativas da concepção de mundo da vida. Acata-se, entretanto, a advertência de GUSTIN (1999:179) sobre a redução institucionalista que a idéia de Lebenswelt assume na fenomenologia transcendental e adota-se sua definição, formulada com amparo na teoria crítica habermasiana (HABERMAS, 1984; 1990), segundo a qual “o mundo da vida é uma realidade pré-estruturada simbolicamente em que locutores e ouvintes criam contextos sociais de vida através de elementos simbólicos diversificados sob a forma de expressões imediatas (atos de fala ou de ações cooperativas), de sedimentação dessas expressões imediatas (obras de arte, textos, documentos, técnicas, tradições, etc.) e sob a forma de elementos mediatos (instituições, estruturas de personalidade, sistemas sociais)”.

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mundos de outras pessoas. A importância da realização dessa tarefa radica em sua

imprescindibilidade para o próprio resgate da experiência espacial pessoal. De fato,

na vida diária, a geograficidade individual não é posta em reflexão, pois o mundo da

vida apresenta uma dimensão pré-refletiva, que faz com que os significados não

questionados e determinantes do comportamento sejam tomados como certos. Para

trazer à consciência a experiência pessoal do espaço torna-se necessário, portanto,

trazer à consciência a geograficidade compartilhada coletivamente, para que o

conjunto de experiências comuns revele a cada participante de sua construção “o

espaço como um conjunto contínuo dinâmico, no qual o experimentador vive,

desloca-se e busca um significado” (SCHRAG apud BUTTIMER, 1985:174).

O jogo da intersubjetividade, contudo, apresenta uma natureza

comunicacional, e a cultura encontra-se constituída de informações que tratam “da

sociedade, da natureza, dos laços que unem seus membros e das regras que devem

ser respeitadas nas relações que se estabelecem” (CLAVAL, 1997:94). A

prevalência do “fenômeno urbano” e a fragmentação das redes espaciais pós-

industriais fazem com que os fluxos informacionais se organizem ao redor de ritmos

têmporo-espaciais específicos, que conformam circuitos de interação social

particulares, organizados ao redor de pontos de encontro das trajetórias diárias da

vida concreta dos indivíduos, ou dos feixes coletivos de percursos individuais, como

apontado pela Geografia sueca de matriz hägerstrandiana (PRED, 1985:300-302).

Essa difusão têmporo-espacial da informação por circuitos específicos

tende a formar redes de vivência espacial sobrepostas, caracterizadas, por maneiras

peculiares de lidar com a tensão entre o local e o global, formadas em virtude de

concretizações específicas da compressão espaço-tempo, própria da dinâmica

tecnológica e econômica pós-industriais (GOLLEDGE & STIMSON, 1997:82-84;

HARVEY, 1990: 240). A recuperação de chôra, a explicitação do espaço vivido,

exige, dessa maneira, que a paisagem seja surpreendida como processo cultural

que se apresenta social e historicamente contextualizado (HIRSCH, 1995:22-23),

podendo a reconstrução dos contextos sociais de sua formação e evolução revelar

variações ou matizes na geograficidade de grupos sociais que, sob o enfoque do

espaço como topos, se apresentariam como aparentemente próximos, mas que, sob

o prisma vivencial, se encontram sensivelmente distantes uns em relação aos

outros.

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A distância entre a experiência espacial de dois grupos sociais, contudo,

não significa impossibilidade de que seus horizontes de vivência geográfica sejam

reciprocamente explicitados no circuito comunicacional em que não se formaram e

evoluíram. Tal explicitação se torna possível pela existência de pontos nodais

coincidentes entre as diferentes trajetórias comunicacionais coletivas dos grupos

sociais envolvidos.

Com efeito, não se deve esquecer que a lógica de explicitação de

realidades espaciais pré-estruturadas em diferentes circuitos comunicacionais

apresenta sempre a consistência de um comportamento lingüístico. Desse modo,

uma suposta inexistência absoluta de pontos nodais coincidentes entre as trajetórias

de dois grupos sociais importaria na intraduzibilidade também absoluta de suas

respectivas experiências espaciais. Conseqüentemente, tais grupos ver-se-iam

obstados de alcançar o reconhecimento recíproco de suas geograficidades como

tais, passando um a duvidar se a trajetória do outro apresenta a consistência de uma

vivência espacial, pela mesma razão que dois grupos, diante da absoluta

incompreensibilidade de seus respectivos comportamentos lingüísticos, encontram-

se legitimados a duvidar se por detrás desses atos encontram-se estados mentais

de sujeitos intencionados a comunicar-se (DAVIDSON, 2001a: 137). A estruturação

de acordos ou desacordos sobre comportamentos lingüísticos, como resultado de

processos comunicativos, conforme já destacado, só se faz possível contra o pano

de fundo de um acordo difuso, consolidado sobre hábitos de ação. Não se deve,

porém, superestimar as dimensões desse acordo, que não precisa alcançar a

densidade de (pré)compreensões comuns, nem necessariamente se erige sobre

experiências historicamente compartilhadas.

Assim, o matizamento da experiência espacial indica que geograficidades

coletivamente compartilhadas constituem paisagens culturais multidimensionais, cuja

compreensão, ou seja, sua recuperação por intermédio da explicitação das

realidades espaciais pré-estruturadas em cada circuito comunicacional, impõe, para

além da interpretação, a intercompreensão das diferenças que sobressaem quando

de sua sobreposição. É dizer, a compreensão de paisagens culturais pressupõe um

processo de reconstrução dialógica, que se traduz em um acordo entre intérpretes e

grupos formadores de horizontes vivenciais específicos, acordo este que não pode

ser imposto por uma parte às demais, mas se obtém por intermédio da comunicação

e repousa sobre convicções compartilhadas (HABERMAS, 1984:286-287), em

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particular a convicção de que as diferenças específicas identificadas devem ser

traduzidas em termos de geograficidades alternativas: experiências espaciais que

uma das partes não possui, podendo mesmo com elas não se identificar, mas que

reconhece como parte autêntica da vivência geográfica das demais.

A reconstrução dialógica das paisagens culturais multidimensionais em

termos da explicitação de geografidades alternativas, conseqüentemente, possui

uma peculiar característica não-representacional, em que se reconhece ser

impossível extrair do mundo uma representação do mundo, porque nele se

encontram inseridos, participando de de sua “co-construção”, tanto o intérprete

quanto aqueles que compartilham da realidade espacial pré-interpretada que se

pretende explicitar (THRIFT, 1999:296-297). Nesse contexto, a explicitação de

geograficidades coletivamente compartilhadas, seu (re)conhecimento em termos de

paisagens culturais não pode ser cindido de sua (re)produção, ou, como observa

DUNCAN (1990), as descrições de paisagens culturais não se configuram da mesma

forma que as imagens se refletem em um espelho, mas são construídas a partir dos

limites da vivência espacial de quem as realiza. Tais descrições, por consegüinte,

interferem no processo de formação das paisagens “descritas” e passam a integrar

sua dinâmica evolutiva.

Em outros termos, as geograficidades coletivamente compartilhadas

constituem sistemas de significação que forjam identidades espaciais pela

especificação de um domínio simbólico-territorial, um “texto”, se por texto se

compreender, como entendem BARNES & DUNCAN (1992) com apoio em

RICOEUR (1971), toda a ampla gama de produções culturais e instituições

econômicas, sociais e políticas que se traduzem em um conjunto de práticas

significantes. Dessa maneira, todas as tentativas de compreendê-las são

“intertextuais”, ou seja constroem-se a partir de práticas significantes e como

práticas significantes.

Isso não quer dizer que a natureza “intertextual” das paisagens culturais

não possa ser obnubilada pela especificação de determinados modos de regulação

social, em que sua dimensão simbólica seja tomada como reificações da “natureza

ou da história em algum sentido puro, não-adulterado” (PEET, 1996:23). Na verdade,

a paisagem pode apresentar-se como componente particularmente importante dos

processos de regulação social, porque nela ocorre a interconexão entre práticas

comunicacionais e materiais (MITCHELL, 2000:143), a ancoragem, como aponta

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HABERMAS (1984,1989), entre o “mundo da vida”, no qual as estruturas simbólicas

são “reproduzidas a partir da continuidade de um conhecimento válido, da

estabilização da solidariedade grupal e da socialização de atores responsáveis”

(GUSTIN, 1999:178), e o “mundo sistêmico”, no qual os modos de reprodução social

põem em relevo ações que apresentam, tão-somente, um significado funcional

consistente com sua contribuição para a manutenção dos subsistemas econômico e

político-administrativo especificados por esses modos. Dessa forma, as paisagens

culturais se tornam particularmente sensíveis ao tipo de instrumentalização que as

transformam em mera conceptualização estética das interações entre o homem e o

meio ambiente, por intermédio da qual o mundo é visto de forma distanciada,

como uma criação racionalmente ordenada, planejada e harmônica, cuja estrutura e mecanismo são acessíveis tanto à mente quanto ao olho humano, desempenhando o papel de guias dos homens nas alterações e melhorias que promovem do meio ambiente. (COSGROVE, 1989:122)

Há, entretanto, uma grande diferença entre reconhecer que paisagens

culturais podem ser reduzidas a formas intrumentalizadas de ver o mundo, formas

que, inclusive, para além de retirar-lhes o conteúdo vivencial, menoscabam o próprio

projeto de recuperar o sentido do espaço como chôra, e concluir, na linha adotada

por COSGROVE (1998:269-270), que essa instrumentalização responde pela

própria essência da paisagem, revelando-a como produto sociocultural cujas

técnicas de construção e formas compositivas vedam-lhe servir de elemento

mediador entre as experiências dos atores que participam de sua construção e do

“observador” que procura captar-lhe o sentido. A instrumentalização de paisagens

culturais não constitui mais do que um caso específico de “colonização” do mundo

da vida, em que as estruturas simbólicas da geograficidade deixam de ser

reconhecidas exatamente pela adoção de uma concepção de paisagem destacada

da experiência espacial, a qual substitui seus nexos vivenciais por estruturas

funcionais, transformando seus elementos ou em “recursos naturais”, ou em

artefatos humanos construídos pelo emprego da técnica.

Esse não reconhecimento, porém, apresenta natureza meramente

tendencial, pois “o campo das interações espontâneas, lingüisticamente

mediatizadas, continua sendo indispensável, inclusive nas sociedades mais

complexas” (ROUANET, 1987:340-341). É nesse campo que se alicerçam os

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esforços de grupos de pessoas que partilham certa identidade geográfica comum

(BERTRAND, 1995:100) para (re)construir sua geograficidade em seus próprios

termos, e não nos termos daqueles que procuram controlá-las (MITCHELL,

2000:290). É para ele que devem voltar-se os esforços de reconstrução dialógica de

paisagens culturais, no propósito de lhes recuperar o sentido substantivo, ou seja,

sua natureza de realidade “ecossimbólica” (BERQUE, 1995:350), irredutível a

categorias forjadas a partir da dualidade sujeito-objeto e reveladora de nexos

vivenciais entre as esferas cognitiva, normativa e expressiva da relação estabelecida

por determinada comunidade e o mundo. Uma realidade, por conseguinte, que pode

ser percebida, lida e interpretada “in situ, em textos escritos e por intermédio de

imagens artísticas” (OLWIG, 1996:645).

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Capítulo II

“GEOJURISPRUDÊNCIA”: UM NOVO OLHAR SOBRE AS RELAÇÕES ENTRE O ESPAÇO E O DIREITO

2.1. AS PERSPECTIVAS ABERTAS PELO ESTUDO DAS PAISAGENS CULTURAIS PARA A RENOVAÇÃO DO DIÁLOGO ENTRE A GEOGRAFIA E O DIREITO

2.1.1. A origem comum das práticas significantes do discurso jurídico e da atividade geográfica

Dada as peculiaridades que lhe são próprias, o processo de reconstrução

dialógica de paisagens culturais atende, como se pode perceber, a um imperativo,

ao mesmo tempo, epistemológico e emancipatório. De um lado, ao promover o

envolvimento comunicacional entre intérprete e atores que participam de sua

criação, fornece as bases para a produção de um conhecimento geográfico

contextual, mais apto a compreender o sentido conferido pelos indivíduos e grupos

sociais à sua existência espacial (CLAVAL, 2001c). De outro, ao expor a densidade

substantiva da vivência geográfica, transforma-se em poderosa ferramenta de

promoção da autonomia cultural (MITCHELL, 2000:289) pela resistência aos

“impulsos anexionistas” da razão instrumental (ROUANET, 1987:341), suas

tentativas de anulação da experiência espacial pela reificação das relações entre o

homem e o espaço.

Essa fusão entre a relevância epistemológica e o potencial libertário da

compreensão dos nexos formativos do espaço como chôra põe a reconstrução

dialógica de paisagens culturais na interseção entre o resgate das Geografias

vernaculares, como forma de ampliar os horizontes da Geografia acadêmica, e a

proteção da geograficidade dos grupos sociais, como parte inseparável do pleno

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exercício por esses grupos de seus direitos culturais. Dessa forma, o tema das

paisagens culturais demonstra possuir um instigante potencial para estabelecer

bases estreitas de um diálogo profundo entre a Geografia e o Direito.

Afirmar a mera possibilidade de estabelecimento desse diálogo, todavia,

pode soar, inicialmente, como algo, na melhor das hipóteses, implausível, pois, para

muitos, esses dois campos do conhecimento tem tantos pontos de contato como a

Astronomia e a Neurologia (PLATT, 1996:29). Na verdade, a percepção desse

distanciamento não pode ser considerada arbitrária, pois, como observam

BLACKSELL, WATKINS & ECONOMIDES (1986), a evolução histórica da Geografia

Humana e do Direito, por exemplo, demonstra que as duas disciplinas, muito embora

inseridas no corpo das Ciências Sociais, sempre mantiveram uma separação

relativamente rígida entre suas respectivas orientações teórico-metodológicas. Essa

separação reflete-se não apenas na escassez de literatura específica sobre a

relação entre Geografia e Direito, mas também na falta de um vocabulário teorético e

analítico comum, bem como na existência de estruturas disciplinares e institucionais

nos dois campos que apresentam uma natureza aparentemente antitética, tornando-

os mutuamente excludentes (BLOMLEY, 1994:04).

Em grande parte, esse contingenciamento epistemológico pode ser

atribuído à tradicional rigidez disciplinar do Direito, cuja auto-imagem, em maior ou

menor grau, sempre foi construída a partir de uma simbiose entre o fenômeno

jurídico e a reflexão promovida pela “Ciência do Direito”, em que cada qual

pretensamente justifica a autonomia e a integridade do outro pela paradoxal

afirmação de sua própria autonomia e integridade (COTTERELL, 1985:15). Não por

outra razão, o vocábulo “direito” é empregado tanto para expressar o fenômeno

jurídico como a ciência que o estuda e, apesar de ser curial a advertência de que, na

primeira acepção, o termo deve ser grafado com a inicial minúscula e, na segunda,

com a inicial maiúscula, não são poucas as dificuldades que os juristas, aqueles que

se designam como profissionais do Direito (ou seriam profissionais do “direito”?),

encontram para balizar com precisão, em situações concretas, o emprego da grafia

correta.

O policiamento das fronteiras disciplinares do Direito não impede,

entretanto, que a Geografia seja, sob severa vigilância, admitida em seus domínios,

sempre que se faz necessário verificar o impacto de determinadas normas jurídicas

sobre a realidade socioespacial. A reflexão geográfica é aqui empregada como

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forma de averiguar se o efeito esperado do direito sobre o espaço realmente se

manifestou, bem como para “calibrar”, a partir da avaliação realizada, novas

intervenções jurídicas, aperfeiçoando seu poder regulatório e, conseqüentemente,

sua eficácia (PUE, 1997:36-37). Sem embargo da relevância desses trabalhos de

“avaliação de impactos regulatórios”, sua admissão pode bem ser entendida como

resultado da exclusão, a priori, de uma verdadeira interpenetração entre o jurídico e

o geográfico. É dizer, ela se insere no contexto mais amplo de uma concepção do

direito em que a prática e a interpretação jurídicas sofrem um processo de

“deterritorialização”, ou seja, são concebidas como processos que se desconectam

dos “múltiplos lugares e espaços da vida social” (BLOMLEY, 1994:04).

Caso se atente para a advertência de FOCAULT (1969) de que uma

disciplina não deve ser considerada como um centro de significação daqueles

elementos que seus praticantes assumem como seu conteúdo, mas como conjuntos

de práticas que sistematicamente formam os elementos sobre os quais são

construídos discursos significantes disciplinares, essa concepção deterritorializada

do direito perde por completo seu apelo quando o espaço deixa de ser tomado

meramente como topos, como bem pressentiu SANTOS (2000:197-200), ao procurar

construir uma “cartografia simbólica” do fenômeno jurídico. Para o autor,

todos os conceitos com que representamos a realidade e à volta dos quais constituímos as diferentes ciências sociais e suas especializações, a sociedade e o Estado, o indivíduo e a comunidade, a cidade e o campo, as classes sociais e as trajetórias pessoais, a produção e a cultura, o direito e a violência, o regime político e os movimentos sociais, a identidade nacional e o sistema mundial, todos esses conceitos têm uma contextura espacial [...]. [Desse modo] as relações das diferentes juridicidades com a realidade social são muito semelhantes às que existem entre os mapas e a realidade espacial. De fato, as juridicidades são mapas; os direitos escritos são mapas cartográficos; os direitos consuetudinários (customary) e informais são mapas mentais.

Talvez por não se atentar para a dimensão performativa presente na

produção de qualquer mapa, dimensão que deriva de sua inserção nos processos

intertextuais de compreeensão/produção do espaço, o autor constrói sua cartografia

simbólica como uma “metáfora forte” que permite o desenvolvimento de “uma

conceptualização sociológica do direito autônoma da que tem sido elaborada pelos

juristas e pela ciência jurídica”. A reconstrução dialógica de paisagens culturais

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sugere, contudo, que esse plano metafórico pode ser superado, pois juridicidade e

geograficidade têm sua origem em práticas significantes comuns. Por conseguinte,

assumido em sua dimensão vivencial, o espaço passa, simultaneamente, a constituir

e a ser constituído pelo direito, o que não apenas revela o caráter meramente

aparente da integridade disciplinar da Ciência Jurídica, como abre instigantes

possibilidades para a construção de “perspectivas geojurisprudenciais”

(geojurisprudential perspectives) da relação entre Direito e Geografia, em que as

agendas de pesquisa desses campos do conhecimento passem a ser concebidas

como reciprocamente estruturantes (PUE, 1997:41-42).

É preciso, porém, proceder com cautela ao se lançar mão de uma das

maiores “paixões teóricas” da Geografia (ROGER, 1994) para redefinir sua relação

com o Direito, pois, dada sua radicação profunda na tradição do pensamento

geográfico, o termo paisagem pode ser qualificado simultaneamente como sedutor,

importante e ambíguo (MEINIG, 1979:01).

A atração que exerce decorre, antes de mais nada, das imagens mentais

que evoca, muitas das quais revestidas de impressões estéticas ou sentimentais

positivas, sensações topofílicas, como as designa TUAN (1990), chamando a

atenção para os laços afetivos estabelecidos entre os homens e o mundo material.

Bucólicas cenas rurais, conjunto de lugares memoráveis por seu testemunho de

episódios históricos, monumentos naturais de rara beleza ou, mesmo, em um viés

mais intimista, espaços preenchidos de significado pessoal, como a silhueta da

cidade onde nascemos, ou a praia onde costumávamos passar férias – todas essas

cenas são facilmente construídas pela lembrança, quando se indaga a alguém sobre

suas paisagens preferidas. Mas não só; parte de sua sedução provém também do

fato de sugerir a necessidade de que uma especial proteção seja dedicada aos

aspectos relevantes das cercanias de nossa existência, encontrem-se estes

traduzidos em uma pequena praça, em um parque de águas minerais, em um

conjunto arquitetônico de relevância histórica e cultural ou em um alinhamento

montanhoso de rara beleza.

Sua importância, por sua vez, aflora em duas distintas dimensões.

Primeiramente, ela se deixa notar na inegável centralidade que a idéia de paisagem

assume, seja como objeto de investigações deflagradas por pesquisadores e

profissionais de diferentes campos, seja como foco de preocupações manifestadas

em diversas esferas de formulação e implementação de políticas públicas. Nesses

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contextos sociais, o termo paisagem reveste-se de um sentido técnico, de emprego

corrente entre artistas, geógrafos, historiadores, arquitetos e planejadores,

assumindo papel de destaque no debate sobre temas críticos do desenvolvimento e

do planejamento regional. A carga semântica que lhe é atribuída tende, portanto, a

ser construída a partir de uma perspectiva exterior (DONADIEU, 1994:54), que

procura estabelecer, a partir da compreensão do papel desempenhado por

elementos visíveis de sua composição, as bases para o entendimento dos processos

que levam à sua estruturação.

Essa perspectiva exterior mantém-se mesmo quando se procura conferir

aos elementos destacados em seu estudo a função de marcos ou balizas

perceptuais empregadas por aqueles que participam de sua construção, como

ocorre, por exemplo, na abordagem teórico-metodológica de LYNCH (1960), em que

o autor busca explicitar as correlações entre orientação no espaço urbano e

estruturas físicas da cidade. Considerado como um dos trabalhos seminais da

investigação estruturalista sobre percepção ambiental,44 essa reflexão põe em relevo

os conceitos de legibilidade da paisagem urbana e imageabilidade dos objetos

físicos existentes no tecido urbano. Por legibilidade da paisagem urbana deve-se

compreender a medida da intensidade com que as partes da cidade podem ser

reconhecidas e organizadas em padrões cognitivos coerentes. Já a imageabilidade

consiste “na qualidade de um objeto físico que lhe confere uma alta probabilidade de

evocar fortes imagens em qualquer observador” (LYNCH, 1960:09).

Partindo, assim, de uma perspectiva que põe em destaque “temas

morfológicos” identificáveis nas paisagens urbanas, o trabalho de LYNCH (1960)

concentra seus esforços no diagnóstico de como as categorias conceituais da

legibilidade e da imageabilidade contribuem para a compreensão da formação de

percepções pessoais e sociais sobre o espaço. A legibilidade constitui uma função

das pistas oferecidas pela imageabilidade de determinados objetos ou elementos

visuais encontrados na estrutura intra-urbana. Essas pistas se traduzem em

sensações visuais de cor, forma ou movimento, referências imagéticas que

proporcionam indicações de localização relativa e tornam a orientação na cidade

44 Conforme DEL RIO & OLIVEIRA (1996:x), a abordagem estruturalista da percepção ambiental compreende a realidade “como um conjunto de sistemas cujas estruturas são reconhecíveis e onde qualquer alteração sofrida por uma parte tenderá a se refletir no todo, admitindo-se relações de causa-efeito”. (RIO & OLIVEIRA, 1996:x).

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mais fácil (HARTSHORN, 1992:206). O quadro conceitual elaborado a partir de tais

referências oferece, por sua vez, fortes sugestões para o planejamento urbano, pois,

sendo a legibilidade da paisagem urbana entendida como a resultante da

interconexão entre os elementos visuais da cidade, intervenções podem ser

realizadas de modo a intensificar sua imageabilidade, permitindo que imagens mais

intensas possam ser extraídas e padrões mais nítidos possam ser identificados pela

população.

Em sentido análogo ao de LYNCH, mas tomando por base o alicerce

epistemológico fornecido por Michel Trieb em sua Teoria das Formas Urbanas

(Stadtgestalt), KOHLSDORF (1996) observa que as características morfológicas da

cidade apresentam uma peculiar significância nos processos de cognição do espaço

urbano, pois constituem repositório de informações necessárias para que seus

habitantes possam identificar os diversos lugares específicos de que é formado e se

orientarem nos deslocamentos pela trama urbana. Tal relevância decorre da

constatação de que, apesar da existência de infinitos modos de concretização

específicos, as formas urbanas sugerem temas morfológicos globais, padrões

estruturais, perenes e universais, cuja conjugação confere à cidade uma identidade

inconfundível.

O potencial informativo das configurações morfológicas, entendido como

“as possibilidades oferecidas, pela forma dos lugares para o seu próprio

aprendizado” (KOHLSDORF, 1996:43), contudo, varia conforme seu desempenho no

atendimento às expectativas sociais básicas de orientação e identificação, de modo

que conjuntos semelhantes podem apresentar desempenhos diferenciados. Desse

modo, “a paisagem informa, e a primeira noção que transmite refere-se a sua

identidade” (KOHLSDORF, 1998:27). Seu idioma morfológico é universal, mesmo

quando demarcado pela “pluralidade de significados que é capaz de adquirir sempre

que interpretada por alguém”. Não obstante, há paisagens que se expressam com

maior fluência e outras que se apresentam menos inteligíveis, porque codificadas de

tal modo que sua leitura se torna menos clara para aqueles que procuram se situar

no interior do tecido urbano.

Em outro plano de reflexão, entretanto, a relevância da idéia de paisagem

deriva da circunstância de sua crescente utilização para designar um conjunto

entrelaçado de elementos ordinários, portador de referências aos modos de fazer e

de criar de determinada comunidade. Por se encontrar tal conjunto prenhe de

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significados socioculturais, sua adequada leitura oferece pistas indispensáveis para

a compreensão da própria existência coletiva do homem. Nesse sentido, JACKSON

(1984:08) concebe-a como uma composição de espaços vivenciais que,

simultaneamente, serve de suporte e traduz a identidade e a história de pessoas e

grupos humanos concretamente considerados. Um meio simbólico que é, ao mesmo

tempo, fator generativo e resultado de um conjunto de práticas que, por sua vez,

confere sentido à vida da comunidade que participa ativamente de sua criação e

transformação. Sua compreensão, portanto, é captada a partir de uma perspectiva

interior (DONADIEU, 1994:54), sob o prisma dos grupos sociais que a produzem e

lhe conferem um sentido próprio de lugar.

O largo emprego do termo, contudo, torna-o ambíguo e sua polissemia

tende a se intensificar, em virtude da crescente liberdade com que vem sendo

adotado para traduzir idéias, ao mesmo tempo, tão díspares e metafóricas, como “a

paisagem das imagens líricas contidas em um poema” e “a paisagem política do

Congresso Nacional”. Quando se procura fixar seu sentido, com auxílio das diversas

disciplinas interessadas no que se convencionou denominar de “estudos da

paisagem” (GROTH, 1997), sua tradução também não se demonstra unívoca,

sugerindo uma diversidade de leituras que desafia uma estável explicitação

conceitual. Fenômeno semelhante ocorre, ainda, quando se limita a busca do

significado atribuído ao termo, apenas, nos limites da reflexão geográfica, sugerindo

AMORIM FILHO (1998:123) que “a enormidade da tarefa chega a ser

desanimadora”.

2.1.2. A conexão entre geograficidade e juridicidade que desponta do sentido

substantivo das paisagens culturais

Encontrando-se o presente trabalho despojado de qualquer pretensão de

apresentar uma definição pronta e acabada, uma ancoragem conceitual provisória,

mas afinada com a finalidade do processo de reconstrução dialógica indicado supra¸

pode ser alcançada para a idéia de paisagem, pela exploração da estreita relação e

da diferenciação específica que ela apresenta ao ser cotejada com as idéias

traduzidas pelos termos natureza, cenário e meio ambiente (MEINIG, 1979:02-03).

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Com efeito, a noção de paisagem relaciona-se à de natureza, mas desta

se distingue por se opor ao tradicional reconhecimento, implícito no uso da primeira,

de uma contraposição do tipo binário entre o homem e um conjunto de elementos

inumanos – a natureza como antítese da cultura. Da mesma forma, paisagem evoca

a idéia de cenário, mas com esta não se confunde, porque a abrangência semântica

de cenário se apresenta como intrinsecamente limitada à composição específica de

locais revestidos de alguma qualidade estética, cujos contornos se destacam do

observador que lhe atribui tal qualidade. Disso decorre que a idéia de paisagem é

irredutível tanto a um mundo de objetos apartados da vivência humana quanto a

uma subjetividade que se realiza isolada do mundo. Ela pertence a uma categoria de

conceitos mediais, apresentando, assim, segundo BERQUE (1996; 2000) uma

natureza “trajetiva” (trajectif),45 ou seja uma natureza que só se deixa captar como

processo, ao mesmo tempo simbólico e material, de estruturação de um continum

entre o homem e a Terra.

BERQUE (1994:14-18;1996:87-89) adverte, entretanto, que a paisagem

constitui apenas um dentre diversos conceitos mediais aptos a captar o que

WATSUJI (1935/1988) designou como o momentum estrutural do ser do homem no

mundo, pois ela implica uma estética específica, que não se encontra presente na

espacialidade de todos os grupos sociais, em todos os tempos. Assim apesar de não

compartilhar da concepção estruturalista de COSGROVE (1998), a qual reduz a

paisagem a um modo distanciado de ver o mundo, o autor distingue entre a noção

de “proto-paisagem”, como denominador comum da geograficidade manifestada em

todas as sociedades, e a paisagem como uma concretização específica da

geograficidade chinesa, a partir do século IV, e européia, a partir do século XVI.

Essa concretização se manifestaria pela conjugação de três expressões

socioculturais: a) o emprego de uma ou mais palavras para expressar a idéia de

paisagem (e.g. paysage e paesaggio, na Europa; shanshui, na China); b) uma

literatura oral ou escrita, descritiva de paisagens concretas e/ou devotada a

45 BERQUE (2000:90) emprega o neologismo trajetividade (trajectivité) para designar a propriedade nãodual da realidade geográfica como esta se manifesta ao homem. O vocábulo deriva, como explica o autor, do latim trajectio, palavra que expressa o ato de transferir ou trasladar. A trajetivividade como propriedade é, portanto, resultado de um processo (trajection) de incrustação do homem no mundo, de integração do físico ao fenomênico (BERQUE 1995:350), sendo, portanto, dinâmica e contingente. Esse conceito radica em um profundo diálogo que o autor promove entre o antiessencialismo heideggeriano e o pensamento filosófico de Nishida Kitarô (1870-1945) e de seus discípulos da “Escola de Kioto”, em particular Watsuji Tetsurô (cf. NISHIDA, 1911/1990; WATSUJI, 1935/1988).

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consagrar sua beleza; c) uma tradição que valoriza a representação pictórica de

paisagens e a jardinagem como elevadas formas de manifestação estético-

expressivas.

Para BERQUE (1994:16), a diferenciação entre proto-paisagem e

paisagem propriamente dita, contudo, não impede o estabelecimento de bases para

intercompreensão da geograficidade manifestada por sociedades paisagísticas,

caracterizadas pela conjugação dos modos de expressão sociocultural acima

indicados, e as sociedades não-paisagísticas, que apresentam outras formas

peculiares de manifestar sua vivência geográfica. Não obstante, a interlocução entre

tais sociedades exige um paciente e humilde esforço de tradução e aprendizagem

fundado, sobretudo, em uma preocupação de não reduzir a especificidade de

vivências geográficas alternativas a meras sombras da experiência espacial de

quem pretende traduzi-las em termos paisagísticos. De outro lado, é preciso

observar, com apoio no próprio autor (BERQUE, 1995:349-351), que, como

categoria trajetiva, shanshui, a idéia chinesa de paisagem, de matriz eminentemente

estética, não se destaca nem assume seu pleno significado sem seu cotejamento e

interpenetração com o fengshui, os princípios e regras que regem a gestão do meio

ambiente. Na tradição chinesa, portanto, estética paisagística, conhecimento do

mundo e ética ambiental se fundem em uma concepção fenômeno-física

(phénophysique) ou ecossimbólica (écosymbolique), de conteúdo substantivo,

composta de nexos cognitivos, normativos e expressivos entrelaçados uns nos

outros.

Da mesma forma, no contexto europeu, afirma OLWIG (1994) que uma

escavação histórica e geográfica do conceito de Landschaft, a partir de suas raízes

profundas, anteriores ao século XVI, sugere um semelhante sentido substantivo para

a idéia de paisagem. Não totalmente eliminado pela posterior instrumentalização que

transformou a paisagem, no contexto europeu, em mera conceptualização reificada

das interações entre o homem e a natureza (COSGROVE, 1998), esse sentido pode

ser recuperado a partir do resgate do emprego do termo Landschaft para designar

um fenômeno geográfico peculiar, pelo qual a organização territorial e o conjunto de

práticas sociais de determinadas comunidades da Europa Setentrional

apresentavam-se como mutuamente constitutivos. Tal fenômeno manifestou-se

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sobretudo na Frísia,46 região historicamente caracterizada por sua resistência ao

regime feudal. Nela, a integração, em determinadas instituições próprias do direito

público germânico, de regras de convívio comunitário fundadas em laços de

parentesco permitiu que as relações sociais se alicerçassem não em vínculos de

proteção pessoal, mas em formas de solidariedade intragrupal (BLOCH, 1961:445).

A reminiscência histórica mais recente desse fenômeno consiste nas

antigas landskaber (termo dinamarquês congênere ao alemão Landschaften),

unidades político-territoriais da Frísia do Norte, cuja autonomia as distinguia das

demais unidades em que se organizava o Ducado de Schleswig, região que integrou

o Reino da Dinamarca até 1864, quando passou ao controle da Prússia. As

landskaber consistiam, até sua transformação em meros distritos administrativos

prussianos, em alternativas vivenciais ao feudalismo e ao absolutismo estatal,

forjadas a partir de “constituições territoriais” que conferiam a seus habitantes um

amplo direito de autodeterminação comunitária pela participação tanto na

administração da justiça quanto no governo, o que lhes permitia recusar

peremptoriamente a se submeterem às leis de outras comunidades da própria Frísia

do Norte ou da Jutlândia (OLWIG, 1994:631-632).

Forjada nesse particular contexto de estruturação de laços coletivos de

vivência geográfica, a palavra Landschaft sugere precisamente a idéia desse nexo

fundamental entre direito, identidade cultural e territorialidade. O sufixo schaft

conecta-se etimologicamente ao verbo schaffen, que significa essencialmente criar,

constituir ou moldar. Em alemão, a palavra Gemeinschaft significa precisamente

comunidade, por comunicar a idéia de uma esfera pública ou de vida em comum

constituída por aqueles que dela participam. Já o vocábulo Land sempre foi

empregado para designar certa região não em termos de sua delimitação física, mas

de sua constituição política, como território demarcado pela relação recíproca entre

as regras de determinado direito costumeiro e o povo autorizado a participar de sua

construção.

Uma evocação eloqüente dessa relação pode ser surpreendida em um

antigo provérbio de uso corrente na Europa Setentrional, empregado como epígrafe

da primeira versão escrita do direito da Jutland (1241): Mæth logh scal land byggæs.

46 Região que se divide atualmente entre a Alemanha e os Países Baixos, voltada para o Mar do Norte.

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Sua tradução literal pode ser assim formulada: “Seja o território construído pelo

direito”. Atentando-se, contudo, para o fato de que o direito a que ele se refere

consiste nas práticas jurídicas de determinado povo, pode-se concluir que, na

verdade, o que o provérbio procura expressar é o fato de que a delimitação de um

território e o sentimento de que alguém a ele pertence tem origem comum no

processo de formação dos laços que levam à fusão entre direito e lugar, entre

juridicidade e geograficidade (OLWIG, 1994:633).

Dessa maneira, Landschaft pode ser compreendida como um vocábulo

cujo sentido histórico-geográfico profundo traduz a idéia de um território (Land) ao

mesmo tempo constituinte e constituído por uma comunidade (Gemeinschaft), um

território que não se reduz a uma mera região administrativa, mas que se delimita ou

se formaliza à medida que um conjunto de práticas normativas ou direitos

costumeiros são capazes de forjar uma relação de identificação entre um grupo

social e determinado lugar. Para OLWIG (1994:633-635), foi exatamente essa idéia

que, no início do século XVI, inspirou o surgimento, na Europa Setentrional, de um

modo específico de expressão artística pela qual pintores como Pieter Brueghel

(1525-1569) e Joachim Patiner (1485-1524) procuravam captar a essência da

Landschaft, retratando cenas constitutivas de vivências geográficas coletivas

específicas. A temática desses artistas não se reduzia a bucólicos cenários naturais,

mas apresentava um conteúdo expressivo que procurava comunicar o fato de que a

juridicidade de uma Gemeinschaft não se preservava apenas por meio da produção

jurídica de suas cortes, mas encontrava-se inscrita na trama material da paisagem,

por intermédio de práticas coletivas que estabeleciam o conteúdo, por exemplo, das

obrigações de promover a manutenção de pontes e estradas, o cultivo dos campos

ou a delimitação do território.

A noção de Landschaft, por conseguinte, de modo análogo à noção

chinesa de shanshui, também confere à idéia de paisagem uma densidade

substantiva, pela indicação da existência de um entrelaçamento entre os nexos

cognitivos, normativos e expressivos que forjam identidades coletivas pela conexão

de determinada comunidade e dado lugar. Tal densidade se manifesta como uma

rede territorial de práticas sociais, pondo em evidência a paisagem como um sistema

de relações simbólicas e materiais, aproximando, por via de conseqüência, sua

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100

fronteira conceitual de significados atribuídos ao termo meio ambiente, o qual, em

sua acepção ampla, também se revela como uma rede ou sistema de relações.47

É preciso, contudo, extremar os dois conceitos. Tradicionalmente, meio

ambiente sugere a existência de relações e processos que conferem

sustentabilidade ao fenômeno da vida, nos quais evidentemente se encontra

inserido o homem. A idéia de paisagem, subjacente à noção explicitada supra, por

sua vez, indica a existência de relações e processos de significação cultural dos

elementos constitutivos do espaço, com o conseqüente surgimento de estruturas de

suporte à formação da identidade social do homem. Evidentemente, os processos de

significação cultural envolvidos na formação e evolução da paisagem não se limitam

a simples projeções ideais, mas se traduzem em interferências concretas sobre

diferentes fatores de sustentabilidade ambiental.

Com efeito, a cultura não deve ser compreendida como um setor apartado

da vida social, nem como uma espécie de entidade de existência autônoma, mas

como um conjunto mutável de relações sociais, regras e sentidos intrinsecamente

entrelaçados na vida cotidiana dos diferentes grupos sociais (GROTH, 1997:11, cf.

tb. GEERTZ, 1989). A cultura não constitui, portanto, um sistema conceitual, mas um

sistema adaptativo e material, uma rede, ao mesmo tempo física e mental, de

relações de significados que os homens por si mesmos tecem, cotidianamente, em

suas relações recíprocas e nas relações que desenvolvem com outros elementos de

seu meio. Dessa maneira, muitas são as imbricações temáticas encontradas quando

se põe em relevo aspectos generativos e evolutivos da paisagem e do meio

ambiente, podendo-se afirmar que é somente no quadro de práticas significantes

formado por aquela que este adquire sentido e se deixa impregnar de valores

específicos.

Por outro lado, representando a paisagem o resultado sempre instável,

sujeito a modificações e, portanto, em permanente (r)evolução, dos processos de

significação cultural do espaço, ela apresenta duas distintas perspectivas de análise.

De uma parte, pode ser surpreendida a partir do ponto de vista dos atores que

promovem sua construção e modificação; de outra, pode ser objeto de leitura do

analista que busca revelar-lhe o sentido, a partir de pistas dessas mesmas ações

47 É nesse sentido, por exemplo, que meio ambiente é concebido por NAESS (1994, 1995) como conceito central de sua “Ecologia Profunda”.

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101

constitutivas ou modificadoras. Na primeira, sua composição se encontra marcada

por elementos que conferem um sentido de lugar e de território a determinada

porção do espaço; na segunda, a paisagem assume os contornos de um feixe de

significados, exposto a partir de um conjunto de objetos e relações espaciais que

constituem a parte visível dos processos de significação do espaço.

Em ambas as perspectivas assinaladas, contudo, a paisagem se revela

como uma “imagem de nossa humanidade comum”, composta de “trabalho duro,

esperança teimosa e concessões recíprocas lutando para ser amada” (JACKSON,

1984: xii). Em outras palavras: a partir do olhar íntimo de quem a constrói, a

paisagem se apresenta como espaço vivido; sob o prisma de alguém que promove

sua leitura, ela constitui espaço interpretado. Seu sentido, entretanto, só se revela

quando estes dois olhares se entrecruzam, para, “intertextualmente”, compor uma

obra coletiva que se desprende de seus autores: a paisagem cultural dialogicamente

(re)construída.

Dessa forma, apesar de a paisagem poder ser surpreendida sob dois

prismas – como vivência dos diversos atores que interagem em seu

desenvolvimento e como resultado da interpretação dos fatores políticos e sociais

subjacentes aos modos de interação específicos desses mesmos atores –, nenhum

deles pode ser tomado ou como periférico, ou como prevalente em sua explicação.

Seu estudo, como observa HAYDEN (1997:114), só realiza todo seu potencial por

meio de uma visão balanceada, capaz de captar toda a corrente de significados

oferecida pela descrição dos sentidos de lugar subjacentes à geograficidade dos

diferentes grupos sociais e, ao mesmo tempo, contextualizar essas constelações de

sentido no seio dos processos político-sociais de produção do espaço, processos

que se encontram juridicamente mediados.

Tendo em vista, portanto, a inafastável conexão entre juridicidade e

geograficidade presente em uma tal concepção de paisagem,48 o conceito oferece

um ponto de partida estimulante para uma reflexão verdadeiramente

geojurisprudencial da relação entre Direito e Geografia. A transformação desse

ponto de partida em um fluxo contínuo de idéias, amplo o suficiente para formar

48 Concepção que é própria de seu emprego em contextos sociais concretos e que, de certo modo, já se insinuava nos genres de vie de Vidal de La Blache, nas Kulturlandshcaften de Eduard Hahn e nas cultural landscapes de Carl Ortwin Sauer, mas que só assume seu pleno significado na Geografia Cultural pós-funcionalista.

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102

novos discursos significantes, contudo, não se apresenta como tarefa das mais

fáceis, pois, até o presente, a fronteira teórico-metodológica que se interpõe entre o

Direito e Geografia não foi propriamente rompida (BLOMLEY, 1997:06).

2.1.3. Construindo os alicerces de uma ponte transdisciplinar entre Geografia e

Direito: a relação complementar entre a afirmação do princípio da precaução e o resgate do espaço como chôra

Apesar de seu apontado distanciamento teórico-metodológico, em alguns

pontos, entretanto, a aproximação temática entre o Direito e a Geografia torna a

fronteira que se interpõe entre as duas disciplinas mais permeável, sugerindo a

possibilidade de o resgate do espaço como chôra fornecer subsídios suficientemente

robustos para a estruturação de pilares firmes, a partir dos quais possa ter início a

construção de uma ponte mais sólida sobre a clivagem ainda existente entre o

conhecimento jurídico e a reflexão geográfica. Dentre tais pontos, a concretização de

um dos princípios basilares do direito ambiental, o princípio da precaução, parece

particularmente promissor, em virtude de suas específicas vinculações com o

processo de reconstrução dialógica de paisagens culturais.

De fato, assumido o espaço como nota intrínseca da existência do

homem, pode-se afirmar que um dos papéis fundamentais do direito ambiental

consiste precisamente em assegurar que as práticas sociais se revistam da devida

preocupação com a proteção da geograficidade específica dos grupos humanos.

Não por outra razão, parte relevante de suas regras encontra-se voltada para afirmar

os pressupostos fundamentais do que SACHS (1986:15-18) designou de

ecodesenvolvimento: um estilo de desenvolvimento pautado por iniciativas locais de

dinamização socioeconômica que, “em cada ecorregião, insiste nas soluções

específicas de seus problemas particulares, levando em conta os dados ecológicos

da mesma forma que os culturais”. Um estilo de desenvolvimento que só pode ser

alcançado pela gestão prudente dos bens, recursos e valores identificados por

intermédio das manifestações concretas dessa mesma geograficidade, a que se

pode adequadamente nomear de bens, recursos ou valores socioambientais.

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103

De outra parte, se a cultura não constitui um sistema conceitual, mas um

sistema adaptativo e material, na afirmação do direito fundamental ao meio ambiente

ecologicamente equilibrado, não é possível separar o que vem a ser o meio

ambiente “objetivamente considerado” do que seja o meio ambiente vivido ou

experienciado, o lugar de realização da interação (e da integração) homem/meio.

Dessa maneira, em razão da inextricável dimensão vivencial do espaço, o

“meio ambiente” encontra-se impregnado de valores variados, os quais traduzem os

específicos quadros de vida coletiva dos diferentes grupos sociais, composto pelas

formas peculiares de interação desses grupos com outros elementos dos sistemas

ambientais. Em conseqüência, a garantia do direito coletivo ao “meio ambiente

ecologicamente equilibrado”, direito fundamental que se configura como extensão do

direito à vida (TRINDADE, 1993:75; cf. tb. BARACHO JÚNIOR, 2000), não se faz

sem a concomitante afirmação do direito à livre participação na vida cultural da

comunidade e do direito à diversidade cultural, compondo estes últimos o quadro

maior do direito à autonomia cultural.49 Em outras palavras, a afirmação do direito

fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado exige, de modo

inarredável, tanto o explícito reconhecimento das formas particulares de interação

entre o homem e seu meio quanto o respeito às paisagens culturais por seu

intermédio constituídas.

A nitidez da constatação de que a noção de bem, recurso ou valor

socioambiental só pode ser perfeitamente construída quando retomada no âmbito da

geograficidade própria dos grupos sociais, entretanto, torna muito delicada a tarefa

de elaborar e implementar políticas de proteção do meio ambiente, pois é possível

afirmar que, quando a geograficidade de determinado grupo social é suprimida ou

deixa de ser considerada em qualquer desses processos decisórios ocorrerá,

conseqüentemente, uma espécie de “dano socioambiental”, mesmo que este não se

revele perceptível para outros grupos, dotados de diferentes padrões de experiência

espacial. Assim, seja a medida de política ambiental a aprovação e sanção de uma

nova lei, o ato de concessão da licença ambiental de uma mineradora ou

hidrelétrica, a aplicação de penalidades a uma indústria poluidora, a definição de

padrões de controle ambiental, a criação de uma unidade de conservação ou a

49 No Brasil, o artigo 225, caput, e o artigo 215, caput e §1º da Constituição da República consagram, respectivamente, os direitos fundamentais ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, à participação na vida cultural do país e à diversidade cultural.

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sentença em uma ação ambiental, o problema da definição adequada do sentido dos

valores em jogo, como valores derivados de práticas coletivas, sempre comparece e

realça a relação complementar entre a afirmação daquele princípio que constitui o

“ponto direcionador central” para formação do direito ambiental (DERANI, 2001:169;

RODRIGUES, 2002:151-152), o princípio da precaução, e o resgate do espaço como

chôra.

2.2. A RECUPERAÇÃO DA GEOGRAFICIDADE DOS GRUPOS SOCIAIS COMO PRESSUPOSTO DE PLENA AFIRMAÇÃO DO PRINCÍPIO DA PRECAUÇÃO

2.2.1. As variantes de sentido do princípio da precaução encontradas no

processo de sua adoção como linha mestra do direito ambiental 2.2.1.1. Primeiras formulações

Em conseqüência mesmo do antigo adágio de que “é melhor prevenir do

que remediar” (mieux vaut prévenir que guérir),50 o princípio da precaução sempre

assumiu posição central na orientação dos procedimentos destinados a promover a

formulação e a implementação de medidas de política ambiental. Segundo esse

princípio, os atores que interferem em tais procedimentos devem buscar a completa

eliminação das ameaças de degradação do meio ambiente. Em particular, o princípio

exige do Poder Público e dos agentes econômicos que atuem aquém de uma faixa

de constituição do perigo de dano aos bens, recursos e valores socioambientais. Por

conseqüência, em sede de formulação e implementação de políticas ambientais, não

basta afastar a possibilidade concreta de dano ambiental, é preciso que tais políticas

orientem-se no sentido de não estabelecerem situações das quais venha surgir a

probabilidade dessa espécie de dano. Em outros termos, o princípio da precaução

não admite que o Poder Público e os agentes econômicos joguem dados com a

50 Ou, como se prefere no mundo anglo-saxão, an ounce of prevention is worth a pound of cure.

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sorte, submetendo os bens, recursos e valores socioambientais à possibilidade de

deterioração.

No plano do direito estatal, sua origem pode ser traçada até a Lei Sueca

sobre Produtos Perigosos para o Homem e o Meio Ambiente de 1973, cujo artigo 5º

expressamente estabelece que qualquer pessoa que manipule ou importe produtos

perigosos para o homem ou para o meio ambiente deve adotar as precauções

cabíveis para prevenir os danos que, do emprego dessas substâncias, podem

decorrer (WAHLSTRÖM, 1999:51-52). Sua elaboração sistemática, entretanto, teve

lugar na antiga Alemanha Ocidental, já no início da década de 1980, quando o

governo federal daquele país resolveu adotar o Vorsorgeprinzip como pilar da

racionalidade de enérgicas políticas públicas destinadas a atacar o problema da

chuva ácida sobre as áreas remanescentes de florestas de coníferas, em relação às

quais os alemães se sentem particularmente vinculados emocional e culturalmente

(JORDAN & O’RIORDAN, 1999: 19-21). A palavra Vorsorge, nesse contexto

generativo de políticas ambientais, assume o sentido de adoção antecipada da

melhor prática de gestão ambiental, mesmo na ausência de riscos significativos, e o

Vorsorgeprinzip foi, assim, assimilado pelo direito ambiental alemão como expressão

do reconhecimento de que a responsabilidade pela proteção do meio ambiente

envolve a adoção de medidas de prevenção de danos futuros irreversíveis, ainda

que inexistam evidências conclusivas sobre suas causas e sobre a plausibilidade de

sua ocorrência (SANTILLO, JOHNSTON & STRINGER, 1999: 39-40).

Da Alemanha Ocidental, o princípio ganhou aceitação paulatina na

Europa, em grande parte em razão da pressão exercida pelos próprios alemães,

como forma tanto de evitar que seu parque industrial viesse a sofrer conseqüências

competitivas negativas, quanto de ampliar o mercado para as tecnologias “amigas

do meio ambiente” desenvolvidas para implementação da noção de Vorsorge.

Assim, em virtude do contínuo emprego pela Alemanha de seu poder econômico e

político para multilateralizar o Vorsorgeprinzip, o dever de gestão prudente do meio

ambiente foi adotado, em 1992, como uma das molduras elementares das políticas

de proteção do meio ambiente a serem elaboradas e implementadas pela União

Européia. No direito comunitário europeu, presentemente, ele encontra expressão

no artigo 174.2, título XVI, parte III do Tratado da Comunidade Econômica Européia,

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com as emendas que lhe foram conferidas pelos Tratados de Maastrisch e

Amsterdã.51

Em sua formulação tedesca, o princípio da precaução compõe-se de

quatro elementos complementares, a saber: a) os danos ambientais devem ser,

prioritariamente, evitados; b) a pesquisa científica desempenha papel essencial na

identificação de ameaças ou riscos ambientais; c) sem embargo desse papel de

relevo, ações preventivas são consideradas essenciais mesmo na ausência de

evidências causais conclusivas; d) todo desenvolvimento tecnológico deve ser

harmonizado com a exigência de progressiva redução dos ônus ambientais

suportados pela sociedade (SANTILLO, JOHNSTON & STRINGER, 1999: 39-40).

Evidentemente, o sentido profundo do Vorsorgeprinzip só pode ser alcançado pela

combinação desses quatro elementos, a qual indica, com nitidez, sua orientação no

sentido de afirmar a noção fundamental de que ações concretas sejam adotadas

para eliminar riscos socioambientais, mesmo que sua implementação exija radicais

alterações em elementos que compõem os processos produtivos. Não é outra senão

essa orientação que lhe confere o atributo de idéia mestra na estruturação de

estratégias concretas de ecodesenvolvimento (M’GONIGLE, 1999:139).

Dos quatro elementos de que se extrai o conteúdo normativo do

Vorsorgeprinzip, porém, a exigência de ação preventiva na ausência de certeza

analítica ou prospectiva vem sendo isolada como único núcleo significante da idéia

de precaução na elaboração e implementação de políticas internacionais de

proteção, sendo, neste preciso sentido, traduzido em normas de Direito Internacional

do Meio Ambiente, a ponto de a Declaração do Rio de Janeiro, um dos documentos

centrais da Conferência da ONU sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento de 1992,

concebê-lo, nos seguintes termos:

Princípio n.º 15: Para proteger o meio ambiente, medidas de precaução devem ser largamente aplicadas pelos Estados segundo suas capacidades. Em caso de risco de danos graves ou irreversíveis, a ausência de certeza científica absoluta não deve servir de pretexto para procrastinar a adoção de medidas visando prevenir a degradação do meio ambiente. (HUNTER, SALZMAN & ZAELKE, 1998a:32)

51 Texto em vigor desde de 1º de maio de 1999 (CE, 1999).

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Já dentre os tratados internacionais que procuram explicitar o sentido do

princípio da precaução como dever de atuar preventivamente, mesmo na ausência

de certeza científica, encontram-se as Emendas de Londres ao Protocolo de

Montreal sobre Substâncias que Provocam a Depleção da Camada de Ozônio, a

Convenção sobre Diversidade Biológica e a Convenção-Quadro da Organização das

Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (HUNTER, SALZMAN & ZAELKE,

1998b:360-361). Em todas essas consagrações expressas do princípio da

precaução, a adoção da fórmula indicada assume uma conotação política comum.

Ela pode ser entendida como o meio encontrado, pelos diferentes atores estatais e

não estatais que intervieram na elaboração dos tratados, para superar os entraves,

muitas vezes aparentemente intransponíveis, impostos à negociação de um regime

efetivo de direito internacional do meio ambiente, em razão do acirrado debate

científico sobre os elementos centrais da regulação a ser adotada.

2.2.1.2. Mediação política e atenuação do princípio da precaução: o exemplo da

Convenção-Quadro sobre Mudanças Climáticas

Em nenhum tratado de direito internacional do meio ambiente, entretanto,

o papel de instrumento de mediação política exercido pelo princípio da precaução

assumiu maior relevo do que no processo de elaboração da Convenção-Quadro

sobre Mudanças Climáticas (MINTZER & LEONARD, 1994:322-324). Para

compreensão de seu real significado, no âmbito da elaboração desse tratado

multilateral, deve-se considerar primeiramente que as alterações no clima sempre

estiveram associadas a efeitos tanto positivos quanto negativos sobre os modos de

produção social de diferentes grupos humanos (LAMB, 1995). Registros históricos

demonstram particularmente que mudanças climáticas podem dar origem a novos

problemas ou agravar de modo particularmente drástico problemas sociais

preexistentes, levando a situações de crise aguda ou à ruptura dos modos

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específicos de interação que se manifestam em determinados sistemas

socioambientais.52

Tais alterações vem sendo verificadas, entretanto, nos aproximados 4,6

bilhões de anos da Terra. Aparentemente aleatórias, contudo, as mudanças

experimentadas a longo prazo pelos sistemas climáticos revelam certas tendências

(HUGGETT, 1997:02-03). Assim, uma tendência ao resfriamento durante a evolução

geológica do planeta pode ser observada como uma função da diminuição de

dióxido de carbono na atmosfera. Da mesma maneira, as oscilações periódicas entre

eras de glaciação e degelo identificadas nessa mesma evolução encontram

explicação na denominada “Hipótese de Milankovitch”, segundo a qual a sucessão

de períodos mais frios e mais quentes pode ser entendida como uma conseqüência

de variações na inclinação do eixo da Terra e em sua órbita de revolução em torno

do Sol. Mesmo a análise de séries temporais sensivelmente mais curtas vem

indicando a existência de padrões de variabilidade climática (MORAES, 1998;

1999a; 1999b).

Muitos desses padrões se compõem a partir da interferência complexa de

fatores convencionalmente designados naturais, que operam em variadas escalas

de tempo, e sua manifestação não se encontra associada a atividades específicas

desenvolvidas pelos grupos humanos. Não obstante, o incremento da população

mundial, associado ao crescente nível tecnológico de determinadas sociedades, vem

revelando que certas ações humanas assumiram, no último século, a condição de

fator deflagrador de significativas alterações climáticas globais, caracterizando,

assim, mudanças globais antropogênicas (GOUDIE, 1990:262).

Com efeito, alguns gases existentes em pequenas quantidades na

atmosfera (gases traços), por apresentarem reatividade à radiação infravermelha

emitida pela superfície da Terra, desempenham um papel regulador do clima

extremamente relevante, ao produzirem o denominado “efeito estufa”, mantendo a

temperatura média do planeta 38ºC superior àquela que esta apresentaria na sua

ausência (PARKER, 1997:194).53 Exatamente por sua quantidade na atmosfera ser

52 Nesse sentido, e.g., FAGAN (1999) correlaciona diferentes crises político-institucionais experimentadas por sociedades pré-capitalistas e efeitos específicos da chamada Oscilação “El Niño” do Pacífico Sul (El Niño Southern Oscilation – ENSO) 53 Os principais gases do efeito estufa são o vapor d’água, o dióxido de carbono, os óxidos nítricos, o metano, os clorofluorcarbonos, os hidrofluorcarbonos, os perfluorcarbonos, o hexafluoreto de enxofre e o ozônio.

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comparativamente muito pequena, alterações muito significativas no clima podem

ser deflagradas em virtude de oscilações em suas concentrações. Nos últimos

duzentos anos, em razão, precisamente, de emissões decorrentes do

desenvolvimento de atividades humanas, as concentrações de muitos desses gases

vêm aumentando em ritmo que, também, cada vez mais se acelera, o que sugere

que alterações complexas dos sistemas socioambientais se farão sentir como

resultado de um processo de elevação das temperaturas médias do planeta,

fenômeno conhecido por aquecimento global.

Apesar de o mecanismo básico do aquecimento global ser conhecido

desde, pelo menos, 1896, quando o químico sueco Svante August Arrhenius, pela

primeira vez, expôs em termos teóricos os efeitos específicos das emissões de

dióxido de carbono decorrentes da queima de carvão sobre a temperatura média do

planeta, a urgência pela adoção de um regime internacional destinado a enfrentar o

problema das alterações climáticas induzidas pelo homem tem sua gênese no

crescente consenso científico sobre a relevância de seus efeitos (BODANSKY,

1994:46-47, HUNTER, SALZMAN & ZAELKE, 1998b:610), obtido em um número

expressivo de encontros científicos internacionais realizados nas décadas de 1970 e

1980, dentre os quais se destacam a Primeira Conferência Mundial sobre Mudança

Climática (WMO/UNEP, 1979) e os encontros de Villach (1985), Toronto (1988),

Ottawa (1989), Tata (1989), Haia (1989), Cairo (1989) e Bergen (1990). Em tais

encontros, gradativamente, consolidou-se o reconhecimento pela comunidade

científica de que o aumento da concentração de gases do efeito estufa na atmosfera

tem por conseqüência alterações globais na temperatura da superfície terrestre

continental e dos oceanos, bem como modificações no sistema de circulação dos

ventos. Da mesma forma, apesar de não se poder concluir que essas alterações

assumiriam contornos tão agudos a ponto de tornar as condições ambientais

absolutamente impróprias para a vida humana, em todos os encontros seus

participantes tenderam a afirmar que efeitos negativos graves delas adviriam, dentre

os quais se destacavam: a) elevação dos níveis dos oceanos com impactos

múltiplos sobre regiões costeiras, b) agravamento de secas com repercussões sobre

a economia agrária, c) acirramento de episódios meteorológicos críticos como ondas

de calor e inundações, e d) alterações no padrão de disseminação de doenças

parasitárias.

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A ampliação do consenso científico sobre os efeitos disruptivos do

aumento nas concentrações de gases do efeito estufa na atmosfera deu ensejo, em

1988, à Resolução n. 43/53, da Assembléia-Geral da ONU, que reconheceu ser a

mudança do clima preocupação comum da humanidade e determinou a estruturação

de um comitê científico permanente, de caráter multilateral, destinado não apenas a

promover revisões periódicas no estado da arte da “ciência das mudanças

climáticas, mas também a propor estratégias realistas de resposta ao aquecimento

global”. Estabelecido no ano seguinte e mantido em conjunto pelo Programa das

Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) e pela Organização Meteorológica

Mundial, o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas

(Intergovernamental Panel on Climate Change – IPCC) tem exercido, desde sua

criação, uma influência crítica ponderável nos debates internacionais sobre as

causas e as estratégias para resposta às alterações climáticas globais

(GOLDEMBERG, 1994:177).

Seu primeiro relatório, publicado em 1990, pode ser considerado fator

catalítico principal da recomendação realizada pela Segunda Conferência Mundial

sobre Mudança Climática para a adoção de um tratado internacional, nos moldes da

Convenção de Viena sobre Substâncias que Provocam a Depleção da Camada de

Ozônio, que fosse capaz de enfrentar as causas do aquecimento global. Essa

recomendação acabou por intensificar as pressões políticas no plano internacional

que ensejaram a edição, pela Assembléia-Geral da ONU, da Resolução n. 45/212,

por intermédio da qual foi criado o Comitê Intergovernamental de Negociação da

Convenção-Quadro sobre Mudanças Climáticas (Intergovernmental Negotiating

Committee for a Framework Convention on Climate Change – INC/FCCC), órgão

encarregado de elaborar o texto de um tratado internacional multilateral destinado a

lançar as bases de um adequado regime de resposta aos fatores de

desencadeamento de mudanças climáticas antropogênicas, a ser aberto para

assinatura durante a Conferência da ONU sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento

realizada no Rio de Janeiro, em 199254 (DASGUPTA, 1994:130).

Sem embargo da influência exercida pelas conclusões do primeiro

relatório do IPCC nos debates do INC/FCCC, as limitações existentes nos modelos

54 Aberta para assinatura durante a Conferência da ONU sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, a Convenção-Quadro da ONU sobre Mudanças Climáticas entrou em vigor em 21 de março de 1994, após o depósito, junto ao Secretariado das Nações Unidas, do 50º instrumento de ratificação.

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quantitativos de previsão das interações climáticas disponíveis, no início da década

de 1990, seriam utilizadas pelos Estados Unidos como um dos argumentos centrais

para justificar sua posição contrária à adoção de medidas concretas de resposta ao

aquecimento global. Para esse país, o “ruído” existente nesses modelos ainda podia

ser considerado muito elevado para um correto delineamento do “sinal” do

aquecimento global, considerado como contribuição específica do grupos humanos

para as mudanças no clima do planeta. A existência dessas incertezas justificavam,

assim, a realização de novas pesquisas científicas e o aprofundamento das análises

sobre os custos e benefícios das diferentes estratégias de resposta, dentre as quais

deveriam ser consideradas tanto medidas de mitigação quanto de adaptação. Tais

estudos deveriam ser realizados antes da adoção de objetivos quantificados de

redução das emissões antropogênicas de gases do efeito estufa e da

implementação de qualquer estrutura institucional que, associada a um conjunto de

orientações de atuação específicas, tivesse como missão coordenar os esforços

necessários para o efetivo cumprimento das metas de redução fixadas (BORIONE &

RIPERT, 1994:82).

De outra parte, as negociações levadas a efeito pelo INC/FCCC contaram

com a contribuição de um número considerável de organizações não-

governamentais tanto de países desenvolvidos quanto de países em

desenvolvimento, as quais já advogavam a adoção de um tratado internacional

destinado a estruturar mecanismos de resposta ao aquecimento global muito antes

da recomendação realizada pela Segunda Conferência Mundial sobre Mudança

Climática. Assumindo o papel de porta-vozes das preocupações fundamentais com

os efeitos disruptivos associados às emissões antropogênicas de gases do efeito

estufa, essas organizações adotaram a postura de não apenas endossar as

posições consubstanciadas no primeiro relatório do IPCC, como procuraram oferecer

suas próprias contribuições para o avanço do estado da arte na ciência das

mudanças climáticas. Seus estudos contrapunham-se frontalmente à posição

adotada pelos Estados Unidos, pois representavam um esforço no sentido de

demonstrar, a partir de revisões autônomas, a existência de traços discerníveis da

contribuição humana às mudanças experimentadas pelo clima em escala global,

com o propósito de subsidiar a adoção de rígidos compromissos de redução das

emissões antropogênicas de gases do efeito estufa (RAHMAN & RONCEREL,

1994:247-248).

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112

A necessidade de obtenção do consenso imprescindível à adoção da

Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas levou, contudo,

os diferentes participantes a preferirem definir, nesta primeira fase das negociações

internacionais sobre o aquecimento global, tão-somente, as linhas retoras gerais do

programa de resposta e seus necessários mecanismos de implementação e revisão

permanentes (HUNTER, SALZMAN & ZAELKE, 1998b:638-639). Relegou-se para

um segundo estágio o debate sobre um número significativo de temas (MINTZER &

LEONARD, 1994:324-325), dentre os quais merecem destaque especial:

a) a definição de objetivos quantificados de limitação e redução de

emissões por período de tempo;

b) a extensão e implicações da responsabilidade dos países

industrializados por suas emissões históricas de gases do efeito estufa;

c) a responsabilidade dos países que, em termos históricos, apresentam

baixos níveis per capita de emissão em relação à adoção de medidas destinadas a

limitar o percentual futuro de crescimento desses mesmos níveis;

d) a distribuição da responsabilidade pelos incrementos futuros, nas

concentrações atmosféricas de gases do efeito estufa, entre os impactos do

continuado crescimento da população nos países em desenvolvimento e o consumo

excessivo de produtos e serviços nos países desenvolvidos;

e) a necessidade de desenvolvimento conjunto de novas tecnologias e a

imprescindibilidade de novos tipos de parcerias para sua mais rápida

implementação;

f) o papel apropriado, a ser desempenhado pelos bancos multilaterais e

por outras instituições de fomento ao desenvolvimento, na implementação das

medidas de resposta a serem dotadas pelos países em desenvolvimento;

g) a relação a ser estabelecida entre os esforços de cooperação

internacional para proteger o ambiente global e as estratégias simultâneas

desenvolvidas para aprimorar a eficiência econômica e incrementar a eqüidade em

matéria de comércio internacional.

O eixo central do programa estabelecido acabou por compor-se, desse

modo, dos seguintes elementos basilares:

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a) definição da estabilização das concentrações de gases do efeito estufa

na atmosfera, em um nível que impeça interferências antrópicas perigosas no

sistema climático, como escopo último do programa de resposta;

b) afirmação de um modelo de resposta do tipo compreensivo

(GURUSWAMY & HENDRICKS, 1997:134) segundo o qual o objetivo geral do

tratado deve ser alcançado não apenas pela redução das emissões industriais de

determinado gás relacionado ao aquecimento global (e.g. dióxido de carbono), mas

por medidas combinadas de redução das emissões de qualquer natureza de todos

os diferentes gases do efeito estufa, associadas à ampliação da capacidade dos

sumidouros naturais e à adoção de técnicas que promovam o seu “seqüestro”;

c) reconhecimento de que os países industrializados devem promover a

redução de suas emissões totais de gases do efeito estufa;55

d) reconhecimento de que os países desenvolvidos devem promover

auxílio técnico-científico e financeiro aos países em desenvolvimento para que estes

possam desenvolver seus programas nacionais de mitigação das mudanças

climáticas, bem como adotar as medidas de adaptação necessárias;

e) organização de uma estrutura institucional permanente, com o

propósito de alavancar o detalhamento e efetiva implementação das estratégias de

resposta ao aquecimento global que compreende: 1. a Conferência das Partes,

órgão supremo da Convenção, composto por todas as Partes vinculadas (Estados e

Organizações Regionais de Desenvolvimento Econômico), com atribuição para

estabelecer protocolos adicionais, promover emendas ao texto do tratado e adotar

as demais decisões necessárias ao detalhamento e à efetiva implementação do

programa de resposta às mudanças climáticas traçado, mantendo-o sob regular

reexame; 2. o Órgão Subsidiário de Assessoramento Científico e Tecnológico,

composto por especialistas indicados pelas Partes, que tem a função de prestar aos

demais órgãos e estruturas institucionais informações e assessoramento sobre

assuntos científicos e tecnológicos relacionados ao aquecimento global; 3. o Órgão

Subsidiário de Implementação, também composto por especialistas indicados pelas

Partes, cujas funções consistem em auxiliar a Conferência das Partes na avaliação e

55 Apesar de não estabelecer, com caráter obrigatório, objetivos de limitação e de redução quantificados e determinados temporalmente, a Convenção reconhece como meta, que deveria ser alcançada pelos países industrializados até o final da década de 1990, o retorno de suas emissões de dióxido de carbono e outros gases do efeito estufa não controlados pelo Protocolo de Montreal aos níveis apresentados no ano de 1990 (artigo 4.2.a e b).

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exame do cumprimento efetivo da Convenção e na preparação e implementação de

suas decisões; 4. o Secretariado, órgão que serve de braço administrativo da

Convenção e tem por principal função organizar as sessões da Conferência das

Partes e dos órgãos subsidiários; e 5. o Mecanismo Financeiro, estrutura

institucional gerenciada pelo Global Environment Facility (GEF), que tem por função

prover os recursos financeiros destinados a auxiliar os países em desenvolvimento

no cumprimento das obrigações assumidas no âmbito da Convenção;

f) engendramento de mecanismos específicos para o detalhamento e

futura elaboração de medidas concretas de resposta ao aquecimento global que

abrangem: 1. a possibilidade da adoção de protocolos adicionais e 2. a

determinação expressa para que a Conferência das Partes examine a adequação

das obrigações de redução e limitação de emissões assumidas pelos países

industrializados, à luz das melhores informações e avaliações científicas disponíveis

sobre mudança do clima e seus efeitos, bem como de informações técnicas, sociais

e econômicas pertinentes.

Evidentemente, os negociadores que participaram dos trabalhos do

INC/FCCC tinham consciência de que a implementação da convenção e, por via de

conseqüência, a elaboração futura de um regime efetivo de resposta ao

aquecimento global dependeriam da adoção de uma baliza fundamental, um marco

principiológico capaz de contornar a estratégia norte-americana de procrastinar a

adoção de medidas de resposta concretas em razão dos limites de previsibilidade

existentes, segundo o próprio IPCC, nos modelos utilizados para estabelecer o

alcance e os efeitos do aquecimento global. Essa baliza foi encontrada em uma

variação da idéia de precaução consubstanciada no Vorsorgeprinzip, dispondo o

artigo 3.3 da Convenção:

As Partes devem adotar medidas de precaução para prever, evitar ou minimizar as causas da mudança do clima e mitigar seus efeitos negativos. Quando surgirem ameaças de danos sérios ou irreversíveis, a falta de plena certeza científica não deve ser usada como razão para postergar essas medidas, levando em conta que as políticas e medidas adotadas para enfrentar a mudança do clima devem ser eficazes em função dos custos, de modo a assegurar benefícios mundiais ao menor custo possível. Para esse fim, essas políticas e medidas devem levar em conta os diferentes contextos socioeconômicos, ser abrangentes, cobrir todas as fontes, sumidouros e reservatórios significativos de gases de efeito estufa e

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adaptações, e abranger todos os setores econômicos. As Partes interessadas podem realizar esforços, em cooperação, para enfrentar a mudança do clima.

A afirmação expressa, no texto da Convenção-Quadro da ONU sobre

Mudanças Climáticas, da necessidade de que medidas concretas de resposta ao

aquecimento global fossem adotadas, mesmo na ausência de certeza científica

sobre o alcance e os efeitos da influência do homem no clima do planeta, pode ser

considerada como uma das molas propulsoras dos avanços, ainda que tímidos,

obtidos nas negociações climáticas internacionais pós-1992. Associada às

conclusões esboçadas no segundo relatório do IPCC, o qual afirma haver consenso

na comunidade científica de que o balanceamento das evidências sugere ser

possível concluir pela existência de uma “influência humana discernível no clima

global” (IPCC, 1995:22),56 ela exerceu um papel considerável como medium de

negociação dos termos do Protocolo de Quioto, tratado internacional adotado pela

Conferência das Partes, em 1997, que tem por objetivo central estabelecer metas

quantificadas de redução e limitação das emissões de gases do efeito estufa para os

países industrializados.

A fórmula utilizada pela Convenção, de resto também insinuada na

própria Declaração do Rio de Janeiro, contudo, pode ser considerada como uma

versão atenuada do princípio da precaução, pois se, de um lado, o dever de cautela

nela enunciado só surge ante a existência de “ameaças de danos sérios ou

irreversíveis”, de outro, as medidas de resposta que ensejam seu cumprimento

sujeitam-se a um critério de proporcionalidade, pois “devem ser eficazes em função

dos custos”. Nessa concepção, portanto, a invocação do princípio da precaução

depende da demonstração tanto do grau de risco a que se encontram submetidos os

bens e valores socioambientais quanto da adequação econômica das medidas

concretas de prevenção a serem implementadas na ausência de “certeza científica”.

Como o dever de cautela não surge da mera indicação da plausibilidade da

ocorrência de danos ao meio ambiente, o ônus de estabelecer seja a magnitude do

56 Essas conclusões foram, recentemente, ratificadas pelo terceiro relatório do IPCC que, categoricamente, conclui ser demonstrável que o clima da Terra sofreu mudanças perceptíveis desde a era pré-industrial, devendo tais mudanças serem, ao menos, parcialmente atribuídas às atividades humanas. Não obstante, dada a complexidade dos sistemas climáticos, esse relatório reafirma que a adoção de medidas de resposta ao aquecimento global deve ser concebida como um “processo seqüencial que se desenvolve sob o pano de fundo de incertezas gerais” (IPCC, 2001:02).

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risco ambiental que justifica a aplicação do princípio, seja a parcimonialidade das

medidas de precaução adotadas recai, segundo esse modelo, sobre aquele que o

invoca e propõe estratégias de ação nele amparadas, o que o obriga a realizar

estudos específicos destinados a mensurar o risco ambiental envolvido, além de

promover a análise econômica das alternativas de atuação possíveis, com o

propósito de demonstrar que a medida sugerida atende a melhor relação custo-

benefício (JORDAN & O’RIORDAN, 1999:30).

2.2.1.3. Mediação jurídico-constitucional e atenuação do princípio da

precaução: o exemplo norte-americano

É nessa mesma acepção atenuada que o princípio da precaução encontra

aceitação no direito ambiental norte-americano. Seguindo as premissas

estabelecidas pela Suprema Corte Americana ao decidir, em 1980, o “Caso

Benzeno”57 (Industrial Union Dept., AFL-CIO v. American Petroleum Institute, 448

U.S. 607), na ausência de certeza analítica ou preditiva, o recurso ao dever geral de

cautela só pode ser invocado na formulação de medidas de política ambiental após

a explicitação dos riscos ambientais envolvidos e da economicidade dos cursos de

ação alternativos, o que usualmente se faz com recurso a um procedimento

estruturado em duas fases (PERCIVAL et al, 2000:387).

Na primeira, denominada “avaliação de riscos ambientais” (environmental

risk assessment), procura-se estabelecer o grau de significância do risco que se

pretende ver eliminado ou reduzido, determinando-se o limiar a partir do qual incidirá

a medida de prevenção a ser adotada. Constatada nessa fase a impossibilidade de

determinação precisa do limiar de regulação com base em evidências empíricas

57 O caso em questão versava sobre a revisão, pela Suprema Corte Americana, de uma decisão proferida pela Corte Federal de Apelação do 5º Circuito, que entendeu inválida a adoção, pela Ocuppational Health and Safety Administration, do padrão de 1 ppm como limite máximo de exposição dos trabalhadores à substância benzeno. Embora a decisão hostilizada versasse sobre falhas específicas no procedimento administrativo levado a cabo para definição de um padrão de risco ocupacional, a revisão promovida pela Suprema Corte assentou as premissas gerais que condicionam a formulação de medidas de política socioambiental preventivas nos EUA. Essa amplitude do precedente estabelecido decorre do entendimento externado pelo Tribunal Constitucional sobre os limites do poder regulamentar delegado pelo Congresso Norte-Americano à Administração Pública para determinação de padrões ambientais de um modo geral.

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mesmo após o emprego de técnicas específicas de redução das margens de

incerteza preditiva, o princípio da precaução pode ser utilizado como fundamento da

proposição de alternativas para sua fixação, desde que, com amparo no

conhecimento científico atual, possam estabelecer-se, pelo menos, indicativos

consistentes da gravidade dos possíveis danos socioambientais que se pretende

evitar com sua adoção. Em qualquer hipótese, contudo, na segunda fase do

procedimento, um “plano de gestão dos riscos relevantes” (environmental risk

management plan) deve ser elaborado com o propósito de sopesar, em termos de

seus custos socioeconômicos, as alternativas de regulação sugeridas pelas

conclusões alcançadas na fase anterior. No advento de o limiar ter sido estabelecido

com esteio no princípio da precaução, admite-se, neste passo secundário, o seu

“refinamento”, de modo que a medida de prevenção a ser implementada persiga a

máxima redução dos riscos relevantes, ao menor custo socioeconômico possível.

Para FIELD (1998:85), essa “lógica do risco” pode ser considerada como

uma decorrência do fato de que, nos EUA, a regulação ambiental de natureza

preventiva insere-se completamente no âmbito do poder de polícia do Estado, o qual

encontra limite na proibição constitucional de a Administração Pública promover

interferências indevidas no exercício do direito de propriedade. A definição dos

riscos relevantes constituiria, assim, o conceito-limite empregado para delinear as

fronteiras entre as esferas do exercício legítimo da autoridade estatal na prevenção

de danos ao meio ambiente e da interferência ilegítima do Poder Público na

propriedade privada.

A construção dessa linha de demarcação, contudo, faz surgir uma tensão

fundamental entre a necessidade de aperfeiçoamento das técnicas de avaliação de

riscos ambientais – exigida para redução das margens de incerteza e perseguida a

partir da condução de estudos adicionais – e o indesejável postergamento da

adoção de medidas preventivas que, retrospectivamente, podem vir a demonstrar

seu caráter necessário. PERCIVAL et al (2000:445) salientam que tal tensão

submete a Administração Ambiental norte-americana ao risco de uma “paralisia pela

análise” (paralysis by analysis). De um lado, os órgãos formuladores de políticas

ambientais sabem que não podem se precipitar na adoção de medidas preventivas,

pois o Poder Judiciário, com recurso ao precedente estabelecido no “Caso

Benzeno”, pode invalidar todo o procedimento deflagrado para sua definição. De

outra, esses mesmos órgãos têm consciência de que, nas hipóteses em que o

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princípio da precaução poderia ser utilizado como fundamento da medida a ser

implementada, a experiência com a aplicação de modelos de avaliação de riscos

ambientais indica serem inócuos os esforços empreendidos para se reduzirem

significativamente as faixas de incerteza analítica ou preditiva neles existentes.

Importante observar que o paradoxo verificado em virtude da inserção

meramente subsidiária do princípio da precaução no Direito Ambiental norte-

americano foi, em certa medida, antecipado na própria decisão do “Caso Benzeno”.

De fato, ao dissentir do entendimento consubstanciado na posição da maioria dos

juízes da Suprema Corte Norte-Americana, o juiz J. Marshall externou sua

preocupação com a inutilidade da imposição de um procedimento de explicitação de

riscos relevantes como etapa preliminar da formulação de políticas de prevenção de

danos à saúde pública – preocupação que pode muito bem ser estendida ao

ambiente decisório de formulação de medidas de política ambiental de um modo

geral.

Em seu voto, que foi acompanhado pelos juízes Brennan, White e

Blackmun, Marshall categoricamente afirma que a exigência da realização de

esforços no sentido de se quantificar riscos decorrentes da exposição de

trabalhadores a substâncias como o benzeno não serve a nenhum propósito, pois

tais esforços se fundariam, em última análise, em considerações de ordem política,

decorrentes tanto do caráter especulativo da empreitada quanto da natureza da

definição do que vem a ser um risco ocupacional significativo, a partir de análises

que levam necessariamente em consideração a economicidade da medida de

prevenção a ser adotada. Dessa maneira, o entendimento esposado na posição

majoritária da corte teria como conseqüência ou a inação do órgão competente para

definição da medida destinada a suprimir ou reduzir os riscos em consideração, ou a

necessária adoção dessa medida com lastro em pressuposições demasiadamente

especulativas, mas recobertas com um manto de rigor técnico-científico, o que

significaria, em termos práticos, que o órgão em questão estaria induzindo a

sociedade a acreditar, equivocadamente, em sua absoluta adequação aos fins

colimados (PERCIVAL et al, 2000:421).

A rigor, a preocupação esposada por Marshall sugere que o emprego da

“lógica do risco” torna inócuo o recurso ao princípio da precaução, precisamente, por

lhe retirar o conteúdo essencial de norma estruturante de um dever geral de cautela,

o qual veda o exercício de atividades de que possam surgir ameaças à integridade

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de bens, recursos e valores socioambientais, para rebaixá-lo à condição de

fundamento subsidiário das medidas de controle do exercício dessas mesmas

atividades perigosas. Ao sofrer tal rebaixamento, de ferramenta voltada para a

construção de estratégias concretas de afirmação do ecodesenvolvimento, a idéia

de precaução se torna fator regulador da distribuição de riscos socioambientais entre

os diversos grupos sociais. Em outras palavras, a “lógica do risco”, em autêntico

processo de mediação normativa, (re)constrói o sentido do princípio em foco. Essa

(re)construção lhe confere o distorcido papel de eixo motriz de um estilo de

formulação de políticas destinadas não a eliminar as ameaças de degradação do

meio ambiente, mas sim a modular a plausibilidade de sua ocorrência, a legitimidade

das atividades que podem deflagrá-la e o processo de repartição de suas

conseqüências sociais negativas.

2.2.1.4. A interpenetração entre a atenuação do princípio da precaução e os

contornos da política de riscos nas sociedades pós-industriais

A transmudação da política socioambiental em política de risco ambiental,

operada pela variante de sentido atribuída ao princípio da precaução no direito

internacional do meio ambiente e no direito norte-americano, todavia, não deve ser

considerada como um aspecto meramente superficial do embate entre os diversos

interesses contrapostos nos processos de tomada de decisão relativos a bens,

recursos e valores socioambientais. Não pode ela, tampouco, ser reconduzida ao

campo das resistências de índole político-sociais à correção de supostas “falhas de

mercado”, “externalidades negativas” correspondentes a custos econômicos não

assimilados pelos processos produtivos. “Falhas” ou “externalidades” que,

supostamente, permaneceriam em posição marginal, em virtude da inaptidão dos

instrumentos regulatórios tradicionais ou de deficiências estruturais do aparato

institucional de tomada de decisão, e poderiam ser eliminadas ou sensivelmente

atenuadas pela aplicação de instrumentos de índole econômica, mais afinados com

o próprio papel regulatório do mercado (CARNEIRO, 2001:134-148).

Ao contrário, a ancoragem do princípio da precaução na “lógica do risco”

deve ser considerada como parte indissociável dos próprios processos econômicos

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desenvolvidos no seio das sociedades industriais. Sua concretização destina-se,

como bem observa BECK (1992; 1995), a permitir a manutenção das oportunidades

de expansão econômica proporcionadas pela industrialização por intermédio da

transformação dessas mesmas sociedades em “sociedades de risco”

(Risikogesellschafts). Com efeito, no período formativo das sociedades industriais,

as diferentes espécies de perigos e ameaças socialmente relevantes deixaram de

encontrar-se atreladas à noção de fortuito, eventos naturais e aleatórios

completamente desatrelados dos processos econômicos, para se vincularem cada

vez mais a “ações tanto dos indivíduos como de forças sociais de âmbito mais

vasto”, mas todas identificáveis em seus contornos particularizantes e em sua

contribuição específica para a economia industrial. Essa preponderância social dos

perigos originados pelas novas forças produtivas permitiu a criação tanto de critérios

normativos de responsabilização pela sua concretização quanto de instituições

securitárias destinadas a amortecer os impactos negativos da aplicação dos critérios

criados sobre o agente responsabilizado, pois, ao contrário das antigas ameaças

naturais, os riscos se apresentavam como perigos cuja ocorrência podia ser prevista

e a probabilidade, calculada (GOLDBLATT, 1998:231; GIDDENS, 1993b:302-303).

Nesse contexto, a formação social da noção de risco teve lugar

exatamente para, de um lado, dar corpo à idéia de que perigos socialmente

relevantes podem ser previstos como eventos prováveis, atrelados a priori à

participação individual de agentes econômicos nos processos de reprodução social,

e, de outro, servir como índice de imputação de responsabilidade pelos efeitos

negativos decorrentes da concretização desses mesmos perigos. Assim, seu papel

fundamental no alavancamento das novas forças produtivas consistiu na definição

de um critério de contingenciamento dos novos perigos associados às atividades

industriais, de modo a amplificar consideravelmente sua capacidade de expansão.58

Não por outra razão, BECK (1992:19) define-o como a maneira sistemática pela

58 Como salienta GIDDENS (1993b), o reconhecimento de um risco traduz a aceitação social não apenas de que uma ação humana pode desencadear efeitos negativos, mas que a plausibilidade de tais efeitos não pode ser eliminada, devendo ser adotadas medidas antecipatórias para seu contingenciamento, o qual assume uma natureza ao mesmo tempo material e econômica, pois tanto opera pela seleção de tecnologias empregadas nos processos industriais quanto pela repartição do ônus econômico decorrente da concretização dos riscos em consideração.

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qual, no âmbito da modernização59 promovida pela industrialização, são tratadas as

ameaças e inseguranças induzidas e introduzidas por essa última. Note-se, portanto,

que o risco, como categoria social, apresenta uma natureza politicamente reflexa:

extrai-se dos próprios processos em que será empregado como medida de

contingenciamento de seus efeitos negativos.

A démarche da industrialização e a complexidade crescente das

sociedades industriais, entretanto, tenderam a tornar também, gradativamente, mais

complexos e intensos os riscos a ela associados, fazendo surgir o reconhecimento

da existência de ameaças de impactos negativos, muitas vezes não atribuíveis de

modo individual a determinados agentes econômicos, mas hábeis a se fazerem

sentir sobre a totalidade dos sistemas socioambientais, como demonstram os riscos

envolvidos no emprego da energia nuclear, no consumo de combustíveis fósseis e

na liberação no meio ambiente de poluentes orgânico-persistentes (POPs). Esses

riscos constituem um indicativo irrefragável de que, não obstante as brutais

desigualdades na distribuição de bens e serviços, a atividade econômica,

compreendida em termos globais, padece contemporaneamente não de uma crise

de subprodução, mas sim de uma crise de superprodução, pelo menos se avaliada a

partir de seus efeitos negativos potenciais. Em princípio, o reconhecimento dessa

crise põe em xeque o próprio avanço dos processos que permitiram sua definição,

pois, diferentemente dos riscos clássicos, os riscos a ela associados não podem ser

empregados como instrumentos de contingenciamento dos efeitos negativos da

industrialização. Ao revés, sua plena afirmação importa no reconhecimento de que

medidas de controle são ineficazes, pois a única alternativa para sua eliminação

consiste não apenas no abandono das atividades de que se originam, mas também

na radical redefinição da natureza e do sentido da própria modernização

tradicionalmente associada à economia industrial.

Não se pode perder de vista, entretanto, que, como categoria dotada de

inerente reflexibilidade, o risco tem sua definição umbilicalmente vinculada ao papel

que exerce na manutenção da oportunidade de expansão dos processos

59 Por modernização entende-se, aqui, não apenas a irrupção da racionalidade tecnológica e as mudanças no trabalho e na organização empresarial associadas à industrialização, mas também as mudanças nas características sociais, nas biografias individuais, nos estilos de vida, na intimidade, nas estruturas de poder, nas normas de repressão e participação política, nas visões de mundo e nas normas do conhecimento também vinculadas ao surgimento do capitalismo industrial (BECK, 1992:50).

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econômicos, dos quais é extraído como construto social. Dessa maneira, a

instabilidade provocada pela atribuição do status de risco a determinadas

conseqüências da modernização industrializante que atentam contra as

oportunidades de expansão dos processos econômicos cria uma tensão

fundamental, a qual pressiona, com intensidade crescente, pela redefinição do

próprio sentido essencial da atividade econômica, a partir da reacomodação do

papel nela desempenhado pelos novos riscos identificados. Assim, gradativamente,

a ênfase primária da atividade econômica na produção de bens e serviços é

substituída por um enfoque centrado, em primeiro plano, na implementação de

estratégias de distribuição assimétrica dos riscos incontingenciáveis por ela gerados,

como forma de ampliar sua, de outro modo, esgotada capacidade de expansão

(BECK, 1992:19-24).

Dentre essas estratégias se destacam, precisamente, aquelas destinadas

a modular artificialmente a plausibilidade da ocorrência de eventos associados aos

riscos de natureza incontingenciável, pela legitimação das atividades que podem

deflagrá-los e pela atenuação da responsabilização dos atores econômicos

envolvidos, o que pressupõe a estruturação de ambientes decisórios hábeis a criar

espaços políticos de “irresponsabilidade organizada” (GOLDBLATT, 1998:241,

BECK, 1995:05-06). Sua implementação depende, substancialmente, do controle

das variáveis envolvidas no pleno reconhecimento dos riscos em questão, de modo

a transformá-los em meras virtualidades, cuja existência não é completamente

negada, mas a relevância como construtos sociais, atenuada. Tal controle é exercido

direta e indiretamente. Diretamente, sua concretização tem ensejo pelo

estabelecimento de parâmetros específicos para a aferição da existência de riscos

que, com o escopo de excluir outras formas de detecção que não aquelas

associadas à evidência empírica, negam a relação existente entre seu

reconhecimento e a aplicação de referenciais perceptuais específicos. Indiretamente,

manifesta-se na definição, a priori, de padrões atenuados de resposta a partir da

subordinação dos cursos de ação alternativos à análise de sua particular

economicidade (análise custo-benefício).

Como se observa, portanto, os critérios de atenuação do princípio da

precaução empregados no direito ambiental norte-americano e no direito

internacional do meio ambiente constituem, em verdade, meios normativos de

regulação da formulação de medidas de controle ambiental que servem à

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estruturação de espaços político-institucionais de irresponsabilidade organizada, por

intermédio dos quais riscos socioambientais são assimetricamente distribuídos e

suportados pela sociedade. Evidentemente, os espaços assim criados apresentam

uma natureza extremamente instável, pois depositam sua legitimidade na

manutenção das “promessas dos sistemas políticos no sentido de manterem a

segurança dos seus cidadãos em termos ecológicos” (GOLDBLATT, 1998:230).

Como essas promessas são repetidamente transgredidas pela crescente

degradação ambiental decorrente da concretização de riscos incontingenciáveis,

torna-se necessário um incessante refinamento dos meios normativos de controle,

obtido pelo incremento da complexidade das leis e regulamentos de que se compõe

a legislação ambiental. Em decorrência, as Risikogesellschafts convivem com um

curioso paradoxo: quanto maior a degradação do meio ambiente, maior será o

suposto rigor das leis e regulamentos ambientais.

Frise-se, porém, que a complexidade crescente da legislação ambiental

não altera as relações de definição elementares dos espaços de irresponsabilidade

organizada, ou seja, as novas leis e regulamentos têm por finalidade oferecer novos

parâmetros para a manutenção dos antigos meios normativos da criação desses

espaços, desviando o curso das políticas socioambientais de um enfrentamento dos

fatores causais dos riscos incontingenciáveis (BECK, 1995:141-142). A modificação

de tais relações de definição, da qual depende, em última instância, a efetiva

desconstrução desses espaços de irresponsabilidade organizada, demanda, por

conseguinte, que os fatores constringentes à plena afirmação do princípio da

precaução como norma estruturante de um dever geral de cautela sejam eliminados.

Para que esse objetivo seja alcançado, a validade do princípio em análise não pode

encontrar-se radicada na formulação de um conceito-limite que permita o

acomodamento da tensão normativa entre a atribuição ao Poder Público de

competências específicas para proteger o meio ambiente e a garantia do direito de

propriedade, tampouco repousar sobre critérios de controle dos interesses

estratégicos dos diferentes atores sociais que interferem na formulação e

implementação de políticas socioambientais. Para alcance do desiderato em

questão, é mister que o princípio da precaução derive da plena afirmação do direito

coletivo à proteção integral do patrimônio socioambiental comum.

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2.2.3. Geograficidade e substantivação democrático-participativa do princípio da precaução

2.2.3.1. Perspectivas geojurisprudenciais para uma nova modelagem do

princípio da precaução: uma proposta à luz do direito ambiental

brasileiro

No âmbito do Direito Ambiental brasileiro, entendem alguns autores

(MACHADO, 2001:59; MIRRA, 2001:95-98; MILARÉ, 2000:101-104; ANTUNES,

2001:28-29) que essa afirmação irrestrita do princípio da precaução como dever

geral de cautela pode ser extraída diretamente seja de sua consagração expressa

na atual Constituição da República (artigo 225, §1º, V e VII), seja da adesão do

Brasil a tratados internacionais que o afirmem, como a Convenção sobre

Diversidade Biológica e a Convenção-Quadro da Organização das Nações Unidas

sobre Mudanças Climáticas. De fato, diferenças marcantes podem ser observadas

entre a atenuada afirmação do princípio da precaução no direito ambiental norte-

americano e sua positivação no direito ambiental brasileiro. Ao contrário do que

ocorre nos EUA, no ordenamento jurídico-ambiental brasileiro, o princípio da

precaução não encontra na garantia à propriedade privada um limite para sua

afirmação como norma estruturante de um dever geral de cautela em relação aos

bens, recursos e valores socioambientais. O artigo 225, caput, da Constituição da

República não apenas estabelece o direito fundamental ao meio ambiente

ecologicamente equilibrado, mas também impõe ao Poder Público e à coletividade,

em conjunto, o dever de preservar os bens, recursos e valores socioambientais para

as presentes e futuras gerações.

Disso resulta que todos os atores sociais encontram-se convocados a

exercer nesse campo papel ativo, quer seja exigindo que o Poder Público propicie as

condições concretas de proteção do meio ambiente, quer seja adotando condutas

consentâneas com a conservação dos bens, recursos e valores socioambientais

(CARNEIRO, 2001:100-101). O legislador constituinte não se limitou, portanto, a

impor ao Poder Público a condição de guardião das condições capazes de promover

os pressupostos de um modelo de prevenção de danos ao meio ambiente, mas

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125

procurou construir uma noção acabada de cidadania ambiental: a preservação dos

bens, recursos e valores socioambientais é realizada como concretização de um

direito coletivo, o que legitima tanto pessoas quanto grupos sociais a exigir a

manutenção da qualidade do meio ambiente; simultaneamente, entretanto, a

coletividade é convocada a defender e preservar esses bens, recursos e valores,

dada a sua intrínseca comunialidade (LEITE, 2000a:33).

Em decorrência, a proteção dispensada aos bens, recursos e valores

socioambientais não pode ser reduzida ao status de mera manifestação do poder de

polícia do Estado. Ao revés, capturada a partir de sua matriz constitucional, essa

proteção se insere no processo de construção das bases normativas de um estilo de

vida comunitária, racionalização do processo político e legitimação do poder que

poderia muito bem ser designado como “democracia socioambiental”, cujo aspecto

mais visível consiste precisamente na responsabilidade compartilhada entre os

diversos atores sociais pela gestão do meio ambiente (LEITE, 2000a:37; 2000b: 21;

cf. tb. CANOTILHO, 1995). Assim, os bens, recursos e valores em questão não

integram seja o patrimônio do Estado, seja o patrimônio dos particulares,60 e sua

proteção se realiza no âmbito maior da promoção de formas concretas de justiça

socioambiental.

A matriz constitucional do direito ambiental brasileiro sugere, portanto,

que a afirmação do princípio da precaução não se encontra orientada ao

estabelecimento de um critério normativo de equacionamento da tensão proteção

estatal do meio ambiente versus realização do direito de propriedade, substantivado

por critérios de controle dos riscos socioambientais gerados pela atividade

econômica. Seu papel lança suas âncoras alhures, na estruturação das bases

procedimentais de afirmação da democracia socioambiental, e seu sentido se volta,

dessa maneira, para a edificação de um parâmetro basilar de eliminação das

práticas capazes de induzir a formação de riscos, em particular de riscos

incontingenciáveis, de aplicação na formulação e implementação de políticas

concernentes a bens, recursos e valores socioambientais.

Apesar de sua orientação para a consecução de um fim preciso –

realização da justiça socioambiental – a modelagem constitucional do princípio da

60 Na verdade, dada a sua dimensão vivencial, tais bens, recursos e valores não são sequer redutíveis à noção de patrimônio.

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126

precaução no Brasil, precisamente por lhe conferir um sentido procedimental, não

permite, entretanto, uma substantivação a priori do sentido que deve assumir o

dever geral de cautela por ele estruturado. É dizer: sua concretização não pode ser

dissociada dos procedimentos concretos de formulação e implementação de

políticas socioambientais. Na verdade, essa modelagem constitucional deve ser

compreendida no plano da força simbólica da Constituição, em que esta é

surpreendida como “ordem normativa e ordem real em constante tensão”, como

“realidade que se integra ao campo normativo” ou como normatividade que se

projeta sobre o mundo fenomênico, mas que desempenha um papel decisivo como

forma de “autoconstrução da identidade comunitária” (SAMPAIO, 2002:18).

Deve-se reconhecer, contudo, que essa “identidade” é dinâmica e não se

confunde com a idéia de “unidade”, ou seja, não pressupõe o compartilhamento

integral de opiniões e visões de mundo entre os partícipes de sua construção, nem

almeja a transcendência das diferenças vivenciais entre eles existentes, mas sim a

sua conservação em um processo incessante em que os atores sociais modificam

suas opiniões e visões de mundo quando expostos àquelas de outros atores, para,

precisamente, reconhecer o caráter parcial e perspéctico de suas próprias opiniões e

visões (YOUNG, 1996:125-128). Conseqüentemente, a substantivação do princípio

da precaução só poderá se traduzir em medidas concretas, destinadas a interferir

substancialmente nos processos produtivos com o propósito de eliminar os fatores

que geram riscos incontingenciáveis de degradação do meio ambiente, caso o

procedimento de formulação de políticas socioambientais assegure a recuperação

da geograficidade própria dos diferentes grupos sociais.

Em outros termos, o sentido do dever de cautela preconizado pelo

princípio da precaução não pode ser decotado em um discurso jurídico que tenha

como pano de fundo uma concepção reificada do espaço, pela qual este é

pressuposto como topos, encontrando-se presente como dado uniforme nos

diferentes contextos de formulação e implementação de políticas socioambientais.

Tal concepção somente serviria ao propósito de negar que a heurística dos riscos

que se pretende evitar encontra-se codificada de modo diverso em diferentes

referenciais perceptuais (GOLLEDGE & STIMSON, 1997:207-208). O discurso

jurídico em que se assenta tem em sua raiz, uma pretensão de determinação

objetificante do direito, de modo geral, e de concretização normativa do dever de

cautela em consideração, de modo particular, que pressupõe uma representação da

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“geografia da vida social, em que a diversidade geográfica das vivências espaciais e

das compreensões jurídicas são totalizadas em uma única concepção universal e

deterritorializada” (BLOMLEY, 1994:41). Essa representação, entretanto, nega que

os riscos socioambientais são construtos sociais derivados de conhecimentos

enraizados, situados em dado contexto de vivência espacial, e permite, assim, o

controle dos mecanismos de sua definição, transformando-os em meras

virtualidades.

A afirmação irrestrita do princípio da precaução impõe, assim, o

reconhecimento de um nexo entre espaço e direito caracterizado essencialmente

pela reflexibilidade. O direito não se impõe sobre o espaço nem este sobre aquele;

ambos se configuram reciprocamente: ao mesmo tempo que o direito só adquire

significado e saliência em dado contexto espacial, que é ele próprio parcialmente

constituído por normas legais, o direito contribui para produzir as configurações

espaciais em que ele adquirirá significado (BLOMLEY, 1994:46). Esse nexo

demonstra que somente por intermédio da recuperação da geograficidade dos

grupos sociais se pode alcançar simultaneamente a substantivação do dever de

cautela subjacente ao princípio da precaução e a significação dos riscos

socioambientais que por sua aplicação se pretende extirpar. Em outras palavras,

tendo em vista que os riscos socioambientais, como construtos sociais, constituem

projeções das possibilidades de degradação de bens, recursos e valores que

assumem seu pleno significado apenas pela consideração de diferentes

experiências espaciais individuais e coletivas, somente pelo resgate destas, no

momento e por intermédio da realização dos procedimentos destinados à adoção de

políticas ambientais, o sentido profundo dos riscos que se pretende eliminar pode

ser completamente alcançado, bem como as práticas que transformam o dever geral

de cautela em obrigações específicas podem ser concretamente configuradas.

2.2.3.2. As bases geojurisprudenciais da democracia socioambiental e seu

papel na interlocução transdiciplinar entre Geografia e Direito

Afirmada a necessidade de recuperação da geograficidade dos diferentes

grupos sociais como pressuposto de plena realização do princípio da precaução,

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128

novas luzes são lançadas, por sua vez, sobre as formas de concretização da

democracia socioambiental pela participação pública na formulação e

implementação de medidas de política do meio ambiente.

Em linhas gerais, nos diferentes contextos de elaboração dessas

medidas, tal participação vem sendo compreendida em dois sentidos fundamentais:

em termos puramente formais, em que é surpreendida como possibilidade de

intervenção dos cidadãos e dos grupos de interesse na elaboração de seus

conteúdos específicos (PRIEUR, 1991:107-115; MACHADO, 2001:75-78; MILARÉ,

2000:99-100); ou em termos discursivos, em que se procura investigar os

pressupostos que permitem sua configuração como meio de densificação

argumentativa do direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado

(BARACHO JÚNIOR, 2000:281-289).

Segundo YOUNG (1996:120-125), essas duas acepções podem ser

reconduzidas à concepção de democracia deliberativa em seu sentido lato61,

caracterizada essencialmente por processos de tomada de decisão coletivos do qual

participam direta ou indiretamente todos os atores sociais que serão afetados pela

decisão a ser adotada, cujo conteúdo deve traduzir um consenso, alcançado pela

intercompreensão dos argumentos formulados por aqueles que se engajam no

processo deliberativo.62 Esse modelo de democracia tem por pressuposto, de um

lado, a possibilidade de eqüalização dos atores sociais pela neutralização das

interferências estratégicas do poder político e econômico, e, de outro, a modulação

do processo deliberativo de modo que a decisão adotada seja alcançada pela

problematização argumentativa das pretensões normativas associadas aos cursos

de ação alternativos, assegurando, assim, que a legitimidade do consenso

alcançado se encontre ancorada no caráter discursivo do próprio processo de

tomada de decisão.

61 Nesse sentido, a expressão democracia deliberativa abrange no presente trabalho tanto a noção de democracia deliberativa propriamente dita como “processo racional de discussão dos problemas e alternativas, de forma a obterem-se soluções justas, boas, ou, pelo menos, razoáveis, de ordenação da vida comunitária”, quanto a de democracia discursiva, que não se assenta seja em direitos universais do homem, seja na moral social de uma comunidade determinada, mas “em regras de discussão, formas de argumentar, institucionalização de processos – rede de discussão e negociação – cujo fim é proporcionar uma solução nacional e universal a questões problemáticas, morais e éticas da sociedade” (CANOTILHO, 2000:1364-1365). 62 Para uma avaliação do matizamento dos modelos de democracia deliberativa, cf. ELSTER (1998).

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129

O resgate da experiência espacial individual ou coletiva impõe, todavia,

que a participação pública assuma a forma de envolvimento comunicacional dos

cidadãos e grupos sociais na formação das bases epistêmicas das medidas de

política socioambiental, pois é nesse plano que se promove a significação dos riscos

que se pretende sejam eliminados. Esse envolvimento comunicacional, como já

visto, é obtido pela reconstrução dialógica das paisagens culturais desses atores

sociais, a qual apresenta uma natureza essencialmente intertextual, ou seja,

assenta-se tanto em um modo de (re)conhecer a experiência espacial que não se

dissocia de sua (re)produção quanto na convicção compartilhada pelos participantes

desse processo reconstrutivo de que diferenças específicas, identificadas entre suas

respectivas vivências geográficas, devem ser traduzidas em termos de

geograficidades alternativas, experiências espaciais que uma das partes não possui,

podendo mesmo com elas não se identificar, mas que reconhece como parte

autêntica da vivência geográfica das demais. Desse modo, a reconstrução dialógica

de paisagens culturais não se realiza como um processo que parte necessariamente

de experiências espaciais in totum compartilhadas, nem, muito menos, que pretende

estabelecer bases para a superação das diferenças entre as vivências geográficas

daqueles que nela se envolvem. Ao contrário, esse processo se orienta no sentido

de explicitar o que há de singular ou específico na geograficidade de cada grupo

social, como forma de, simultaneamente, recuperar a sua dimensão de realidade

“ecossimbólica” e ampliar os horizontes geográficos de toda a coletividade.

Conseqüentemente, caso se pretenda que a substantivação do dever de

cautela circunscrito pelo princípio da precaução seja obtida pela reconstrução

dialógica de paisagens culturais, a formulação e a implementação de políticas

socioambientais deverá encontrar-se alicerçada em um modelo de participação que

não tenha por meta alcançar ou restaurar um consenso entre os partícipes de sua

elaboração, buscado com o propósito de superar suas respectivas diferenças

vivenciais e disfarçar formas de exclusão sob o véu de uma pretensa neutralidade

discursiva (MOUFFE, 1996a:248; 1996b:10). É dizer, o modelo de democracia

subjacente aos procedimentos deflagrados para a adoção de tais políticas deve

encontrar-se fundado em uma racionalidade comunicativa mais ampla, em que a

intercompreensão a ser estabelecida entre os diversos atores sociais não se

construa apenas a partir da argumentação, nem se encontre voltada para superação

das perspectivas ou visões de mundo parciais desses partícipes, mas possa ser

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130

alcançada com recurso também a outras formas de expressão, destinadas a fazer

da diversidade experiencial um recurso, e não um entrave (YOUNG, 1996; 2000).

Em particular, essa racionalidade deve procurar abranger, nos jogos conversacionais

dos processos deliberativos socioambientais, as narrativas que permitem a

explicitação de geograficidades alternativas, fornecendo, assim, o substrato para

que, eventualmente, o curso de ação a ser adotado legitime-se pela necessidade de

reconhecer e amparar as necessidades peculiares que emergem no quadro de

vivências geográficas específicas.

Observa-se, assim, que a reconstrução dialógica de paisagens culturais

apresenta, no contexto aqui analisado, uma orientação duplamente inclusiva,

integrando vivências geográficas diversificadas, geograficidades alternativas, tanto

na construção da heurística dos riscos socioambientais a serem evitados quanto na

transmudação do dever de cautela em obrigações concretas. A ampliação das bases

epistêmicas das políticas socioambientais que essa reconstrução proporciona

converge, pois, para um estilo de adoção de medidas preventivas aberto à

possibilidade de manter o futuro, entendido como paisagens culturais in fieri,

paisagens que ainda estão por se construir, “sujeito a opções democráticas por meio

do poder de um veto minoritário” (PREUSS apud GOLDBLATT, 1998:250).

Dessa maneira, as exigências específicas de afirmação do princípio da

precaução demonstram efetivamente a existência da já mencionada perfeita

sobreposição entre os significados epistemológico e deontológico desempenhados

pela recuperação da idéia de espaço como chôra. Atentando-se para a constatação

de BECK (1992:51-84) de que, na sociedade de risco, a política socioambiental se

apresenta essencialmente como política de conhecimento, essa sobreposição indica

que o papel político dessa recuperação se constitui, precisamente, como reverso da

também já salientada importância da recuperação do espaço vivido para a

realização da Geografia acadêmica como atividade socialmente dotada de

significado. Em outras palavras, se, no plano epistemológico, a inclusão das

Geografias vernaculares nos jogos conversacionais da Geografia acadêmica revela

a precedência fundacional da democracia para a construção do conhecimento

científico sobre o espaço, no plano da adoção de políticas socioambientais, a

construção de um modelo de tomada de decisão profundamente democrático só se

torna viável caso seja edificado sobre fundamentos epistêmicos que incorporem a

dimensão espacial da existência humana.

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131

Não se pode esquecer, todavia, de que não há precedência entre a

relevância epistemológica e o potencial emancipatório do resgate das

geograficidades individuais e coletivas, pois, se a experiência geográfica é resultado

de um conjunto de hábitos de ação que traduzem nexos vivenciais entre as esferas

cognitiva, normativa e expressiva da relação estabelecida por dada comunidade e o

mundo, as Geografias vernaculares são parcialmente constituídas pela juridicidade

inscrita nas práticas normativas comunitárias voltadas para a afirmação de sua

autonomia cultural. Incluídas nos jogos conversacionais da Geografia acadêmica, a

geograficidade dos diferentes atores sociais revela, portanto, esferas normativas

construídas e entrelaçadas em contextos socioespaciais específicos, não

identificadas ou, pelo menos, não completamente reconduzíveis à produção jurídica

do Estado, produção esta que, à medida que pretende negar, atenuar ou subordinar

o caráter jurídico das demais esferas normativas, desempenha um papel

eminentemente regulatório (SANTOS, 2000:171),63 modulando e restringido a

possibilidade de reprodução de práticas significantes essenciais à construção das

identidades comunitárias dos diferentes grupos sociais.

A afirmação de uma epistemologia geográfica contextual (THRIFT,

1985:397) como alicerce dos procedimentos de formulação e implementação de

políticas socioambientais funde, desse modo, o resgate da geograficidade dos

atores sociais envolvidos nesses processos com o reconhecimento de juridicidades

não-estatais, revitalizando e realizando seu potencial emancipatório pela sua

articulação com a produção jurídica do Estado. Em conseqüência, a própria tensão

entre regulação e emancipação inerente ao direito estatal desloca-se em favor desta

última, permitindo a amplificação das possibilidades de construção de identidades

comunitárias e de realização da autonomia cultural dos diferentes grupos sociais.

Esse aspecto particular da superposição entre as dimensões teórico-

metodológica e deontológica do resgate do espaço como chôra, verificada na praxis

da elaboração de políticas socioambientais, sugere uma peculiar natureza recursiva

63 Não se deve, contudo, confundir a supressão do caráter jurídico das demais formas de direito, promovida pela produção jurídica estatal, com um monopólio de facto do direito pelo Estado. Na verdade, desde a “invenção” do Estado nacional, esse monopólio nunca foi exercido, nem mesmo nas sociedades em que a ordem estatal adquiriu, em virtude dos processos próprios da modernização, forte centralidade. A supressão aqui em análise apresenta natureza ideológica, amortecendo as interações existentes entre as diferentes formas de direito e reduzindo o potencial emancipatório inscrito, dentre outras, em juridicidades comunitárias específicas (SANTOS, 2000:325-327).

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132

da reconstrução dialógica de paisagens culturais. De maneira dinâmica, ela se

debruça sobre si mesma para promover uma crescente interpenetração entre a

ampliação dos horizontes geográficos da coletividade e a transformação de

determinadas relações de regulação (controle de riscos socioambientais) em

relações de autoridade compartilhada (significação democrático-participativa do

dever de cautela em relação aos bens, recursos e valores socioambientais). Ao

revelar e, concomitantemente, proteger os nexos formativos da vivência geográfica

de pessoas e grupos concretos, tal interpenetração põe a compreensão do sentido

substantivo das paisagens culturais no centro da construção de uma abordagem da

relação entre Geografia e Direito profundamente geojurisprudencial, em que o

conhecimento geográfico deixa de exercer a função subalterna de mero instrumento

de aferição ou “calibragem” de normas jurídicas, para se enraizar no próprio

processo de criação e transformação do direito.

Um tal enraizamento, entretanto, não se faz possível sem antes

compreender os obstáculos concretos ao resgate do espaço como chôra que

derivam do próprio papel regulatório desempenhado pela produção jurídica do

Estado voltada especificamente para a disciplina dos instrumentos públicos de

política ambiental de natureza preventiva64. Aparentemente voltada para promover a

afirmação do princípio da precaução, é exatamente por intermédio das restrições

impostas por essa produção jurídica à (re)construção de geo-identidades

comunitárias que se produz um peculiar efeito de deterritorialização do direito como

um todo, cujo propósito fundamental reside na criação de impedâncias à

transmudação do dever de cautela circunscrito pelo referido princípio em obrigações

concretas.

Em tais circunstâncias, por conseguinte, pode-se afirmar que a primeira e,

talvez, mais premente tarefa de uma aproximação autenticamente geojurisprudencial

da relação entre Geografia e Direito, centrada na concretização do princípio da

precaução, consiste em desconstruir o papel regulatório da apontada produção

jurídica do Estado. Uma tarefa que não se realiza senão pela revelação dos pontos

constringentes ao reconhecimento da “diversidade espacial do conhecimento

64 De modo amplo, entende-se no presente trabalho por instrumento publico de política ambiental de natureza preventiva todo e qualquer procedimento adotado por um ente estatal com o propósito de evitar a degradação do meio ambiente.

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jurídico” nela encontrados (BLOMLEY, 1994:47) e dos respectivos espaços de

irresponsabilidade organizada por seu intermédio criados.

Dado o diferenciado grau de resolução normativa dos diversos

instrumentos preventivos previstos no direito ambiental brasileiro, o qual, de resto,

reflete diferenciações no seus respectivos graus de efetiva implementação65, optou-

se no presente trabalho por se empreender uma análise centrada no papel

regulatório desempenhado pelas normas jurídicas que regem o procedimento de

estudo de impacto ambiental, de longe aquele, dentre os instrumentos públicos da

categoria de interesse para a desconstrução proposta, cujo emprego se encontra

mais consolidado no País.

65 Para uma análise abrangente do estágio atual de implementação dos instrumentos de política ambiental de natureza preventiva no Brasil, veja-se o recente relatório sobre a qualidade do meio ambiente apresentado pelo Ministério do Meio Ambiente, por ocasião da Cúpula Mundial sobre Desenvolvimento Sustentável realizada, entre 26 de agosto e 04 de setembro de 2002, em Joanesburgo (MMA, 2002).

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134

Capítulo III

ANOTAÇÕES PARA UMA EXPLORAÇÃO GEOJURISPRUDENCIAL DO DIREITO AMBIENTAL BRASILEIRO: GEOGRAFICIDADE,

HEURÍSTICA DOS RISCOS SOCIOAMBIENTAIS E AFIRMAÇÃO DO PRINCÍPIO DA PRECAUÇÃO NO PROCEDIMENTO DE ESTUDO DE

IMPACTO AMBIENTAL 3.1. BREVE DESCRIÇÃO DO PROCEDIMENTO DE ESTUDO DE IMPACTO

AMBIENTAL

Antes de empreender uma análise geojurisprudencial dos aspectos mais

relevantes do procedimento do estudo de impacto ambiental (EIA), destinada a

avaliar sua coerência normativa como instrumento de concretização do princípio da

precaução, torna-se necessário descrever as linhas essenciais de sua regulação

pelo direito estatal brasileiro. Essa descrição tem por propósito preparar o terreno

para que o estudo exploratório que se pretende realizar possa alcançar seu objetivo

de indicar o potencial explicativo inscrito na abordagem da relação entre Geografia e

Direito sugerida no presente trabalho.

Nesse sentido, cumpre observar inicialmente que o procedimento de

elaboração e aprovação do EIA de uma obra ou atividade modificadora do meio

ambiente é considerado, por muitos juristas, como o meio fundamental pelo qual, no

direito ambiental brasileiro, efetiva-se o princípio da precaução (MILARÉ &

BENJAMIN, 1993:13; MUKAI, 1993:47; SILVA, 1995:196-197; OLIVEIRA, 1999:170;

MILARÉ, 2000:278-279; AYALA, 2000:76; MACHADO, 2001:64-66; CARNEIRO,

2001:108-113; DERANI, 2001:176; MIRRA, 2002:01-02). Tal procedimento, ainda

segundo esses autores, tem por finalidade estabelecer as bases ou fornecer

subsídios para se concluir pela viabilidade ou inviabilidade socioambiental de planos

ou projetos de empreendimentos dos mais diferentes setores econômicos,

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135

encontrando-se conectado intimamente com a exigência legal de licenciamento

ambiental prévio de obras ou atividades modificadoras do meio ambiente. 3.1.1. Estrutura metodológica das avaliações de impacto ambiental e sua

inserção no licenciamento ambiental de obras ou atividades modificadoras do meio ambiente

O artigo 10 da Lei Federal n. 6.938/81 subordina de modo amplo a

construção, instalação, ampliação e funcionamento de estabelecimentos e

atividades utilizadoras de recursos ambientais, considerados efetiva ou

potencialmente poluidores, bem como os capazes, sob qualquer forma, de causar

degradação ambiental, a prévio licenciamento pelo Poder Público. Regulamentando

tal dispositivo, o artigo 19 do Decreto Federal n. 99.274/90, dispõe que os órgãos

licenciadores, no exercício de sua competência para atuar preventivamente,

expedirão as seguintes licenças:

a) Licença Prévia (LP), na fase preliminar do planejamento da atividade,

contendo requisitos básicos a serem atendidos nas fases de localização, instalação

e operação, observados os planos municipais, estaduais ou federais de uso do solo;

b) Licença de Instalação (LI), autorizando o início da implantação, de

acordo com as especificações constantes do Projeto Executivo;

c) Licença de Operação (LO), autorizando, após as verificações

necessárias, o início da atividade licenciada e o funcionamento de seus

equipamentos de controle de poluição, de acordo com o previsto nas Licenças

Prévia e de Instalação.

Nota-se, pois, que, no direito ambiental brasileiro, o desenvolvimento de

atividades econômicas modificadoras do meio ambiente encontra-se condicionado à

obtenção, pelo responsável, de autorizações específicas do Poder Público. Tais

autorizações vinculam-se uma às outras como atos administrativos sucessivos, para

cuja realização converge toda uma cadeia de atos preliminares, formando-se, assim,

um procedimento complexo, segmentado em três etapas ou fases fundamentais: as

etapas de licenciamento prévio, de implantação e de operação.

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136

A primeira dessas etapas, o licenciamento prévio, deve ser desenvolvida

em um estágio de planejamento da obra ou atividade modificadora do meio

ambiente em que as diferentes alternativas de concepção ou esboço preliminar do

empreendimento possam ser objeto de adequada análise. Sua espinha dorsal

consiste na realização de uma avaliação de impactos ambientais (AIA) das

alternativas conceptuais possíveis da obra ou atividade que se pretende implantar.

Conceituada por diferentes prismas, que ora enfatizam seus aspectos

técnicos, ora põem em destaque seus componentes políticos e de gestão ambiental

(BASTOS & ALMEIDA, 1999:80), a avaliação de impacto ambiental pode ser

compreendida como um processo de identificação, predição, avaliação e mitigação

dos diferentes efeitos de planos ou projetos de desenvolvimento econômico sobre os

sistemas socioambientais (GILPIN, 1995:04-05; SENECAL et al, 1998:02;

THERIVEL & MORRIS, 2001:03). Nesse sentido amplo, o instrumento traduz uma

abordagem estruturada para obter e avaliar informações relevantes em uma etapa

preliminar de qualquer processo de formulação de medidas de política ambiental de

natureza preventiva (BISSET, 1996). Pode-se, contudo, distinguir duas espécies

distintas de AIA: uma aplicada à avaliação de obras ou atividades, outra destinada a

sopesar os impactos socioambientais de políticas, planos e programas de maior

abrangência, a que se convenciou designar avaliação ambiental estratégica (AAE)

(ERM, 1998:x; BINA & VIGOE, 2000:08; SHEATE et al, 2001:07; DIAS & SÁNCHEZ,

2001:167). Ambas, contudo, sob o prisma da articulação entre suas diretrizes

teórico-metodológicas e seu papel como instrumentos para formulação de políticas

socioambientais, possuem uma relevância peculiar em razão de sua natureza

procedimental.66

66 Como observa ANTUNES (1998:207-208), a avaliação de impacto ambiental “prescreve o conhecimento dos efeitos ambientais diretos, indiretos e cumulativos (de curto e longo prazo), dados como prováveis em conseqüência da intervenção projetada, assim como a explícita e formal assunção de tais efeitos entre os elementos de juízo sobre os quais se deve fundar a decisão a respeito do referido projeto. A avaliação de impacto ambiental exige que aos juízos analíticos respeitantes aos distintos aspectos do ambiente, sujeitos a parâmetros e standards relativos à emissão de substâncias inquinantes do ar, água, solo, etc., acresça um juízo global que tenha em consideração as alterações ambientais no seu conjunto (o impacto), tendo também em atenção as possíveis interações entre uma série de efeitos distintos. [...] Um Juízo deste tipo não tem, nem pode ter, como referência parâmetros pré-estabelecidos. Assim, a garantia da avaliação de impacto ambiental é uma garantia de tipo procedimental, no sentido de que a proteção do ambiente resulta não tanto de rigorosos limites postos à alteração do ambiente, mas sobretudo do modo por que se procede à individualização e avaliação de tais alterações.”

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137

Deve-se reconhecer que existe uma intensa imbricação entre as duas

modalidades de AIA (MAGRINI, 1995:122; NOTEBOOM, 1999), constituindo a

adequada prática e integração no processo de formulação de políticas

socioambientais das avaliações ambientais estratégicas pré-requisito da eficácia da

avaliação de impactos ambientais de empreendimentos individualmente

considerados (SADLER, 1998). Em razão de sua natureza exploratória, contudo, o

presente trabalho limitar-se-á à analise da AIA como estrutura procedimental

essencial que assume o licenciamento prévio de obras ou atividades modificadoras

do meio ambiente no Brasil. Dessa maneira, partindo de uma versão adaptada ao

contexto brasileiro da descrição de sua estrutura oferecida por SENECAL et al

(1998:04), pode-se dizer que a AIA, empregada na fase preliminar de licenciamento

ambiental, compõe-se dos seguintes atos fundamentais:

a) configuração do empreendimento que deve ser submetido ao

procedimento (screening);

b) estabelecimento de um termo de referência para condução dos estudos

que permitirão a avaliação dos impactos socioambientais do empreendimento sujeito

a licenciamento (scoping);

c) exame das alternativas conceptuais do empreendimento sujeito a

licenciamento;

d) elaboração da avaliação das alternativas conceptuais conjecturadas

que discuta antecipadamente todos os impactos socioambientais de sua

implantação e apontem medidas capazes de evitar sua ocorrência ou lhes promover

a devida mitigação e/ou compensação;

e) comunicação da AIA à sociedade;

f) discussão pública, análise e revisão da AIA;

g) decisão formal pela concessão ou denegação da licença prévia ao

proponente do projeto sujeito a licenciamento ambiental.

No Brasil, conforme já salientado, toda e qualquer obra ou atividade

modificadora do meio ambiente encontra-se sujeita ao procedimento de

licenciamento ambiental. Dessa maneira, a configuração ou screening do

empreendimento tem por objetivo tão-somente determinar os contornos de sua

concepção que permitam diferenciá-la do conjunto da atividade econômica e torná-la

objeto de uma avaliação específica. Em particular, essa atividade se preocupa em

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138

verificar a existência de conexões entre o projeto apresentado para ser licenciado e

outras obras ou atividades modificadoras do meio ambiente, desenvolvidas pelo

próprio proponente ou por terceiros. Tais conexões podem justificar uma delimitação

mais abrangente da obra ou atividade objeto de licenciamento, de modo a permitir

uma avaliação verdadeiramente global de seus impactos socioambientais.

Fixados os contornos do projeto a ser licenciado, podem estes indicar que

a obra ou atividade que se pretende desenvolver assume, sob o prisma de seus

impactos socioambientais, proporções significativas, hipótese em que a AIA deverá

assumir necessariamente a forma do procedimento de estudo prévio de impacto

ambiental (EIA), conforme expressamente dispõe o artigo 225, § 1º, IV, da

Constituição da República.

3.1.2. O regulamento brasileiro do procedimento de estudo de impacto

ambiental

O procedimento do EIA encontra-se presentemente regulamentado pelas

Resoluções n. 01/86, n. 09/87 e n. 237/97 do Conselho Nacional do Meio Ambiente

(CONAMA). O enquadramento do projeto objeto de licenciamento ambiental na

categoria de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa

degradação do meio ambiente é realizado por seu cotejamento com uma lista

exemplificativa oferecida pelo artigo 2º da Resolução CONAMA n. 01/86. Segundo

esse dispositivo, sujeitam-se ao procedimento do EIA, dentre outras, as seguintes

obras ou atividades: a) estradas de rodagem com duas ou mais faixas de rolamento;

b) ferrovias; c) portos e terminais de minério, petróleo e produtos químicos; d)

aeroportos; e) oleodutos, gasodutos, minerodutos, troncos coletores e emissários de

esgotos sanitários; f) linhas de transmissão de energia elétrica, acima de 230

kilovolts; g) obras hidráulicas para exploração de recursos hídricos; h) extração de

combustível fóssil; i) extração de minério; j) aterros sanitários, processamento e

destino final de resíduos tóxicos ou perigosos; k) usinas de geração de eletricidade,

qualquer que seja a fonte de energia primária, acima de 10 megawatts; l) complexo e

unidades industriais e agroindustriais; m) distritos industriais e zonas estritamente

industriais; n) exploração econômica de madeira ou de lenha, em áreas acima de

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100 hectares ou menores, quando o impacto previsto se manifestar em áreas de

importância do ponto de vista ambiental; o) projetos urbanísticos com área superior a

100 hectares ou que se pretenda sejam implantados em áreas consideradas de

relevante interesse ambiental; p) atividades que utilizem carvão vegetal em

quantidade superior a 10 toneladas por dia.

Os exemplos apresentados pelo artigo 2º da Resolução CONAMA n.

01/86 oferecem, assim, uma baliza essencial para determinar se o projeto sujeito a

licenciamento prévio terá seus impactos socioambientais avaliados pelo

procedimento do estudo de impacto ambiental. A determinação pela realização ou

dispensa do EIA, contudo, constitui parte integrante da atividade de configuração ou

screening do empreendimento, pois o artigo 10, item I, da Resolução CONAMA n.

237/86 estabelece que caberá ao órgão licenciador definir, com a participação do

proponente do projeto, os documentos, projetos e estudos ambientais necessários

ao início do licenciamento correspondente à licença a ser requerida. Evidentemente,

a dispensa do EIA só poderá ocorrer caso seja comprovado, durante o screening,

que o empreendimento configurado não se caracteriza como obra ou atividade

potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente, conforme,

inclusive, dispõe expressamente o artigo 3º, parágrafo único, da Resolução

CONAMA n. 237/97.

Determinada a realização do EIA, tem este início pela elaboração de seu

termo de referência (scoping), atividade de competência do órgão licenciador, sendo

assegurada a participação do proponente do projeto. O termo de referência

discriminará o conteúdo necessário dos estudos a serem realizados para que o EIA

possa alcançar sua finalidade de fornecer subsídios para formação de um juízo

sobre a viabilidade socioambiental do projeto em licenciamento. Em sua elaboração,

o órgão ambiental deverá se orientar pelas diretrizes gerais e pelo conteúdo mínimo

estabelecidos na Resolução CONAMA n. 01/86. Segundo o artigo 5º desse ato

normativo, o estudo de impacto ambiental deverá obedecer às seguintes diretrizes

gerais:

a) contemplar todas as alternativas tecnológicas e de localização do

projeto, confrontando-as com a hipótese de não execução do projeto;

b) identificar e avaliar sistematicamente os impactos ambientais a serem

gerados nas fases de implantação e operação da atividade;

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140

c) definir os limites da área geográfica a ser direta ou indiretamente

afetada pelos impactos, denominada área de influência do projeto, considerando, em

todos os casos, a bacia hidrográfica na qual se localiza;

d) considerar os planos e programas governamentais, propostos e em

implantação na área de influência do projeto, e sua compatibilidade.

Já o artigo 6º da Resolução CONAMA n. 01/86 estabelece que, na

elaboração do EIA, deverão ser desenvolvidas, no mínimo, as seguintes atividades

técnicas:

a) diagnóstico ambiental da área de influência do projeto, com completa

descrição e análise dos recursos ambientais e suas interações, tal como existem, de

modo a caracterizar a situação ambiental dessa área, considerando:

o meio físico: o subsolo, as águas, o ar e o clima, com destaque para

os recursos minerais, a topografia, os tipos e aptidões do solo, os corpos d’água, o

regime hidrológico, as correntes marinhas e as correntes atmosféricas;

o meio biológico e os ecossistemas naturais: a fauna e a flora, com

destaque para as espécies indicadoras da qualidade ambiental, de valor científico e

econômico, raras e ameaçadas de extinção e as áreas de preservação permanente;

o meio socioeconômico: o uso e ocupação do solo, os usos da água e

a socioeconomia, com destaque para os sítios e monumentos arqueológicos,

históricos e culturais da comunidade, as relações de dependência entre a sociedade

local, os recursos ambientais e o potencial de utilização futura desses recursos;

b) análise dos impactos ambientais do projeto e de suas alternativas, pela

identificação, previsão da magnitude e interpretação da importância dos prováveis

impactos relevantes, discriminando: os impactos positivos e negativos (benéficos e

adversos), diretos e indiretos, imediatos e a médio e longo prazos, temporários e

permanentes; seu grau de reversibilidade; suas propriedades cumulativas e

sinérgicas; a distribuição dos ônus e benefícios sociais;

c) definição das medidas mitigadoras dos impactos negativos, entre elas

os equipamentos de controle e sistemas de tratamento de despejos, avaliando sua

eficiência específica;

d) elaboração do programa de acompanhamento e monitoramento dos

impactos positivos e negativos, indicando os fatores e parâmetros a serem

considerados.

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141

As diretrizes gerais e o conteúdo mínimo relacionados respectivamente

pelos artigos 5º e 6º da Resolução CONAMA n. 01/86 devem ser complementados

pelo órgão ambiental responsável pela realização do scoping, amoldando, assim, os

trabalhos a serem realizados às peculiaridades do empreendimento e às

características da área de sua implantação. Dessa forma, o termo de referência

apresenta uma relevância ímpar no procedimento do estudo prévio de impacto

ambiental, pois fornece a moldura teórico-metodológica e as diretrizes temáticas por

intermédio das quais a inserção regional e as alternativas conceptuais do projeto

serão descritas e avaliadas. Em outros termos, a consistência gnoseológica do

projeto é dada pelo conteúdo do termo de referência. Indiretamente, esse conteúdo

também define o perfil da equipe técnica responsável pela elaboração do EIA, bem

como a forma de interação entre seus membros, pois ambos os aspectos guardam

correlação muito próxima com as orientações teórico-metodológicas e temáticas

definidas pelo órgão licenciador.

Estabelecido seu escopo, o estudo de impacto ambiental propriamente

dito será elaborado por equipe técnica contratada diretamente pelo proponente do

projeto em licenciamento. Todas as demais despesas envolvidas na realização do

EIA, tais como coleta e aquisição de dados e informações, trabalhos e inspeções de

campo, análises de laboratório, estudos temáticos específicos e programas de

acompanhamento e monitoramento, são suportadas pelo interessado na

implantação da obra ou atividade modificadora do meio ambiente.

Elaborado o EIA, a equipe técnica deverá providenciar a confecção de um

documento destinado a comunicar, de forma objetiva e adequada, a todos os

interessados os resultados alcançados na avaliação dos impactos socioambientais

do projeto em licenciamento. Denominado Relatório de Impacto Ambiental (RIMA),

esse documento deverá, no mínimo, conter:

a) os objetivos e justificativas do projeto, sua relação e compatibilidade

com as políticas setoriais, planos e programas governamentais;

b) a descrição do projeto e suas alternativas tecnológicas e locacionais,

especificando, em cada caso, como prognóstico para as fases de construção e

operação, a área de influência, as matérias-primas e mão-de-obra, as fontes de

energia, os processos e técnicas operacionais, os prováveis efluentes, emissões,

resíduos de energia, os empregos diretos e indiretos a serem gerados;

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c) a síntese dos resultados dos estudos de diagnósticos ambientais da

área de influência do projeto;

d) a descrição dos prováveis impactos ambientais da implantação e

operação da atividade, considerando o projeto, suas alternativas, os horizontes de

tempo de incidência dos impactos e indicando os métodos, técnicas e critérios

adotados para sua identificação, quantificação e interpretação;

e) a caracterização da qualidade ambiental futura da área de influência,

comparando as diferentes situações de adoção do projeto e suas alternativas, bem

como a hipótese de sua não realização;

f) a descrição do efeito esperado das medidas mitigadoras previstas em

relação aos impactos negativos, mencionando aqueles que não puderam ser

evitados, e o grau de alteração esperado;

g) o programa de acompanhamento e monitoramento dos impactos;

h) recomendação quanto à alternativa conceptual considerada pela

equipe como a mais favorável.

Considerando que o RIMA não constitui um relatório técnico, mas um

relato ordenado que se destina a permitir que a sociedade possa tomar

conhecimento de todas as conseqüências socioambientais do projeto em

licenciamento (OLIVEIRA, 1999:221), deve o documento ser elaborado em

linguagem acessível e apoiado em mapas, cartas, quadros, gráficos e demais

elementos de comunicação visual que permitam uma correta compreensão das

modificações que serão provocadas pela implantação da obra ou da atividade a que

se refere.

Apesar da advertência de MACHADO (2001:207-208) sobre a

necessidade de perfeita correspondência entre as informações contidas no EIA e

aquelas que constituirão o RIMA, a função primordial deste último como instrumento

de comunicação a um público leigo dos resultados de um trabalho técnico, fruto dos

esforços desenvolvidos pela equipe de especialistas contratada pelo proponente do

projeto, pode ser constatada na preocupação praticamente constante dos autores

que discorrem sobre o licenciamento prévio em destacar os atributos de clareza,

objetividade e acessibilidade de que se deve revestir o documento (SILVA,

1995:205; MILARÉ, 2000:307; ATUNES, 2001:249; OLIVEIRA, 1999:215;

BENJAMIN, 1999:62; BUGALHO, 1999:31; MIRRA, 2002:77-78). Nesse sentido,

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143

FIORILLO (2002:69) vincula o RIMA ao princípio da informação ambiental, tentando

conciliar fidedignidade e acessibilidade da linguagem como qualidades

intercambiáveis e necessárias do documento, nos seguintes termos:

A existência de um relatório de impacto ambiental tem por finalidade tornar compreensível para o público o conteúdo do EIA, porquanto este é elaborado segundo critérios técnicos. Assim, em respeito ao princípio da informação ambiental, o RIMA deve ser claro e acessível, retratando fielmente o conteúdo do estudo, de modo compreensível e menos técnico.

Por outro lado, deve-se ressaltar que o artigo 9º, VIII, da Resolução

CONAMA n. 01/86 é categórico ao afirmar que, no RIMA, a equipe responsável pelo

EIA deve posicionar-se em relação à alternativa conceptual mais favorável do projeto

em licenciamento. Dessa maneira, o documento de comunicação deve conter um

parecer conclusivo sobre a viabilidade socioambiental da obra ou atividade

modificadora do meio ambiente que se pretende implantar, podendo a equipe

técnica, à luz de suas conclusões, recomendar que o projeto não seja executado

(MIRRA, 2002:78).

Finalizados, EIA e RIMA devem ser encaminhados pelo proponente do

projeto ao órgão licenciador. O artigo 225, § 1º, IV, da Constituição da República

exige que seja dada publicidade aos dois documentos, com o propósito de permitir

que a sociedade possa realizar comentários às conclusões a que chegou a equipe

técnica responsável por sua elaboração. Tal publicidade é realizada pela publicação

em órgão de imprensa oficial e em jornal de grande circulação do requerimento de

licença prévia formulado pelo proponente do projeto, conjugada à disponibilidade de

cópia do EIA e do RIMA para consulta na sede do órgão licenciador. Dessa maneira,

o encaminhamento do EIA/RIMA ao órgão licenciador instaura simultaneamente a

fase de análise técnica dos estudos ambientais pelo Estado e a fase de sua

apreciação pelos diferentes atores sociais que tenham interesse em realizar

considerações sobre o projeto em licenciamento.

Conforme dispõe o artigo 11, § 2º, da Resolução CONAMA n. 01/86, o

órgão licenciador deverá, em todo procedimento de licenciamento ambiental,

determinar prazo para recebimento de comentários a serem feitos pelos órgãos

públicos e demais interessados. O prazo em questão não poderá ser inferior a

quarenta e cinco dias, pois o artigo 2º, § 1º, da Resolução CONAMA n. 09/87 o

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144

adota como o prazo mínimo, contado da publicidade do RIMA, para que

determinados atores sociais, que ela mesma legitima, possam apresentar

requerimento de realização de audiência pública (public hearing), entendida como

reunião que tem por finalidade, precisamente, expor aos interessados o conteúdo do

projeto em análise e do seu respectivo EIA/RIMA, “dirimindo dúvidas e recolhendo

dos presentes as críticas e sugestões a respeito”.

Observe-se, assim, que em todo procedimento de estudo de impacto

ambiental haverá sempre uma fase de comentários do EIA/RIMA. Para MACHADO

(2002:225-240), a possibilidade de a população comentar o EIA sempre foi, “desde a

concepção deste instrumento de prevenção do dano ambiental, um de seus mais

importantes aspectos”, pois permite que pessoas e entidades emitam suas opiniões

sobre o projeto em licenciamento e seus impactos, viabilizando, assim, a

participação da sociedade no procedimento em análise. Essa fase pode ou não

culminar na realização de uma audiência pública, em que se estabelece, ainda

segundo o autor, “uma dupla caminhada”, uma interlocução em que “o órgão público

[licenciador] presta informações ao público e o público passa informações à

Administração Pública”. De fato, apesar de diferentes comentadores do regulamento

instaurado pelas Resoluções CONAMA n. 01/86, n. 09/87 e n. 237/97 considerarem

a audiência pública como o principal instrumento de participação pública no

procedimento de estudo de impacto ambiental (MILARÉ & BENJAMIN, 1993:49-50;

ANTUNES, 2001:249-250; OLIVEIRA, 1999:233; BUGALHO, 1999:19; GOMES,

1999:63; MILARÉ, 2000:309; FREITAS, 2001:73; FIORILLO, 2002:76; MIRRA,

2002:81; SIRVINKAS, 2002:70-71), sua realização não é obrigatória. O órgão

licenciador poderá determinar ex officio sua convocação, caso julgar necessário. Se

assim não proceder, a audiência pública só será realizada na hipótese de ser

requerida sua convocação pelos atores sociais legitimados nos termos do artigo 2º,

caput, da Resolução CONAMA n. 09/87: organizações não-governamentais, grupo

de 50 cidadãos e Ministério Público.67

Convocada, a audiência pública ocorrerá em lugar acessível aos

interessados. Dependendo da localização geográfica dos solicitantes ou da

complexidade do projeto, poderá ser realizada mais de uma audiência pública. O

67 No Estado de Minas Gerais, a Deliberação Normativa n. 12/94, do Conselho Estadual de Política Ambiental (COPAM), estende essa legitimidade a representantes do Poder Público Estadual e Municipal.

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145

órgão licenciador informará a data e local de sua realização, por intermédio de aviso

publicado em órgãos de imprensa e de notificação pessoal dos solicitantes.

Presidida por representante do órgão licenciador, a audiência, em linhas gerais,

divide-se em quatro partes fundamentais. Em um primeiro momento, o proponente

do projeto expõe sua intenção de implantar o projeto em licenciamento, descrevendo

seus aspectos mais relevantes. Em seguida, a equipe técnica responsável pelo

EIA/RIMA apresenta os estudos realizados e relata suas conclusões. Instaura-se,

então, a fase de manifestações dos presentes, começando pelos solicitantes da

audiência. O ato se encerra com uma fase de réplica, em que o proponente do

projeto e a equipe técnica responsável pelo EIA/RIMA procuram dirimir as dúvidas

apresentadas pelos presentes.

Uma vez realizada a audiência pública, é lavrada ata circunstanciada

sendo-lhe anexados os documentos que forem, na oportunidade, apresentados

pelos presentes68. Tendo em vista seu caráter consultivo, os questionamentos e

comentários realizados em audiência pública não vinculam o órgão licenciador. No

entanto, observa ANTUNES (2001:250-251) ser esse um ato oficial, tendo o órgão

licenciador o dever de levar em consideração as manifestações da sociedade nele

formuladas, por intermédio do “reexame, em profundidade, de todos os aspectos do

empreendimento que tenham sido criticados fundamentadamente”. Em termos

semelhantes, posiciona-se MACHADO (2002:238), para quem:

a audiência pública é a última grande etapa do procedimento do estudo prévio de impacto ambiental. Inserida nesse procedimento com igual valor ao das fases anteriores, é ela, também, base para a ‘análise e parecer final’. A audiência pública – devidamente retratada na ata e seus anexos – não poderá ser posta de lado pelo órgão licenciador, como o mesmo deverá pesar os argumentos nela expendidos, como a documentação juntada. Constituirá nulidade do ato administrativo autorizador – que poderá ser invalidado pela instância administrativa superior ou por via judicial – quando o mesmo deixar de conter os motivos administrativos favoráveis ou desfavoráveis ao conteúdo da ata e de seus anexos.

Recolhidos os comentários da sociedade, com ou sem a realização de

audiência pública, tem prosseguimento, pelo corpo técnico do órgão licenciador, a

68 A Deliberação Normativa COPAM n. 12/94 permite que os interessados em comentar o projeto e seu EIA/RIMA apresentem ao órgão licenciador documentos relacionados às questões suscitadas na audiência pública nos cinco dias úteis que sucedem à sua realização. Tais documentos serão considerados, para todos os efeitos, como comentários realizados em audiência.

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146

análise técnica do EIA, a qual se encerrará com a emissão de parecer

circunstanciado. Nesse parecer, além de cotejar os trabalhos da equipe responsável

pela elaboração do estudo com os parâmetros de análise e variáveis compreendidas

no termo de referência fornecido e de examinar em profundidade os comentários

realizados pela sociedade, a equipe técnica do órgão licenciador deverá emitir o seu

próprio juízo sobre a viabilidade ambiental do projeto em licenciamento.

Emitido o parecer do corpo técnico do órgão licenciador, ingressa-se na

última fase do procedimento do estudo de impacto ambiental: a etapa de tomada de

decisão (decision making). Nessa fase, orientando-se pelos subsídios colhidos no

curso das etapas anteriores, o órgão licenciador aprovará ou não o EIA,

“determinando, quando for o caso, a incorporação ao projeto de condicionantes

sugeridas pelo referido parecer técnico, pelo relatório da audiência pública e por

seus próprios integrantes” (CARNEIRO, 2001:112). Somente após a aprovação do

Estudo de Impacto Ambiental pode o proponente do projeto obter a licença

ambiental prévia (LP) de seu empreendimento, habilitando-se para dar seqüência ao

procedimento de licenciamento ambiental da alternativa do projeto aprovada.

Em virtude de sua finalidade específica, a eficácia do procedimento do

estudo de impacto ambiental condiciona a própria eficácia do licenciamento de obras

ou atividades modificadoras do meio ambiente. Com efeito, encerrada a fase de

licenciamento prévio, o proponente do projeto, para se habilitar à concessão da

Licença de Instalação (LI), deverá detalhar em plano específico todos os projetos

aprovados na fase anterior destinados à implementação das medidas de mitigação

dos impactos socioambientais apontados pelo EIA/RIMA e à harmonização do

empreendimento às condicionantes porventura estabelecidas quando da concessão

da LP. Dessa forma, tal plano, denominado plano de controle ambiental (PCA),

constitui verdadeiro projeto executivo ambiental, capaz de assegurar que o

empreendimento seja implantado segundo a alternativa considerada mais favorável

e em obediência aos termos em que se concedeu a Licença Prévia.

O plano de controle ambiental, por conseguinte, condiciona e subordina o

projeto executivo do próprio empreendimento, pois de sua adoção depende a

implantação mesma da obra ou atividade sob licenciamento ambiental. Qualquer

conflito entre outros aspectos do planejamento do empreendimento e o PCA

resolver-se-á a favor do último, sob pena de não concessão da Licença de

Instalação (LI). Nessa cadeia procedimental, o plano de controle ambiental não

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147

poderá, contudo, cumprir adequadamente sua finalidade, se os impactos ambientais

do projeto em licenciamento não tiverem sido adequadamente avaliados na etapa

anterior de elaboração, análise e aprovação do EIA/RIMA.

Nota-se, assim, que a análise de viabilidade socioambiental promovida

pelo procedimento do EIA/RIMA acaba por condicionar todas as decisões

posteriores no âmbito do licenciamento ambiental, de sorte que a aptidão global

desse instrumento de proteção do meio ambiente, para concretizar o princípio da

precaução, encontra-se vinculada à aptidão específica demonstrada pela sua fase

preliminar de licenciamento prévio de promover a substantivação do dever de

cautela em relação a bens, recursos e valores socioambientais por este princípio

circunscrito.

3.2. OS LIMITES À RECONSTRUÇÃO DIALÓGICA DE PAISAGENS CULTURAIS

EXISTENTES NO PROCEDIMENTO DE ESTUDO DE IMPACTO AMBIENTAL

Considerando os contornos da já explicitada relação bifronte existente

entre concretização do princípio da precaução e estruturação da heurística dos

riscos socioambientais pelo resgate da geograficidade dos diferentes grupos sociais,

a atenta análise do arcabouço normativo das Resoluções CONAMA n. 01/86, n.

09/87 e n. 237/97 demonstra que existem significativas restrições à reconstrução

dialógica de paisagens culturais no regulamento do procedimento de estudo de

impacto ambiental, limitando, assim, sua eficácia como instrumento de proteção do

meio ambiente.

3.2.1. A restrição decorrente da inserção do EIA no procedimento de

licenciamento ambiental

A mais nítida dessas restrições pode ser vislumbrada na inserção

específica do procedimento do EIA/RIMA no âmbito maior do procedimento de

licenciamento ambiental e sua conseqüente vinculação às demais etapas deste

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último. Seu regulamento estabelece a necessidade de especificação de todas as

medidas de mitigação dos impactos negativos sistematicamente previstos para as

diferentes alternativas de implantação do projeto, bem como determina que ao

estudo sejam incorporados todos os programas de acompanhamento e

monitoramento que se fizerem necessários para assegurar a eficácia das medidas

mitigadoras indicadas. Tais exigências, a princípio, sugerem que o EIA seja

concebido como um processo que não se encerra no momento da concessão da

licença prévia ao proponente, mas tem continuidade em uma fase pós-tomada de

decisão (BISSET, 1996). Para que isso ocorra efetivamente torna-se necessário que

as medidas e programas mencionados tenham suficiente grau de executividade,

antecedendo a definição dos demais componentes do projeto, e que os meios de

interação entre os atores envolvidos no processo de decisão sejam mantidos.

O acoplamento do EIA ao procedimento de licenciamento desenhado no

direito ambiental brasileiro, entretanto, faz de sua aprovação o ato final do processo

de avaliação de impactos ambientais, que se encerra formalmente com a concessão

ou não da licença prévia ao proponente do projeto. Em decorrência, as atividades

pós-tomada de decisão não apenas são concebidas como integrantes de outras

etapas do licenciamento ambiental, mas também adquirem um escopo diferenciado

daquele atribuído às AIAs. Assim, e.g., na fase de licenciamento de instalação, os

estudos ambientais, apesar de guardarem correlação com as conclusões dos

estudos da fase de licenciamento prévio, não se destinam mais a subsidiar qualquer

juízo de viabilidade socioambiental do projeto avaliado, mas têm por escopo

estabelecer os parâmetros de controle ambiental do empreendimento.

Esse contingenciamento procedimental em fases estanques tem por

conseqüência a formação de uma tensão entre a consistência das medidas e

programas que devem ser estabelecidos no EIA e o conteúdo do projeto executivo

ambiental ou plano de controle ambiental a ser apresentado na fase de

licenciamento de instalação, a qual se resolve pela dissolução dos elementos

projetivos do EIA em diretrizes genéricas não providas da necessária

executividade.69 Por outro lado, comentado e aprovado o EIA, a equipe técnica

69 Segundo trabalho elaborado em conjunto pela Fundação João Pinheiro e pela Fundação Estadual do Meio Ambiente (FEAM), órgão ambiental que tem a atribuição de promover a análise técnica de EIAs em Minas Gerais, uma das principais reclamações de técnicos da área ambiental do Estado relativas ao procedimento de licenciamento prévio reside precisamente no caráter excessivamente genérico dos estudos apresentados para análise (FJP & FEAM, 1998:163).

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149

responsável pelo estudo desvincula-se do processo, bem como deixa de existir a

possibilidade dos diferentes atores sociais oferecerem novos inputs na definição da

concepção do empreendimento, restringindo-se sua participação, a partir de então à

apreciação, tão-somente, da eficiência dos dispositivos e sistemas de controle

ambiental a serem adotados pelo responsável pela execução do projeto. Em suma,

aprovado o EIA, o procedimento de avaliação de impacto ambiental se encerra,

dando-se por estabelecida definitivamente a viabilidade do projeto em licenciamento.

Nesse contexto, o EIA perde significativamente sua essência processual,

voltada para permitir repercussões significativas no curso de todo o desenvolvimento

do projeto em licenciamento, para assumir a natureza de uma atividade destinada a

produzir um conjunto de resultados em um único e determinado estágio do processo

de formulação de medidas de política socioambiental. Tendo em vista que as

paisagens culturais apresentam uma consistência essencialmente dinâmica,

caracterizando-se por intermédio de processos de significação cultural em

permanente evolução, sempre instáveis e sujeitos a modificações, sua reconstrução

dialógica não pode ser realizada, em plenitude, por meio de um procedimento

segmentado, que se apresenta com uma pretensão de definitividade não encontrada

nas diferentes vivências geográficas individuais e coletivas que se procura resgatar

nesse esforço de reconstrução.

3.2.2. As restrições metodológicas 3.2.2.1. O distanciamento entre o projeto avaliado e a realidade regional

promovido pela segmentação metodológica do EIA

Outra restrição claramente perceptível, posta ao resgate do espaço como

chôra pelo procedimento do estudo de impacto ambiental, encontra-se na

segmentação metodológica normativamente estabelecida pela Resolução CONAMA

n. 01/86 para a elaboração dos três componentes fundamentais do EIA: o

diagnóstico ambiental da área a ser direta ou indiretamente afetada pelas

alternativas do projeto em licenciamento, a análise de seus impactos ambientais e a

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150

definição de medidas de mitigação e/ou compensação. Essa segmentação desloca a

ênfase do estudo da inserção regional do projeto para sua descrição sobre o pano

de fundo de um quadro biofísico e socioeconômico estático, supostamente um

retrato da denominada área de influência da obra ou atividade que se pretende

implantar. Em decorrência, a realidade na qual o empreendimento se inserirá deixa

de ser apreendida como processo têmporo-espacial, para ser apreendida a partir de

um recorte descontínuo e distanciado.

O rebatimento dessa espécie de abordagem sobre a possibilidade de

reconstrução dialógica de paisagens culturais não poderia ser mais contundente.

Como tal reconstrução se constitui precisamente em um processo de

contextualização de diferentes vivências geográficas, em que a reciprocidade entre

(re)conhecimento e (re)produção da experiência espacial assume um sentido

dinâmico, não há possibilidade de sua recuperação pelo contraste com um quadro

estático que não se dá conta “da temporalidade e da espacialidade dos processos

sociais, econômicos, ecológicos, políticos e culturais, criando um distanciamento

permanente entre o relatado e o que está em curso de transformação” (TEIXEIRA et

al, [s.d.]:175).

De outra parte, a seqüência metodológica do EIA – construção de um

pano de fundo, sobreposição do projeto e de seus efeitos, delineamento de medidas

de contigenciamento ou compensação de seus impactos negativos – torna asséptica

a relação entre as alternativas analisadas e a região de implantação do

empreendimento. O projeto é descrito como uma entidade em si mesma, retratada

contra o pano de fundo do “cenário regional”.

A essência do processo de regionalização, contudo, repousa exatamente

na pesquisa dos diversos nexos verticais (vertical links) existentes entre os aspectos

da realidade geográfica, os nexos processuais estabelecidos entre o clima, o solo, a

vegetação, a ocupação da área e os modos de fazer e viver dos grupos sociais,

associados aos nexos horizontais (horizontal links), os fluxos econômicos,

energéticos e comunicacionais entre os diferentes pólos intra e inter-regionais.

Esses dois aspectos, quando associados, permitem, simultaneamente, a

composição da totalidade regional, que pode ser lida na paisagem, e a revelação

dos subsídios necessários para a compreensão de sua natureza instável e de sua

dinâmica de modificação (CLAVAL, 1998:41-42), traduzindo os vínculos formativos e

compositivos da realidade geográfica em termos de um texto que vai se modificado à

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medida mesmo em que se realiza sua leitura, mas que também deixa marcas de

suas relações significantes pretéritas, à maneira de um palimpsesto (SANTOS,

1997:86).

Desconectado da rede de relações que formam a urdidura da realidade

regional em que se insere, o projeto não se deixa, por via de conseqüência, integrar

à tecedura que o atravessa no processo de reconstrução dialógica das paisagens

culturais. É dizer, as alternativas avaliadas para a obra ou atividade em

licenciamento não se enraizam no “texto” regional, o que exclui a priori a

possibilidade de sua integração na intertextualidade própria dos jogos

conversacionais que compõem as paisagens culturais. O projeto torna-se, assim,

uma unidade de intervenção planejada que se impõe às formações regionais,

estruturando-se como um foco exógeno irradiador de “impactos” positivos e

negativos.

O resultado dessa aproximação metodológica consiste em uma paradoxal

avaliação deterritorializada das interferências potenciais das alternativas do projeto

analisadas, a qual produz duas ordens de conseqüências fundamentais. Em um

primeiro plano, ela deixa escapar a interpenetração existente entre a implantação do

projeto e as formações regionais em que esta se dará, deixando sem avaliação os

efeitos reversos destas últimas naquele, os quais podem interferir significativamente

seja na formação do juízo de viabilidade socioambiental da obra ou atividade, seja

na escolha da melhor alternativa (BISSET, 1996).

Em outro plano, essa maneira de realizar o EIA, precisamente porque não

torna as alternativas analisadas elementos integrantes da realidade regional, não

revela os “impactos” provocados pelo próprio procedimento na geograficidade dos

grupos sociais. Esquece-se, assim, que a perspectiva de implantação do projeto

constitui uma dimensão inafastável da própria deflagração do procedimento do

estudo de impacto ambiental. Como tal, ela introduz modificações nas formações

sociais, nos sistemas de transação e obtenção de recursos socioambientais e nas

práticas significantes que compõem as paisagens culturais dos grupos inseridos na

realidade regional em que a obra ou atividade em licenciamento se inserirá. Da

mesma forma, a deflagração do procedimento do EIA/RIMA põe em marcha “um

conjunto de interesses reivindicados e negociados entre os diversos atores

envolvidos” (REBOUÇAS, 2000:30), mobilizando forças sociais que não se

encontram aprioristicamente estabelecidas, mas se estabelecem no curso do próprio

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procedimento, a partir da estrutura social preexistente, da lógica de atuação do

Estado, que varia historicamente, e também das alianças que se constituirão e serão

desfeitas à medida que a perspectiva de implantação por ele circunscrita tender à

concretização (SIGAUD, 1988; 1995).

Todas essas reverberações do procedimento do estudo de impacto

ambiental provocam alterações nos horizontes geográficos dos diferentes grupos

sociais inseridos no contexto regional referenciado pelo projeto em licenciamento,

constituindo efeitos antecipados do próprio empreendimento, os quais se fazem

sentir no universo de preocupações vivenciais que conformam a realidade pré-

estruturada simbolicamente, a partir da qual esses grupos constroem suas

geograficidades específicas. Assim, pode-se afirmar que, em sua dimensão

simbólica, a obra ou atividade objeto da avaliação passa a integrar a paisagem

cultural dos atores sociais em consideração antes de se tornar um elemento da infra-

estrutura e da paisagem regionais, antecipando-se em seus efeitos tanto imateriais

(mudanças de atitudes, reconfiguração de valores) quanto materiais (alterações nos

modos de produção social) à sua instalação ou implantação.

Nessa ambiência, torna-se mesmo impróprio falar em impactos do

empreendimento em consideração como “respostas culturais” dos grupos imersos na

região adotada como “área de influência” a ser estudada, pois o que ocorrem são

verdadeiras mudanças na estrutura de relações e práticas sociais que constituem

parte indissociável dos próprios processos de construção da realidade geográfica em

foco (SIGAUD, 1988:87). Quando o enfoque da avaliação de impactos ambientais

faz das alternativas do projeto uma realidade em si mesma, conformando-a como

único pólo irradiador de interferências sobre uma área de influência considerada

como “cenário regional” autônomo, entretanto, esses “impactos” socioambientais

antecipados não são sequer integrados no termo de referência, deixando de ser

contemplados no universo de análise da equipe responsável pela elaboração do

EIA.

Isso não quer dizer, contudo, que eles não se façam manifestar na

intervenção dos mencionados atores sociais no próprio procedimento de

licenciamento prévio. Na verdade, muitas vezes, essa manifestação é

particularmente intensa e pode ser identificada nos diferentes posicionamentos a

favor ou contra a aprovação do EIA observados em sua fase de comentários. Tendo

em vista o enfoque deterritorializado a que conduz a segmentação metodológica

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proposta pelo regulamento do procedimento, esses posicionamentos são,

entretanto, no mais das vezes, compreendidos não como indicativos de impactos

socioambientais, mas como desvios indevidos do padrão de análise estabelecido

pelas conclusões da equipe técnica responsável pelo estudo.

Essa forma peculiar de qualificar os posicionamentos adotados pelos

grupos integrados à realidade regional de implantação do projeto objeto de análise

no EIA aplica-se, em particular, àqueles comportamentos individuais ou coletivos

que traduzem uma rejeição aos impactos negativos antevistos para o

empreendimento. De modo praticamente invariável, tal rejeição tende a ser descrita

como manifestação da síndrome convencionalmente designada pelo acrônimo inglês

NIMBY, da expressão not in my backyard (“não no meu jardim”), entendida como

uma espécie de proselitismo anticientificista de que é tomada uma comunidade,

quando esta se encontra em face de sofrer impactos negativos de determinada obra

ou atividade modificadora do meio ambiente. Esse comportamento se manifesta em

uma atitude aparentemente contraditória: de um lado, a comunidade reconhece a

importância do empreendimento, de outra, resiste à sua localização, provocando,

assim, em nome de interesses localizados, desvios no processo decisório que

impedem a busca da solução ótima, em termos de benefícios para toda a

coletividade (BECKMAN, 1973; OPHULS, 1977; INHABER, 1998).

Uma manifestação eloqüente da caracterização apriorística dos possíveis

efeitos simbólicos do procedimento de estudo de impacto ambiental como meras

manifestações da síndrome NIMBY no direito ambiental brasileiro pode ser colhida

nos consideranda da Resolução n. 11/98, da Secretaria de Meio Ambiente do

Estado de São Paulo, que disciplina a realização de reunião técnica informativa,

aberta à participação pública, na fase preliminar de screening da AIA, denominada,

naquele Estado da Federação, de Relatório Ambiental Preliminar (RAP). Segundo o

entendimento manifestado nesses consideranda, a realização da referida reunião,

destinada a discutir as informações preliminares apresentadas pelo proponente do

projeto com o propósito de subsidiar a decisão do órgão ambiental pela realização

ou dispensa da elaboração de estudo de impacto ambiental, se justificaria, dentre

outras razões, para evitar que a perspectiva da vizinhança de uma instalação

destinada à disposição de resíduos sólidos venha a levantar

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a oposição dos que habitam, trabalham ou têm propriedade na área de influência do empreendimento, dando ensejo a que se manifeste a conhecida ‘NIMBY syndrome’ (not in my back yard), forma natural de repúdio e resistência que dificulta o desenvolvimento das políticas de proteção ambiental tendo em vista o intuito de defesa e predominância dos interesses privados atingidos.

Essa qualificação, entretanto, não é peculiar ao contexto brasileiro de

formulação de políticas socioambientais. A síndrome NIMBY ganhou proeminência,

sobretudo, nos EUA, a partir da década de 1970 (McAVOY, 1999:03), chamando a

atenção de pesquisadores e gestores públicos para a intensificação e, em certa

medida, banalização da maneira como grupos locais afetados passaram a resistir,

muitas vezes com sucesso, à implantação de uma gama muito diferenciada de

atividades que causavam repercussões negativas nos interesses da comunidade

afetada ou mesmo nos interesses particulares de seus membros. Em sua

caracterização tradicional a síndrome é concebida como uma reação emocional e

irracional, sempre motivada por interesses egoísticos e paroquiais, que obstruem a

adoção de políticas públicas, nestas incluídas as de cunho socioambiental, que

almejam a promoção do bem comum. Embora sua manifestação seja identificada no

âmbito de processos de implantação das mais diferentes atividades, sua freqüente

recorrência no procedimento de tomada de decisão sobre a localização de

instalações de destinação de resíduos perigosos, usinas termonucleares e indústrias

químicas fez surgir a hipótese de que determinadas atividades modificadoras do

meio ambiente se apresentam como invariavelmente não desejadas no plano local

(POPPER, 1991; O’LOONEY, 1995)70. Nesses contextos, a síndrome NIMBY

representaria um sério obstáculo ao próprio emprego do EIA/RIMA como

instrumento de política socioambiental, devendo ser enfrentada com rigor, sob pena

de sua propagação ter por conseqüência a absoluta impossibilidade de ser tomada

qualquer decisão com fundamento nessa ferramenta procedimental.

Em certa medida, alguns dados históricos aparentemente corroboram

essa visão significativamente negativa dos casos mais agudos de manifestação do

fenômeno. DIMENTO & GRAYMER (1991), por exemplo, observam que entre 1975

e 1990 nenhuma instalação de tratamento de resíduos perigosos foi construída nos

EUA, graças à generalizada resistência dos grupos locais. Dificuldades semelhantes

70 Tais atividades são conhecidas no contexto norte-americano de formulação de políticas socioambientais como LULUs: locally unwanted land uses.

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são enfrentadas por planejadores urbanos e empreendedores públicos e privados

norte-americanos quando precisam decidir onde localizar instalações como

aeroportos, estabelecimentos prisionais e, até mesmo, projetos habitacionais para

população de baixa renda.

Evidentemente, não há como negar que, em determinadas situações

concretas em que se manifesta, a resistência de grupos locais a certos

empreendimentos pode vir a se revelar como uma forma de impor interesses

privados estratégicos (e.g. a manutenção do valor da propriedade sobre bens

localizados na área de influência de uma atividade modificadora do meio ambiente)

sobre uma formulação ótima de medidas de política socioambiental. Não obstante,

não menos evidente se apresenta a conclusão de que a atribuição a priori desse

caráter a toda e qualquer contestação dos grupos locais aos impactos negativos de

projetos de empreendimentos, cuja possível implantação interfere em seus universos

de vivência geográfica, só pode ser realizada em um contexto de tomada de decisão

que, de modo absoluto, não leva em consideração a geograficidade desses atores

sociais.

Essa evidência é levantada por McAVOY (1999), ao pesquisar a ferrenha

resistência de todas as comunidades do Minnesota, durante mais de uma década, à

implantação de uma instalação para destinação final de resíduos industriais

perigosos naquele Estado norte-americano. Os resultados de seu estudo não só

sugerem existir uma íntima relação entre a síndrome NIMBY e o desprezo à

racionalidade cultural dos grupos locais nos processos de tomada de decisão

relativos à implantação de atividades não desejadas localmente, como demonstra

que, no caso analisado, a oposição dos grupos locais configurou-se, na verdade,

como uma forma de contestação tanto da necessidade da instalação quanto dos

argumentos de sua inofensividade levantados pelo Poder Público estadual. Para o

autor, tal contestação encontrava-se fundamentada em uma heurística dos riscos

socioambientais mais abrangente do que aquela que subsidiava as diversas

avaliações de impactos ambientais do projeto em consideração, construída a partir,

sobretudo, dos elementos normativos que compunham a geograficidade das

comunidades envolvidas, os quais explicitavam, com base em conceptualizações de

práticas locais, a noção de eqüidade na distribuição dos ônus sociais das atividades

econômicas de modo distinto daquela que subsidiava as análises dos gestores

públicos.

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156

FISCHER (2000:132-142), por sua vez, observa que, em procedimentos

de tomada de decisão voltados para o contingenciamento de riscos socioambientais,

a racionalidade cultural dos grupos potencialmente mais vulneráveis tende a se

fundamentar em suas experiências sociais pretéritas, bem como em avaliações dos

riscos envolvidos que levam em consideração categorias qualitativas tais como

imediatidade ou diferibilidade dos efeitos negativos esperados, visibilidade ou

invisibilidade dos efeitos positivos associados à assunção dos riscos, grau de

controlabilidade e repartição de responsabilidade pela adoção das medidas de

contingenciamento. Toda essa racionalidade integra o universo de vivência

geográfica dos grupos em questão, dele não podendo ser separada. Dessa forma,

tais grupos especificarão todas as demais avaliações dos riscos envolvidos como

inseridas em contextos vivenciais ou estratégicos específicos, vinculados aos

propósitos declarados ou subentendidos dos atores que promovem a avaliação.

Quando as avaliações de riscos socioambientais, entretanto, são

apresentadas como supostamente neutras, porque realizadas de um modo que se

pretende desvinculado de todos os interesses e universos vivenciais dos diferentes

atores sociais, a reação tendencial dos grupos afetados será de desconfiança, não

porque estejam imbuídos de interesses paroquiais, mas exatamente porque seu

modo de especificar esses mesmos riscos não se desvincula de sua geograficidade

específica. Para tais grupos torna-se, dessa maneira, inconcebível a existência de

qualquer apreciação de riscos socioambientais que possa se destacar dos

horizontes perceptuais dos demais atores envolvidos no procedimento de avaliação.

Sua manifestação de desconfiança, caricaturada como expressão da síndrome

NIMBY, portanto, longe de poder ser qualificada como meramente irracional, indica,

na realidade, que a racionalidade subjacente ao procedimento em questão não é

abrangente o bastante para instaurar as bases de um processo hábil a capturar os

riscos especificados em vivências geográficas diferenciadas.

Em outros termos, essa desconfiança dos grupos locais pode ser melhor

descrita como uma espécie de instabilidade procedimental (RABE, 1990:09) inscrita

na própria abordagem metodológica estabelecida no procedimento de EIA/RIMA: ao

invés de contribuir para a reconstrução dialógica das paisagens culturais dos atores

sociais envolvidos, recolhendo e permitindo o estabelecimento de bases para a

intercompreensão de suas vivências geográficas específicas, o procedimento

suprime ou não leva em consideração a geograficidade de alguns desses atores, em

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favor das perspectivas experienciais de outros. As perspectivas favorecidas, todavia,

são reificadas e, em decorrência, apresentadas como as únicas apreciações válidas

dos riscos envolvidos na implantação da obra ou atividade modificadora do meio

ambiente em licenciamento.

3.2.2.2. Compartimentação do diagnóstico ambiental em meios de avaliação

estaques e fragmentação da análise regional pela adoção de técnicas

merológicas

As limitações ao resgate do espaço como chôra que decorrem da

abordagem metodológica delimitada ou, ao menos, sugerida pelo regulamento

previsto nas Resoluções CONAMA n. 01/86, n. 09/87 e n. 237/97 não se restringem,

entretanto, ao distanciamento entre o projeto e a realidade regional de inserção do

empreendimento. Outra constrição importante à reconstrução dialógica de paisagens

culturais vinculada à orientação metodológica contida nesse regulamento pode ser

vislumbrada na compartimentação do diagnóstico ambiental do EIA em três meios

de avaliação específicos: o meio físico, o meio biótico e o meio socioeconômico. Tal

compartimentação induz a adoção de técnicas de avaliação de impacto ambiental de

cunho merológico, em que as partes componentes da realidade em análise são

“estudadas em primeiro lugar para depois serem interligadas num sistema inteiro”

(TEIXEIRA et al, [s.d.]: 186).

As principais técnicas merológicas empregadas em estudos de impacto

ambiental são as listagens de controle (checklist), as matrizes de interação e as

técnicas convencionais de sobreposição de mapas (maps overlays) (AGRA FILHO,

1993; BASTOS & ALMEIDA, 1999; UNDP, 1992; FEDRA, WINKELBAUER &

PANTULU, 1991).

As listagens de controle consistem em listas de identificação e

enumeração dos principais aspectos ou indicadores ambientais passíveis de sofrer

impactos em virtude da implantação de determinado projeto. A essas listas são

integrados os efeitos previstos, sua classificação segundo critérios qualitativos (e.g.

natureza positiva ou negativa) e quantitativos (e.g. duração ou abrangência), a

ponderação de sua relevância no contexto global do projeto e os indicativos das

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medidas a serem adotadas para mitigação e/ou compensação quando o efeito

associado é caracterizado como adverso. Empregadas desde o surgimento da AIA

como instrumento de política ambiental, as listagens de controle sofreram, com o

decorrer do tempo significativa sofisticação, de modo que, presentemente, podem

ser identificadas três abordagens técnicas diferenciadas fundadas em sua

concepção original (FEDRA; WINKELBAUER & PANTULU, 1991):

a) listagens de controle descritivas: caracterizadas pela elaboração de

listas que descrevem, classificam e mensuram individualmente cada impacto

relacionado ao projeto, para indicar, quando cabível, as medidas de mitigação ou

compensação aplicáveis;

b) listagens de controle escalares: caracterizam-se pela atribuição de

índices de ponderação aos impactos arrolados, com o propósito de estabelecer

entre estes uma ordem hierarquizada;

c) listagens de controle associadas a índices de avaliação: constituem

variações das listagens de controles escalares em que à ponderação e à

hierarquização dos impactos levantados são associados procedimentos destinados

a obter uma apreciação valorativa dos efeitos das alternativas do projeto, resultando

na apresentação de índices de avaliação total dos impactos analisados. Como

exemplo dessa variação da técnica de checklist pode ser citado o Sistema Batelle de

Avaliação Ambiental (DEE et al, 1973).

Mesmo em suas versões mais sofisticadas, entretanto, as listagens de

controle apresentam significativas limitações como técnicas de avaliação de

impactos ambientais. Seu enfoque, em virtude da maneira fragmentada e

compartimentalizada como concebe o meio ambiente, torna sua base de análise

unidemensional, restringindo seus levantamentos a relações individualizadas entre

fatores ambientais específicos e impactos ambientais decorrentes das alternativas

do projeto avaliado (AGRA FILHO, 1993:26; WALKER & JOHNSTON, 1999:29). As

técnicas matriciais surgiram exatamente como tentativa de superar a

unidimensionalidade das listagens de controle (BASTOS & ALMEIDA, 1999:90) pela

utilização de um modo de avaliação de natureza bidimensional, em que fatores

ambientais e ações impactantes são contrapostos de modo a permitir tanto a

explicitação conjunta das múltiplas relações de causalidade direta entre tais ações e

seus efeitos específicos no meio ambiente, quanto múltiplas valorações da

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magnitude desses efeitos a partir de sua recorrência na grade matricial, extraindo-

se, assim, os impactos relevantes.

Uma das matrizes de interação mais difundidas nos primeiros tempos de

emprego dessa técnica foi a Matriz de Leopold (LEOPOLD et al, 1971), composta

por 100 colunas descritivas de atividades relacionadas a projetos econômicos hábeis

a promover interferências nos sistemas socioambientais e 88 linhas representativas

de características desses sistemas, classificadas em quatro categorias: meio físico-

químico, meio biótico, meio cultural e meio ecológico. Para utilizá-la, deve-se,

primeiramente, identificar, entre as atividades listadas, aquelas que poderão

encontrar-se associadas ao projeto em análise. Feita a seleção, examina-se cada

linha representativa dos fatores ambientais, para identificar aqueles que sofrerão

impactos específicos e conferir a cada interferência levantada um valor

correspondente à sua magnitude.

Em sua formulação original, a Matriz de Leopold se propunha como uma

matriz de interação standard capaz de ser aplicada indistintamente em diferentes

avaliações de impacto ambiental. Assim concebida, a técnica apresentava sensíveis

deficiências fundamentais, como a valorização excessiva dos impactos ecológicos e

físico-químicos em relação aos efeitos sociais e econômicos do projeto em análise, a

falta de indicação dos horizontes temporais de manifestação dos impactos

levantados e a impossibilidade de segregação dos impactos quanto à probabilidade

de sua ocorrência (GILPIN, 1995:43). Com o tempo, entretanto, variações

introduzidas no modelo original, associadas à prática de estruturar a relação entre

fatores ambientais de possíveis impactos na própria definição do escopo dos

projetos a serem realizados, levaram ao abandono da idéia de se aplicar uma matrix

standard como fórmula de avaliação dos impactos ambientais. Incorporou-se, assim,

à abordagem matricial técnicas que permitiam a estruturação da matriz de interação

no próprio curso do procedimento da AIA. A maior plasticidade conferida por tais

técnicas à abordagem matricial não permitiu, contudo, a superação de determinados

limites metodológicos próprios de sua implícita perspectiva merológica. Esses limites

se manifestam, fundamentalmente, em sua inaptidão para avaliar os impactos

secundários e os processos de feedback estabelecidos na complexa relação entre

os diferentes fatores socioambientais impactados, dada a maneira compartimentada

como concebe a realidade regional de inserção do projeto a ser avaliado

(ARGENTINA, OAS & UNEP, 1978; AGRA FILHO, 1993:26).

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Outra abordagem que surgiu como proposta de superação dos limites

impostos pela fragmentação analítica e unidimensionalidade das listagens de

controle consiste na técnica de avaliação de impactos ambientais pela sobreposição

de mapas temáticos (maps overlays). Já utilizada em estudos regionais desde a

década de 1930, sobretudo por geógrafos franceses, seu emprego em AIAs foi

sugerido inicialmente por MAcHARG (1969), como técnica de identificação de áreas

de menor conflito entre os usos de recursos ambientais e de maior convergência na

atribuição de valores socioambientais, na região de inserção do projeto em análise

(ARGENTINA, OAS & UNEP, 1978; WALKER & JOHNSTON, 1999).

Em virtude de recorrer à elaboração de cartas temáticas como base de

desenvolvimento de suas análises, a sobreposição de mapas apresenta um

potencial de síntese das interações entre os atributos que compõem a realidade

regional objeto de estudo mais elevado do que as técnicas anteriormente descritas.

Cada cartograma, além de constituir um modelo dos fenômenos geográficos que

procura representar (DEMERS, 1997:52), agrupa as informações referentes a esses

fenômenos em categorias cognitivas sintéticas, as quais, de acordo com

MAcEACHREN (1995:193), possuem a consistência de molduras conceituais

compósitas (maps schemata). Não obstante, essa capacidade de síntese encontra-

se limitada às relações estabelecidas no interior de cada recorte temático, uma vez

que o emprego de mapas convencionais restringe significativamente o intercâmbio

de dados entre os cartogramas sobrepostos, impossibilitando uma verdadeira

avaliação da interpenetração entre fenômenos recortados em diferentes temas e,

conseqüentemente, a estruturação de um modelo mais complexo de análise

espacial. Dessa maneira, o levantamento final dos impactos relevantes é obtido por

intermédio de ilações de natureza merológica, as quais também apresentam uma

capacidade limitada de descrição dos impactos secundários a serem considerados,

pois partem de uma apreensão compartimentada dos aspectos da realidade regional

de inserção do projeto em avaliação. Por outro lado, em virtude de os mapas

convencionais representarem, por assim dizer, retratos estáticos desses diferentes

aspectos da realidade regional que procuram descrever, sua aposição não é capaz

de surpreender sejam os processos de feedback existentes nos sistemas

socioambientais que compõem a base do diagnóstico que se pretende realizar,

sejam os fluxos têmporo-espaciais que caracterizam a dinâmica da região descrita.

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Observa-se, assim, que as técnicas merológicas, de maneira geral, não

se apresentam aptas a investigar de maneira cabal a correlação entre os impactos

socioambientais do projeto submetido à avaliação de impacto ambiental

(ARGENTINA, OAS & UNEP. 1978; WALKER & JOHNSTON 1999). Essa inaptidão

relaciona-se, basicamente, à sua orientação metodológica de partir da descrição

individualizada dos fatores ambientais relevantes para a realização do EIA, o que as

impede de capturar a totalidade da realidade regional que procuram estudar. Uma

tarefa que se põe como necessária à elaboração de um diagnóstico ambiental

verdadeiramente completo, capaz de oferecer uma síntese da região de inserção do

projeto em avaliação, capturando a complexidade tanto da interação entre os

diversos fenômenos que compõem sua feição peculiar quanto dos processos que

indicam suas características pretéritas e suas tendências de modificação futura. Tal

diagnóstico socioambiental constitui elemento imprescindível para que o

procedimento cumpra sua finalidade, pois, como se interrogam TEIXEIRA et al

([s.d.]:175), “se o ‘diagnóstico’ for incompleto e distorcido em face da realidade

ambiental, como pode estabelecer ‘previsões’ sobre uma realidade mal conhecida,

que tem uma dinâmica própria e, portanto, sujeita a permanentes mudanças no seu

interior?”

Essa constatação não retira, todavia, o valor dessas técnicas como

possíveis ferramentas para realização de tarefas específicas no âmbito do

procedimento de avaliação de impactos ambientais. Assim, as listagens de controle

podem ser empregadas, com proveito, como guia prévio de análises preliminares

destinadas a oferecer subsídios para uma primeira configuração (screening) do

projeto a ser submetido à AIA (AGRA FILHO, 1993:26). De modo análogo, as

matrizes de interação podem ser associadas a técnicas que procuram surpreender

as cadeias de causa e efeito entre os impactos ambientais em seus fluxos de

interpenetração, compondo matrizes avançadas de redes de interação (WALKER &

JOHNSTON, 1999:51), de importante emprego na composição de possíveis cenários

regionais futuros decorrentes da concretização do projeto sujeito à AIA. Por sua vez,

a sobreposição de mapas digitais, realizada com o auxílio de Sistemas de

Informações Geográficas (GIS71), ao permitir não apenas a formação de mapas-

71 Neste trabalho, em virtude de sua larga consagração no jargão acadêmico, adotar-se-á a sigla GIS (da expressão inglesa Geographic Information Systems) como designação dos ambientes computacionais de geoprocessamento conhecidos por Sistemas de Informações Geográficas.

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sínteses de maior densidade informacional, mas também a análise da evolução

histórica e de tendências futuras da região estudada, constitui uma importante etapa

no desenvolvimento de técnicas de análise espacial avançada (LONGEY et al,

2001:313-314), ampliando o potencial de emprego dos GIS na elaboração de

diagnósticos socioambientais em AIAs (RODRIGUEZ-BACHILLER & WOOD,

2001:390).

O emprego de abordagens merológicas, contudo, com o propósito de, por

si só, promover a etapa de diagnóstico ambiental do EIA e levantar os impactos

socioambientais do projeto em análise não permite seja a elaboração de uma

completa descrição da região de implantação do empreendimento, seja o exaustivo

levantamento dos nexos de inserção deste naquela, seja a apuração de todas as

repercussões ou efeitos decorrentes dessa inserção. Em decorrência, o efeito de

deterritorialização já inscrito nas próprias etapas em que o EIA se desmembra acaba

por ser amplificado, pois o “pano de fundo” contra o qual são contrastados os

impactos do projeto não chega, sequer, a compor um mosaico dos fatores

socioambientais mais relevantes na composição de suas feições particulares,

caracterizando-se, tão-somente, como uma bricolagem de fragmentos dispersos de

uma realidade regional infinitamente mais rica, impassível de se deixar capturar

através de “retratos recortados incapazes de captar movimento e mudança”

(TEIXEIRA et al, [s.d.]:181).

Tais “retratos”, de outra parte, exatamente por não revelarem em

plenitude os nexos verticais e horizontais da região de inserção do empreendimento

em licenciamento, acabam por conferir ao EIA um enfoque dicotomizado, ao estilo

homem versus natureza. Além de obstaculizar a elaboração de uma avaliação

integrada dos efeitos sinérgicos das alternativas do projeto sobre aspectos

biofísicos, ecológicos e socioeconômicos (CAMPBELL, 1993; MONTEIRO, 2000), tal

enfoque também constitui uma significativa barreira à reconstrução dialógica das

paisagens culturais no âmbito do procedimento em questão. De fato, se essas

paisagens apresentam uma natureza trajetiva e constituem o resultado sempre

instável dos processos de significação cultural do espaço, circunscritos por práticas

sociais significantes, sua recuperação e inserção na heurística da avaliação de

impactos socioambientais não podem ser realizadas com suporte em um modo de

conhecer a realidade que não lhe reconhece a feição de configuração provisória e

mutável do inextricável entrelaçamento entre elementos simbólicos e materiais.

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163

Da mesma maneira, ao atenuar os laços entre os diferentes atributos que

compõem a região estudada, circunscrevendo as ações de indivíduos e grupos

sociais à descrição de um “meio socioeconômico” supostamente estanque, a

fragmentação do referido diagnóstico suprime ou oculta os agentes sociais que

interferem na produção do espaço. Em decorrência, não só se anulam as

diferenciações intra-regionais e inter-regionais, tornando “impossível o conhecimento

da lógica da organização territorial que sofrerá alterações com o empreendimento”

(TEIXEIRA et al, [s.d.]:181), como também se elimina a possibilidade de esses

agentes serem considerados como interlocutores no processo de elaboração da

heurística dos riscos socioambientais que presidirá a avaliação das repercussões do

projeto sobre a realidade regional de sua implantação. Em outros termos,

transformados em meros elementos integrantes de um dos meios em que se

decompõe o diagnóstico ambiental do EIA, os grupos sociais inseridos no contexto

regional de implantação do projeto a ser avaliado não são considerados seja como

co-criadores da realidade geográfica estudada, seja como portadores de uma

geograficidade específica, cujo resgate se faz necessário para a ampliação da

racionalidade em que se fundamentará a decisão a ser adotada ao final do

procedimento em análise.

3.2.3. Procurando contornar as restrições metodológicas: a opção por técnicas

holísticas 3.2.3.1. O papel dos estudos integrados do meio ambiente

Os limites à integração tanto de fatores quanto de impactos

socioambientais próprios das técnicas merológicas, contudo, podem ser superados

pela adoção de abordagens para a realização do EIA de cunho holístico, as quais,

tomadas a partir de um prisma geossistêmico abrangente, procuram “privilegiar a

complexidade das interações geográficas, fugindo à preocupação vigente com a

descrição linear de cada setor da fenomenologia geográfica” (MONTEIRO, 2000:19).

Apesar de não incentivadas pelo regulamento do procedimento do EIA/RIMA no

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164

Brasil, essas abordagens não deixam de se encontrar referidas indiretamente na

Resolução CONAMA n. 01/86, quando este ato normativo traça como diretriz do

estudo a ser realizado a avaliação sistemática dos impactos gerados nas fases de

implantação e operação do projeto em licenciamento. Adotando orientação

diametralmente oposta àquela subjacente às técnicas merológicas, elas estruturam

as bases de elaboração da AIA sobre o “espaço total regional” (AB’SABER, [s.d.]:30-

31), compreendido como o resultado mutável da acoplagem entre sistemas

socioambientais complexos e diferentes elementos dinamizadores intersticiais,

elementos que participam da estruturação da realidade regional e promovem a

manutenção e a evolução dos sistemas inter-relacionados.

Apesar de sua profunda afinidade com diferentes orientações

epistemológicas da Geografia acadêmica,72 em particular com os trabalhos de

síntese regional próprios da escola vidaliana, em que a atividade geográfica tem por

seu centro a investigação de “unidades territoriais orgânicas” (MONTEIRO,

2000:104), no contexto histórico do surgimento da AIA como instrumento de política

ambiental, a raiz metodológica das abordagens holísticas em questão pode ser

traçada até as tentativas pioneiras de estruturação de técnicas voltadas ao estudo

integrado do meio ambiente (TRICART, 1972), de que são exemplos a

Landschaftsökologie, desenvolvida na antiga Alemanha Oriental, na

Tchecoslováquia e na Polônia durante a década de 1960 (MONTEIRO, 2000:19), as

variantes do estudo de geossistemas propostas por SOTCHAVA (1960/1977) e

BERTRAND (1968), e a técnica de análise morfodinâmica ou ecogeográfica

concebida por TRICART & KILIAN (1979).

É importante notar que um traço comum manifestado em todos esses

esforços metodológicos pioneiros consistiu na busca de uma moldura conceitual

capaz de permitir expressar, em um único quadro conjuntural, a síntese das

interações complexas entre os fatores biofísicos, ecológicos e socioeconômicos que

compõem a realidade regional, bem como o caráter histórico-processual, instável e

dinâmico dessas interações. Tal moldura foi encontrada, exatamente, no conceito de

paisagem, compreendida, nos moldes de sua explicitação por BERTRAND (1968;

72 Segundo TRICART (1972:83), a idéia de se promover estudos georreferenciados e integrados do “meio ecológico” já se insinuava, no século XIX e início do século XX, no pensamento de “fundadores da geografia moderna”, como Humboldt, Ritter e Vidal de La Blache, e de grandes naturalistas, como Darwin, Richthoffen, Dokoutchaev e Passarge.

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165

1970) em dois trabalhos considerados seminais para o desenvolvimento dos estudos

integrados do meio ambiente. Segundo o autor, a paisagem se revela como “uma

porção do espaço caracterizada por um tipo de combinação dinâmica, portanto

instável, de elementos geográficos diferenciados – físicos, biológicos e antrópicos”.

Tais elementos reagem dialecticamente uns sobre os outros, fazendo dessa porção

do espaço “um conjunto geográfico indissociável que evolui em bloco”, tanto sob o

efeito das interações em questão, quanto sob a influência da dinâmica própria de

algum de seus elementos componentes considerado separadamente.

As primeiras técnicas de orientação holística empregadas na elaboração

de EIAs enfatizavam, entretanto, as cadeias de interação entre os fatores

socioambientais e impactos relevantes, dirigindo sua atenção para a mensuração

das entradas e saídas dos fluxos identificados na realidade regional, avaliados por

intermédio da elaboração de redes de interação ou diagramas de sistemas (e.g.

SORENSEN, 1970; GILLILAND & RISSER, 1977). Embora essas técnicas tenham

permitido uma significativa ampliação do espectro da avaliação promovida no âmbito

do EIA, pelo levantamento sistemático de impactos indiretos e dos processos de

feedback que se desenvolvem na região de inserção do projeto submetido a AIA

(OAS & UNEP, 1978; FEDRA, WINKELBAUER & PANTULU, 1991; WALKER &

JOHNSTON, 1999), seu direcionamento para a identificação de cadeias, redes ou

fluxos põe em excessivo relevo os elementos intersticiais responsáveis pela

dinâmica dos sistemas socioambientais, em detrimento de uma descrição

aprofundada das unidades territoriais compósitas que revelam a totalidade da

realidade regional de interesse para a avaliação.

Dessa maneira, as redes de interação e os diagramas de sistemas não

fornecem técnicas de avaliação de impactos ambientais que realizem, em sua

plenitude, a proposta de síntese socioecológica subjacente à orientação dos estudos

integrados do meio ambiente. Se, de um lado, essas abordagens destacam os

nexos horizontais da região estudada, falta-lhes, por outro, precisamente, uma

preocupação específica com a compreensão dos conjuntos únicos e indissociáveis

formados pela reação dialética entre os diferentes fatores socioambientais, de

tamanha relevância conceitual nas preocupações metodológicas dos diferentes

grupos acadêmicos envolvidos nas formulações pioneiras dessa nova orientação

teórica. É dizer, falta-lhes, precisamente, uma orientação assentada na perspectiva

de explicitação da paysage, nos moldes sugeridos por BERTRAND (1968; 1970).

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166

Não por outra razão, as avaliações de impacto ambiental realizadas com auxílio de

redes de interação ou diagramas de sistemas também não se rendem ao resgate do

espaço como chôra pela reconstrução dialógica de paisagens culturais.

Mais recentemente, entretanto, com o propósito de construir uma

abordagem capaz de enfatizar de modo balanceado os nexos verticais e horizontais

das realidades regionais de inserção do projeto em análise, buscando a explicitação

tanto de sua organização territorial quanto dos processos de evolução que nela têm

lugar, técnicas de modelagem ambiental passaram a ser empregadas na elaboração

de EIAs.

Conforme já salientado, a construção de modelos, no plano da atividade

científica, de modo geral, e da análise espacial, de modo particular, sempre esteve

vinculada ao propósito de estruturar ferramentas de investigação sistêmica de

problemas concretamente considerados (AMEDEO & GOLLEDGE, 1986:86-91). Não

obstante, a consciência da complexidade das interações que ocorrem nos sistemas

socioambientais, associada às restrições de cunho tecnológico existentes à

manipulação em grande quantidade de dados ou informações capazes de orientar a

construção de modelos que dessem conta dessa complexidade, inibiu, durante

significativo período de tempo, o emprego de técnicas de modelagem nos

procedimentos de avaliação de impacto ambiental.

No início da década de 1980, a ampliação da capacidade de

processamento dos sistemas computacionais então disponíveis permitiu, contudo, o

surgimento de técnicas de construção de modelos integrados de avaliação

(integrated assessment models – IAMs). Considerados inicialmente de complexa e

dispendiosa construção,73 os IAMs passaram a ser empregados na realização de

EIAs, a partir do momento em que a difusão de novas tecnologias de informação

permitiram a superação das restrições técnico-econômicas existentes à construção

de modelos ao mesmo tempo mais complexos e flexíveis, capazes de explorar em

maior profundidade as interações que se estruturam em realidades regionais

específicas.

73 Razão por que os primeiros IAMs se destinavam a realizar avaliações ambientais estratégicas, em particular aquelas direcionadas para a detecção de mudanças globais de origem antropogênica (SLUIJS, 1996).

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167

3.2.3.2. A contribuição fundamental dos Sistemas de Informações Geográficas

No processo de consolidação dessa nova abordagem holística, assumiu

particular relevo a gradativa integração observada entre os IAMs e os Sistemas de

Informações Geográficas (GIS), sistemas que também experimentaram, na mesma

época, uma semelhante ampliação exponencial de sua capacidade de

processamento informacional (TOMLINSON, 1990:25). Com efeito, como classe de

modelos dedicados à exploração de dados geográficos (exploratory models), os

IAMs constituem modelos ávidos por dados (data-hungry models), e os GIS, como

sistemas computacionais para tratamento da informação espacial, distinguem-se

como ambientes de análise ricos em dados (data-rich environments)

(FOTHERINGHAM, 2000:23). Dessa maneira, a aproximação entre as técnicas de

modelagem ambiental e de estruturação de GIS pode ser considerada como um

desdobramento natural da própria transformação dos sistemas computacionais de

modo geral, originalmente concebidos como simples processadores de dados, em

ambientes para elaboração e, simultaneamente, emprego de tecnologias digitais de

gestão da informação.

Em um primeiro momento, essa aproximação fez dos GIS um importante

instrumento de alimentação de dados para modelos ambientais integrados, os quais

mantinham uma arquitetura computacional autônoma. Recentemente, entretanto,

uma imbricação crescente das técnicas de modelagem espacial aos Sistemas de

Informações Geográficas deu início ao processo de estruturação das bases

fundamentais para que os GIS se transformassem gradativamente em verdadeiros

ambientes computacionais de análise espacial (TOBLER, 1993; ABREU, 1995). A

arquitetura computacional desses ambientes vem adquirindo flexibilidade suficiente

para permitir a elaboração de EIAs fundados em sínteses socioecológicas dinâmicas

da região de inserção do empreendimento avaliado. A partir dessas sínteses,

ponderações multidimencionais dos impactos relevantes podem ser obtidas pelo

emprego de técnicas de avaliação integradas, como, e.g., a análise de multicritérios

(HEYWOOD, CORNELIUS & CARVER, 1998:138-142). Conseqüentemente, sob o

prisma teórico-metodológico, além de promover uma relevante subversão na

dicotomia entre as perspectivas nomotética e idiográfica na Geografia acadêmica

(GOODCHILD, 2000), o emprego dos GIS na elaboração de EIAs pode ser

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168

considerado como um relevante fator na inserção da modelagem ambiental, antes

de aplicação limitada à elaboração de avaliações ambientais estratégicas, entre as

poucas técnicas que procuram enfrentar, em todo o seu espectro, os muitos

problemas postos para a elaboração de avaliações verdadeiramente abrangentes e

sistêmicas dos impactos específicos de obras ou atividades modificadoras do meio

ambiente (FEDRA, WINKELBAUER & PANTULU, 1991).

Não se pode perder de vista, contudo, que a flexibilidade própria da

modelagem ambiental com emprego de GIS assenta-se, essencialmente, em dois

avanços fundamentais experimentados, ainda que de modo embrionário, no

emergente campo da “Ciência da Geoinformação”, compreendida como o setor do

conhecimento que se dedica ao estudo das questões e temas fundamentais que se

relacionam à representação e à análise computacionais do espaço geográfico

(LONGLEY et al, 2001:21; cf. tb. GOODCHILD, 2000; CÂMARA & MONTEIRO,

2002). Em primeiro lugar, ela decorre do acoplamento, de uma parte, de

propriedades dinâmicas e de estruturas processuais às informações sobre eventos

geograficamente definidos que se encontram armazenadas na base de dados dos

GIS e, de outra, de descritores de interação e funcionalidade espacial aos modelos

ambientais (KEMP, 1993; MARR, PASCOE & BENWELL, 1997). Em segundo lugar,

ela constitui o resultado do esforço em se promover a criação de “sistemas de

informação ambiental confederados”, cujos diferentes subsistemas são interligados

por estratégias de composição que vão desde técnicas de “operação coesa”, até a

construção de “linguagens de programação e modelos de dados que abranjam todas

as operações e complexidades próprias de cada subsistema” (YATES & BISHOP,

1997:191; WEGENER, 2000:11).

Apesar de se referirem a aspectos distintos da modelagem ambiental com

suporte em Sistemas de Informações Geográficas, ambos os avanços se encontram

fundados em um princípio comum: a implementação de estratégias destinadas a

conferir interoperabilidade aos GIS. Compreendida como a capacidade que um

sistema ou componentes de um sistema possui de compartilhar ou trocar

informações e aplicações (BISHR, 1998), essa peculiar característica que vem

sendo incorporada às gerações mais recentes dos softwares de geoprocessamento

pode ser surpreendida em diferentes planos. Sob um prisma estritamente técnico, a

interoperabilidade estrutura-se como “uma especificação abrangente da arquitetura

de software para acesso distribuído a dados geo-espaciais e recursos de

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169

geoprocessamento em geral” (DAVIS & CÂMARA, 2002:22). Um exemplo de

aplicação dessa noção técnica de interoperabilidade pode ser encontrada nos

esforços do Open GIS Consortium74 para a criação de padrões conceituais e de

implementação destinados a permitir a integração de componentes de software de

geoprocessamento criados por diferentes desenvolvedores (OGC, 1999).

A plena concretização da interoperabilidade técnica, contudo, pressupõe

a possibilidade de compartilhamento de informações dotadas de “espacialidade

explícita”, nas quais os atributos espaciais e não-espaciais se fundem à própria

estrutura das entidades geográficas que constituem as unidades informacionais dos

sistemas ou componentes de sistemas que se pretende interligar (GOODCHILD,

2000). Tais unidades são especificadas por diferentes comunidades de

geoinformação, cada uma compondo grupos de usuários e provedores de

informações geográficas que possuem “linguagens espaciais” específicas.

Composta por entidades, classes, propriedades, predicados e funções

distintas, bem como pelas relações entre esses componentes semânticos peculiares,

essas linguagens espaciais só são compartilhadas completamente pelos membros

de cada grupo de usuários ou de provedores, conformando, assim, domínios de

cognição geográfica também específicos (EGENHOFER & MARK, 1995; MARK &

FRANK, 1996; TVERSKY & TAYLOR, 1998), que se explicitam, segundo expressão

corrente no campo da Inteligência Artificial, como ontologias espaciais próprias de

cada comunidade geoinformacional (FONSECA, 2001:20-21).

Dessa maneira, um grau de interoperabilidade significativo no plano do

desenvolvimento da arquitetura computacional dos GIS não pode ser alcançado sem

a explicitação dos diversos modos de apreensão do espaço geográfico, por

diferentes comunidades de geoinformação, e sem a criação de bases para o seu

intercâmbio. Em outros termos: a interoperabilidade técnica vincula-se e, em certa

medida, tem seus limites condicionados pela interoperabilidade semântica,

compreendida como a capacidade de compartilhamento de informações entre

comunidades geoinformacionais que apresentam comprometimento com diferentes

arcabouços conceituais do mundo (HARVEY et al, 1999).

74 O Open GIS Consortium (OGC) consiste em uma organização não-governamental sem fins lucrativos constituída por universidades, centros de pesquisa, empresas de desenvolvimento do software e agências governamentais que tem por objetivo desenvolver sistemas abertos de geoprocessamento.

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170

Dada essa vinculação estreita, esforços recentes vêm sendo

desenvolvidos de modo a dotar os GIS de interoperabilidade semântica, de que são

exemplos as propostas de FONSECA & EGENHOFER (1999a), CÂMARA et al

(2000), FRANK (2001) e FONSECA et al (2002). Tais propostas apresentam como

motivação específica a busca de estratégicas para a construção de Sistemas de

Informações Geográficas que sejam capazes de “entender o modelo que o usuário

faz do mundo e seus significados e entender também os modelos por trás das fontes

de informação”, como forma de alcançar, no mais elevado grau, a integração entre

diferentes fontes de informação que alimentam o sistema (FONSECA, EGENHOFER

& BORGES, 2000). Dessa maneira, apesar de reconhecerem as dificuldades

práticas atuais de sua implantação, em razão da grande heterogeneidade das

unidades geoinformacionais que procuram agregar, essas iniciativas admitem, ao

menos como fundamento teórico-metodológico, a possibilidade teórica de integração

completa dos domínios especificados por comunidades geoinformacionais distintas.

Essa pressuposição de completa integração tem seu lastro

epistemológico na distinção promovida por SMITH (1998) entre uma Ontologia

fundada na realidade (Ontologia-R) e ontologias epistêmicas (ontologias-e). A

primeira corresponde a uma metateoria que pretende lançar as bases fundamentais

de uma explicação do universo independente de esquemas conceptuais, as

segundas constituem teorias que procuram tornar explicita a forma como um

indivíduo ou grupo social conceptualiza esse mesmo universo. Nesse sentido, as

iniciativas em questão reconhecem, implicitamente, o dualismo entre esquema

conceitual e conteúdo empírico e não renunciam à dependência dos conceitos em

relação a uma realidade bruta não interpretada, posturas epistemológicas contra as

quais se insurgem DAVIDSON (2001a; 2001b) e RORTY (1979; 1997), conforme

salientado no capítulo anterior deste trabalho.

YI, LI & CHENG (1999) observam, entretanto, que a interoperabilidade,

tanto no plano técnico quanto semântico, apesar de facilitar o processo de

integração seja dos componentes de Sistemas de Informações Geográficas, seja de

unidades informacionais proporcionadas por comunidades de geoinformação

diferenciadas, não tem por finalidade promovê-lo. Seu escopo consiste, na

realidade, em permitir o compartilhamento horizontal de informações

georreferenciadas, sem compromisso com a assimilação integral entre as unidades

geoinformacionais envolvidas. Dessa forma, nas estratégias para sua

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171

implementação no plano semântico, torna-se relevante tanto o estabelecimento de

pontos em comum entre os diferentes domínios de cognição espacial quanto a

explicitação de suas diferenças específicas.

Essa perspectiva é compatível com a asseveração de CHRISMAN (1999;

2000; 2002) de que a própria definição dos limites entre as diferentes comunidades

geoinformacionais, necessária para a elaboração de estratégias concretas de

interoperabilidade técnica, depende de cuidadosa compreensão da natureza local

das pretensões cognitivas por elas levantadas. É dizer, depende de seu

enraizamento em específicas experiências do espaço e de sua conseqüente

intraduzibilidade relativa. Em outros termos, a interoperabilidade semântica assenta-

se na explicitação da geograficidade própria e na reconstrução dialógica das

paisagens culturais das comunidades geoinformacionais envolvidas. Dessa maneira,

ela pode tanto contribuir para a recontextualização dessas paisagens culturais no

âmbito de horizontes geográficos compartilhados – pela identificação de elementos

passíveis de integração porque comuns aos diferentes domínios de cognição

espacial – quanto servir como meio adequado para o reconhecimento de

geograficidades alternativas – pelo levantamento daqueles elementos absoluta ou

relativamente não-integráveis porque específicos de determinadas vivências

geográficas.

Dessa maneira, a concepção da interoperabilidade como “ciência da

integração” (FONSECA & EGENHOFER, 1999b:49; cf. tb. WIEDERHOLD, 1999),

como setor da Ciência da Geoinformação voltado precipuamente para o

estabelecimento de estratégias de explicitação do que há de comum nas

conceptualizações do mundo promovidas por diferentes comunidades

geoinformacionais, pode ser superada. Em seu lugar, uma compreensão mais

abrangente se insinua, sugerindo ser a interoperabilidade o setor da Ciência da

Geoinformação que se propõe a fornecer subsídios teórico-metodológicos para

implementação de tecnologias de geoprocessamento fundadas na explicitação tanto

de pontos de referência comuns quanto de diferenças específicas contidas nas

informações geográficas providas por diferentes comunidades geoinformacionais

(CHRISMAN, 1999:04; cf. tb. HARVEY, 1997; HARVEY & CHRISMAN, 1998;

RIEDEMANN & KUHN, 1999).

Filiada a uma avaliação anti-representacionalista do conhecimento

científico (RORTY, 1997), tal compreensão desloca significativamente o ponto

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172

central dos debates metateóricos subjacentes às questões da conexão entre os

componentes dos Sistemas de Informações Geográficas e da preservação da

integridade de sua base de dados. Sem abandonar os temas do estabelecimento de

consensos intracomunitários e da explicitação de seus respectivos

comprometimentos ontológicos (FONSECA, 2001:20), esses debates passam a se

debruçar e ter como foco primário a reflexão sobre as condições de

intercompreensão dos nexos vivenciais que configuram a relação estabelecida entre

diferentes comunidades geoinformacionais e o mundo.

Assim configurada, a interoperabilidade semântica sugere estratégias

teórico-metodológicas para a transformação dos GIS em ambientes que possibilitem

uma análise da paisagem em sua dimensão abrangente, abarcando-a sob os

diferentes prismas dos diversos grupos sociais que participam de sua construção e

vivem no âmbito de seus quadros técnico-culturais e de seus sistemas de produção

(BERTRAND, 1995:100). A relação entre interoperabilidade e reconstrução dialógica

de paisagens culturais, todavia, não apresenta natureza unívoca. De fato, se o

intercâmbio entre vivências geográficas de comunidades geoinformacionais distintas

condicionam os modos de compartilhamento de informação no GIS, seu emprego

configura “contextos técnico-sociais” que provocam alterações na geograficidade

dessas comunidades, criando “redes de atores” compostas por elementos humanos,

institucionais e computacionais que se especificam mutuamente (HARVEY, 2001).

Em decorrência, a arquitetura, a funcionalidade e o conhecimento produzido pelos

Sistemas de Informações Geográficas só podem ser compreendidos e assumem

pleno significado em referência aos contextos sociocultural, organizacional e político-

institucional de sua construção e emprego, os quais, simultaneamente, condicionam

e são condicionados pela heurística inserida nesses sistemas (ROCHE, 2000:135;

cf. tb. HARRIS & WEINER, 1996; ABBOT et al. 1998; BRODNIG & MAYER-

SCHÖNBERGER, 2000).

Adotada, dessa forma, uma abordagem em que se transcende a

concepção dos Sistemas de Informações Geográficas como simples estruturas

geocomputacionais, para lhes abarcar a dimensão de atividade social e

tecnologicamente organizada (CHRISMAN, 1997), os GIS se revelam como forma

peculiar de prática significante propícia à (re)contextualização de paisagens culturais

pela explicitação de geograficidades alternativas. Uma espécie de prática

significante em que a heurística do sistema, em suas diferentes dimensões

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173

compósitas computacionais e não-computacionais, assume natureza “intertextual” e

se assenta no reconhecimento de que devem contribuir para sua “co-construção”, a

partir de suas respectivas inserções em diferentes comunidades de geoinformação,

todos aqueles que participam da rede de atores especificada quando se põe em

marcha o próprio conjunto de ações que compõe essa atividade sociotecnológica.

Em seu alicerce semiótico, por conseguinte, desde que se reconheça que

a interoperabilidade se propõe apenas a promover o compartilhamento horizontal de

informações, pode-se instalar uma racionalidade comunicativa sensivelmente

ampliada, em que a intercompreensão a ser estabelecida entre as diversas

comunidades geoinformacionais não se volta para a supressão das disparidades em

suas perspécticas visões de mundo, mas se direciona para fazer da diversidade

experiencial um recurso para composição da heurística do sistema. Concebido

nesses termos abrangentes, os Sistemas de Informações Geográficas assumem, no

âmbito específico de sua aplicação ao procedimento de EIA/RIMA, um sentido que

transcende ao de meras ferramentas que contribuem para a construção de técnicas

holísticas de avaliação de impactos ambientais ou mesmo de simples sistemas

computacionais de suporte à adoção, de forma colaborativa, de uma espécie de

medida de política ambiental que assume conotações intrinsecamente

geoinformacionais (DENSHAM, ARMSTRONG & KEMP, 1995).

Potencialmente, sua estruturação e seu emprego, como atividade

sociotecnológica, têm o condão de conformar ambientes de formulação de políticas

sociombientais que, ao permitirem a reconstrução dialógica de paisagens culturais,

podem fornecer condições efetivas para que a tomada de decisão no procedimento

de EIA/RIMA seja legitimada pelo reconhecimento da relevância e da imperatividade

de se amparar necessidades peculiares, que emergem no quadro de vivências

geográficas específicas. Para que essa apontada potencialidade se transforme em

praxis concreta, todavia, torna-se imprescindível que a própria estruturação do

sistema assuma uma natureza intrinsecamente participativa, integrando em seus

“jogos conversacionais” as narrativas que permitem a explicitação de

geograficidades alternativas, de modo a permitir a inserção de vivências geográficas

diferenciadas na própria construção de sua heurística (AITKEN, 2002:364).

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174

3.2.4. Limites geojurisprudenciais ao reconhecimento de comunidades geoinformacionais e política de verdade no procedimento de estudo de impacto ambiental

A estruturação de Sistemas de Informações Geográficas alicerçados em

uma epistemologia geográfica verdadeiramente contextual, contudo, encontra-se

obstaculizada de modo absoluto, no Brasil, pelo regulamento do procedimento de

EIA/RIMA. Com efeito, tendo em vista a estrutura procedimental traçada pelas

Resoluções CONAMA n. 01/86, n. 09/87 e n. 237/97, não se permite nas fases de

screening e scoping do EIA a participação de outros atores sociais que não o

Estado, o proponente do projeto e a equipe técnica multidisciplinar que realizará o

estudo.

A restrição confere aos três atores mencionados o status de únicos pólos

ao redor dos quais comunidades geoinformacionais específicas poderão ser

constituídas. Manifesta-se, assim, por seu intermédio, de forma não eliminável pela

simples aplicação de técnicas holísticas de avaliação, o papel regulatório do direito

estatal que define, no plano de micro-relações de poder, uma política de

conhecimento concreta para o procedimento do EIA destinada à estruturação de

espaços de irresponsabilidade organizada, nos termos sugeridos por BECK (1992;

1995). Esse papel se deixa revelar sob a forma de uma espécie de banimento

informacional.

De fato, ao predeterminar o universo dos atores sociais reconhecidos

como formadores de comunidades geoinformacionais, o regulamento brasileiro do

EIA/RIMA produz conseqüências inexoráveis sobre a configuração da heurística

subjacente à rede técnico-social em que a avaliação de impactos ambientais se

desenvolverá. Em particular, por seu intermédio, os demais atores, sobretudo os

grupos sociais inseridos no contexto regional do projeto a ser avaliado, deixam de

ser considerados tanto como co-criadores da realidade geográfica a ser estudada

quanto como portadores de uma geograficidade específica, de cujo resgate depende

a ampliação da racionalidade em que se fundamentará o juízo de viabilidade

socioambiental a ser formulado na etapa decisória do procedimento em questão.

A análise empreendida no presente trabalho demonstra, portanto, que o

procedimento de EIA/RIMA estruturado pelo direito ambiental brasileiro apresenta

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175

significativas impedâncias à recuperação do espaço como chôra pela reconstrução

dialógica de paisagens culturais. Tais obstáculos manifestam-se em macroescalas

de análise, como na conformação das etapas do procedimento; em mesoescalas,

como na definição da relação contornos do projeto/inserção regional do

empreendimento e no estabelecimento da técnica de avaliação de impactos a ser

adotada; e também em microescalas, como na delimitação de comunidades

geoinformacionais nas AIAs, realizadas nos ambientes de análise/modelagem

espacial dos Sistemas de Informações Geográficas.

Essa natureza multiescalar dos obstáculos apontados amplificam seu

resultado final, impedindo por completo que Geografias vernaculares contribuam

para a concretização do princípio da precaução no âmbito do procedimento

estudado, talvez o mais relevante dentre os instrumentos de política socioambiental

de natureza preventiva. Seus contornos geojurisprudenciais, portanto, indicam

existir, no direito ambiental brasileiro, densos limites à construção de um modelo

efetivamente abrangente de formulação do juízo de viabilidade socioambiental sobre

obras ou atividades modificadoras do meio ambiente. Tais limites não apenas

restringem a possibilidade de reprodução de práticas significantes essenciais à

construção e/ou preservação da geo-identidade comunitária e à realização da

autonomia cultural de diferentes grupos sociais envolvidos direta ou indiretamente

no procedimento analisado, como também impedem que relações sociopolíticas de

controle de riscos sejam transformadas em relações de autoridade compartilhada,

hábeis a promover a construção de um sólido alicerce para a implementação de

estratégias concretas de ecodesenvolvimento, pela significação democrático-

participativa do dever de cautela em relação aos bens, recursos e valores

socioambientais.

Dentre as restrições apontadas, entretanto, assume particular relevo a

não-admissão de múltiplas comunidades geoinformacionais na composição da

heurística da avaliação a ser realizada. Dado o seu caráter absoluto, porque inscrito

de modo não contornável na demarcação regulatória exercida pelas normas das

Resoluções CONAMA n. 01/86, n. 09/87 e n. 237/97, ela torna definitivamente

irrealizável o desiderato de se promover a reconstrução dialógica de paisagens

culturais no âmbito do procedimento de EIA/RIMA, pela rígida codificação de

categorias de inclusão/exclusão das geograficidades que participarão e deixarão de

participar da configuração dos significados atribuídos ao conjunto de sistemas de

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objetos e relações (SANTOS, 1997:51) caracterizador da “realidade regional” de

inserção do projeto em licenciamento.

Em especial, a codificação apontada cria uma “política da verdade”

(FOUCAULT, 2002:23) em que se rejeita a geograficidade dos grupos sociais

afetados pelo projeto objeto do EIA como fonte de co-produção do mencionado

conjunto de sistemas de objetos e relações. O resultado dessa exclusão descortina a

possibilidade de que a avaliação a ser empreendida se assente em diagnóstico

socioambiental que desconsidera, por completo, a vivência geográfica dos referidos

grupos e a lógica de organização territorial que lhe é subjacente, eliminando-se ou

subestimando-se sensivelmente repercussões negativas do projeto e,

conseqüentemente, estruturando um juízo de viabilidade socioambiental incapaz de

fornecer bases substantivas para plena concretização do princípio da precaução.

Tal possibilidade não se apresenta como mera virtualidade, cuja efetiva

manifestação constitui hipótese remota. Com efeito, os achados extraídos de recente

investigação levada à efeito pelo Ministério Público Federal (MPF, 1998-2002a;

1998-2202b), concernente ao licenciamento prévio da Usina Hidrelétrica de Irapé

(UHE Irapé), não apenas oferecem uma ilustração exemplar do potencial de rejeição

a geograficidades alternativas inscrito e tal política de verdade, mas também

apresentam um quadro contundente de suas incisivas conseqüências

geojurisprudenciais sobre a vida de pessoas concretas.

3.3. COMPROMETIMENTOS GEOINFORMACIONAIS E DEFINIÇÃO DE

IMPACTOS SOCIOAMBIENTAIS NO LICENCIAMENTO PRÉVIO DA UHE IRAPÉ

A Usina Hidrelétrica de Irapé constitui empreendimento destinado a

explorar, para geração de eletricidade, potencial de energia hidráulica localizado no

Rio Jequitinhonha, nos Municípios de Berilo e Grão-Mogol, Estado de Minas Gerais,

nas coordenadas 16º44’17’’ de latitude sul e 42º34’29” de longitude oeste. A

responsável pelo empreendimento é a Companhia Energética de Minas Gerais

(CEMIG), titular da concessão de uso de bem público referente ao mencionado

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potencial hidráulico, conforme Contrato de Concessão celebrado com a Agência

Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) (MPF, 1998-2002a:243-355).75

Em razão de representação formulada pela Comissão de Atingidos pela

Barragem de Irapé e de informação técnica elaborada pela antropóloga MSc. Ana

Flávia Moreira Santos, analista pericial do Ofício da Tutela de Minorias, foram

instaurados, no âmbito da Procuradoria da República em Minas Gerais, os

Procedimentos Administrativos Cíveis n. 08112.000956/98-42 (MPF, 1998-2002a) e

08112.001180/98-04 (MPF, 1998-2002b), de natureza investigatória, nos moldes do

inquérito civil publico regulado pelo art. 8º, § 1º, da Lei Federal n. 7.347/85.76 O

primeiro desses inquéritos teve por finalidade averiguar a eventual ocorrência de

danos ao meio ambiente em virtude da implantação da UHE Irapé; o segundo,

verificar especificamente se a comunidade de Porto Corís,77 formada por

remanescentes de quilombo e localizada no Município de Leme do Prado, em área a

ser afetada pela hidrelétrica, foi devidamente considerada no estudo de impacto

ambiental do empreendimento em questão.

No curso da investigação, apurou-se inicialmente que a UHE Irapé teve

sua viabilidade socioambiental admitida pelo órgão ambiental competente, in casu o

Conselho Estadual de Política Ambiental (COPAM), em dezembro de 1997, com a

aprovação formal do EIA do empreendimento e a outorga da correspondente licença

ambiental prévia ao empreendedor. No procedimento de licenciamento ambiental

levado a efeito no Estado de Minas Gerais, cabe à Fundação Estadual do Meio

Ambiente (FEAM), fundação pública vinculada à Secretaria de Estado de Meio

Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (SEMAD), oferecer subsídios técnicos

para a deliberação, pelo COPAM, sobre a aprovação de estudos de impacto

ambiental de obras do setor de infra-estrutura. Ao elaborar, em 3 de dezembro de

1997, parecer técnico sobre o EIA da UHE Irapé, a mencionada Fundação concluiu

sua análise nos seguintes termos:

75 Ver mapas de localização e indicação da área atingida pelo empreendimento ao final da seção. 76 Dispõe o art. 8º, § 1º, da Lei Federal n. 7.347/85: “O Ministério Público poderá instaurar, sob sua presidência, inquérito civil, ou requisitar, de qualquer organismo público ou particular, certidões, informações, exames ou perícias, no prazo que assinalar, o qual não poderá ser inferior a 10 (dez) dias úteis.” 77 A grafia do nome designativo da comunidade em questão utilizada no presente trabalho (Corís) acompanha aquela empregada nos estudos e laudos antropológicos elaborados pela Fundação Cultural Palmares (FCP, 1997; 1998) e pelo Ministério Público Federal (SANTOS, 2001; SANTOS, GALIZONI & RIBEIRO, 2002), nos quais foi adotada em respeito às recomendações prevalecentes, em tais casos, para realização de estudos etnográficos.

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Os impactos sobre a região serão significativos, mas de maneira geral poderão ser minimizados ou compensados através da implementação de medidas adequadas. Observa-se, entretanto, que o EIA posterga alguns estudos próprios da fase de viabilidade para a próxima fase de licenciamento; à exceção da indicação de terras para reassentamento, isto não vem a comprometer a viabilidade ambiental do projeto, mas, por outro lado, também, não se otimiza, no presente momento, essa viabilidade em termos de se reduzir ao máximo possível os prejuízos ambientais. As recomendações apresentadas no anexo deste parecer propõem a complementação de alguns diagnósticos e sugerem a incorporação de algumas orientações em estudos complementares e medidas mitigadoras/compensatórias propostas pelo próprio empreendedor. Face ao exposto, é parecer da equipe técnica da FEAM seja concedida pela Câmara de Bacias Hidrográficas do COPAM a Licença Prévia para a Usina Hidrelétrica de Irapé, desde que observadas as condicionantes em anexo deste Parecer. (FEAM, 1997:56).

Em virtude de o parecer técnico em consideração indicar que no

procedimento de licenciamento prévio não se havia perseguido uma definição

otimizada da viabilidade socioambiental da UHE Irapé, o Ministério Público Federal

requisitou à CEMIG cópia do EIA do empreendimento e dos demais estudos

ambientais que subsidiaram a concessão da licença ambiental prévia. Entre os

documentos encaminhados pelo empreendedor, encontrava-se um estudo (CEMIG,

1997), apresentado aos órgãos ambientais, por solicitação da Fundação Estadual do

Meio Ambiente (FEAM, 1997:10), com o propósito de definir os contornos da

etnicidade da comunidade de Porto Corís. Neste, a equipe de consultores contratada

pelo empreendedor concluiu que a mencionada comunidade negra não constituía

remanescente de quilombo, nos seguintes termos:

Apesar de todas as condições favoráveis para a criação de quilombos na vasta região que circunda a comunidade de Porto dos Cori [rectius Porto Corís], esta não se enquadra na condição de ‘remanescente’ (de quilombo) da maneira como estabelece o artigo 68 da [sic] ADCT [Ato das Disposições Constitucionais Transitórias]. A comunidade não surgiu de um quilombo anti-escravista, mas de um processo (legal) de aquisição de terras, seguida de assentamento do proprietário (Germano Coelho) com seus descendentes.

Não se pode deixar de observar que o documento apresentado pelo

empreendedor foi elaborado em dezembro de 1997, às vésperas da outorga da

licença prévia ao empreendimento, portanto, após a realização, em 22 de junho de

1997, da audiência pública sobre o EIA da UHE Irapé, na localidade de Acauã,

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Município de Leme do Prado (FEAM, 1997). Na oportunidade, a comunidade de

Porto Corís já reivindicava que seu status de grupo étnico diferenciado fosse levado

em consideração no procedimento de avaliação de impactos ambientais em curso,

como demonstra o relatório elaborado pela Fundação Cultural Palmares (FCP)78, em

novembro de 1997, com o propósito de promover a identificação da mencionada

comunidade negra (FCP, 1997: 59-60):

O início do processo de mobilização da comunidade negra rural de Porto Corís deu-se com a formação da Comissão de Atingidos pelo projeto de construção da barragem da Usina Hidrelétrica de Irapé, no Rio Jequitinhonha, Nordeste de Minas Gerais, que será implementado pela CEMIG (Companhia Energética de Minas Gerais). As águas dessa barragem, caso seja construída, atingirão terras de sete municípios (Botumirim, Berilo, Cristália, Grão Mogol, Josenópolis, Leme do Prado e Turmalina) e irá afetar um total de 47 comunidades existentes à margem do Rio Jequitinhonha, dentre elas a comunidade negra rural de Porto Corís, que será uma das principais atingidas. A CEMIG realizou um estudo de impacto ambiental (EIA-RIMA) entre os anos de 1991 e 1992, por meio da aplicação de questionários fechados ao entrevistar vários chefes das famílias que serão atingidas. A pesquisa da CEMIG tratou essas comunidades sem considerar a especificidade de cada uma e não registrou a situação absolutamente singular de Porto Corís: comunidade de exclusividade negra, casamentos endogâmicos, em que seus membros estão referidos à uma procedência comum e à memória social da resistência à escravidão através de relatos de fuga de seus antepassados compartilhados no presente pelo conjunto de moradores. Na Audiência Pública realizada em Acauã, município de Leme do Prado, em Minas Gerais, no dia 22 de junho de 1997, a FCP-MinC (Fundação Cultural Palmares – Ministério da Cultura) esteve presente por solicitação da comunidade negra rural de Porto Corís, no cumprimento aos seus objetivos constitucionais de garantir o pleno exercício dos direitos culturais das populações afro-brasileiras, especialmente no que concerne à aplicação do artigo 68 do ADCT/CF/88 [Ato das Disposições Constitucionais Transitórias/Constituição da República], que reconhece às comunidades remanescentes de quilombos que estejam ocupando suas terras o direito de titulação definitiva. A indefinição das partes presentes na Audiência Pública, a partir dos estudos já elaborados sobre os direitos constitucionais da comunidade de Porto Corís, levou a Presidência da Fundação Cultural Palmares a solicitar novo parecer técnico conclusivo realizado por especialistas de sua indicação para elaborar relatório de identificação da comunidade negra rural de Porto Corís de acordo com o preceito constitucional, acompanhado de memorial descritivo sobre a área ocupada por esta

78 A Fundação Cultural Palmares, fundação pública vinculada ao Ministério da Cultura (MinC), é o órgão federal a quem cabe promover estudos de identificação étnico-cultural e o reconhecimento territorial das áreas ocupadas pelas comunidades remanescentes de quilombos.

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comunidade negra rural. O relatório de identificação acompanhado do memorial descritivo pela FCP-MinC está sendo encaminhado à FEAM/COPAM (Fundação Estadual do Meio Ambiente e Conselho Estadual de Política Ambiental, respectivamente) para ser incorporado na íntegra e sem prejuízo do seu conteúdo, no parecer técnico que este órgão irá emitir em julgamento do EIA-RIMA da UHE (Usina Hidrelétrica) de Irapé.

Com esteio nesse relatório, a Diretoria de Estudos, Pesquisas e Projetos

da Fundação Cultural Palmares elaborou parecer favorável ao reconhecimento da

Comunidade Negra Rural de Porto Corís como remanescente de quilombo e à

delimitação de seu território tradicional. Aprovado por despacho da Presidência do

órgão e publicado no Diário Oficial da União de 26 de janeiro de 1998, o parecer em

tela destaca o sentido de lugar atribuído pelos Corís a seu território como resultado

de um conjunto peculiar de práticas sociais significantes, as quais revelam um

vínculo intrínseco entre a geograficidade do grupo e a construção de sua identidade

quilombola:

Toda a comunidade de Porto Corís identifica-se e é identificada através dos laços de parentesco que estabelecem entre si, como descendentes do ex-escravo Germano Alves Coelho. Este ancestral comum que fora casado três vezes, constitui o núcleo fundamental pelo qual os descendentes das três mulheres de Germano orientam-se, identificam-se, estabelecem relações de parentesco e afinidade, laços de solidariedade no trabalho comunitário dos mutirões e na partilha de bens comuns, como o reservatório de água. O sentido de comunidade que resulta destes arranjos patrimoniais internos protege a posse comunal das terras e fortalece as relações solidárias entre os parentes... Outro aspecto relevante no processo de identificação e reconhecimento são os discursos de liberdade e de contestação contra a escravidão que animam os exercícios de memória sobre o passado, pois são justamente os que fundamentam a antigüidade da posse pela comunidade de Porto Corís. Relatam os mais velhos que Porto Corís sempre foi um lugar de homens livres. A mãe de Germano, sabendo de antemão que seria vendida a outro senhor, planejou sua fuga junto com os filhos, vindo a viver no que é hoje Porto Corís. Contam que Germano foi homem trabalhador. Trabalhou muito nas épocas de plantio, aos domingos e dias santos, fazendo roças, vendendo o que colhia até juntar dinheiro suficiente para comprar as terras onde viviam... Os Corís definem sua identidade étnica, num sentido positivo, levando em consideração as dimensões afetivas. Partem de valores intrínsecos aos seus próprios modos de vida em torno da posse e uso comum da terra, que segundo relatam, foram transmitidos por seus pais, avós, bisavós, etc. As terras que ocupam adquirem um significado muito mais afetivo do que econômico e, segundo eles,

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não tem dinheiro que pague o seu valor, porque ‘quem deixou [os antepassados], não deixa mais’... (FCP, 1998:122).

Tendo em vista a dissonância entre os estudos da CEMIG e da FCP, o

Ministério Público Federal solicitou à antropóloga Ana Flávia Moreira Santos, que

realizasse detalhada avaliação do EIA, do RIMA e dos demais estudos ambientais

que subsidiaram a concessão da licença ambiental prévia ao empreendimento, com

o objetivo de avaliar o tratamento efetivamente conferido à referida comunidade

negra, no âmbito do procedimento deflagrado para se determinar a viabilidadde

socioambiental da UHE Irapé.

O parecer de SANTOS (2001) coteja inicialmente o relatório da FCP com

o EIA da UHE Irapé (CEMIG, 1993), não encontrando neste último qualquer

apreciação da existência de um território comum portador de referências à memória

e à identidade da comunidade negra em questão, nem traços descritivos do sentido

de lugar coletivamente atribuído pelos Corís a seu território comunitário, sentido que,

conforme já destacado, pode ser considerado como um dos elementos mais

marcantes na construção da geo-identidade e, por via de conseqüência, na

constituição da paisagem cultural de um grupo social:

As análises e diagnósticos necessários à consolidação do Estudo de Impacto Ambiental e respectivo Relatório de Impacto Ambiental (EIA/RIMA) do empreendimento de Irapé foram iniciados no ano de 1988 [...]. No que se refere especificamente aos estudos relativos ao Meio Social, Econômico e Cultural, informa-se que, além do levantamento de dados bibliográficos, documentais e censitários, foram realizadas quatro campanhas de campo (em outubro de 91 e abril de 92), durante as quais foram realizadas entrevistas, observações de campo e aplicados 593 questionários. As campanhas teriam sido precedidas por reuniões com as comunidades envolvidas... Como as demais comunidades diretamente atingidas pelo empreendimento, Porto Corís fez parte do universo social, econômico e cultural então pesquisado. No entanto, as análises consubstanciadas sobre esse universo ao longo do EIA não apresentam nenhuma informação específica ou individualizada sobre Porto Corís, permanecendo a comunidade diluída no conjunto de dados quantitativos referentes às famílias de pequenos produtores rurais a serem afetadas pela construção de Irapé. (SANTOS, 2001:121).

Ainda segundo SANTOS (2001:144), contudo, não foram apenas a

identidade e a territorialidade específicas da comunidade de Porto Corís que

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deixaram de ser apreciadas no EIA da UHE Irapé. Também não se encontram no

estudo indicativos dos elementos que compõem as estratégias específicas de

reprodução social de todas as outras comunidades rurais localizadas na área

afetada pelo empreendimento, as quais, à semelhança da Comunidade de Porto

Corís, desenvolvem uma intrincada rede de complexos domínios de organização

territorial, conhecidos regionalmente pela expressão “terras no bolo”.

Caracterizadas fundamentalmente pelas relações singulares que

desenvolvem com determinado lugar, apropriado como espaço de vivência coletiva,

as comunidades que se estruturam com esteio nesses domínios territoriais coletivos

foram objeto de estudo etnográfico específico, elaborado por GALIZONI (2000).

Posteriormente ao trabalho de SANTOS (2001), sua configuração, no âmbito

específico das comunidades atingidas pela UHE Irapé, também foi descrita em

relatório técnico elaborado por SANTOS, GALIZONI & RIBEIRO (2002). A

consistência geográfica desses domínios territoriais estrutura-se, sobretudo, em

paisagens culturais alicerçadas em sistemas socioambientais designados pelos

autores apontados como sistemas grota-chapada.79 Nesses,

cada grota, com seus recursos, nascentes de águas e chapadas circundantes abriga uma rede familiar de domínio da terra e uma história compartilhada entre determinado grupo de parentesco, denominado comunidade rural, que geralmente é conhecida pelo mesmo nome do córrego que a irriga ou pelo sobrenome da família majoritária... (SANTOS, GALIZONI RIBEIRO, 2002:700).

O ponto nodal entre a geograficidade e a juridicidade das comunidades

estudadas repousa, assim, em um conjunto de normas que regulam o acesso aos

recursos ambientais existentes nos diferentes territórios comunitários, normas que

são especificadas em redes complexas de parentesco. Dessa maneira, as

comunidades rurais em consideração podem ser designadas adequadamente como

comunidades de parentesco, compreendendo várias famílias nucleares

descendentes de um mesmo ancestral – o fundador do grupo, assim reconhecido

como o membro que, historicamente, veio a promover a ocupação da terra,

posteriormente transformada em território comunitário (GALIZONI, 2000:51). As

79 As grotas correspondem aos vales e às encostas úmidas e férteis próximas a córregos e nascentes, e as chapadas representam grandes extensões de terras planas e elevadas, pouco férteis e caracterizadas pelas esparsas fontes de água, as quais, em seu conjunto, compõem os traços fisiográficos marcantes das regiões do Alto e Médio Jequitinhonha.

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relações de mediação do acesso do grupo aos recursos próprios do território

comunitário constituem, por conseguinte, relações de parentesco, razão por que as

paisagens culturais dessas comunidades têm em seu centro um conjunto de objetos

e relações geográficas que configuram a terra por elas ocupadas, nas palavras de

SANTOS (2001:193), “como terra de origem da família, patrimônio legado aos

descendentes do primeiro possuidor, constituindo, estes, parentes e donos em

comum da terra herdada”. Não por outro motivo, o parecer apresentado pela autora

ao Ministério Público Federal destaca que:

os laços de consangüinidade com o dono original são fundamentais no acesso efetivo a uma terra específica, constituindo, a memória e genealogia, saberes cultivados em todas as comunidades. Esses laços, estabelecidos tanto pelo lado materno quanto paterno, são duráveis e permanecem mesmo na ausência do herdeiro, de modo que os que migram mantêm, idealmente, o direito à participação no uso da terra familiar, e portanto a possibilidade de retorno. Os casamentos ocorrem preferencialmente dentro dos limites das comunidades: casar-se com parente é o modelo ideal.

A juridicidade e a geograficidade das comunidades atingidas pela UHE

Irapé, entretanto, definem-se mutuamente, compondo aspectos inseparáveis de

suas paisagens culturais e conferindo-lhes um sentido fortemente substantivo. Com

efeito, se, por um lado, as relações ampliadas de parentesco que caracterizam cada

comunidade constituem critério delimitador do território comum, por outro, os

aspectos característicos à distribuição dos bens, valores e recursos ambientais na

região do Alto Jequitinhonha também imprimem marcas indeléveis à vivência

geográfica dos grupos sociais em questão, criando tanto as bases de uma

ordenação dos espaços naturais quanto um conjunto de saberes associados a essa

organização territorial que otimizam as potencialidades dos recursos ambientais à

sua disposição. De fato, como as peculiaridades do sistema grota-chapada sugerem

prescrições específicas sobre a apropriação desses recursos, a configuração dos

modos de posse da terra acaba por emergir como expressão de relações de uso e

trabalho fundadas nas gradações do relevo, na variabilidade da fertilidade do solo,

na disponibilidade hídrica e na diversificação da disposição dos recursos ambientais

especificada pelos fatores ambientais anteriormente referidos. Assim,

como o domínio do ambiente gerava ou impunha determinadas prescrições no que respeita à exploração agrícola, as culturas e

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grotas receberam utilização perene com agricultura de pousio, diferentemente dos campos, carrascos e chapadas. As terras foram sendo apropriadas de acordo com a utilização: privadas e rotativas nas manchas mais férteis de cultura - nas grotas - comunitárias e extrativistas nas glebas de campo e carrasco, nas chapadas. (GALIZONI, 2000: 32)

Nesse contexto, a interação entre geograficidade e juridicidade dos

grupos sociais em questão não se limita à estruturação de um regime de produção

agrícola, mas assume um sentido amplo, para abarcar, a partir de nexos cognitivos,

normativos e expressivos entrelaçados, “toda uma ordenação de uso do ambiente,

articulando-se com outras atividades, como a extração de recursos naturais,

designada localmente de recursagem, e o pastoreio, que ocorre de forma

‘extrativista’, o gado sendo criado na solta” (SANTOS, 2001:197-198, cf. tb.

GALIZONI, 2000)80. Em conseqüência, os sistemas grota-chapada, apesar de

configurados de modo específico pelas diferentes comunidades, apresentam duas

características centrais comuns: a estreita dependência, para sua reprodução social,

de delicados regimes consuetudinários de acesso aos recursos naturais e a

capacidade de acumulação de saberes tradicionais voltados para a conservação

desses mesmos recursos. Revela-se, assim, na constituição de cada comunidade,

um entrelaçamento profundo entre nexos cognitivos, normativos e expressivos de

vivência espacial que formam Geografias vernaculares particularmente

caracterizadas por esferas normativas construídas e entrelaçadas em contextos

socioespaciais específicos. Não por outra razão, nessas comunidades rurais,

os recursos naturais e a terra não são objeto de apropriação privada e contínua, pois apenas os capões e parte dos carrascos – terras de encostas –, apresentam serventia mais imediata para as lavouras. Campos e chapadas são usados para criação de animais, coleta e extração; historicamente foram, e continuam ainda sendo em muitos locais, áreas de apropriação comum, coletiva ou livre, submetidas a

80 Observa SANTOS (2001:198), com suporte nos dados levantados por GALIZONI (2000:26-27) que a atividade de recursagem, realizada sobremaneira nas áreas de chapada, assume papel de relevo na reprodução social das comunidades atingidas pela UHE Irapé. Nesse sentido, “no plano alimentar, a caça e a pesca, assim como a enorme variedade de folhas, frutos, raízes e palmitos coletados complementam e diversificam a dieta das famílias. As frutas, além de serem consumidas no seu estado natural, servem também de matéria prima para doces, compotas, e óleo comestível. Sementes, cascas e folhas de uma gama variada de plantas são usadas para fabricação de remédios. A matéria prima necessária para a construção das casas – barros para telhas e adobes; argila para pintura, fogões e fornos, madeiras para travamento do telhado, portas e janelas –, e fabricação de apetrechos domésticos e de trabalho – embira para fabricação de cordas, taquara para cestos e jacás, madeira para cangalhas – também é retirada da natureza”.

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um controle difuso, diferente do domínio mais pleno que se manifesta sobre as terras dos capões e carrascos. Como as áreas de grotas e terras para cultivos as terras legítimas são parcela menor do total dos terrenos (estima-se que representem no máximo 20% da superfície total), as comunidades formularam um conjunto rigoroso de normas de uso para estas terras. Áreas para lavoura são cuidadosamente escolhidas, a criação de gado é regulamentada e às vezes proibida na proximidade das moradias por prejudicar plantios e terrenos em descanso. Algumas comunidades regulam o acesso às matas comuns para solta de criações ou coleta e estabelecem restrições ao uso das águas, à prática de garimpo e ao desmate de terras comuns [...]. O regime de terras construído sobre e a partir desses usos dados a distintos ambientes define territórios coletivos, no interior dos quais glebas de uso privado áreas de lavoura se articulam as glebas de uso comunitário áreas de extração de recursos naturais. (SANTOS, GALIZONI & RIBEIRO, 2002:701)

A existência das “terras no bolo” associadas e integradas aos “complexos

grota-chapada” demonstra existirem na área a ser afetada pela UHE Irapé, a par da

Comunidade Remanescente de Quilombo de Porto Corís, outros grupos dotados de

geograficidades específicas e diferenciadas, as quais só podem ser resgatadas se,

assumido o espaço como chôra, o procedimento de EIA/RIMA do empreendimento

seja estruturado sob bases epistêmicas abrangentes. No plano de análise da

“política de verdade” e da heurística subjacente ao procedimento, tal estrutura

importa necessariamente no reconhecimento de que os grupos em questão

compõem comunidades geoinformacionais de extrema relevância, pois sua

geograficidade encontra-se em íntima relação com a produção do vínculos verticais

e horizontais da região de inserção do projeto sujeito a licenciamento prévio. Em

outros termos, somente se a avaliação de impactos ambientais da UHE Irapé se

encontrar orientada pelo propósito de promover a reconstrução dialógica das

paisagens culturais dessas comunidades, a decisão adotada ao final do

procedimento de EIA/RIMA pode ser considerada como autêntica concretização do

princípio da precaução, estabelecendo diretrizes que efetivamente permitam que a

medida de política ambiental nela codificada assuma o status de verdadeira

concretização das estratégias de ecodesenvolvimento.

O estudo elaborado por SANTOS (2001), contudo, conclui que as

paisagens culturais das comunidades afetadas pelo empreendimento não foram

adequadamente levadas em consideração no processo de elaboração, análise e

aprovação do EIA/RIMA da UHE Irapé. Tal fato tem origem, fundamentalmente, em

dois comprometimentos conceituais que, ao se entrelaçarem, fornecem o esteio para

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a definição das categorias primárias de análise do “meio socioeconômico” realizadas

pelo empreendedor, pela equipe técnica multidisciplinar responsável pelo EIA e

pelos órgãos ambientais, na qualidade de únicas comunidades geoinformacionais

que puderam, nos termos da estrutura geojurisprudencial do procedimento, interferir

na definição de sua heurística.

O primeiro desses comprometimentos consiste na delimitação da “ADA”,

área “diretamente” afetada pela UHE Irapé. Nos estudos realizados pela CEMIG

(1993), a ADA corresponde à área inundada pelo reservatório do empreendimento, a

qual abrangerá, tão-somente, os vales e encostas que integram o componente grota

do sistema grota-chapada. A essa delimitação associa-se, como segundo

comprometimento conceitual, a escolha das categorias “estabelecimento

agropecuário” e “unidade de produção familiar”, como objetos geográficos

primordiais para análise do “meio socioeconômico”. Supostamente extraídas da

própria realidade regional observada, essas categorias são concebidas como reflexo

fidedigno dos parâmetros elementares de organização da estrutura socioeconômica

efetivamente existente na região de inserção do empreendimento. Nesse sentido,

SANTOS (2001:163-164) observa que,

em termos espaciais, a Área Diretamente Afetada [pela UHE Irapé] é uma divisão arbitrária do ponto de vista das territorialidades locais, tendo sido definida exclusivamente a partir da obra, sem levar em consideração os limites das comunidades e seus territórios... Por outro lado, a arbitrariedade implícita à noção de Área Diretamente Afetada reproduz a arbitrariedade da eleição exclusiva da unidade produtiva familiar e do princípio da propriedade privada para a análise das complexas relações entre a população camponesa e a terra na região em apreço, abrindo a possibilidade deste recorte espacial ter influído decisivamente na desconsideração dos sistemas locais de apossamento que subordinam e englobam a apropriação privada da terra. A ADA é constituída, como descreve o Estudo de Impacto Ambiental, de encostas e vales, espaços que, pela maior umidade e disponibilidade de água, são permanentemente ocupados pela população local com habitação e lavoura. As chapadas, áreas mais elevadas, não serão atingidas pelo reservatório; por conseguinte, foram excluídas da delimitação da Área em tela. A ausência de habitação permanente ou do investimento na agricultura, entretanto, não caracteriza as chapadas como espaços não utilizados pelos moradores das grotas. GALIZONI [2000] não só descreve os múltiplos usos das chapadas, fundamentais na extração de uma variada gama de produtos e para a criação de gado, como demonstra a articulação dessas atividades com a lavoura, na conformação de um único sistema produtivo, construído sobre e a partir do sistema grota-chapada.

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187

A conseqüência imediata das escolhas geoinformacionais acima

apontadas consiste em modificações significativas, mas não reconhecidas, na

vivência geográfica dos grupos afetados pela UHE Irapé, provocadas pelo próprio

procedimento de EIA/RIMA. SANTOS (2001:221-223) as sistematizam em três

grupos fundamentais:

a) desarticulação dos grupos locais que terão seus territórios afetados

pelo empreendimento e a conseqüente impossibilidade de reposição das condições

para sua reprodução sociocultural como tais;

b) impossibilidade de manutenção das condições de reprodução

sociocultural pelas famílias nucleares, integrantes dos grupos referidos no item

anterior, que perderão sua base de sustentabilidade socioambiental;

c) supressão de elementos importantes da juridicidade que se inscreve na

territorialidade das comunidades afetadas pelo empreendimento, com o

aprofundamento de tensões existentes e geração de conflitos sociais de disputa pela

posse da terra entre seus membros.

A magnitude desses efeitos pode ser vislumbrada quando se compreende

que os grupos sociais em consideração apresentam peculiar vulnerabilidade a

interferências em seus nexos de vivência geográfica, como atestam SANTOS,

GALIZONI E RIBEIRO (2002:706):

Dadas suas características específicas de associação a um determinado meio e recursos, esta população é extremamente vulnerável às alterações em seu modo de vida e equilíbrio com o meio, e seu deslocamento daquele meio compromete seriamente suas condições de reprodução. Muito embora possam existir muitas formas de sobreviver no rural, de produzir a partir de recursos naturais, cada população tradicional constrói um repertório de sustentação que lhe é específico. Este é combinado a um meio, a determinadas práticas familiares, culturais, fundiárias que se reproduzem precisamente naquele ambiente e naquelas condições, e não em outro.

Segundo os mesmos autores, entretanto, as interferências apontadas não

se apresentavam, ao início do procedimento de EIA/RIMA da UHE Irapé, como

inexoráveis, mas sua prevenção ou, pelo menos, minoração exigiria que, no seu

desenrolar, a reconstrução das paisagens culturais das comunidades atingidas

pudesse ser realizada pela implementação de um ambiente de avaliação de

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impactos ambientais que assegurasse o direito dos grupos sociais em referência de

se manifestarem “em todos os temas relacionados às suas condições de vida”. É

dizer, em um ambiente que fizesse desses grupos co-partícipes na construção das

bases epistêmicas em que se desenvolveria a AIA em questão. Como, todavia, tal

não ocorreu, ressaltam os autores que o processo de comprometimento da

integridade das relações socioambientais mais importantes das comunidades

atingidas passou a se desenhar como irreversível, ameaçando sua própria existência

futura como grupos dotados de específica geograficidade e peculiar autonomia

cultural (SANTOS, GALIZONI E RIBEIRO (2002:732-733).

Em razão dessa grave constatação, o Ministério Público Federal, com

fundamento no art. 129, III, da Constituição da República, art. 6º, VII, b e c, e XIV da

Lei Complementar n. 75/93, e art. 1º, I e IV da Lei Federal n. 7.347/85 ajuizou,

perante a 21ª Vara Federal da Seção Judiciária do Estado de Minas Gerais, ação

civil pública com pedido de liminar, contra a Agência Nacional de Energia Elétrica

(ANEEL), o Estado de Minas Gerais, a FEAM e a CEMIG. Na ação, pleiteou o

Parquet Federal, substancialmente, a suspensão do procedimento de licenciamento

ambiental da UHE Irapé e a anulação do ato de aprovação do EIA/RIMA do

empreendimento, para que nova avaliação de impactos ambientais pudesse ser

realizada, levando em consideração os modos de fazer e viver, ou seja, a

geograficidade das comunidades atingidas.

Embora o pedido liminar (tutela de urgência) para imediata suspensão do

licenciamento da UHE Irapé tenha sido negado tanto pelo Juízo Federal em que a

ação foi proposta quanto pelo Tribunal Regional Federal da Primeira Região, o

Conselho Estadual de Política Ambiental (COPAM) acabou por condicionar a licença

de implantação do empreendimento à celebração pelo empreendedor de um termo

de acordo com o Ministério Público Federal que viesse a promover a salvaguarda

dos interesses da população atingida.

Iniciou-se, dessa maneira, um longo e intenso processo de negociação,

em que o Parquet Federal, não obstante exercer o papel de mediador, procurou

estabelecer bases para que o debate estabelecido entre os diversos atores

envolvidos (atingidos, empreendedor, equipe de técnicos e assessores, e órgãos

ambientais) incorporasse a racionalidade inscrita na geograficidade das

comunidades apontadas. Ao final, o acordo alcançado acabou por contemplar, entre

outras medidas, a elaboração de um programa de reassentamento da população

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atingida que, não apenas deverá levar em consideração seus específicos quadros

coletivos de vivência geográfica, mas também será projetado com sua efetiva

participação.

Desborda dos objetivos do presente trabalho avaliar se o ajuste em

questão apresenta-se apto a atenuar significativamente os efeitos da política de

verdade subjacente à realização do EIA/RIMA da UHE Irapé. No entanto, não se

pode deixar de observar que a simples necessidade da instauração de um fórum de

discussão dos efeitos do empreendimento à margem das etapas em que se realizou

a avaliação de seus impactos socioambientais constitui índice irrefragável da

instabilidade procedimental desse mesmo EIA/RIMA. Em outras palavras, no âmbito

do procedimento instaurado para se analisar a viabilidade socioambiental da UHE

Irapé, a heurística estabelecida para compreensão de seus efeitos, por não se

construir a partir da reconstrução dialógica das paisagens culturais dos atores

envolvidos, não se mostrou adequada para permitir uma autêntica concretização do

princípio da precaução, pela incorporação da geograficidade de todos os atores

envolvidos.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

É preciso não esquecer nada: nem a torneira aberta nem o fogo aceso, nem o sorriso para os infelizes nem a oração de cada instante. É preciso não esquecer de ver a nova borboleta nem o céu de sempre O que é preciso é esquecer o nosso rosto, o nosso nome, o som da nossa voz, o ritmo do nosso pulso. O que é preciso esquecer é o dia carregado de atos, a idéia de recompensa e de glória. O que é preciso é ser como se já não fossemos, vigiados pelos próprios olhos severos conosco, pois o resto não nos pertence.81

Com esses versos, Cecília Meireles, manejando, com a maestria que lhe

é peculiar, imagens líricas de extrema beleza e força, constrói uma alegoria que, ao

se contrapor à desoladora situação dos duelistas de Goya, apresentada na

introdução deste trabalho, aponta com clareza para rumos seguros, pelos quais se

pode chegar a pontos de convergência entre a Geografia e o Direito, essas duas

teimosas disciplinas que insistiram, até recentemente, em percorrer caminhos bem

diferentes. Um desses lugares de intersecção e, por que não dizer, de transgressão

disciplinar não é outro, senão a natureza simultaneamente epistêmica e deôntica da

relevância que assume o resgate do espaço como chôra por intermédio da

reconstrução de paisagens culturais. Por expor a conexão íntima entre

geograficidade e juridicidade, esse processo sempre aberto, nunca acabado, em que

antigos fenômenos são vistos, a cada novo dia, sob uma luz diferente, enriquece o

potencial explicativo da Geografia acadêmica e amplia o potencial emancipatório do

Direito, pelo seu emprego e entrelaçamento no desenvolvimento de um projeto

unificado de reflexão, radicado no reconhecimento de que a “realidade do mundo” só

se manifesta de modo fidedigno “quando as coisas podem ser vistas por muitas

pessoas, numa variedade de aspectos, sem mudar de identidade, de sorte que os

que estão à sua volta sabem que vêem o mesmo na mais completa diversidade”

(ARENDT, 2002:67).

81 MEIRELES (1939/2001).

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É certo que não se pode subestimar a dimensão da tarefa nem das

dificuldades que ainda se interpõem à construção de uma autêntica ponte

transdisciplinar entre os dois campos. No presente trabalho, pretendeu-se, apenas,

indicar os contornos mais gerais que podem ser assumidos como moldura teórico-

metodológica da análise geojurisprudencial, contornos que se definem a partir do

reconhecimento de uma profunda interconexão entre os fatores de produção do

espaço e do direito, facilitado, de um lado, pelas perspectivas abertas ao estudo da

paisagem pela Geografia Cultural pós-funcionalista e, de outro, pela recente

emergência, na Sociologia Jurídica, de uma concepção do direito em que o

fenômeno jurídico não se desconecta dos múltiplos lugares e espaços da vida social.

Para que o esboço dessa nova perspectiva geojurisprudencial pudesse,

ao menos, revelar sua embrionária validez, insinuando-se como um campo

merecedor de atenção e esforços de desenvolvimento futuros, a explicitação dos

limites impostos à concretização do princípio da precaução no regulamento brasileiro

do procedimento de EIA/RIMA, em particular o desnudamento das incontornáveis

impedâncias nele existentes à participação irrestrita de comunidades

geoinformacionais não associadas ao eixo Estado – empreendedor – equipe técnica

multidisciplinar na formação de suas bases epistêmicas, foi realizada com o

propósito de indicar seu potencial analítico. Como qualquer empresa dessa estirpe,

ela se deixou guiar por um espírito acentuadamente exploratório, bem ao gosto da

ansiedade naturalmente associada à pergunta pelo onde, esse questionamento

presente como ponto fulcral de toda atividade geográfica, desde seus primeiros

tempos.

De fato, a Geografia, para além de um campo do conhecimento, sempre

se apresentou, no dizer de MARSH (1864/1965), como uma arte cujos traços se

desenham a partir das profundezas do espírito humano, impulsionando a vida

cotidiana do homem, de modo a lhe permitir estabelecer laços mais ou menos

intensos com o mundo, bem como o instigando a se perguntar onde ocorrem os

fenômenos que compõem a realidade. Essa arte de reconhecer sua própria essência

espacial transforma a pergunta pelo onde em uma questão existencial,

transcendente da mera busca pela localização de fenômenos e objetos

indispensáveis para sobrevivência e reprodução social de indivíduos e comunidades.

Pode-se assim dizer que o espírito geográfico constitui móvel

fundamental de toda atividade humana de apreensão sensível e intelectiva do

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mundo, inculcando-lhe “uma justa desconfiança das simples etiquetas e aparências”

e lhe emprestando um sentido crítico do valor variável de tudo quanto venha a ser

considerado como parte integrante de uma dada realidade espaço-temporal

(BRUNHES, 1962). Desse modo, em seu desenvolvimento, todo um processo de

construção simbólica se realiza, conferindo aos lugares valores socioambientais

específicos.

Em outras palavras, o espírito geográfico instila-se nos mais singelos

atos que compõem o mosaico de nossas vidas, de nosso devir situado não apenas

histórica, mas também geograficamente, e acaba por deixar suas marcas na

incessante inquietude com que confeccionamos paisagens culturais peculiares,

transformando o mundo em algo vivido e experienciado. Dessa inquietude própria da

vivência geográfica, brota uma inafastável ansiedade que impulsiona o homem a

sempre buscar uma nova terrae incognitae, em uma procura cuja (in)satisfação

importa em se dar razão à advertência expressa na inscrição que adorna um dos

retábulos da Catedral de Toledo, Espanha: “¡Caminantes! No hay camino, hay que

caminar.”82

O presente trabalho, espera-se, constitui fruto dessa inafastável exigência

posta pela atividade geográfica de se caminhar, quando não há caminho. Uma

necessidade que assume um caráter peculiarmente premente devido ao fato de que

a emergência de uma perspectiva geojurisprudencial para abordagem da relação

entre Geografia e Direito tem raízes profundas na inextricável associação de sua

relevância epistemológica ao imperativo deontológico de se determinar, em

contextos tão concretos como o licenciamento ambiental da UHE Irapé, “quem pode

falar e quem deve ficar calado” sobre a relevância das questões formuladas, o

conteúdo das respostas dadas e a qualidade de vida nestas últimas delineada.

Temas esses que, por completo, o mesmo imperativo sugere que só podem ser

decididos “se cada um puder participar no debate e ser induzido a emitir a sua

opinião sobre o assunto” (FEYERABEND, 1991:357-358).

A primazia da democracia como fundamento comum do conhecimento

geográfico e da plena concretização do princípio da precaução põe, desse modo, a

reconstrução de paisagens culturais, realizada a partir do resgate de geograficidades

esquecidas ou negadas, como aquelas manifestadas pelas comunidades rurais que

82 Cf. SIMMONS (1993:143).

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serão atingidas pela referida hidrelétrica, no centro de um processo que pretende

estruturar novas bases para a interlocução entre geógrafos e juristas. Rascunhado

com auxílio de uma gramática ainda em construção, esse novo diálogo

geojurisprudencial, contemporaneamente, permanece mais como sugestão do que

como praxis efetiva.

Exemplos como aquele utilizado para ilustrar o presente trabalho,

contudo, demonstram que sua instauração, por vincular a viabilidade da Geografia

acadêmica como atividade dotada de pleno significado social, ao efetivo exercício da

cidadania socioambiental, constitui tarefa prioritária, imprescindível para a

simultânea descoberta e proteção de novas paisagens, a partir de seu

reconhecimento nas assimetrias existentes entre o que cremos, sentimos ou

fazemos e aquilo que os outros crêem, sentem ou fazem nos seus específicos

processos de interação com o mundo. Difícil tarefa? Sem dúvida, mas

imprescindível, pois, caso se pretenda, em termos autenticamente

geojurisprudenciais, que todos tenham “direito ao meio ambiente ecologicamente

equilibrado”,83 é preciso, concreta e efetivamente, na formulação e implementação

de políticas socioambientais, não esquecer nada, nem ninguém.

83 Como proclama o artigo 225 da Constituição brasileira, nas esteira dos principais tratados de direito internacional do meio ambiente.

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