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Universidade Estadual de Campinas Faculdade Educao

Tese de Doutorado

A formao Estatstica e Pedaggica do Professor de Matemtica em Comunidades de Prtica

Admur Severino Pamplona

Campinas SP 2009

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Admur Severino Pamplona

Tese de Doutorado

A formao Estatstica e Pedaggica do Professor de Matemtica em Comunidades de Prtica

Tese apresentada ao Programa de Ps-graduao em Educao da Faculdade de Educao da Universidade Estadual de Campinas, como requisito parcial para a obteno do Titulo de Doutor em Educao. rea de concentrao: Educao Matemtica Orientadora: Profa. Dra. Dione Lucchesi de Carvalho

Universidade Estadual de Campinas UNICAMP Faculdade de Educao FE Campinas SP 2009

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by Admur Severino Pamplona, 2009.

Ficha catalogrfica elaborada pela Biblioteca da Faculdade de Educao/UNICAMP

Pamplona, Admur Severino. P191f A formao estatstica e pedaggica do professor de matemtica em Comunidades de Prtica / Admur Severino Pamplona. Campinas, SP: [s.n.], 2009. Orientador : Dione Lucchesi de Carvalho. Tese (doutorado) Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Educao. 1. Formao de professores. 2. Aprendizagem. 3. Estatstica Estudo e ensino. 4. Educao matemtica. 5. Comunidades de prtica. 6. Narrativas I. Carvalho, Dione Lucchesi de. II. Universidade Estadual de Campinas. Faculdade de Educao. III. Ttulo. 09-034/BFE

Ttulo em ingls : The formation pedagogy and statistc of the Teacher of Mathematics in Communities of Practice Keywords : Teacher training ; Learning ; Statistics - Study and teaching ; Mathematics education ; Communities of practice ; Narratives rea de concentrao : Educao Matemtica Titulao : Doutor em Educao Banca examinadora : Prof. Dr. Dione Lucchesi de Carvalho (Orientadora) Prof. Dr. Maria Lucia Lorenzetti Wodewotzki Prof. Dr. Celi Aparecida Espasandin Lopes Prof. Dr. Antonio Miguel Prof. Dr. Dario Fiorentini Data da defesa: 09/03/2009 Programa de Ps-Graduao : Educao e-mail : [email protected]

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Dedico : Wanderleya Nara, Ana Clara, Lucas Henrique e Mariana

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Foram muitos aqueles que contriburam para a realizao deste trabalho, aos quais agradeo: Professora Dione, pela orientao, compreenso, incentivo e amizade; ao Professor Dario, pelas orientaes, discusses e sugestes ao longo de todo este tempo, junto aos grupos PRAPEM e GEPFPM; Wanderleya, pela companhia de todas as horas, leitora crtica e auxiliar incansvel; ao Professor Antonio Miguel, pelos questionamentos instigadores e elucidativos; s professoras Cileda, Maria Lcia e Celi, pelas contribuies e participao nas bancas de qualificao ou defesa; aos professores Marcos, Lisbeth, Slvio, Hotta e Paulo, pela contribuio inestimvel a esse trabalho, narrando suas histrias de vida profissional; aos professores Slvio Gamboa, Nri de Souza, Ana Smolka, Luci-Banks, Vincio Macedo e Srgio Nobre, pelos ensinamentos que suas aulas proporcionaram; aos colegas das disciplinas da ps-graduao alguns dos quais, mesmo sem saber, contriburam para a realizao deste trabalho; aos colegas dos grupos PRAPEM e GEPFPM, pelas discusses e amizade; aos alunos do curso da Licenciatura em Matemtica do Campus da UFMT no Mdio Araguaia, que foram partcipes do desenvolvimento das ideias e aes que deram origem este trabalho; minha famlia, pelo incentivo e, principalmente, Ana Clara, Lucas e Mariana pela compreenso nas horas ausentes dedicada a esta pesquisa; professora Celeste, pelas correes ortogrficas e amizade; e UFMT e CAPES pelo auxlio financeiro.

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Existem momentos na vida onde a questo de saber se se pode pensar diferentemente do que se pensa, e perceber diferentemente do que se v, indispensvel para continuar a olhar ou a refletir. Michel Foucault

Por muitos caminhos diferentes e de mltiplos modos cheguei eu minha verdade; no por uma nica escada subi at a altura onde meus olhos percorrem o mundo. (...) Um ensaiar e perguntar foi todo meu caminhar. Este o meu gosto: no um bom gosto, no um mau gosto, mas meu gosto, do qual j no me envergonho nem o escondo. Este meu caminho, onde est o vosso?, assim respondia aos que me perguntavam pelo caminho. Nietzsche

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LISTA DE ABREVIATURAS ABE ADUFMAT ADUSP ANDES-SN APEOESP CAEM CAPES CEA CEMPEM CENP CIAEM CLE CNE CNPq CPD CRUSP DEMAC DERGO EBRAPEM EJA ENCCEJA ENEM EPEM FAPESP FEBEM FEUNICAMP FEUSP FJ1, FJ2,... FL1, FL2,... FLZ1, FLZ2,... FM1, FM2,... FP1, FP2,... Associao Brasileira de Estatstica Associao de Docentes da Universidade Federal de Mato Grosso, seco sindical do ANDES-SN Associao dos Docentes da Universidade de So Paulo, seco sindical do ANDES-SN Sindicato Nacional dos Docentes do Ensino Superior Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de So Paulo Centro de Aperfeioamento do Ensino da Matemtica/ IME/ USP Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior Centro de Estatstica Aplicada Departamento de Estatstica/ IME/ USP Centro de Memria e Pesquisa em Educao Matemtica/FE/UNICAMP Coordenadoria de Estudos e Normas Pedaggicas Conferncia Interamericana de Educao Matemtica Centro de Lgica, Epistemologia e Histria da cincia da UNICAMP Conselho Nacional de Educao Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico Centro de Processamento de Dados Conjunto Residencial da Universidade de So Paulo Departamento de Estatstica, Matemtica Aplicada e Computao da Unesp de Rio Claro Departamento de Estradas e Rodagem do Estado de Gois Encontro Brasileiro de Estudantes de Ps-Graduao em Educao Matemtica Educao de Jovens e Adultos Exame Nacional de Certificao de Competncias de Jovens e Adultos Encontro Nacional de Educao Matemtica Encontro Paulista de Educao Matemtica Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de So Paulo Fundao Nacional do Bem-Estar do Menor Faculdade de Educao da Unicamp Faculdade de Educao da USP Falas do Professor Jos Falas da Professora Lisbeth; Falas do Professor Luiz Falas do Professor Marcos; Falas do Professor Paulo;

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GEPFPM IASE IBGE ICLMA ICME ICOTS IME IMECC IMPA INEP ISI ITA MEC NCTM NEPO OEA ONG ONU PCN PET PME PraPeM PUC SBEM SBPC SINAPE SIPEM TCC UFG UFMT UFSC UFSCar UNESCO UNESP UNICAMP USP

Grupo de Estudos e Pesquisa em Formao de Professor de Matemtica International Association for Statistical Education Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica Instituto de Cincias e Letras do Mdio Araguaia da UFMT International Congress on Mathematical Education International Conference on Teaching Statistics Instituto de Matemtica da USP Instituto de Matemtica, Estatstica e Computao Cientfica da Unicamp Instituto de Matemtica Pura e Aplicada Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Ansio Teixeira International Statistical Institute Instituto Tecnolgico da Aeronutica Ministrio da Educao National Council of Teachers of Mathematics Ncleo de Estudos de Populao da Unicamp Organizao dos Estados Americanos Organizao No Governamental Organizao das Naes Unidas Parmetros Curriculares Nacionais Programa de Educao Tutorial Psychology of Mathematics Education Grupo de pesquisa - Prtica Pedaggica em Matemtica Pontifcia Universidade Catlica Sociedade Brasileira de Educao Matemtica Sociedade Brasileira para o Progresso da Cincia Simpsio Nacional de Probabilidade e Estatstica Seminrio Internacional de Pesquisa em Educao Matemtica Trabalho de Concluso de Curso de graduao Universidade Federal de Gois Universidade Federal de Mato Grosso Universidade Federal de Santa Catarina Universidade Federal de So Carlos United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization Universidade do Estado de So Paulo Universidade Estadual de Campinas Universidade de So Paulo

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PAMPLONA, Admur Severino, A formao estatstica e pedaggica do professor de matemtica em comunidades de prtica. 2009, 267p. Tese (Doutorado em Educao, rea: Educao Matemtica) Faculdade de Educao, Universidade Estadual de Campinas, Campinas-SP. 2009. Resumo: Neste trabalho discute-se a aprendizagem-ensino da Estatstica na formao do Professor de Matemtica, ressaltando as prticas pedaggicas nela envolvidas. Para tanto, realizou-se uma pesquisa na qual foi utilizado um instrumento da Histria Oral, a Narrativa Biogrfica, para a recolha de dados. Tais narrativas foram obtidas de professores experientes que tm atuado no ensino de estatstica, em cursos de formao de professores de matemtica (Licenciatura em Matemtica) em universidades paulistas. Como instrumento de anlise, utilizou-se a Teoria Social da Aprendizagem, de Wenger, sobre comunidade de prtica, a partir da perspectiva histrico-cultural vygotskiana. Para compreender as prticas de formao pedaggicas presentes na formao estatsticas do professor de matemtica, tanto alunos como professores foram considerados membros de uma mesma comunidade de prtica, j que os sujeitos da pesquisa narraram suas prticas de formao tanto como alunos quanto como professores formadores. Para a anlise esteve tambm presente pelo menos duas conjecturas: uma toda prtica de formao estatstica tem imbricada uma prtica de formao pedaggica e outra, surgida a partir dos estudos de Lee Shulman, a formao estatstica do professor diferente da do especialista em estatstica. A diferena reside no fato de que, alm de compreender os mesmos conceitos, o professor deve perceb-los como componentes de uma disciplina da grade curricular de um curso de formao profissional do Professor de Matemtica, conhecendo a histria e o desenvolvimento desses conceitos, da disciplina e da prpria profisso. As conjecturas se confirmaram na anlise, cujos resultados permitiram oferecer resposta questo colocada. Quais prticas os professores formadores citaram, desenvolveram ou valorizaram no sentido de evidenciar e fortalecer os nexos entre as prticas de formao estatstica e aquelas de formao pedaggica? Esta anlise levou a respostas tais como: o compartilhamento com os licenciandos dos problemas, das escolhas, dos trajetos, das perspectivas e dos prazeres que fazem parte do exerccio da profisso do professor, de modo geral, e do ensino da Estatstica, de modo particular; o questionamento das prticas discursivas e no discursivas que apoiam relaes desiguais de poder entre prticas de formao matemtica/estatstica e prticas de formao pedaggica; entre outras. A partir da, so apresentadas algumas sugestes para a ao do professor formador que visam facilitar/estimular, no licenciando, o discernimento dos mltiplos fazeres e pensares que compem a prtica da profisso Professor de Matemtica. Uma dessas prticas pode ser, por exemplo, o uso de diferentes abordagens para a aprendizagem-ensino dos contedos estatsticos, acompanhados, a cada vez, da anlise de uma questo do tipo: Que fatores contriburam para que essa determinada abordagem fosse empregada para ensinar esse contedo?. Isso se faria tanto como forma de favorecer a imaginao do licenciando a respeito da pertena na comunidade de prtica dos professores que ensinam estatstica, quanto de aumentar o seu saber a respeito do uso dessas abordagens, levando-os a perceber que no existe uma nica abordagem aplicvel em todas as situaes. Palavras-chave: Formao de Professor. Aprendizagem-ensino da Estatstica. Educao Matemtica. Narrativas Biogrficas. Comunidade de Prtica.

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Admur Severino Pamplona natural de Iturama, Minas Gerais. Licenciado em Matemtica pela Universidade Federal de Gois - UFG (1988), fez mestrado em Estatstica na Universidade Estadual de Campinas UNICAMP (1998). Desde 1989 professor da Universidade Federal de Mato Grosso UFMT.

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Pamplona, A. S., (2009) The training of the teacher of mathematics in Educational and Statistic in Communities of Practice. PhD thesis in Science Education. Education College, State University of Campinas/UNICAMP. Campinas-SP. 267pp. Abstract: In this work is discussed the learning-teaching of the Statistics in the training of the Teacher of Mathematics, emphasizing the pedagogy practice involved. Thus, was realized a search in which was used an instrument of the Oral History, the "biographical narratives" for data collection. These narratives were obtained from experienced professors who have worked in the teaching of statistics, in training courses for teachers of mathematics (Degree in Mathematics) in universities in Sao Paulo state. As tool of analysis, was utilized the "Social Learning Theory" of Wenger on the community of practice, from the perspective of historical and cultural origins in the theory of Vygotsky. To understand the practice of training pedagogical and training statistic of the professor of mathematics, both students as teachers was considered members of a single community of practice since the subjects narrated on their practice training is both of student as of teacher trainer. For the analysis was also present at least two conjectures, an is "all practice of statistical training has imbricated a practice of pedagogical training" and another, arising from the studies of Lee Shulman, is "the training statistical of the teacher is different from the training statistical of the specialist in statistic". The difference lies in the fact that, in addition to understanding the same concepts, the teacher must understand them as components of a discipline's grade curriculum of the course of training of Professor of Mathematics, knowing the history and development of these concepts, of the discipline and of profession itself. The conjectures are confirmed in the analysis, whose results have provided answers to the question: "What practice, the professors trainers have mentioned, developed and valued in order to highlight and strengthen the links between the practices of statistical training and the practices of pedagogical training?" This analysis led to responses such as: the share, with the students, of the problems, of the choices, of the course, of the prospects and of the pleasures that are part of the exercise of teaching in general and the teaching of Statistics, in particular, the questioning of the discursive practices and non-discursive that support unequal relations of power between practices of mathematics training/ statistics and practices of pedagogical training, among others. From there thenceforth are some suggestions for the action of the professors training to facilitate / encourage, in licensing, the wisdom of the multiples think and make of the teaching practice. One of these practices may be, for example, the use of different approaches to teaching-learning of content statistics, together, each time, the analysis of a question like: "What factors contributed to that particular approach to be employed to teach this content?". This would be done both as a way to encourage the imagination of the licensing on the membership on the community of practice of teachers who teach statistics, how to increase your knowledge about the use of these approaches, leading them to realize that there is no single approach applicable in all situations. Keywords: Teacher Training. Learning-teaching of the Statistics. Mathematics Education. Biographical Narratives. Community of Practice.

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Sumrio

L I S T A D E A B R E V I A T U R A S ......................................................................IX RESUMO: ...........................................................................................................................XI ABSTRACT:....................................................................................................................XIII SUMRIO........................................................................................................................XIV CAPTULO 1: SITUANDO A PESQUISA.................................................................... 17 1.1 APRESENTAO........................................................................................................... 19 1.2 COMO O RELATO FOI ORGANIZADO .............................................................................. 26 CAPTULO 2 CONDUZINDO A PESQUISA ............................................................ 29 2.1 INTRODUO ............................................................................................................... 31 2.2 ENUNCIANDO O PROBLEMA E O OBJETIVO DA PESQUISA .............................................. 33 2.3 O CONTEXTO EPISTEMOLGICO DA PESQUISA .............................................................. 38 2.4 REFLETINDO SOBRE MEMRIAS E NARRATIVAS ........................................................... 45 2.5 A SELEO DE SUJEITOS E AS SITUAES DE CONTATO ............................................... 50 2.7 A ENTREVISTA E AS MODIFICAES NO ROTEIRO ......................................................... 54 2.8 CONCLUINDO ESTE CAPTULO ...................................................................................... 55 CAPTULO 3 A APRENDIZAGEM................................................................................ 57 3.1 INTRODUO ............................................................................................................... 59 3.2 APRENDIZAGEM COMO FENMENO CULTURAL ............................................................ 63 3.3 APRENDIZAGEM SITUADA ........................................................................................... 69 3.4 APRENDIZAGEM SOCIAL .............................................................................................. 77 3.5 APRENDIZAGEM E O PODER-SABER NA CONSTITUIO DA IDENTIDADE ....................... 94 3.5.1 As relaes de poder na Estatstica .................................................................... 97 3.6 CONCLUINDO ESTE CAPTULO .................................................................................... 100 CAPTULO 4 NARRATIVAS E REFLEXES ........................................................... 103 4.1 INTRODUO ............................................................................................................. 105 4.2 CONFIGURAO DA ANLISE .................................................................................... 108 4.3 AS INFLUNCIAS SOCIOCULTURAIS NA INFNCIA E ADOLESCNCIA ........................... 112 4.4 AS INFLUNCIAS PARA A ESCOLHA DA PROFISSO, O TORNAR-SE PROFESSOR ........... 120 4.5 A OPO PELA ESTATSTICA ...................................................................................... 129 4.6 DE MEMBROS PERIFRICOS A PROFISSIONAIS EXPERIENTES ....................................... 134 4.7 AS REFLEXES ACERCA DO ENSINO DA ESTATSTICA................................................. 144 4.8 OS CONTEDOS ......................................................................................................... 149 4.9 O COMPROMISSO MTUO ........................................................................................... 155

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4.10 A AMPLIAO DO CONTEXTO DE ATUAO ..............................................................160 4.11 AS ABORDAGENS DE ENSINO-APRENDIZAGEM ..........................................................163 4.11.1 Projeto de Trabalho.........................................................................................166 4.11.2 Investigao Exploratria ...............................................................................176 4.11.3 Histria na formao do professor..................................................................183 4.11.4 Eventos Cientficos e de Divulgao Cientfica. .............................................189 4.12 CONCLUINDO ESTE CAPTULO..................................................................................195 CAPTULO 5 IDENTIDADE E RELAES DE PODER......................................201 5.1 INTRODUO .............................................................................................................203 5.2 TENSES NA CONSTITUIO DA IDENTIDADE DO PROFESSOR DE ESTATSTICA ...........204 5.3 UMA OUTRA TENSO: HUMANAS X EXATAS ..............................................................216 5.4 AS RELAES DE PODER-SABER E A DELIMITAO DO DOMNIO ................................221 5.4.1 Relaes desiguais de poder no interior da comunidade ..................................224 5.5 CONCLUINDO ESTE CAPTULO ....................................................................................227 CAPTULO 6 UM FIM, UM COMEO...................................................................231 CONCLUINDO ...................................................................................................................233 ALGUMAS SUGESTES .....................................................................................................238 REFERNCIAS................................................................................................................243 OUTRAS OBRAS CONSULTADAS..............................................................................251 ANEXO 1 ANEXO 2 ANEXO 3 PONTOS ORIENTADORES NA ENTREVISTA....................................263 CARTA DE APRESENTAO NA ENTREVISTA...............................265 CARTA DE CESSO..................................................................................267

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Captulo 1:

Situando a pesquisa

Amolao Interrompida Almeida Jnior

A enxada e a canetaCerta vez uma caneta foi passear l no serto Encontrou-se com uma enxada, fazendo a plantao. A enxada muito humilde, foi lhe fazer saudao, Mas a caneta soberba no quis pegar sua mo. E ainda por desaforo lhe passou uma repreenso. Disse a caneta pra enxada no vem perto de mim, no Voc est suja de terra, de terra suja do cho Sabe com quem est falando, veja sua posio E no se esquea a distncia da nossa separao. Eu sou a caneta soberba que escreve nos tabelio Eu escrevo pros governos as leis da constituio Escrevi em papel de linho, pros ricaos e baro S ando na mo dos mestres, dos homens de posio. A enxada respondeu: que bateu vivo no cho, Pra poder dar o que comer e vestir o seu patro Eu vim no mundo primeiro quase no tempo de Ado Se no fosse o meu sustento no tinha instruo. (Letra de Teddy Vieira e Capito Barduno)

A formao Estatstica e Pedaggica do Professor de Matemtica em Comunidades de Prtica

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1.1 Apresentao Discuto, neste trabalho, a aprendizagem-ensino1 da Estatstica, na formao de professores de Matemtica, destacando as conexes e polarizaes entre a formao estatstica e a formao pedaggica, como, de certo modo, ocorre em A enxada e a caneta. Isso se d a partir da anlise de narrativas sobre as prticas de um grupo de professores que ensinam Estatstica para alunos da Licenciatura em Matemtica. Nesse contexto, fao uso das narrativas biogrficas2 desses professores para compreender as relaes entre as prticas de formao estatstica e as de formao pedaggica. Tais prticas so enfocadas por meio da explorao dos conceitos (Comunidade de Prtica e outros), abordados na Teoria Social da Aprendizagem de Wenger (2001), tomada como instrumento de anlise. Cabe ressaltar meu reconhecimento de que, nas prticas de formao estatstica do professor formador, tambm esto imbricadas prticas de formao pedaggica, visto que um professor que esteja envolvido com o ensino da Estatstica ou de qualquer outra matria especfica mesmo que no tenha conscincia disto, em seu fazer cotidiano, realiza prticas pedaggicas e produz saberes acerca delas. A esse respeito, lembro as palavras de Miguel e seus parceiros:[...] os chamados matemticos profissionais pelo fato de serem tambm professores, mas no exclusivamente por essa razo realizam uma atividade educacional, bem como produzem conhecimentos educacionais ainda que no seja essa a dimenso intencional, consciente eCom a expresso aprendizagem-ensino quero distinguir e contextualizar a discusso do ensino e da aprendizagem na formao de professor. No vou discutir s o ensino da Estatstica, neste caso geralmente se usa o termo ensino-aprendizagem para ressaltar que a discusso sobre o ensino visa aprendizagem do aluno, porm, com o termo aprendizagem-ensino quero ressaltar que a discusso aqui sobre a aprendizagem que visa o ensino, ou seja, Como se aprende para ensinar?. 2 As narrativas biogrficas, neste trabalho, comportam o relato de todo um processo amplo de mudanas do ser professor. Essas mudanas podem se dar em vrias direes como nas crenas, concepes, posturas, relaes (com os contedos, alunos e mtodos), ampliao de cenrios de atuao, dentre outros. Tais mudanas ocorrem tanto a partir de histrias pessoais e experincias no intencionais ocorridas em sala de aula, quanto por meio da participao em cursos de formao continuada, grupos de estudos, grupos de trabalho, eventos cientficos e acadmicos, dentre outros.1

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predominante de sua atividade. [...] Podemos dizer, ento, que alm de um conhecimento intencionalmente produzido e absolutamente necessrio para uma prtica social se constituir e sobreviver, seus promotores acabam tambm produzindo outros conhecimentos que, embora no sejam vistos como to importantes quanto aqueles intencionalmente produzidos, so tambm absolutamente necessrios para que essas prticas se constituam e sobrevivem. E da, resguardadas as diferenas, um matemtico profissional no um no-educador matemtico, do mesmo modo que um educador matemtico no um no-matemtico profissional. (MIQUEL et al, 2004)

Reconhecendo esse fato, ao problematizar a Licenciatura em Matemtica, busquei professores formadores da rea de Estatstica que pudessem falar sobre as suas prticas de formao tanto estatsticas quanto pedaggicas. Minha busca no ocorreu no sentido de detectar a existncia de possveis relaes entre as prticas de formao estatstica e as de formao pedaggica, mas, sim, de compreend-las, bem como de explicitar a sua importncia visto que, de fato, como sugerido em Miguel et al (2004), em geral, a construo de conhecimentos pedaggicos por parte dos matemticos/estatsticos, junto aos estudantes da Licenciatura em Matemtica, acaba por no ser vista como to importante quanto a construo de conhecimentos especficos de sua rea. Quando essas prticas ocorrem na formao de bacharis, penso que no realmente importante realar a dimenso pedaggica presente nelas. Entretanto, nas licenciaturas, isso deveria ocorrer, isto , a imbricao entre as prticas de formao especfica e as de formao pedaggica, na atuao dos professores de todas as disciplinas que compem o currculo das licenciaturas, deveria ser muito forte, e no tnue o que por vezes acontece. Assim, decidi por utilizar, ao longo do trabalho, os dois termos prticas de formao estatstica e prticas de formao pedaggica; j que, para mim, clara a assimetria na valorizao e nas relaes de poder que se estabelecem entre as diferentes disciplinas curriculares da Licenciatura em Matemtica. Sabendo que as prticas de formao especfica tambm so produtoras de conhecimentos pedaggicos e, para realar essa dimenso da prtica dos professores formadores que se dedicam ao ensino de matrias especficas, que decidi por tomar como sujeitos os professores formadores da Licenciatura que se dedicam, em primeiro lugar, formao especfica e, no, pedaggica. Isso significa que o local onde ocorrem as

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prticas dos sujeitos aqui considerados foram, em sua maioria, em Institutos de Matemtica e Estatstica, e, no, nos de Educao. Cabe dizer tambm que, na minha vivncia e convivncia de quase duas dcadas como professor de Matemtica e Estatstica, tenho percebido que so muitos os professores formadores que no conseguem relacionar-se, de maneira realmente relevante, com seus pares e, principalmente, com os estudantes, embora o faam com o contedo da disciplina. Esse fato ilustrado com bastante propriedade no filme Mente Brilhante, que narra a vida do matemtico John Nash a quem foi atribudo o Premio Nobel de Economia, em 1994. Numa das cenas, o professor encontra-se voltado para o quadro-negro, empenhado em transmitir o contedo matemtico, mas completamente alheio ao que se passa com os estudantes. Isso no ocorre apenas na fico, a cena retratou uma realidade; visto que, por vezes, a prtica do professor solitria, e no uma prtica social; embora esteja presente, no seu fazer, uma preocupao pedaggica com a apresentao do contedo, no existe a busca, que penso ser inerente e essencial pedagogia, de despertar, de provocar, de inquietar, de compartilhar com o estudante. Assim, no caso do ensino de Estatstica para licenciandos em Matemtica, pode-se dizer que, no raro, existe uma preocupao do professor com as suas prticas estatsticas, mas no com as suas prticas pedaggicas nem com a formao do licenciando a esse respeito. Fatos como esse e, principalmente, fatos opostos a esse, precisam ser ressaltados para que a mudana ocorra procuro discutir, neste trabalho, um pouco disso. esse tambm o momento para anunciar que, ao longo do relato da pesquisa, inclu episdios e reflexes acerca da minha prpria prtica. Isso se justifica pelo fato de que minha histria de vida como estudante de Licenciatura em Matemtica, professor formador de professores de Matemtica, mestre em Estatstica e, finalmente, doutorando em Educao Matemtica tem muito a dizer acerca do ensino e da aprendizagem da Estatstica, na formao do professor de Matemtica. Alm do que, a forma narrativa do texto e a presena do autor, tambm como sujeito, indicam a perspectiva de cincia na qual este trabalho se assenta; e ainda expe a viso de mundo e o interesse do pesquisador. Por meio desse expediente, expresso minha concordncia com Habermas (1982), quando ele

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salienta que, em todo trabalho cientfico, o pesquisador est orientado pelas suas vises de mundo e pelas pretenses que possui com relao ao objeto ou fenmeno que estuda. Como, neste trabalho, busco compreender as relaes entre as prticas de formao estatstica e as de formao pedaggica, na Licenciatura em Matemtica, o interesse pelo dilogo entre sujeitos e, desse modo, est presente a ideia de que o eixo central do conhecimento no est no objeto, e sim, no sujeito que interpreta, que conhece, que d sentido ao mundo e aos fenmenos, que procura compreender a intersubjetividade em relao a possveis significados das aes, dos discursos, dos gestos, dos textos, etc. Em vista disso, precisamos conhecer o sujeito que interpreta, o pesquisador, o autor deste trabalho; pois o pesquisador que produz o sentido. ele que converte as vidas e as palavras dos outros em saber, em conhecimento, em informao e em cultura. (BENJAMIN, 1994) Ressalto, ainda, que apresentar no texto minha prpria histria profissional uma forma de desencadear a anlise e a reflexo acerca dos processos formadores e da constituio das diferentes modalidades de relaes entre os professores de Matemtica e seus formadores, tanto no que se refere prtica de formao estatstica, quanto prtica de formao pedaggica. tambm o olhar interessado para as histrias de vida de outros professores formadores experientes no ensino de Estatstica que me levou a desenvolver esta pesquisa, ressaltando o exerccio privado da profisso docente, o que significa que, neste trabalho, deixei de lado questes, tais como leis e diretrizes que regem a Licenciatura em Matemtica, para dedicar-me anlise de buscas e escolhas pessoais dos sujeitos. Esta opo me permitiu, ao longo do trabalho, privilegiar um dilogo entre passado e presente, confrontando as histrias de vida e as prticas, minhas e de outros professores de Estatstica, na Licenciatura em Matemtica. Para falar sobre a histria de vida e as prticas desses outros professores, usei como instrumento de recolha de dados a histria oral de vida, tambm denominada por Meihy (2000) como narrativas biogrficas compreendidas como sendo crnicas memorialsticas sobre o prprio passado do sujeito. Nas reminiscncias e reflexes sobre seu passado, como ressalta Bosi (1994), a pessoa decide o que falar, no prprio momento

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do relato; podendo subestimar ou superestimar aspectos que considera menos ou mais interessantes na sua trajetria, respectivamente. Apoiado por essa forma de se compreender as narrativas biogrficas, como instrumentos que buscam o entendimento do espao pessoal subjetivo, em suas relaes com os estudos memorialsticos, posso dizer que minhas lembranas mais antigas remetem ao fato de que, sempre que indagado sobre o que gostaria de ser, quando crescesse tinha uma resposta pronta: "Quero ser agrnomo". Tal resposta no causava surpresa a ningum, pois morava no interior de Minas Gerais, no Tringulo Mineiro, onde meus pais possuem uma fazenda, e a Agronomia a atividade profissional mais valorizada naquela comunidade, visto que, l, este curso, ao contrrio dos outros, significa largar a enxada e pegar a caneta, sem deixar o vnculo com o ambiente rural, ou sem desenvolver rejeio a sujar-se de terra. Na tentativa de alcanar meu objetivo, ao concluir a oitava srie do ensino fundamental, ingressei no curso tcnico de Agrimensura, em Goinia-GO, com durao de quatro anos, preparando-me, desse modo, para ser agrnomo. Em paralelo a esse curso, fazia tambm o segundo grau (hoje ensino mdio), de forma concentrada3, em dois anos, numa escola particular. Ao final desses dois anos, tinha o vestibular pela frente e, novamente, optei por fazer mais uma preparao para a Agronomia: "Farei o curso de Matemtica enquanto termino a Agrimensura, e depois fao o curso de Agronomia", pensava; j que o curso de Agrimensura se estenderia, por mais dois anos. Ao trmino do curso de Agrimensura, tive que trancar matrcula no curso de Matemtica da UFG, para fazer o estgio no Bico do Papagaio (ento norte de Gois e hoje Estado de Tocantins), no DERGO (Departamento de Estradas e Rodagem do Estado de Gois). Na Matemtica, quando iniciei, o curso se chamava Licenciatura em Cincias: habilitao em Matemtica. Fiz vrias disciplinas na Biologia, na Qumica e na Fsica, alm das especficas de Matemtica; o sistema do curso era de crditos, com disciplinas semestrais. Depois de dois anos, o curso sofreu uma mudana radical, passou a ser3

Essa forma concentrada era muito comum nas escolas particulares preparatrias para o vestibular e chamava de Intensivo, onde se fazia os trs anos do segundo grau em apenas dois.

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chamado de Licenciatura Plena em Matemtica e o sistema passou a ser o seriado anual. Participei de toda a discusso, promovida pelo Departamento junto ao Centro Acadmico, discusso que passava tanto pela mudana da matriz quanto do sistema de disciplina (de crdito para seriado). -As mudanas afetaram profundamente a minha vida acadmica, pois tive fr tomar mais uma deciso. Por um lado, a opo era continuar em um curso a respeito do qual qual eu e meus colegas tnhamos muitas crticas; lutamos para mud-lo, mas me dava a oportunidade de concluir a graduao em apenas um ano e meio. Por outro, a possibilidade era a de perder todos os crditos j feitos e comear uma nova vida acadmica, com previso de concluso da graduao s depois de mais quatro anos. E o curso de Agronomia? Dado o envolvimento nas discusses e, acreditando que tnhamos, como alunos, obtido uma grande conquista, optei por recomear o curso de Matemtica e a ideia de fazer o curso de Agronomia foi se distanciando. Quando eu j havia concludo o primeiro ano do Curso, configurou-se a necessidade a que me referi anteriormente de trancar a matrcula na Licenciatura em Matemtica para me dedicar ao estgio da Agrimensura. Findo o estgio, retornei e, dando continuidade ao curso de Matemtica, fui monitor das disciplinas de Clculo Diferencial e Integral e bolsista do CNPq de iniciao cientfica4. Aps concluir a Licenciatura, iniciei o estudo de algumas disciplinas, como uma complementao para a concluso, tambm, do Bacharelado. Mas, nesse mesmo ano, fui indicado por um de meus professores para prestar um concurso de provimento de cargo de professor substituto na Universidade Federal de Mato Grosso. Aps um ano nessa universidade, fui aprovado num concurso para professor efetivo no Departamento de Matemtica, responsvel, inclusive, pelo Curso de Licenciatura em Matemtica do Instituto de Cincias e Letras do Mdio Araguaia (ICLMA/UFMT). Era o incio de uma carreira durante a qual passei por quase todas as disciplinas da licenciatura. No departamento de Matemtica, onde, alm de mim, atuavam outros exalunos egressos do curso de Matemtica da UFG, iniciamos uma discusso, para propor4

ramos nove bolsistas inseridos num projeto de um professor que era o coordenador da ps-graduao. Tnhamos que fazer as disciplinas do Mestrado em Matemtica que estava sendo implantado, e no era necessrio desenvolver um tema especfico ou mesmo um relatrio ao final do projeto.

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uma mudana na estrutura curricular do curso de licenciatura desse departamento. As motivaes para essa mudana eram vrias, mas, dada a nossa vivncia/experincia do curso da UFG e a necessidade de sairmos para capacitao, propusemos uma primeira mudana no sistema de disciplina. Assim, as disciplinas passaram a ser oferecidas em regime Seriado Anual, ao invs do Crdito Semestral; com isso, foram reduzidos cerca de cinquenta por cento dos encargos didticos do departamento e conseguimos folga para sair para capacitao. Considerando as necessidades do Departamento, bem como a minha prpria necessidade de formao e informao, optei por fazer o mestrado em Estatstica, no entanto, durante o perodo do Curso, meu contato com educadores matemticos era constante. Essa foi uma das razes, entre outras, para o fato de depois de algum tempo, ao retomar minhas atividades junto Licenciatura eu no conseguir mais fixar o olhar apenas no raciocnio matemtico ou estatstico. Ento, durante a minha prtica, questionava-me constantemente acerca da construo conjunta de saberes matemticos/ estatsticos e pedaggicos. Mais tarde, ofereci junto com colegas das reas de Matemtica, de Cincias Biolgicas e de Letras um curso voltado a professores em servio e que colocava o desenvolvimento de projetos de pesquisa como mtodo de ensino. Naquela oportunidade, observei que a grande maioria dos projetos sugeridos pelos professores apresentava vrios objetivos conceituais e procedimentais relacionados Estatstica. Pareceu-me que os professores, ao tentar aproximar teoria e prtica, construir significados ao ensinar Matemtica e quebrar o isolamento da disciplina, voltavam-se, com muita naturalidade, para a Estatstica. Procuravam, dessa forma, chegar a um ensino mais significativo, que tomasse como fator essencial para a aprendizagem o interesse do aluno e a compreenso das ideias estatsticas em paralelo com o prprio entorno sociopoltico e econmico. No entanto, um contato mais prximo com aqueles e outros professores de matemtica do ensino fundamental e mdio levou-me a observar que grande parte deles, em sua formao inicial, aprendeu Estatstica, mas no me parece que tiveram oportunidade de incorporar reflexes importantes para as prticas pedaggicas com respeito a essa parte do currculo de

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matemtica. Creio, ainda, que tais professores no tiveram muitas informaes acerca da histria e do desenvolvimento dos conceitos de Estatstica, ou mesmo do desenvolvimento curricular dessa disciplina, o que poderia facilitar a compreenso adequada das ideias estatsticas. Tais observaes, bem como outras e alguns fatos aos quais irei me referir adiante, levaram-me a desenvolver a pesquisa que deu origem a este relato.

1.2 Como o relato foi organizado Teci um texto hbrido, como minha prpria identidade, no qual est impresso meu interesse em dialogar com colegas que se voltam tanto para a Matemtica e Estatstica quanto para a Educao Matemtica e a Educao Estatstica. Assim, penso que alguns possveis leitores deste trabalho, dependendo de sua rea de atuao, sentir-se-o incomodados com a presena de certas discusses, ou mesmo com o uso de alguns termos. Talvez, tais termos ou discusses pudessem ser evitados; mas, ento, eu deixaria de mostrar quem realmente sou: um professor/pesquisador fragmentado e multifacetado, por vezes, mais matemtico ou mais estatstico, noutras, mais educador. Entretanto, considero que me mostrar, em minhas dvidas, inconsistncias e mesmo contradies, torna-se importante no s porque, tendo escolhido como mtodo de pesquisa as narrativas biogrficas, envolvime bastante com elas e decidi que o texto no qual narro a minha pesquisa de doutorado manteria o mesmo esprito. Torna-se importante, sobretudo, por manter aberta uma dupla via para o dilogo: com professores das ditas disciplinas especficas da Licenciatura em Matemtica e com professores das ditas disciplinas pedaggicas. Mas essa importncia se situa tambm numa outra direo. Isso porque, agora, ao final de quatro anos de estudos e pesquisas, a respeito do tema aqui tratado, sinto-me, de certo modo, experiente. E, tal como Wenger (2001), penso que os novatos nas pesquisas da rea podem aprender com as experincias dos mais experientes mesmo que nem tanto, como o meu caso. De todo modo, foi refletindo sobre essas questes que me dediquei tessitura de um texto que, ao final, apresenta a seguinte configurao:

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No Captulo 1, Situando a Pesquisa, que este captulo, fao algumas consideraes iniciais. No Captulo 2, Conduzindo a Pesquisa, apresento o problema, o objetivo, o contexto epistemolgico da pesquisa, o mtodo de coleta dos dados memrias e narrativas e os outros sujeitos da pesquisa, descrevendo como se deu o contato com eles e a realizao das entrevistas. No Captulo 3, A Aprendizagem, dou a conhecer os principais conceitos utilizados nas anlises. Para isso, tomo como principais referncias, a abordagem histricocultural a partir de Vygotsky, a Teoria Social da Aprendizagem de Wenger e a noo de identidade e relao de poder, a partir de Foucault. No Captulo 4, Narrativas e reflexes, inicialmente, descrevo como se deu a construo das narrativas e das categorias de anlise e, depois, so realizadas as anlises. So esmiuados trechos das histrias de vida profissional dos cinco professores de Estatstica, alm da minha prpria, de modo a aproximar-nos de uma resposta para a questo da pesquisa. So, ento, apresentados excertos das falas dos sujeitos que foram alocados em diferentes eixos de anlise. No Captulo 5, Identidade e relaes de poder, problematizo a identidade do sujeito professor de Estatstica. Ento, coloco em destaque, alm das relaes de poder que auxiliam nessa constituio, algumas comunidades de prtica dos quais esse sujeito participa, bem como algumas facetas de sua identidade fragmentada e mltipla. No Captulo 6, denominado Um fim, um comeo, apresento, de modo sinttico, as concluses s quais cheguei, a partir da anlise realizada no captulo anterior. Coloco ainda algumas sugestes para a transformao das prticas de professores que, ao ensinar matrias especficas para os licenciandos em Matemtica, se preocupem tambm como a aprendizagem-ensino de prticas pedaggicas. A compreenso de uma fala viva, de um enunciado vivo sempre acompanhada de uma atitude responsiva ativa [...]; toda compreenso prenhe de resposta e, de uma forma ou de outra, forosamente a produz:

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Captulo 1:

Situando a pesquisa

o ouvinte torna-se locutor (BAKHTIN, 1992, p.290)

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Conduzindo a pesquisa

Plantao Djanira

Filho de Lavrador Antes de clarear o dia, no meio da escurido, meu pai do rancho saa com sua enxada na mo. Na sua simplicidade me dava grande lio: - Meu filho, voc estuda, Deus abenoa e ajuda, as crianas do serto. Numa escolinha da roa aprendi o b-a-b, depois deixei a palhoa, vim pra cidade estudar. O velho, com sacrifcio, capinando o cafezal, pra pagar a faculdade passava necessidade naquela zona rural. Na festa de formatura o velho pai me abraou: - Trate bem das criaturas que precisa dum doutor, cuidando da humanidade, do doente sofredor, cumprindo vosso dever, e nunca deve esquecer que filho de lavrador. Autores: Jos Raimundo/Gacho/Tonico

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2.1 Introduo Mencionar aqui as marcas histricas e contingentes que constituram minha trajetria estudantil e profissional, desde minha vida de roceiro, filho de lavrador, no Tringulo Mineiro, at o momento vivido atualmente, mais do que informar acerca do professor e pesquisador que sou, aponta as razes que me levaram a conduzir (e a ser conduzido) pela pesquisa que deu origem a esta tese. Nesse caminhar, a realizao do mestrado em Estatstica constituiu um marco importante, dentre outros. No mestrado5 (PAMPLONA, 1998), trabalhei no desenvolvimento e ampliao de uma tcnica de anlise multivariada de dados categorizados a Anlise de Correspondncia depois utilizei dados de uma pesquisadora6 do NEPO7 (Ncleo de Estudos de Populao) para anlise e validao dessa tcnica. Esse trabalho era parte de um projeto maior, concebido por minha orientadora. Desse modo, no mestrado, no senti necessidade de refletir mais seriamente sobre o conceito de cincia e sobre as diferentes formas de produo de conhecimentos. As questes a esse respeito s surgiram posteriormente, quando comecei a trabalhar com uma disciplina chamada Introduo Metodologia do Trabalho Cientfico e recrudesceram mais tarde, durante a elaborao de meu projeto de doutorado. Essa disciplina, oferecida para alunos da Licenciatura em Matemtica, foi-me designada devido minha formao em Estatstica, j que para muitas reas de pesquisa os mtodos estatsticos so ferramentas essenciais. Porm, direcionado por algumas discusses no Departamento e na busca por fazer com que essa disciplina fizesse mais sentido para os alunos, realizei um trabalho voltado para as pesquisas em Educao Matemtica o que5 6

Orientado pela Professora Dra. Regina C. C. P. Moran. Maria Coleta de Oliveira que Cientista Social, Mestre em Sociologia e Doutora em Cincias Sociais pela Universidade de So Paulo (USP), Professora Doutora do Departamento de Demografia do Instituto de Filosofia e Cincias Humanas da UNICAMP. Sua produo terica e de pesquisa concentra-se nas reas de Famlia e Estudos de Gnero. 7 O Ncleo de Estudos de Populao (NEPO) uma unidade de pesquisa interdisciplinar e multidisciplinar na rea de Demografia e Estudos de Populao da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). constitudo de profissionais de distintas especialidades com formao em Demografia, com nfase nas Cincias Sociais.

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Captulo 2

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me levou a tomar maior contato com investigaes cientficas nas quais os pesquisadores utilizavam diversos mtodos no estatsticos de recolha e anlise de dados. Esse contato me auxiliou, inclusive, a observar que, em meu desenvolvimento profissional, era necessrio um aprofundamento nas questes educacionais e epistemolgicas. De fato, percebi a existncia de uma grande diferena entre as formas como se do as pesquisas na Matemtica, nas reas das Cincias Naturais que fazem uso da Estatstica e na Educao. Desse modo, a modificao na minha trajetria profissional foi acompanhada de certas reflexes acerca das especificidades das duas reas de interesse: por um lado, a Matemtica e a Estatstica alojadas entre as chamadas Cincias Exatas e, por outro, a Educao, dita uma Cincia Humana. Ao ser admitido no programa de ps-graduao em Educao, pareceu-me importante ter uma maior compreenso acerca dos diferentes modos como se d a produo do conhecimento nas reas acima citadas: como so realizadas as pesquisas, quais os mtodos empregados etc. S aps conhecer esse panorama maior, eu poderia, com certa tranquilidade, transitar entre as Cincias Exatas e as Humanas, escolhendo (ou confirmando) o mtodo e os instrumentos de pesquisa adequados ao problema proposto para meu doutorado. Encaminhei, ento, meus estudos iniciais no doutorado para disciplinas que pudessem auxiliar-me nas buscas que considerava importante empreender. Essa opo levou-me a cursar, entre outras, "Epistemologia e Pesquisa em Educao" ministrada pelo professor Slvio Sanchez Gamboa e Filosofia da Matemtica ministrada pelo professor Jairo Jos de Souza, no CLE (Centro de Lgica e Epistemologia da UNICAMP) esta, como ouvinte. Ao fazer essas disciplinas, percebi a transformao de minhas concepes e conceitos prvios, bem como do local, isto , do ngulo, de onde se davam meus olhares e dizeres no contexto da epistemologia da cincia. A percepo da importncia e da necessidade de situar de onde eu estou falando levou-me a realizar um estudo epistemolgico. Nesse estudo epistemolgico tracei um panorama sobre as cincias e os mtodos de pesquisa cientfica. Para tanto, fiz uso da noo de paradigma de Thomas Kuhn e da de interesse e conhecimento de Habermas, e, de forma particular, os discuti na Matemtica,

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nas Cincias Naturais e nas Cincias Humanas. Assim, reconheci a existncia de diferentes concepes do que significa fazer cincia ou de produzir conhecimento cientfico. Esse estudo, preliminar, foi apresentado, em forma de pster, no I EPISTED 1o Seminrio de Epistemologia e Teoria da Educao, realizado na FE/UNICAMP de 06 a 07 de dezembro de 2005. A partir desse estudo, elaborei um texto que, inicialmente, constituiu um captulo desta tese, porm, com o passar do tempo e com um amadurecimento como pesquisador, percebi que sua manuteno era desnecessria e inclu nesse captulo apenas um pequeno texto, com o objetivo de informar a respeito de princpios por mim assumidos durante a pesquisa. Contudo, antes dele, exponho o problema de pesquisa e o objetivo. Tambm faz parte deste captulo algumas consideraes sobre Memria e sobre a descrio dos sujeitos da pesquisa, bem como sobre o modo como eles foram escolhidos, contatados e entrevistados.

2.2 Enunciando o problema e o objetivo da pesquisa Neste trabalho, ao falar sobre a formao de professores, refiro-me ao processo por meio do qual os professores novatos ou experientes vo aprendendo e se transformando, se constituindo por meio de prticas de sala de aula, da sua relao com colegas e estudantes, das trocas de conhecimentos e experincias que venham a estabelecer no trabalho e pelo trabalho do Professor de Matemtica , nas suas relaes com os conhecimentos institucionalizados e, a partir dos estudos tericos que realizam, dentre outros. Esse processo no individual, mas, sim, social, visto que a histria de cada um dos professores em formao se entrelaa com a histria de muitos outros. Teorias, prticas, dvidas, certezas, contradies no se do ao largo do Outro e, assim, num contexto histrico e social, cada um de ns forma-se e transforma-se, continuamente como professor de Matemtica. Nesse tornar-se professor de Matemtica, o curso de Licenciatura constitui um passo importante para a aquisio de conhecimentos pedaggicos e especficos. H que se reconhecer, entretanto, que ele apresenta alguns problemas histricos, tais como a

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desarticulao entre contedos especficos e conhecimentos pedaggicos, assim como entre teoria e prtica (CAMPOS, 2004). Em vista disso, faz-se necessrio que a Licenciatura se afaste cada vez mais do modelo que dissocia disciplinas de contedo matemtico (ou disciplinas de contedo especfico) daquelas de contedo pedaggico. Nesse sentido, sintomtica a afirmao de Lins (2004) de que:sabemos que persiste a impresso geral no documentada de forma sistemtica por pesquisas de que a formao matemtica do licenciado, em boa parte similar a do futuro bacharel, no contribui de modo substancial para a formao daquele futuro profissional, a no ser ao reforar as rotinas de aulas expositivas. (LINS,2004, p.50)

A partir da, torna-se, de certo modo natural, concordar com DAmbrosio (1990) na sua ideia de que:Faz-se necessrio um outro professor, formado de outra maneira e com a capacidade de renovar seus conhecimentos como parte integrante de sua preparao profissional. Alm disso, um professor conscientizado de que seu papel tem sua ao bem mais ampliada e certamente mais empolgante do que um mero transmissor de informaes na funo de professor (DAMBROSIO, 1990, p.49)

De todo modo, minha prpria formao, bem como a vivncia e convivncia com alunos e professores da rea, j me levavam a considerar bastante procedente para a abordagem das ideias estatsticas as crticas referentes dissociao entre disciplinas voltadas para contedos especficos e aquelas de formao pedaggica. De fato, tenho observado que, para a grande parte dos professores de Matemtica, oferecido, na sua formao inicial, no que se refere abordagem das ideias estatsticas, o mesmo tipo de ensino que outros profissionais consumidores de tais ideias e que no precisam estar preocupados com a questo da construo, reconstruo e desenvolvimento histrico desses contedos, dentre outros. Alm disso, ainda hoje, no se tem observado, com frequncia, uma articulao de professores formadores de professores em torno da problematizao acerca da formao estatstica do professor de matemtica. Assim, no raro ouvirmos alunos dos nveis fundamental, mdio e, at do ensino superior, dizerem que o professor sabe para si, mas que encontra srias dificuldades em ensinar-lhes.

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Realmente, ao professor no basta saber o contedo da disciplina; seu saber deve ser diferente do especialista, ele deve saber tambm para ensinar. Como diz Shulman (1986), saber matemtica para ser um matemtico no a mesma coisa que saber matemtica para ser professor de matemtica. Aqui podemos parafrase-lo, dizendo que saber estatstica para ser professor de estatstica vai alm de apenas saber o contedo de estatstica, visto que, mais do que compreender os mesmos conceitos, o professor deve perceb-los como componentes de uma disciplina da matriz curricular de uma profisso especfica. Desse modo, o professor precisa conhecer o processo de como se deu historicamente a produo e a negociao de significados desse conhecimento, como surgiu a necessidade daquele contedo naquela profisso, entre outras. Configura-se, pois, a importncia de que, durante sua formao inicial, o licenciando venha a apreender no s conhecimentos acerca de contedos estatsticos, mas tambm a viso dessa disciplina como um conhecimento a ser ensinado e aprendido (ou recriado), incluindo no s contedos e objetivos, mas tambm, materiais, modos de apresent-lo e de abord-lo, bem como a histria e o desenvolvimento dos conceitos, da disciplina e da profisso. Tudo isso, levando em considerao o aluno, conhecendo o aprendiz e como ele aprende, pois, a cada ano, o professor encontra-se com novos estudantes, que podem ser diferentes dos alunos do ano anterior, e, ento, novas estratgias tm que ser pensadas. De fato, um enfoque especial ao ensino da estatstica para a Licenciatura necessrio, pois a nfase dada Estatstica nos nveis bsicos de ensino de vrios pases tambm pode ser observada no Brasil; visto que os Parmetros Curriculares Nacionais (BRASIL, 1998) fizeram emergir, j na primeira fase do ensino fundamental, uma maior preocupao com a Estatstica. Nas ltimas dcadas, a importncia do tratamento das informaes vem sendo enfatizada e, muitas vezes, atribuda velocidade de circulao das informaes e necessidade das pessoas de interpretar, com eficcia, grficos, tabelas, estatsticas e situaes, envolvendo a incerteza. Isso est relacionado, principalmente, com a preparao profissional de tais pessoas, mas muitos so os que argumentam que tambm tem a ver com plena assuno da cidadania (LOPES, 1998).

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Note-se, entretanto, que o destaque, no ensino da matemtica, de tpicos relacionados estatstica, na escola bsica, veio acompanhado de um desafio, tanto aos professores de matemtica quanto aos seus formadores: tomar como fatores essenciais para a aprendizagem o interesse do aluno e a sua prpria experincia de participao no mundo, isto , colocar a aprendizagem como participao social que consiste em integrar a significao, a prtica, a comunidade e a identidade. Contudo, a necessidade de trabalhar conjuntamente teoria e prtica no se faz presente apenas na Estatstica, mas tambm nas outras disciplinas de contedo especfico dos cursos de licenciatura em Matemtica. Uma tentativa nesse sentido ocorreu no mbito das discusses acerca de mudanas curriculares na Licenciatura em Matemtica, culminando com as resolues 01 e 02 do CNE Conselho Nacional de Educao(CNE, 2002a; CNE, 2002b). Mas, desde 1998, em meu Departamento, tnhamos constitudo um grupo de estudos para a apresentao de propostas de uma nova matriz curricular. Durante as discusses por ns empreendidas, fortalecia-se o desejo e a percepo da necessidade de ressaltar a ligao entre a formao de contedos especficos e a formao pedaggica. No s as nossas, mas tambm as discusses de outros formadores de professores vinham se encaminhando no sentido, apontado por Santos (2002), de teorizar sobre situaes locais, regionais, prticas cotidianas, no mais somente sobre situaes universais. Desse modo, tambm os professores das chamadas disciplinas de contedo especfico foram convidados a se preocupar em ressaltar as suas aes pedaggicas, alm da aprendizagem dos conceitos, aos seus alunos licenciandos. Hoje, entendo que procurvamos conhecer ou criar diferentes momentos e maneiras por meio dos quais pudssemos contribuir para com a integrao dos alunos Comunidade de Prtica dos Professores de Matemtica. Foi justamente a partir desse cenrio que comecei a preocupar-me em empreender uma anlise mais profunda acerca da formao do Professor de Matemtica, na sua fase inicial e, em especial, acerca dos estudos de Estatstica. Essa preocupao viria a se transformar na questo de pesquisa do meu projeto de doutorado. Como inicialmente formulada, a questo de pesquisa estava assim enunciada: Que conceitos, procedimentos metodolgicos e posturas so mais apropriados para o tratamento

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das ideias estatsticas nos cursos de Licenciatura em Matemtica, de modo a proporcionar aos professores em sua formao inicial8 tanto o desenvolvimento das ideias estatsticas quanto a formao pedaggica?. Posteriormente, ela passou a ser enunciada na forma: Que prticas os professores formadores desenvolveram no sentido de evidenciar e fortalecer os nexos entre as prticas de formao estatstica e as de formao pedaggica? Tal mudana deve-se, em grande parte, aos estudos tericos que realizei, a partir da abordagem histrico-cultural de origem em Vygotsky, o que me levou Teoria da Aprendizagem Situada de Lave e Wenger (1991) e Teoria Social da Aprendizagem de Wenger (2001). Ao dialogar com tais autores, tal como Goos (2004), percebi queconceitualizar a aprendizagem como participao crescente em uma comunidade de prtica levanta duas questes importantes: primeira, que tipo de prticas desejamos que os alunos participem; e segunda, que aes especficas deveria um professor empreender para desenvolver a participao dos estudantes? (GOOS, 2004, p. 283)

Foi ento que a teoria estudada levou-me a sentir necessidade de modificar a questo inicial de pesquisa9. Em conjunto, as primeiras narrativas, as reflexes sobre a minha prpria trajetria profissional e a teoria estudada levaram-me a observar que, ao perguntar-me especificamente sobre conceitos, procedimentos metodolgicos e posturas a serem adotados na formao inicial do professor de Matemtica, eu havia reduzido o processo de aprendizagem e a ideia de prtica docente, bem como o contexto em que essa prtica/aprendizagem se d. Percebi, ainda, que a segunda formulao do problema me permitiria, com mais desenvoltura, tomar unidades de anlise que fossem capazes de englobar simultaneamente tanto as pessoas entrevistadas, as suas atividades e os contextos em que elas se desenvolvem/desenvolveram quanto a sua participao histrica e negociada na comunidade mais ampla dos que ensinam estatstica na Licenciatura em Matemtica. A partir dessas consideraes, o problema de pesquisa ganhou novos8

O adjetivo inicial questionvel, pois o aprender a ser professor no se inicia necessariamente com a insero num curso de licenciatura. Entretanto, entendo os cursos de Licenciatura como incio sistemtico desse processo assim, mantenho o termo formao inicial. 9 O conceito de prtica, que agora faz parte do enunciado da questo, ser discutido no captulo 3, bem como o conceito de Comunidade de Prtica.

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Captulo 2

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contornos, passando a ser enunciado com o uso de alguns elementos tericos. Nessa mudana do enunciado pude perceber algo que foi discutido no grupo PraPeM (Prticas Pedaggicas em Matemtica): o novo enunciado, de certa forma, revelava que minha viso de professor havia sido agregada uma viso de pesquisador. De qualquer modo, os dois enunciados foram elaborados a partir de um mesmo objetivo, que produzir compreenses que possam levar elaborao de sugestes para a formao inicial do professor de matemtica, sugestes essas que tenham como foco um tipo de abordagem das ideias estatsticas capaz no s de desenvolv-las, mas tambm de auxiliar na efetiva formao pedaggica do licenciando em matemtica. Explicitados problema e objetivos, cabe colocar, ainda, como prenunciado, algumas consideraes sobre o estudo epistemolgico realizado, ao qual se seguiro as consideraes sobre Memria.

2.3 O contexto epistemolgico da pesquisa Para contextualizar, na epistemologia, esta pesquisa, penso ser importante explicitar o que entendo por cincia. Assumo que a cincia um tipo de conhecimento humano o conhecimento cientfico -, pois o conceito de conhecimento mais amplo, englobando tambm o conhecimento cotidiano, o mtico, o filosfico, o esttico, o religioso, entre outros. Todos esses tipos de conhecimentos, que so prticas sociais carregadas de conotaes ideolgicopolticas, so muito importantes no desenvolvimento do ser humano, seja individual ou coletivamente. Entretanto, com a constituio do cnone da modernidade ocidental que se deu no incio do sculo XIX , houve uma sobreposio do conhecimento cientfico em relao aos outros tipos de conhecimento, principalmente porque esse pensamento era adequado aos interesses da burguesia ascendente do sculo XVIII, como bem coloca Boaventura Santos (2005). Foi a partir de ento que as universidades e as escolas bsicas passaram a ser os representantes oficiais para a construo e divulgao desse conhecimento.

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Em particular, entendo que o conhecimento cientfico traz uma viso de realidade, tem uma intencionalidade descrever/explicar, compreender e/ou transformar/agir sobre essa realidade , est sempre preocupado com os critrios de validao e pblico, isto , est disponvel a todos os interessados. Uma outra caracterstica que considero importante nesse conjunto que ele nunca se fecha, nunca est pronto, dinmico e est em permanente constituio; pois, a qualquer momento, novos elementos podem ser includos e alguns outros, descartados. Sobretudo, no podemos esquecer que tambm o conhecimento cientfico palco de interveno poltica, pois a construo de conhecimentos no ideolgica ou politicamente neutra como qualquer outra prtica social. Contudo, vale dizer, a concepo de cincia no unnime; de fato, as discusses acerca do que cincia, de quais so as suas caractersticas, de quais so os mtodos vlidos, dentre outras, tm ocupado grandes estudiosos. Entre eles destaco Habermas (1982) que fala da cincia no apenas como uma possibilidade de descrever, explicar e controlar um objeto ou fenmeno; mas tambm ressalta que ela, a cincia, capaz de compreender objetos e sujeitos e, ainda, concebe a ao cientfica como possibilidade real de transformao da situao posta. Habermas (1982) considera que em todo trabalho cientfico o pesquisador est orientado pelas suas vises de mundo e pelas pretenses que possui com relao ao objeto ou fenmeno que estuda. Vises e pretenses que no so construdas isoladamente pelo cientista, mas por ele, como ser no mundo com o outro. Assim, o critrio que esse autor utiliza para discutir a produo de conhecimento cientfico so as relaes dos seres humanos com o mundo e com eles prprios. A partir da, ele aponta trs grandes interesses que orientam o trabalho de conhecimento da realidade, bem como as maneiras de relacionar o sujeito com o objeto em cada um dos casos. Segundo Habermas (1982), os trs grandes interesses so: 1) o tcnico de controle que pretende conhecer, explicar, prever e controlar, 2) o dialgico de consenso que busca aprimorar a comunicao, interagir e compreender e 3) o crtico emancipador para agir, transformar e emancipar. A cada um desses interesses Habermas (1982) associa os enfoques bsicos da pesquisa, o empricoanaltico, o histrico-hermenutico e o crtico-dialtico.

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Ele explica ainda que: possvel definirmos uma conexo especfica entre regras lgicomatemticas e o interesse como guia do conhecimento, no mbito de trs categorias do processo de pesquisa. No mbito da viso emprico-analtica de cincia, introduz a teoria crtica um interesse cognoscitivo terico; no mbito da cincia histrico-hermenutica, um interesse voltado prtica, e, no mbito da cincia orientada criticamente, um interesse cognoscitivo libertador. (HABERMAS, 1975, p.295- itlico no original)

Essa articulao apresentada por Habermas (1982) se fundamenta na tese da inseparabilidade do pensamento humano das trs dimenses fundamentais da vida humana: o trabalho, a linguagem e o poder, as quais se relacionam com os trs tipos de interesses humanos: o tcnico de controle, o prtico de consenso e o crtico emancipador. Assim, a qualquer interesse que esteja associada, a construo de conhecimentos cientficos, a prtica cientfica uma prtica social, visto que acaba por interferir na realidade social da qual ela prpria parte. Sanchez Gamboa (1998) explica que, quando o interesse tcnico e de controle o que motiva a pesquisa, esta planejada para propiciar informaes que permitam manipular e controlar os objetos investigados por meio de processos tambm controlados e objetivados. Tal interesse deve resultar em conhecimentos que levem ao desenvolvimento das foras produtivas e, particularmente, da relao dos seres humanos com a natureza, isto , deve dar origem ou aprimorar processos vinculados ao mundo do trabalho. A esse interesse se associou as Cincias Naturais e as Exatas e se tentou abarcar tambm o campo social e subjetivo. O conhecimento associado a esse interesse se d por meio da matematizao, visto que nessa perspectiva a Matemtica se constitui na possibilidade concreta de prever e de manipular. Assim, esta cincia utiliza tcnicas quantitativas na tentativa de garantir a objetividade dos dados, de origem emprica, e a neutralidade com relao ao sujeito. Quanto atuao dos cientistas, est implcita uma conscincia absoluta, onipotncia terica e autossuficincia dos mtodos. O paradigma cientfico, associado ao interesse de controle, no aceita que a subjetividade se faz presente na pesquisa, e esse conhecimento cientfico dito objetivo. Tambm, nessa concepo de cincia, rechaada a ideia que assumo como verdadeira ao longo de todo este trabalho

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de que todo olhar, inclusive o cientfico, como prtica que se d a partir de algum local scio-historicamente marcado, atravessado por conotaes ideolgicas. Foi com essa concepo de cincia, bem como com esse tipo de interesse associado a ela, e com esse tipo de ao do cientista que tive contato durante a licenciatura. verdade que disciplinas tais como Psicologia, Didtica e at mesmo a Estatstica, poderiam ser entendidas/enfocadas de uma outra forma; mas a fora das disciplinas matemticas acabou por sobrepuj-las visto que os professores de tais disciplinas tambm adotavam, em suas abordagens, tal viso de conhecimento cientfico. De fato, a concepo de cincia ali presente sustentava-se no conhecimento matemtico compreendido como uma linguagem universal, nica e exata, produzida por poucos sujeitos que tm o dom, e no como uma prtica social, um construto histrico-poltico-social. Em conjunto, as disciplinas do Curso de Licenciatura em Matemtica produziram marcas, ou as acentuaram, tornando natural e isenta de questionamento a concepo de cincia que se relaciona ao paradigma empricoanaltico. Naquele momento de minha trajetria, no tive contato com o segundo interesse na produo cientfica, identificado por Habermas(1982): o dialgico, que est associado ao enfoque histrico-hermenutico. Este, originado nas cincias humanas e sociais, concebe o real como fenmeno "contextualizado", preocupa-se com a capacidade humana de produzir smbolos para comunicar significados, assumindo que o processo cognitivo se realiza por meio de mtodos interpretativos. Como coloca Habermas (1982), o acesso aos fatos ocorre por meio da compreenso do sentido, em lugar da observao. Os fenmenos no so isolados ou analisados, so compreendidos na sua complexidade por meio de um processo de recuperao de contextos e significados, diz Sanchez Gamboa (1998). Realmente, segundo essa tendncia, o interesse pela compreenso, pelo dilogo entre sujeitos e, desse modo, o eixo central do conhecimento no est no objeto e, sim, no sujeito que interpreta, que conhece, que d sentido ao mundo e aos fenmenos, que procura compreender a intersubjetividade em relao a possveis significados das aes, dos discursos, dos gestos, dos ritos, dos textos, etc. Desse modo, segundo essa vertente, conhecer interpretar e, ento, existe o predomnio de elementos subjetivos, prprios da interpretao. Sanchez Gamboa (1998)

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explica que, nesse caso, o critrio de verdade no reside na pretendida objetividade (concordncia entre o real e o intelecto); a verdade resultado de consensos (as triangulaes) entre as diversas linguagens ou manifestaes do fenmeno ou entre os vrios interlocutores que participam do processo de elaborao desse conhecimento. Assim se assume que no existe uma verdade nica, mas um discurso de verdade. O carter relativo da verdade acentuado pela assuno de que o consenso ocorre em um determinado momento, em um contexto, ou em um cenrio histrico especfico: algo verdade em um determinado grupo, em determinado momento; em outro momento ou contexto, outra verdade, tem outro significado. Voltando exposio das reflexes acerca da minha prpria trajetria na constituio do local de onde falo , cabe explicitar que no s o fato de ministrar a disciplina de Introduo Metodologia da Pesquisa Cientfica, mas principalmente meus estudos do doutorado tm provocado rupturas com as minhas antigas concepes levandome aproximao ao enfoque histrico-hermenutico da cincia. Tais fatos possibilitaramme (re)pensar e questionar antigas concepes. Assim, ao propor uma pesquisa sobre a formao de professores, cujo interesse compreender as prticas de formao pedaggica e de formao estatstica de um grupo de professores formadores experientes, dispus-me a empreender uma nova experincia em minha vida acadmica. Este enfoque privilegia o processo interpretativo de construo de conhecimentos, onde h o predomnio de elementos subjetivos, prprios da interpretao. Por essa razo, nesta pesquisa, o acesso aos fatos dado por meio da compreenso dos sentidos, por meio de um processo de recuperao de contextos e significados materializados nas narrativas. Saliento que, segundo a perspectiva agora adotada, para a validao do processo de compreenso, necessrio saber mais acerca deste sujeito o pesquisador , por isso, foi apresentado um memorial no captulo anterior. Mas este se complementa, visto que, na introduo de cada captulo, exponho circunstncias e prticas de minha trajetria profissional. tambm a importncia dada ao sujeito intrprete do fenmeno estudado que justifica a apresentao do texto do relato da pesquisa na primeira pessoa. Reconheo, pois, que nesta pesquisa o maior interesse o dilogo, e que as negociaes de significados e as subjetividades so muito importantes. Mas um contato

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com um outro tipo de pesquisa, relacionada a outro tipo de interesse o emancipador tambm esteve e continua presente na minha aproximao da Educao. Quando o terceiro interesse identificado por Habermas(1982) o crtico emancipador orienta a pesquisa, a atividade intelectual reflexiva se organiza para desenvolver a crtica e alimentar a prxis (teoria e prtica) em direo da transformao do real, do status quo. Nesse caso, busca-se liberar o sujeito dos diferentes condicionantes e situaes que lhe foram postas, superando situaes de alienao e de explorao das pessoas pelas pessoas ou destas para com a natureza, muitas vezes, de maneira devastadora. Para tanto, o enfoque crtico-dialtico trata de apreender o fenmeno em seu trajeto histrico e em suas inter-relaes com outros fenmenos, busca compreender os processos de transformao, suas contradies e suas potencialidades. Sob esse enfoque, a funo maior do conhecimento a transformao; ele s tem sentido quando revela as alienaes, as opresses e as misrias cotidianas. Por essa razo, o pesquisador crtico-dialtico questiona criticamente os determinantes econmicos, sociais e histricos, procura revelar as contradies que potencializam a ao transformadora para, ento, sugerir aes (prxis) emancipadoras. Nesse tipo de pesquisa, a prxis, elevada categoria epistemolgica fundamental, se transforma em critrio de verdade e de validade cientfica. Na minha prpria trajetria, possvel dizer que um maior contato com as pesquisas e prticas educacionais, em paralelo com os estudos acerca da epistemologia da cincia, revelaram-me que a educao pode ser compreendida tanto no interior do paradigma dialgico, quando do crtico-dialtico. Em especial, as pesquisas e prticas da Educao Estatstica podem estar vinculadas a um tipo de interesse ou a outro. De fato, algumas pesquisas dessa rea buscam uma melhor forma de ensinar estatstica, para que os alunos possam atender mais apropriadamente s necessidades do mercado de trabalho, ou adequarse ao statos-quo. Por exemplo, ao falarem sobre o exerccio da cidadania, os professores enfatizam a adequao do indivduo s necessidades da sociedade assim como se apresenta. H, porm, os que desejam ensinar a estatstica como forma de fazer com que ela possa ser compreendida como instrumento de anlise e reflexo da realidade scio-histricoeconmica e poltica para que se torne instrumento de mudanas. , tambm, a este ltimo tipo de interesse que minha pesquisa se vincula.

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E foi a partir dele que, desde o incio da pesquisa, evidenciou-se a necessidade de escolher caminhos capazes de levar a uma apreenso mais completa do meu objeto de estudo, focalizando-o como um todo e revelando a multiplicidade de aspectos presentes nele. Para tanto, a opo escolhida foi tomar um pequeno grupo de professores como sujeitos de pesquisa, o que permite revelar diferentes prticas, trajetrias, modos de ensinar. Mas a existncia de mltiplos sujeitos no se deve a uma ideia de comparao, e, sim, ideia de enriquecimento, de trocas de experincias que suas diferentes prticas podero proporcionar. Para produzir material de anlise acerca das experincias desses professores, foram escolhidas as narrativas biogrficas recurso especialmente valioso para "obter informaes sobre o que as pessoas e grupos sabem, acreditam, esperam, sentem e desejam fazer, fazem ou fizeram, bem como suas justificativas ou representaes a respeito desses temas" (VASCONCELOS, 2002, p.220). Nas entrevistas realizadas, a inteno era captar a viso dos professores sujeitos da pesquisa a respeito do ensino de Estatstica, de forma geral, detectar os mtodos utilizados por eles ao abordarem conceitos estatsticos e, ainda, conhecer suas prticas e o desenvolvimento simultneo e integrado de prticas de formao estatstica e de prticas de formao pedaggica. Ao entrevistar os sujeitos, no busquei comprovaes de supostas verdades, confrontando as suas narrativas com as suas prticas e avaliando se estas so coerentes. Interessou-me considerar os mecanismos que engendraram as narrativas, as prticas sociais que incitaram a sua produo, bem como as marcas e experincias que elas podem gerar. Alm disso, considerei, a partir da abordagem socio-histrico-cultural, a premissa de que a maneira de os sujeitos se relacionarem com o ensino de estatstica no se circunscreve sua atuao em sala de aula. Isto , esteve presente a ideia de que as pessoas so afetadas pelas inmeras influncias que recebem ou exercem em diversos contextos e, portanto, que o papel singular que desempenham como formadores de professores de matemtica deve-se a um processo mais amplo no qual influenciam, por exemplo, o contexto familiar, as suas leituras, sua formao inicial e sua participao em comunidades cientficas, entre outras.

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Desde o incio da pesquisa, estava clara para mim a pertinncia das narrativas biogrficas, como mtodo de recolha de dados para a realizao deste trabalho. Mas, devo confessar que o Professor Antnio Miguel, ao solicitar, durante o processo de qualificao do projeto de tese, a incluso no texto de reflexes acerca disso, acabou por lanar-me um grande desafio. O desafio estava no fato de que no se tratava mais de um matemtico/estatstico discutindo e comunicando, principalmente aos seus colegas das ditas cincias exatas, as concepes e os mtodos utilizados para se criar conhecimentos no dito campo das cincias humanas. Tambm no se tratava apenas de discutir o gnero discursivo narrativo, mas sim de explicitar que o compartilhamento da memria entre professores, ao tornar possvel a emerso de um elo de pertena a uma mesma comunidade, evidencia uma identidade coletiva e torna-nos mais capazes de reavaliar as nossas prticas e imprimir novos significados a elas, estabelecendo outras perspectivas para a nossa prpria formao. Cumprido o desafio, penso que, de certo modo, talvez a discusso realizada tenha revelado, com mais clareza, a forte conexo histrica entre o mtodo de coleta de dados as narrativas biogrficas e o mtodo de anlise a teoria de aprendizagem em comunidades de prtica utilizados. o que procuro mostrar na prxima seo.

2.4 Refletindo sobre memrias e narrativas Para os romanos, a memria era uma habilidade que deveria ser continuamente exercitada, pois ela era considerada indispensvel arte retrica, aos discursos proferidos na gora. Sua importncia residia no fato de que, para convencer e emocionar os ouvintes, o orador no deveria recorrer aos registros escritos. Mas, para os gregos, a memria era considerada sobrenatural, um dom de Mnemosine, a deusa da reminiscncia, protetora das artes e da histria. Era por meio do seu dom que os humanos em especial os poetas podiam lembrar o passado e transmiti-lo aos demais. E, assim, a reminiscncia funda a cadeia da tradio. Que transmite o acontecimento de gerao em gerao. (...). Ela tece a rede que em ltima instncia todas as histrias constituem entre si, disse Benjamim (1994), em O Narrador.

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Memria pode ser compreendida, ento, como a capacidade humana de aprender, armazenar e recordar uma informao, de trazer tona imagens do passado. Halbwachs (1990, p.160) nos diz que a memria d-nos a iluso de encontrar o passado no presente, mas que buscamos por ela como uma estratgia para conhecer melhor a ns mesmos. Para esse autor, a memria compe o suporte essencial de uma identidade individual e coletiva. Em especial, Halbwachs (1990) nos diz que a memria coletiva refora, ou constitui um sentimento de pertena a um grupo, classe ou categoria que participa de um passado comum. Para ele, mesmo a memria aparentemente mais particular, remete a um grupo, visto que o indivduo carrega, em si, a lembrana, mas est sempre interagindo com a sociedade, e no contexto das relaes que a mantm que constri suas lembranas. Assim, ressalta, [...] cada memria individual um ponto de vista sobre a memria coletiva, [...] este ponto de vista muda conforme o lugar que ali eu ocupo, e [...] este lugar mesmo muda segundo as relaes que mantenho com outros meios (HALBWACHS, 1990, p. 51). Entretanto, memria no histria; histria a narrativa que montamos, a partir de nossa memria. De forma seletiva, grupos e indivduos articulam suas memrias, suas experincias passadas, formulando uma narrativa histrica acerca de suas trajetrias. Por isso que Catani e Vicentini, (2003) ressaltam que existe umdistanciamento temporal que atua em todo processo memorialstico, apagando determinadas experincias e intensificando outras, mas operam tambm uma seleo, ao escolher os fatos considerados dignos de ser divulgados e ao privilegiar determinados aspectos em detrimento de outros, em busca de dar sentido ao relato da prpria vivncia. (CATANI e VICENTINI, 2003 p.153)

Connelly e Clandinin (1995) e Catani (1998) tambm ressaltam que memria vida, est em permanente transformao, aberta dialtica da lembrana e do esquecimento, suscetvel a longas latncias. Bosi (1994) diz com bastante propriedade que lembrar no reviver, mas, sim, re-construir e re-elaborar as experincias vividas. De fato, as narrativas so construdas e reconstrudas segundo nossas perspectivas presentes e, ao mesmo tempo, constituem a base a partir da qual planejamos o nosso futuro.

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por conta dessa caracterstica das narrativas que Benjamin, em Sobre o conceito da Histria, afirma:[...] A verdadeira imagem do passado perpassa, veloz. O passado s se deixa fixar, como imagem que relampeja irreversivelmente, no momento em que reconhecido [...] irrecupervel cada imagem do presente que se dirige ao presente, sem que esse presente se sinta visado por ela (BENJAMIN, 1987)

tambm esse autor quem salienta a importncia das narrativas no sistema corporativo medieval, ou nas chamadas comunidades de ofcio. Benjamim (1994) lembra que o mestre sedentrio e os aprendizes, muitos deles migrantes, trabalhavam juntos na mesma oficina. Cada mestre, diz ele, tinha sido um aprendiz ambulante, antes de se fixar em sua ptria ou no estrangeiro e, enquanto realizava trabalhos manuais, narrava suas peripcias relativas s viagens realizadas desse modo, a origem da narrativa estava na autoridade. Nas oficinas, lembra o autor, havia uma associao entre saberes das terras distantes, trazidos para casa pelos migrantes, com o saber do passado, recolhido pelo trabalhador sedentrio. E, enquanto mestre e aprendizes trabalhavam, afirma Benjamim (1994), mais o ritmo do trabalho se apoderava deles, histrias eram narradas. Enquanto ouviam histria, esquecendo-se de si mesmas e do trabalho e gravando o que era ouvido, as pessoas tornavam-se, elas prprias, bons narradores. Os protagonistas da histria eram e so as pessoas. Elas so, ao mesmo tempo, narradores de suas narrativas, mas tambm agentes. Assim, a memria de cada um dos trabalhadores tinha o valor social de potencializar a identidade do prprio grupo. Mas, pontua Benjamim, quando deixamos de fiar e de tecer, as narrativas foram perdendo terreno:Contar histrias sempre foi a arte de cont-las de novo, e ela se perde quando as histrias no so mais conservadas. Ela se perde porque ningum mais fia ou tece enquanto ouve a histria. Quanto mais o ouvinte se esquece de si mesmo, mais profundamente se grava nele o que ouvido. (...) Assim se teceu a rede em que est guardado o dom narrativo. E assim essa rede se desfaz hoje por todos os lados, depois de ter sido tecida, h milnios, em torno das mais antigas formas de trabalho manual. (BENJAMIM,1994)

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certo que, mesmo com a industrializao, havia algumas excees, mas, de modo geral, passamos a aceitar apenas informaes que pudessem ser comprovadas imediatamente e transmitidas por via escrita em detrimento da oralidade. De fato, Benjamim nos faz ver que, na atualidade,[...] a informao aspira a uma verificao imediata. Antes de mais nada, ela precisa ser compreensvel "em si e para si". Muitas vezes no mais exata que os relatos antigos. Porm, enquanto esses relatos recorriam freqentemente ao miraculoso, indispensvel que a informao seja plausvel. Nisso ela incompatvel com o esprito da narrativa. Se a arte da narrativa hoje rara, a difuso da informao decisivamente responsvel por esse declnio. (BENJAMIM,1994)

Perceber, principalmente por meio dos princpios presentes nos mtodos qualitativos, que tambm os relatos cientficos possuem subjetividade, permitiu um retorno ao uso das narrativas que passaram a ser utilizadas no s como mtodo de pesquisa, mas, inclusive, de ensino em especial, na formao de professores. Cunha (1997) ressalta a grande utilizao das narrativas biogrficas nas teses e dissertaes brasileiras:Inicialmente tnhamos a perspectiva de que as narrativas constituam a mais fidedigna descrio dos fatos e era esta fidedignidade que estaria "garantindo" consistncia pesquisa. Logo nos apercebemos que as apreenses que constituem as narrativas dos sujeitos so a sua representao da realidade e, como tal, esto prenhes de significados e reinterpretaes. Conseguimos, ainda, perceber que, antes disto ser um problema, era o cerne da pesquisa scio-antropolgica. (CUNHA, 1997)

Aceitava-se, enfim, que nas narrativas biogrficas, ficam impressas as marcas do narrador como os vestgios das mos do oleiro no vaso de argila (BENJAMIN, 1994), e que isso no as torna instrumentos menos cientficos. Por sua vez, Lovisolo (1989), Pollak(1989) e Catani (1998) tambm ponderam que, unida ao reconhecimento da subjetividade da memria, est a ideia de autonomia individual e coletiva e, tambm, de constituio de uma identidade que devem ser alguns dos resultados da formao e do desenvolvimento docente. Entretanto, a subjetividade da pesquisa com o uso de narrativas biogrficas vai alm da sua componente memorialstica, pois, como pontua Rego (2003, p.82), cada pesquisador estabelece um tipo de relao diferente com o sujeito e, nesse

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sentido, cada entrevista uma produo que se d na interao ocorrida entre narrador e entrevistador. Cunha (1997) tambm fala sobre a importncia das narrativas biogrficas na formao de professores tanto como mtodo de pesquisa quanto de ensino nessa rea. Ela assinalaque a desconstruo/construo das prprias experincias, tanto do professor/pesquisador como dos sujeitos da pesquisa e/ou do ensino, por meio das narrativas biogrficas possui um carter profundamente formativo. Para argumentar nesse sentido, Cunha(1997) usou a afirmao de Ferrer (1995, p.178)10 de que a historicidade narrativa e a expresso biogrfica dos fatos vividos por um sujeito, quando compartilhados com outros sujeitos, torna-se um fator de desalienao individual e coletiva, que permite situar esses outros numa nova posio no mundo. Por sua vez, Vasconcelos (2000, p. 09) assinala que a desalienao do qual Ferrer nos fala advm do fato de que as narrativas biogrficas dos professores nos permitem como profissionais em formao - conhecer bem mais do que a histria oficial, na medida em que apontam para aquilo que fabricado, inventado ou transmitido como realidade, sinalizando tambm para tudo o que escondido, obscurecido, mascarado e precisa ser recuperado, libertado do silncio, tirado da penumbra. Desse modo, no contexto das pesquisas em formao de professores, o uso das narrativas biogrficas possibilita ao pesquisador, ao sujeito/formador e em formao e aos professores em formao faces que podem ser de um nico personagem - perceber que o individual e o social esto interligados, que nosso espao de atuao constitudo, inclusive, de imaginao, de luta, de acatamento, de resistncia, de resignao, de criao e de compartilhamento. Apesar disso, como afirma Souza (2000,) a histria da vida profissional de professores era pouco considerada, at que a crise no sistema de ensino pblico brasileiro, corroendo simultaneamente a qualidade do ensino e a identidade dos professores, obrigou pesquisadores a restabelecer a relao colocada por Halbwacks entre identidade e memria (...) (SOUZA, 2000, p. 18). , sobretudo, a partir dessa relao que a memria de um grupo de professores experientes no ensino de Estatstica, resgatada por meio das suas narrativas biogrficas,FERRER CERVER, Virgnia. La crtica como narrativa de las crisis de formacin. In: LARROSA, Jorge. Djame que