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“HOJE, VIVEMOS DOIS SENTIDOS DA NATUREZA: AQUELE ANCESTRAL, DO "CONCEDIDO" PLANETÁRIO, E AQUELE MODERNO, DO "ADQUIRIDO" INDUSTRIAL E URBANO. PODE-SE OPTAR POR UM OU OUTRO, NEGAR UM EM PROVEITO DO OUTRO; O IMPORTANTE É QUE ESSES DOIS SENTIDOS DA NATUREZA SEJAM VIVIDOS E ASSUMIDOS NA INTEGRIDADE DE SUA ESTRUTURA ANTOLÓGICA, DENTRO DA PERSPECTIVA DE UMA UNIVERSALIZAÇÃO DA CONSCIÊNCIA PERCEPTIVA - O EU ABRAÇANDO O MUNDO, FAZENDO DELE UM UNO, DENTRO DE UM ACORDO E UMA HARMONIA DA EMOÇÃO ASSUMIDA COMO A ÚNICA REALIDADE DA LINGUAGEM HUMANA.” Manifesto do Rio Negro. Pierre Restany e Frans Krajcberg. 1978. Nascido em Cachoeira, Ordep Serra é escri- tor, doutor em antropologia e professor da UFBA. Além disso, fez parte do projeto dos Cursos Livres - realizado por meio de parceria entre o MAM-BA e a Universidade Federal da Bahia. Aqui ele nos fala sobre a relação entre arte e manifestações de cultura popular do ponto de vista da antropologia. COMO SE PODE ENTENDER A CULTURA POPULAR APRESENTADA NO CIRCUITO DE GALERIAS? Povos com ricos acervos de criações estéti- cas não as expuseram nunca em galerias. Essas criações eventualmente foram expostas assim por colecionadores ocidentais que se impressionaram com sua beleza. E influen- ciaram a arte dos lugares onde foram expostas. Recorde-se que Picasso reconheceu como uma das fontes de inspiração de seu cubismo a visita que fez a uma exposição em que pôde contemplar magníficas máscaras africanas que não foram feitas para ser expostas desse jeito. Etnógrafos têm levado a museus muitas peças que no mundo ociden- tal são classificadas como “arte”, embora não sejam definidas assim no lugar de origem. Uma avaliação estética leva a classificá-las desse jeito em nosso meio. As danças e festas populares podem consti- tuir, ou encerrar, manifestações artísticas notáveis, de grande beleza e valor. Nem sempre isso acontece, mas os exemplos existentes são expressivos. A arte do samba de roda, por exemplo, que sempre se prati- cou nas festas populares baianas, veio a ser reconhecida como “patrimônio da humanidade” por sua excelência estética. PANFLETO SANITÁRIO 03 Em 1996 a editora da Universidade Federal do Rio de Janeiro publicou a correspondência entre dois nomes fundamentais da arte contemporânea brasilei- ra: Lygia Clark e Hélio Oiticica. Nas cartas que trocaram entre 1964 e 1974, os artistas comparti- lhavam muitas experiências e impressões. No trecho abaixo, de Paris, Lygia Clark escreve ao seu amigo Hélio sobre o que sentiu em seu contato com as peças exibidas no Musée de l'Homme: Meu querido, Acabo de conhecer o Museu do Homem - se eu tivesse a chance na vida e me perguntassem o que eu veria (só uma coisa) diria sem hesitar que era o tal Museu. É a coisa mais impressionante que já vi. Mesmo os pintores primitivos Cimabue e Celetto, os meus prediletos, não substituiriam esta escolha e seriam, mesmo assim, postos de lado. O que mais me maravilhou (por Deus) foi a forma totêmica absolutamente integrada em vasos brancos, bancos, pratos, etc., etc., sem perder sua força absoluta, sem cair em estilizações e sempre formando uma identidade expressiva e profunda na parte formal, funcional e visual. Você quando vê não se contenta em olhar. Você precisa vivenciar o achado espeta- cular do desenvolvimento da fusão do totem e da forma-vaso-forma-prato, forma-barco etc. É ao meu ver um problema arquitetônico. LYGIA/HELIO PING PONG PERFORMANCE é RISCO! E se nós encarássemos os grupos de maracatu como coletivos de performance? A 3ª Bienal da Bahia questiona: É tudo Nordeste? - e traz elementos da arte popular para a discussão com Ludmila Britto e Giltanei Amorim, dois artistas que vivem e trabalham com performance na cidade de Salvador. MUSEU DE ARTE MODERNA DA BAHIA - JANEIRO 2014 “Acredito nessa junção entre arte e vida, em pensarmos a vida como uma grande performance – ou escultura social, como disse Joseph Beuys -, em que todo gesto é potencialmente único, e todo homem pode ser um ’artista’. Os artistas utilizam materiais, linguagens e estratégias muito diversifi- cados, e há um diálogo da arte com diferentes áreas do conhecimento, como filosofia, sociologia e antropologia, gerando uma série de desterritoria- lizações que desconstroem conceitos fechados”, explica Ludmila, do Grupo de Interferência Ambiental (GIA). Para Giltanei Amorim,”cada manifestação é singular e impossível de ser reproduzida, e na singularidade do seu acontecimento produz discursos e subjetividades únicos e irreproduzíveis, mesmo que muitas vezes os seus fazedores não estejam conscientes disso. Nesse ato de simples fazer, a performance da manifestação popular explicita suas coerências internas, sua coesão conceitual”. Ludmila completa: “Existem essas ações que circu- lam pela cultura da vida urbana e são fruto de ações reais, de corpos reais. Elas se diluem no tempo e espaço do seu acontecimento. São atos únicos e cheios de energia, como é a vida. E, logo depois, desaparecem na memória dos espectadores, escapando das tentativas de regulamentação e de controle”. Giltanei conclui: “As tentativas de definição do que seria performance ou de instaurar a performance enquanto linguagem seguem sem encontrar um terreno estável. Na contemporaneidade, onde a fragmentação do corpo e as fronteiras entre as artes chegam ao seu apogeu, parece que tais investimentos se tornam ainda mais fracassados. As manifestações populares promovem esses deslocamentos de modo imprevisível, e a relação entre público e obra deixa de existir. Todos no jogo instaurado das manifestações populares assumem o acontecimento como autor”. Em cada edição do Panfleto Sanitário fazemos uma pergunta, que pode ser respondida por uma entre as diversas formas de previsão astral, como a Numerologia ou o Tarô. Aos Búzios nós perguntamos: - O que mais temos que temer agora? - Gente. Coração de gente é terra onde ninguém passeia. http://nickcaveart.com/ Bruno Marcello ESPÍRITO do TEMPO MANIFESTO foto reprodução

Panfleto Sanitário #03

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Page 1: Panfleto Sanitário #03

“HOJE, VIVEMOS DOIS SENTIDOS DA NATUREZA:

AQUELE ANCESTRAL, DO "CONCEDIDO" PLANETÁRIO,

E AQUELE MODERNO, DO "ADQUIRIDO" INDUSTRIAL

E URBANO. PODE-SE OPTAR POR UM OU OUTRO,

NEGAR UM EM PROVEITO DO OUTRO; O IMPORTANTE

É QUE ESSES DOIS SENTIDOS DA NATUREZA SEJAM

VIVIDOS E ASSUMIDOS NA INTEGRIDADE DE SUA

ESTRUTURA ANTOLÓGICA, DENTRO DA PERSPECTIVA

DE UMA UNIVERSALIZAÇÃO DA CONSCIÊNCIA PERCEPTIVA

- O EU ABRAÇANDO O MUNDO, FAZENDO DELE UM UNO,

DENTRO DE UM ACORDO E UMA HARMONIA

DA EMOÇÃO ASSUMIDA COMO A ÚNICA REALIDADE

DA LINGUAGEM HUMANA.”

Manifesto do Rio Negro.Pierre Restany e Frans Krajcberg. 1978.

Nascido em Cachoeira, Ordep Serra é escri-tor, doutor em antropologia e professor da UFBA. Além disso, fez parte do projeto dos Cursos Livres - realizado por meio de parceria entre o MAM-BA e a Universidade Federal da Bahia. Aqui ele nos fala sobre a relação entre arte e manifestações de cultura popular do ponto de vista da antropologia.

COMO SE PODE ENTENDER A CULTURA POPULAR APRESENTADA NO CIRCUITO DE GALERIAS?

Povos com ricos acervos de criações estéti-cas não as expuseram nunca em galerias. Essas criações eventualmente foram expostas assim por colecionadores ocidentais que se impressionaram com sua beleza. E influen-ciaram a arte dos lugares onde foram expostas. Recorde-se que Picasso reconheceu como uma das fontes de inspiração de seu cubismo a visita que fez a uma exposição em que pôde contemplar magníficas máscaras africanas que não foram feitas para ser expostas desse jeito. Etnógrafos têm levado a museus muitas peças que no mundo ociden-tal são classificadas como “arte”, embora não sejam definidas assim no lugar de origem. Uma avaliação estética leva a classificá-las desse jeito em nosso meio. As danças e festas populares podem consti-tuir, ou encerrar, manifestações artísticas notáveis, de grande beleza e valor. Nem sempre isso acontece, mas os exemplos existentes são expressivos. A arte do samba de roda, por exemplo, que sempre se prati-cou nas festas populares baianas, veio a ser reconhecida como “patrimônio da humanidade” por sua excelência estética.

PANFLETO SANITÁRIO 03

Em 1996 a editora da Universidade Federal do Rio de Janeiro publicou a correspondência entre dois nomes fundamentais da arte contemporânea brasilei-ra: Lygia Clark e Hélio Oiticica. Nas cartas que trocaram entre 1964 e 1974, os artistas comparti-lhavam muitas experiências e impressões. No trecho abaixo, de Paris, Lygia Clark escreve ao seu amigo Hélio sobre o que sentiu em seu contato com as peças exibidas no Musée de l'Homme:

Meu querido,Acabo de conhecer o Museu do Homem - se eu tivesse a chance na vida e me perguntassem o que eu veria (só uma coisa) diria sem hesitar que era o tal Museu. É a coisa mais impressionante que já vi. Mesmo os pintores primitivos Cimabue e Celetto, os meus prediletos, não substituiriam esta escolha e seriam, mesmo assim, postos de lado. O que mais me maravilhou (por Deus) foi a forma totêmica absolutamente integrada em vasos brancos, bancos, pratos, etc., etc., sem perder sua força absoluta, sem cair em estilizações e sempre formando uma identidade expressiva e profunda na parte formal, funcional e visual. Você quando vê não se contenta em olhar. Você precisa vivenciar o achado espeta-cular do desenvolvimento da fusão do totem e da forma-vaso-forma-prato, forma-barco etc. É ao meu ver um problema arquitetônico.

LYGIA/HELIO PING PONG

PERFORMANCE é RISCO!E se nós encarássemos os grupos de maracatu como coletivos de performance? A 3ª Bienal da Bahia questiona: É tudo Nordeste? - e traz elementos da arte popular para a discussão com Ludmila Britto e Giltanei Amorim, dois artistas que vivem e trabalham com performance na cidade de Salvador.

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“Acredito nessa junção entre arte e vida, em pensarmos a vida como uma grande performance – ou escultura social, como disse Joseph Beuys -, em que todo gesto é potencialmente único, e todo homem pode ser um ’artista’. Os artistas utilizam materiais, linguagens e estratégias muito diversifi-cados, e há um diálogo da arte com diferentes áreas do conhecimento, como filosofia, sociologia e antropologia, gerando uma série de desterritoria-lizações que desconstroem conceitos fechados”, explica Ludmila, do Grupo de Interferência Ambiental (GIA).

Para Giltanei Amorim,”cada manifestação é singular e impossível de ser reproduzida, e na singularidade do seu acontecimento produz discursos e subjetividades únicos e irreproduzíveis, mesmo que muitas vezes os seus fazedores não estejam conscientes disso. Nesse ato de simples fazer, a performance da manifestação popular explicita suas coerências internas, sua coesão conceitual”. Ludmila completa: “Existem essas ações que circu-lam pela cultura da vida urbana e são fruto de ações reais, de corpos reais. Elas se diluem no tempo e espaço do seu acontecimento. São atos únicos e cheios de energia, como é a vida. E, logo depois, desaparecem na memória dos espectadores, escapando das tentativas de regulamentação e de controle”.

Giltanei conclui: “As tentativas de definição do que seria performance ou de instaurar a performance enquanto linguagem seguem sem encontrar um terreno estável. Na contemporaneidade, onde a fragmentação do corpo e as fronteiras entre as artes chegam ao seu apogeu, parece que tais investimentos se tornam ainda mais fracassados. As manifestações populares promovem esses deslocamentos de modo imprevisível, e a relação entre público e obra deixa de existir. Todos no jogo instaurado das manifestações populares assumem o acontecimento como autor”.

Em cada edição do Panfleto Sanitário fazemos uma pergunta, que pode ser respondida por uma entre as diversas formas de previsão astral, como a Numerologia ou o Tarô. Aos Búzios nós perguntamos:

- O que mais temos que temer agora?

- Gente. Coração de gente é terra onde ninguém passeia.

http://nickcaveart.com/

Bruno Marcello

ESPÍRITO do TEMPO

MANIFESTO

foto reprodução