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1 O reino do Congo frente ao escravismo europeu (1483 - 1549) Considerações preliminares Paola Vargas Arana 1 Resumo: O objetivo desse artigo é problematizar o suposto colaboracionismo entre os primeiros líderes do Congo e o negócio escravista Atlântico lusitano. O Congo era uma sociedade completamente desconhecida tanto para europeus quanto para árabes e islamizados, e, portanto, o primeiro contato com o ocidente deve ser entendido dentro de um contexto geopolítico maior, capaz de situar o lugar que ocupou o reino do Congo no processo de instalação do projeto escravista Sul-Atlântico de iniciativa européia. Para isso, analisaremos o contexto do desembarco dos portugueses no Congo em 1483 e as relações que estabeleceram com os lusitanos, e questionaremos as interpretações historiográficas mais aceitas sobre esse primeiro encontro. Palavras-chave: Historiografia Sobre O Congo. Portugal. Metanarrativas. Tráfico Escravista Trans-Atlântico. Abstract: The purpose of this article is to discuss the alleged collaborationism among the first Congo leaders with the Trans-Atlantic slave trade. Congo was a completely unknown society both for Europeans and for Arabs; therefore the first contact with the West must be understood within a larger geopolitical context, capable of situating Congo society in the process ofthe Trans-Atlantic slave trade project of European initiative. To do this, we question mainstream historiographical interpretations about Portuguese landing in Congo in 1483,as well as the relationships established during the first period after the encounter. Keywords: Congo Historiography. Portugal. Metanarratives. Trans-Atlantic Slave Trade. 1. O Congo, nem islamizado nem cristianizado até a chegada dos lusitanos A bula papal RomanusPontifex 2 de 1455 outorgou o direito “exclusivo” à elite portuguesa de ocupar territórios africanose reduzir seus habitantes à escravidão mediante campanhas militares de guerra justa,com o argumento de reduzir a expansão do islã na África. 3 1 Estudante de doutorado em História Social - Universidade Federal de Rio de Janeiro. O artigo é produzido durante o primeiro ano de doutorado, com apoio económico do CNPq.

Paola Vargas Arana - Jornada de Estudos Históricos Manoel ... · Paola Vargas Arana 1 Resumo: O objetivo desse artigo é problematizar o suposto colaboracionismo entre os primeiros

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O reino do Congo frente ao escravismo europeu (1483 - 1549)

Considerações preliminares

Paola Vargas Arana 1

Resumo: O objetivo desse artigo é problematizar o suposto colaboracionismo entre os

primeiros líderes do Congo e o negócio escravista Atlântico lusitano. O Congo era uma

sociedade completamente desconhecida tanto para europeus quanto para árabes e islamizados,

e, portanto, o primeiro contato com o ocidente deve ser entendido dentro de um contexto

geopolítico maior, capaz de situar o lugar que ocupou o reino do Congo no processo de

instalação do projeto escravista Sul-Atlântico de iniciativa européia. Para isso, analisaremos o

contexto do desembarco dos portugueses no Congo em 1483 e as relações que estabeleceram

com os lusitanos, e questionaremos as interpretações historiográficas mais aceitas sobre esse

primeiro encontro.

Palavras-chave: Historiografia Sobre O Congo. Portugal. Metanarrativas. Tráfico Escravista

Trans-Atlântico.

Abstract: The purpose of this article is to discuss the alleged collaborationism among the first

Congo leaders with the Trans-Atlantic slave trade. Congo was a completely unknown society

both for Europeans and for Arabs; therefore the first contact with the West must be understood

within a larger geopolitical context, capable of situating Congo society in the process ofthe

Trans-Atlantic slave trade project of European initiative. To do this, we question mainstream

historiographical interpretations about Portuguese landing in Congo in 1483,as well as the

relationships established during the first period after the encounter.

Keywords: Congo Historiography. Portugal. Metanarratives. Trans-Atlantic Slave Trade.

1. O Congo, nem islamizado nem cristianizado até a chegada dos lusitanos

A bula papal RomanusPontifex2 de 1455 outorgou o direito “exclusivo” à elite

portuguesa de ocupar territórios africanose reduzir seus habitantes à escravidão mediante

campanhas militares de guerra justa,com o argumento de reduzir a expansão do islã na África.3

1 Estudante de doutorado em História Social - Universidade Federal de Rio de Janeiro. O artigo é produzido durante o primeiro ano de doutorado, com apoio económico do CNPq.

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Concedemos ao dito rei D. Afonso, entre várias outras mercês, a faculdade plena e livre de invadir, conquistar, atacar, vencer e subjugar quaisquer sarracenos ou pagãos4 e outros inimigos de Cristo onde quer que estivessem estabelecidos, bem como a seus reinos, ducados, principados, domínios, possessões e quaisquer bens móveis ou imóveis por eles retidos ou possuídos; e outrossim que pudesse reduzir a e escravidão5 perpétua as suas pessoas, reinos, ducados, condados, principados, domínios e possessões, e apropriar-se de seus bens, atribuindo-os a si e aos seus sucessores6

Nesse período as expansões territoriais eram legalizadas através das bulas papais, que

eram os documentos jurídicos que determinavam a possibilidade de ocupação e posse de

territórios dentro e fora da Europa.7 Por isso, depois da autorização papal se intensificou a

corrida lusitana por portos africanos, incluídos avanços sobre Alcácer-Seguer, a construção de

um forte em Arguim, uma linha de feitorias na costa de Marrocos, a invasão de áreas litorâneas

de Senegambia, Serra Leoa e Mina, e o arribo à ilha de São Tomé,até 1470.8 As redes

comerciais de escravizados e de produtos comerciais não foram uma novidade desse período,

como o analisa António Almeida Mendes, “na Antiguidade e na Idade Média, os portos do

Algarve, da Andaluzia e do Marrocos já eram estreitamente conectados por fluxos humanos e

econômicos regulares.”9 Porém, com a autorização papal as incursões na África se

intensificaram e se ampliaram, na procura de definir o contorno ocidental do continente e

verificar a existência de metais, especiarias, rotas de acesso, peles, tecidos, e pessoas

2Bula RomanusPontifex.Em De Albuquerque, L., e Santos, M. E. M. Portugaliaemonumenta africana. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, Vol. 1, 1993, p. 60 - 73. 3 A doutrina da guerra justa foi criada durante a antiguidade greco-romana, e é atribuída a Augustin de Hipona. A doutrina permitia aos cristãos fazer guerras justas contra os povos não cristãos, assim como transformar os prisioneiros dessas guerras em escravos, como forma de indulto à pena de morte. Foi utilizada durante toda a idade média e durante as guerras das cruzadas. Weckmann, Luis. Constantino el Grande y Cristobal Colón Estudio de la supremacía papal sobre islas, (1091-1493), México:FCE, 1992, p. 24. 4 Aqui se utilizam os termos, sarracenos que denominava aos islamizados, e, pagãos, para definir aqueles que decidiram não se converter às religiões abraâmicas. Esses termos mudaram de acordo aos debates teológicos de cada período, sendo utilizados outros como infiéis, hereges, mouros, idólatras, apóstatas, etc. 5 Importante salientar que o termo literal que a Bula original em latim utiliza é “servitutem” termo que significava “escravos” no império romano. O termo escravo foi acunhado entre os séculos XII e XIII quando se desenvolveu um mercado de pessoas eslavas cristãs ortodoxas e, ainda num período próximo à Bula, era apenas usado para referir a esse setor. Consideramos que um documento em latim produzido pelo Estado Pontifício usou o termo ‘servitutem’ por ser mais formal e aceito para referir à possibilidade de escravizar. Sobre a escravização de eslavos ver: Klein, Herbert S., Vidal Luna, Francisco. Slavery in Brazil, Cambridge: Cambridge University Press, 2010, p. 7 – 8. 6 Bula RomanusPontifex, 8 de Janeiro de 1455. Publicada em Madeira SantosEmilia e Albuquerque Luis.. PortugaliaeMonumenta Africana, vol. 1, Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1993, p. 69. Resulta importante que o termo África já é utilizado nessa Bula ver p. 67. 7Weckmann, Luis. Constantino el Grande y Cristobal Colón Estudio de la supremacía papal sobre islas (1091-1493). México: Fondo de cultura económico, 1992, p. 24. 8 Nunes Dias, Manuel. Descobrimento do Brasil (Processo conjuntural de longa duração). Porto Alegre:Edipucrs, 2000. 9 Almeida Mendes, António. “Brancos” da guiné, “contrabandistas” de fronteiras (séculos XVI e XVII), Em Guedes Roberto. África: brasileiros e portugueses: séculos XVI-XIX. Rio de Janeiro:Mauad, 2013, p. 24.

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africanas10 para escravizarnos denominados resgates.O conceito resgate estava vinculado à

guerra contra o islã, a qual justificava a captura de pessoas islamizadas ou cristãs ortodoxas que

eram convertidas em prisioneiros de guerra e posteriormente em escravos.

Contudo, interrogamos nesse textos e antes de finalizar o século XVI o interesse dos

lusitanos ultrapassou aquele da guerra justa com resgates de islamizados ebusca por

mercadorias, entanto assim que decretada a bula Romanus Pontifex, a elite portuguesa fundou

instâncias comerciais encarregadas exclusivamente da compra e venda de pessoas africanas,

recepção e manutenção das embarcações que vinham com os capturados e cobrança de

impostos destinados à Coroa e à Ordem de Cristo. Saunders analisa esses interesses à luz da

prematura criação das principais instituições escravistas lusitanas, entre elas a Casa da Mina e

Tratos da Guiné, fundada em 1463 em Lisboa, especificamente com a função de receber

impostos procedentes do tráfico de pessoas africanas, e documentar e comercializar pessoas

africanas em Portugal e Espanha.11

Resulta importante ter em conta que desde a antiguidade a escravidão era uma prática

comum em toda Europa, inclusive no reino de Portugal. Recordemos que a escravidão em

Europa foi uma instituição que remontou à civilização grega, sendo que a prática continuou

com o desenvolvimento da civilização romana. Com a oficialização do cristianismo a

escravização se manteve no período medieval, e, ainda que regredisse em algumas regiões e

não fosse a base produtiva estrutural, no século IV Santo Agostino a justificou como uma

punição idônea para os pecados, o que estendeu a prática por vários séculos.12Seguindo a Petre-

Grenouilleau sobre a existência da escravidão medieval na Europa e no mundo muçulmanos e

pode afirmar que

essas três entidades (católica, ortodoxa e muçulmana) mantinham relações entre si, tanto pelas guerras como pelo comércio – sem contar as numerosas trocas culturais que ocorriam entre

10 Utilizamos o conceito pessoas africanas e não escravos, pois, ainda que não seja o termo do período, escravo é um termo impreciso. Devemos ter em conta que não está comprovado se todas as pessoas capturadas pelos lusitanos eram escravas previamente na África. Ademais, no mesmo sentido em que não podemos usar judaizante,termo utilizado no período para referir os cristãos novos, tampouco devemos usar o termo escravo para referir as pessoas que estavam sendo capturadas na África e cujas histórias de vida antes da captura são desconhecidas. Por outra parte, sugerimos a eliminação do termo escravo, pois a escravidão é um crime de lesa humanidade imprescritível e, segundo Claude Meillassoux e Orlando Patterson, as sociedades escravistas definiram ao escravo como uma pessoa socialmente morta, despersonalizada e dessocializada; então ao reproduzir tal denominação, podemos cair no risco de perpetuar essa concepção sobre as pessoas que habitavam o que posteriormente se considerou o continente africano. Patterson, Orlando. Slavery and Social Death.Cambridge: Harvard University Press, 1982. p. 39. 11Saunders, A.C. de C.M. História social dos escravos e libertos negros em Portugal (1441-1555.) Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1994. p 29. 12Petre-Grenouilleau, Olivier.. A história da escravidão, São Paulo:Boitempo, 2009, p. 76.

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elas. Verdadeiras redes de importação de cativos alimentaram as regiões mediterrâneas. A religião teve um papel cada vez maior nesse comércio, simplesmente porque cada uma se acostumou a não escravizar seus correligionários. Os católicos buscavam escravos entre os ‘eslavos’ do leste da Europa, que eram ‘ortodoxos’ (desde o cisma de 1054), e entre os muçulmanos. Estes últimos escravizavam ao ‘infiéis’.13

Desse modo a instituição da escravidão alcançou o período moderno na Europa como

um legado milenar, e embora marcada por especificidades do período e variações regionais,

para meados do século XV, a compra e venda de pessoas e sua escravização era uma prática

sociocultural européia com mais de 2000 anos de vigência. É ainda Petre-Grenouilleau que

desenvolve essa ideia,

Tudo isso permite relativizar duplamente a ideia de um fim gradual da escravidão antiga. De um lado, seu declínio não teve nada de espontâneo ou regular. De outro, ele não foi total ou definitivo, facilitando assim a transição para a escravidão nos tempos da América. [...] O que suscita uma questão infelizmente muito pouco estudada: a das relações ou mesmo de uma possível ‘transferência’ de métodos ou hábitos relativos à escravidão entre o Mediterrâneo medieval e a América colonial moderna.14

É importante essa proposição porque nos leva indagar sobre as praticas e ideologias

escravistas do mundo cristão e muçulmano que atravessaram o período medievale

influenciaram o escravismo moderno. O islã alcançou várias regiões no século VII e se

expandiu com velocidade.15 Segundo Nehemia Levtzion e Randall L. Pouwels, a expansão

islâmica na África ocorreu desde dois focos: o leste e o norte,

a influência islâmica se estendeu em três direções, através do Mar Vermelho em direção às áreas da costa leste, do vale do rio Nilo em direção norte para o Sudão, e em direção ao oeste cruzando o deserto até alcançar o Magrebe. No século XI, árabes nômades se dirigiram para o sul, do Egito para o Sudão, e para o oeste em direção a África do Norte. Esse nômades contribuíram para a arabização e islamização do Sudão e do Norte da África. Ao mesmo tempo, marinheiros muçulmanos do Egito e da Arabia instalaram centros comerciais ao longo do Mar Vermelho e ao longo do litoral leste africano.16

13Petre-Grenouilleau, Olivier. A história da escravidão, São Paulo:Boitempo, 2009, p. 79. Outro livro do autor aprofunda o vínculo entre ‘cristandade’ e escravidão, propondo a continuidade de um mesmo modelo escravista na tradição cristã e muçulmana, sendo que essas religiões têm origem e livros sagrados comuns, nos quais se justifica a escravidão, o que a manteve vigente, pelo menos, desde os séculos iniciais do cristianismo, e até o século XIX. Ver : Petre-Grenouilleau, Olivier. Les traites négrières Essai d’histoire globale. Paris : Gallimard, 2004, p. 33. 14Petre-Grenouilleau, Olivier. A história da escravidão, São Paulo:Boitempo, 2009, p. 80-81. 15Levtzion, Nehemia e Pouwels, Randall. The History of Islam in Africa, Ohio University Press, 2000, p. 1. 16 Pearson M.N. The Indian Ocean and the Red Sea.In Levtzion e Pouwels. The History of Islam in Africa, 2000, p. 39 “The most discussed, and the most notorious, of all human movement was trade in human themselves. This topic is hardly germane to a discussion of the Indian Ocean and Islam in eastern Africa; just because many of the traders were Muslim, and some slaves were sold into Muslim areas, does not mean this was an “Islamic” trade. Similarly, as Western Europe industrialized, the slave mode of production became outmoded and inefficient.”

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Por tanto, não havia presença de árabes nem do islã no reino Congo quando à chegada

dos portugueses.Recordemos que a justificativa do Estado Pontifício para doar os territórios

africanos a Portugal foi a necessidade de reduzir o islã e a infidelidade, porém o que justificou

a escravização da sociedade Congo, onde se desconhecia o islã e como foi confirmado pela

historiografia, onde o rei do Congo, cujo título era denominado Mani Kongo, optou pelo

batismo com a chegada dos lusitanos?17Segundo Saunders, a criação de uma justificativa para

‘reduzir à escravidão’ a pessoas que desconheciam qualquer informação acerca do evangelho

suscitou oposições entre o clero cristão, juristas e filósofos da Península Ibérica, entre eles

Fernão de Oliveira, Amador Arraes ou Tomás de Mercado.18Citamos aqui uma fonte primária

que ratifica essa proposição, embora não trabalhada por Saunders, a qual contêm uma das

críticas mais agudas à escravização de africanos, escrita por Bartolomé de Las Casas. O freire

dominicano é conhecido pela denúncia dos abusos cometidos por espanhóis contra as

populações originárias da América, contudo, envolvido com a chegada de pessoas africanas

nos litorais de Cuba, México, Nicarágua e Guatemala desde inícios do século XVI, ele também

denunciou o negócio escravista na África. Num documento pouco analisado até hoje pela

historiografia chamado Brevíssima Relação da Destruição de África,Las Casas aponta

Aplicando las razones susodichas a las obras tan perjudiciales que a aquellas gentes hacían los portogueses, que no eran sino guerras crueles, matanzas, captiverios, totales destruiciones y anihilaciones de muchos pueblos de gentes seguras en sus casas y pacíficas, cierta damnación de muchas ánimas que eternamente perecían sin remedio, que nunca los impugnaron, ni les hicieron injuria, ni guerra, nunca injuriaron ni perjudicaron a la fe ni jamás impedirla pensaron, y aquellas tierras tenían con buena fe porque ellos nunca nos despojaron, ni quizá ningunos de sus predecesores, pues tanto distantes vivían de los moros que por acá nos fatigan, porque confines son de Etiopía, y de aquellas tierras no hay escritura ni memoria de que las gentes que hoy las poseen las usurparon a la iglesia, ¿pues con qué razón o justicia podrán justificar ni excusar tantos males y agravios, tantas muertes y captiverios, tantos escándalos y perdición de tantas ánimas, como en aquellas pobres gentes, aunque fuesen moros, hicieron los portogueses?19

Do visto, as incursões realizadas pelos portugueses no primeiro século após a bula de

1455, encontraram o norte islamizado da África, o que não pode ser comprovado para a África

17 Hilton, Anne, The Kingdom of Kongo, Oxford: Clarendon Press, 1985, p. 51; Thornton, John. The Development of an African Catholic Church in the Kingdom of Kongo, 1491-1750, In The Journal of African History, Vol. 25, No. 2, 1984, pp. 147-167. 18Para ampliação desse debate o capítulo: Justificativos filosóficos para o tráfico de escravos. Em Saunders, A.C. de C.M.. História social dos escravos e libertos negros em Portugal (1441-1555.) Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, Capítulo 2, 1994, p. 63-74. 19 Casas, Bartolomé de las. Brevísima relación de la destrucción de África, Fundación El libro total, 1566, p. 182. Disponívelemhttp://www.ellibrototal.com/ltotal/?t=1&d=3731_3842_1_1_3731

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Centro-Ocidental onde o reino Congo estava localizado. Nessa região, tal como o denunciou o

documento contemporâneo de Bartolomé de Las Casas, não precisa reduzir o islã nem atacar

aos inimigos da fé. Aproximemos então aos problemas que suscitou o encontro civilizatório

entre europeus e congoleses com o objetivo de verificar se efetivamente houve uma clara

aceitação dos forasteiros quanto à instalação do tráfico escravista, como afirmado pela

historiografia mais aceita.

2. Questionando a historiografia mais aceita sobre o Congo

A história do Congo é um dos capítulos da África que mais tem suscitado debates

historiográficos. Os trabalhos pioneiros de Jan Vansina20, David Birmingham21 e William

Randles22na década dos sessenta, e a publicação da História Geral de África23 a partir da

década dos setenta, iniciam as interpretações acerca da origem e desenvolvimento das

sociedades da África Centro-Ocidental, incluído o Congo. O estudo de Vansina desde a

tradição oral, à qual somou análises de fontes escritas, propôs a formação de núcleos de poder

relacionados com a sedentarização de população falante de línguas Banto. Já Birmigham e

Randles centralizaram no levantamento e analise de fontes primárias, e seguindo as

denominações do período, nomearam como “reino” a formação sociopolítica do Congo.24

Esses três autores pioneiros afirmaram que, em torno do século XIV, as populações da África

Central consolidaram organizações políticas mais hierárquicas e permanentes, com

especialização na produção regional que comercializavam ou davam como tributo num modelo

político de complementaridade. Birmingham foi o primeiro em propor a participação direta e

imediata dos reis Mani Congo no tráfico escravista. Após essas obras, na década de oitenta

destacam Anne Hilton e John Thornton. O estudo de fontes primárias realizado por Anne

Hilton permitiu visualizar por primeira vez o difícil processo que seguiu o Congo após a

chegada dos portugueses devido à pressão por instalar o tráfico escravista Atlântico, o que a

autora vinculou com a desvalorização da moeda local (as conchas nzimbu) pelos portugueses.25

20Vansina, Jan. Kingdom of the savanna. Madison: University of Wisconsin Press,1966. 21 Birmingham, David. Trade and conflict in Angola: the Mbundu and their neighbors under the influence of the Portuguese, 1483-1790. Oxford: Clarendon Press, 1966. 22Randles, W. G. L. L’AncienRoyaume du Congo, des origines à la fin du XIXe siècle. Paris: Mouton, vol. 14, 1968. 23Ki‑Zerbo, Joseph. História geral da África, I: Metodologia e pré-história da África, Brasília: UNESCO, 2010. 24 Aqui utilizamos a denominação de “reino”, para diferenciar essa formação política, do Congo como região relativa a bacia do rio Congo, da atual República Democrática do Congo e do Congo Brazaville. Contudo, consideramos necessário questionar se pode ser aplicada uma denominação europeia a uma formação africana, o que será assunto de futurasanálises, no marco da pesquisa doutoral da qual esse artigo faz parte. 25Hilton, Anne, The Kingdom of Kongo, Oxford: Clarendon Press, 1985, p. 6, 7 y 41.

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Contudo,das distintas interpretações existentes, a que mais teve repercussão foi a de John

Thornton, quem até hoje tem a liderança do debate por destacar aos africanos como agentes da

história africana e atlântica, inclusive na formação das sociedades americanas. Iniciamos esta

parte questionando as conclusões mais precisas do Thornton com respeito ao tipo de

agenciamento africano, em particular a ética dos reis centro-africanos frente ao tráfico

escravista. Em um artigo publicado junto com a historiadora Lynda Heywood eles afirmam:

Os líderes africanos claramente participaram de maneira voluntária do tráfico de escravos, mas isso não significa que eles o fizeram sem reconhecer os problemas éticos que esse comércio apresentava. [...] Este exame revela que todos os governantes africanos lideravam sociedades que reconheciam a instituição da escravidão e eles aceitaram a possibilidade legal de que um indivíduo pudera ter um conjunto de direitos sobre outra pessoa, os quais foram mais fortes dos que os da comunidade ou do Estado. Estes direitos, ademais, poderiam ser cedidos,através da venda, a qualquer outra pessoa. Esse contexto institucional foi o que fez o comércio de escravos possível o que facilitou sua expansão.”26

Em 2002 a apreciação de Thornton e Heywood apareceu como uma afirmação

conclusiva que resolveria as dúvidas sobre a existência da instituição da escravidão numa

civilização desconhecida e sem documentação acessível sobre sua história antes da chegada

dos europeus. De acordo com o trecho supracitado, o tipo de relação que o Congo estabeleceu

com a empresa escravista atlântica foi a de participar voluntariamente. Afirmando uma agência

por parte desses atores africanos que havia sido a de cooperação espontânea, eles argumentam

que essa participação teria derivado da preexistência da instituição da escravidão, assim como

da compra e venda de seres humanos nas sociedades africanas que apenas expandiram esse

tráfico com a nova demanda transatlântica.

Uma avaliação que pode ser feita a este tipo de interpretação documental se refere à

ausência da devida contextualização dos documentos, pois resulta indispensável à análise das

dinâmicas regionais que involucraram a sociedade do Congo para lograr compreender as

permanências e transformações ocorridas com a chegada dos europeus na região. A maneira de

hipóteses, consideramos necessário recuperar argumentos da década de 1980, ao parecer

esquecidos pela historiografia atual seguidora dos postulados de John Thornton. Para Anne

26 “The African leaders clearly participate voluntarily in the slave trade, but this does not mean that they did so, without recognizing the ethical problems that the trade presented. […] This examination reveals that all the African rulers led societies that recognized an institution of slavery, and they accepted the legal possibility that an individual could have a bundle of rights over another person that surpassed those of any other community or the state. These rights moreover could be alienated to any other person by sale. This institutional framework made the slave trade possible, and smoothed its way along.” Thornton, John; Heywood, Linda.African Political Ethics and the Slave Trade: CENTRAL AFRICAN DIMENSIONS, COLONIAL AND IMPERIAL HISTORIES COLLOQUIUM, Princeton: Princeton University, 2002.

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Hilton, Jan Vansina e Joseph Inikori é possível sugerir que não existisse um comércio de seres

humanos no Congo antes da chegada dos lusitanos. No Congo

um sistema de tributo precoce aparentemente eliminou a necessidade de produção por parte de escravos como apoio aos governantes. Havia clientes políticos, servos e prisioneiros de guerra, mas não uma classe de escravos; não houve um comércio de pessoas de qualquer tipo antes da vinda dos portugueses. Assim, não havia nenhuma palavra para escravo ou análoga à escravidão antes do contato entre portugueses e o povo do Congo.Anne Hilton afirma que ainda no século XVII "o único termo que se refere à compra [de ser as pessoas compradas], muntu a kusumbira, era uma construção composta o que sugere que tinha sido concebida para expressar uma nova condição." O estudo linguístico elaborado por Jan Vansina sobre a África Centro-Ocidental corrobora as conclusões derivadas principalmente das fontes de arquivo. Com base na evidência linguística, Jan Vansina afirmou que não havia comércio de pessoas na região antes da chegada dos europeus, e que as várias palavras que significam "escravo" na região eram "estrangeirismos" que evoluíram à medida que o tráfico de escravos europeu se espalhou a partir da costa para o interior.27

Assim, Iniroki destaca que tanto nos documentos primários levantados por Hilton,

quanto nas análises linguísticas de Vansina, no Congo os termos para o tráfico e para a

escravidão eram escassos, sendo a maioria estrangeirismos ou palavras compostas o que sugere

que estas eram práticas novas e não tradicionais ao Congo quando ocorreu a chegada dos

portugueses.Vale a pena então resgatar a preocupação por interrogar o tipo de envolvimento

dos líderes do Congo com o tráfico escravista, e para tal, consideramos necessário aproximar

manuscritos do período não somente referentes ao Congo, senão um conjunto amplo que

permita interpretar as relações geradas entre o Congo e os distintos setores europeus que

rapidamente chegaram participar do comércio escravista transatlântico nessa região. Isto

implica incluir documentos dos traficantes e fazendeiros de São Tomé, a coroa de Portugal e

sua força armada, os lusitanos que gestaram a ocupação de Luanda, o clero e traficantes

atlânticos como holandeses, judeus sefarditas, brasílicos, etc.Assim sendo, sugerimos uma

27As citações internas de Inikori correspondem a Hilton, Anne. The Kingdom of Kongo. Oxford: Oxford University Press, 1985, p. 32-35 e 233; Vansina Jan, Paths in the rainforest: Toward a History of Political Tradition in Equatorial Africa, University of Wisconsin Press, 1990, p. 278; Vansina Jan, Deep down time: political tradition in Central Africa, In History in Africa 16, 1989, p. 352-353. A citação literal é de Inikori Joseph E. Slavery in Africa and the Transatlantic Slave Trade, EmAlusineJalloh e Stephen E. Maizlish, (Eds.) The African Diaspora, Texas:A&M University Press, Arlington,1996, p. 60-61. “early tribute system apparently eliminated the need for production by slaves to support the rulers. There were political clients, servants, and prisioners of war, but not a slave class; there was no trade in people of any type before the coming of the Portuguese. Hence, there was no word for slave or slavery among the pre-contact Kongo people. Anne Hilton states that as late as the seventeenth century “the only term which referred to purchase [that is purchased people], muntu a kusumbira, was a compound construction suggesting that the phrase had been devised to express a new condition.” Jan Vansina’s elaborate linguistic study of West-Central Africa corroborates the conclusions derived primarily from archival sources. On the basis of linguistic evidence, Jan Vansina has stated that there was no trade in people in the region before the coming of the Europeans, and that the various words meaning ‘slave’ in the region are ‘loanwords’ that evolved as European slave trade spread from the coast into the interior.”

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analise contextualizada que procure aproximar a localização do reino do Congo dentro da

geopolítica e interesses econômicos dos diversos setores envolvidos com o tráfico de pessoas

do Congo no início da modernidade.

Aprofundemos um pouco mais sobre os postulados de Thornton para verificar se esse

autor deixa claro esse contexto geopolítico e econômico. Em 1992, numa das obras mais

reconhecidas de sua carreira,A África e os africanos na formação do mundo atlântico, John

Thornton analisou a existência da escravidão na África da seguinte maneira,

O conceito de propriedade é claro, também consistia em escravidão, e esta era possivelmente o caminho mais importante para a riqueza privada geradora de recursos para os africanos. Portanto, não é surpreendente que fosse tão disseminada e, além disso, é um bom indicador dos segmentos mais dinâmicos da sociedade africana, em que a iniciativa privada operava com mais liberdade. A importância da escravidão pode ser compreendida ao compará-la brevemente com a escravidão na Europa. Ambas as sociedades possuíam essa instituição, e tendiam a definir os escravos do mesmo modo – como membros subordinados da família, de muitas maneiras equivalentes a permanentes crianças. É sobre esse aspecto que os escravos são abordados nas Sete Partidas, seguindo um precedente que remete a Aristóteles ou até mesmo antes. A pesquisa moderna revela que essa também era a forma pela qual os africanos definiam a escravidão no final do período pré-colonial e inicio do período colonial. As informações sobre o século XVII na África não tratam as tecnicidades legais, embora seja pouco provável que elas difiram daquelas reveladas pela pesquisa antropológica moderna.”28

Aqui Thornton afirma que a instituição da escravidão na África pode ser comparada

com a escravidão em Europa, no entanto, ele mesmo reconhece que a segunda conta com uma

tradição documental que pode ser rastreada desde a Grécia antiga até o século XIX; contudo,

na África, não existe tal volume nem profundidade documental. Lembremos que África é um

continente muito diverso, e, unicamente em aquelas sociedades atingidas pelos árabes houve

com um tipo de registro documental semelhante ao europeu, onde desde o século VI aparecem

evidencias da existência do sistema escravista de tipo islâmico. Thornton inclusive reconhece

que as tecnicidades legais da escravidão na África para o século XVII sequer existem, contudo,

supõe que tamanha instituição não diferia em nada daquela registrada pela antropologia

produzida no século XIX.Consideramos que a utilização da antropologia Oitocentista como

fonte para períodos anteriores, é imprecisa e anacrônica, de modo a não poder ser comparadas

as instituições da escravidão em contextos históricos e historiográficos tão dissimiles.29

28Thornton, John K. A África e os africanos na formação do mundo atlântico (1400-1800). Rio de Janeiro, Editora Campus, 2004, p. 139. 29 Sobre o problema historiográfico de utilizar trabalhos antropológicos para interpretar documentos de séculos anteriores ver: Vargas Arana, Paola. A problemática das fontes na interpretação histórica da cristianização do reino do Congo no século XV. Considerações preliminares. Em Contextos missionários: religião e poder no Império português, AdoneAgnolin [et al.], Hucitec-Fapesp, São Paulo, 2011, p. 290-308

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O paradoxal é que em outro artigo The Origins and early history of the kingdom of

Congo 1350-155030o mesmo autor levanta essa impossibilidade quando afirma que “os intentos

de entender a estrutura do antigo reino Congo que combinaram a moderna antropologia com

observações de antigos viajantes, falharam em considerar a evolução no tempo da sociedade

Congo”.31Consideramos que essa falência não é distinta no caso de abordar a instituição da

escravidão no continente africano, no entanto, em nota de rodapé Thornton amplia,

Embora eu aceite muitas das suas observações [de Meirs e Kopytoff] sobre as diferenças entre a escravidão na África e na Europa, e no sistema escravagista euro-americano em relação ao papel e tratamento, legalmente as instituições eram indistinguíveis, e não vejo a necessidade do uso de aspas simples para a palavra ‘escravidão’ em textos africanos.32

Seja comparando uma sociedade africana e uma européia, seja uma sociedade

americana e outra indiana, a antropologia e a historia demonstraram que não há evidências de

que duas sociedades completamente distintas e distantes possam apresentar instituições sociais

“indistinguíveis”. Podem apresentar semelhanças, sim, que são analisadas a partir de

evidências documentais e fáticas.Por conseguinte, não estará Thornton confundindo a

escravidão muçulmana -que ocorreu no continente africano desde o século VI e que, como

demonstrado por Petre-Grenouilleau,é parente da escravidão européia por ter uma origem

comum na ‘cristandade’-, com uma suposta escravidão própria da África, estendida de modo

homogêneo em todo continente?Ainda assim, pesquisa recente como a de Syilviane Diouf

demonstram que no Norte e Leste da África onde o tráfico árabe-muçulmano estava instalado,

as sociedades não eram homogêneas e existiram setores que não apoiavam a escravidão e

resistiam a ela.33

A relevância de analisar as interpretações de John Thornton sobre a existência da

escravidão na África reside no fato de que suas interpretações são das mais aceitas e divulgada

sem se tratando da história da África Central. Pois ainda contando com amplia bibliografia

30 Thornton, John. The origins and early history of the Kingdom of Congo 1350 – 1550, In The International Journal of African Historical Studies, Vol. 34, No. 1, 2001, p. 89 – 120. 31 Thornton, John. The origins and early history of the Kingdom of Congo 1350 – 1550, In The International Journal of African Historical Studies, Vol. 34, No. 1, 2001, p. 89. “attempt to understand Congo social structure by combining modern anthropology with the observations of older travelers failed to consider the evolution of Congo’s society over time, so the mixing of older and newer traditions uncritically has failed to take into consideration the historiography of oral tradition.” 32 Thornton, John K. A África e os africanos na formação do mundo atlântico (1400-1800). Rio de Janeiro:Editora Campus, 2004,p. 139. 33Diouf, Sylviane(ed.). Fighting the Slave Trade: West African Strategies, Ohio: Ohio University Press, 2003.

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como as análises de António Custódio Gonçalves e mais recentemente Patrício Batsîkama,34a

interpretação proposta por Thornton é a mais amplamente divulgada e traduzida para várias

línguas, inclusive o português,a ponto de ser o autor de referência sobre o Congo. Vejamos um

exemplo do uso dessas interpretações de Thornton na historiografia brasileira contemporânea.

No recente livro de Thiago Sapede sobre o catolicismo no reino do Congo entre 1769 e 1795,

as primeiras páginas estão dedicadas a resumir as conclusões de Thornton, citado a cada dois

parágrafos entre os argumentos;

Desde décadas finais do século XV, a elite política conguesa demonstrou interesse em incorporar ritos e símbolos católicos, apresentados pelos então parceiros portugueses. [...] Da mesma maneira, o acesso às ‘novidades’ vindas de Portugal (bens materiais de luxo, escrita, e os elementos do catolicismo: insígnias, ritualística católica e os próprios missionários) trazia grandes privilégios económicos, sobretudo ao longo do crescimento do trato escravista com mercadores portugueses: séculos XVI e XVII. A presença de missionários católicos no Congo fora muito incentivada pelos Mani Congo, desde Afonso I.35

Sínteses como essas da obra de John Thornton na abertura dos estudos historiográficos

recentes sobre o Congo tornaram-se quase que obrigatórias. Sobre o encontro Sapede afirma

que seria uma parceria vinculada com benefícios econômicos e de acesso a bens de luxo,

gerados a partir do crescimento do tráfico escravista; assim como o fomento à presença de

missionários destinados a ‘incentivar a difusão de signos e preceitos católicos’. Esses são

aspectos que vamos questionar no último tópico desse artigo.

Analisar criticamente a obra de Thornton resulta relevante ao percebermos que o livro

de Sapede não é uma exceção, pois em muitas salas de aulas do Brasil, a compreensão da

instituição da escravidão na África é tratada a partir desse autor; e, inclusive, nas provas de

seleção para acesso aos cursos de pós-graduação em história, a obra de Thornton é muitas

vezes colocada como obrigatória, em detrimento à carência dos textos críticos sobre a mesma.

Consideramos que o inconveniente da obra de Thorntone de muitos historiadores que se

apoiam nos seus argumentos, subjaz no tipo de narrativa que constroem a partir das fontes

primárias, as quais estão elaboradas para consolidar o que aqui denominamos

metanarrativa.36Uma metanarrativa é definida como um relato elaborado para responder de

34 O debate sobre a historiografia do Congo, ver Vargas Arana, Paola La adopción del catolicismo en el reino del Kongo (1483-1555). Tese (Mestrado em Estudos de Ásia e África, Especialidade África), El Colegio de México, México, 2006(manuscrito sem publicar). 35Sapede, ThiagoMuana Congo, MuanaNzambi a Mpungu: Poder e catolicismo no reino do Congo pós-restauração (1769-1795). São Paulo: Alameda casa editorial, 2014, p. 28 – 30. 36É o caso do livro de Thornton sobre Beatriz Kimpa, sobre uma liderança religiosa e política congolesa do século XVII, cuja história é narrada como uma sequencia unilinear sem fissuras nem contradições. Thornton John,

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modo absoluto a uma questão historiográfica, através da criação de uma sequência cronológica

unilinear de eventos extraídos das fontes primárias, as quais consolidam uma argumentação de

verdade sobre um determinado processo histórico. Nesse tipo de narrativas, os vazios ou as

confusões, ora nas fontes ora no processo histórico, são preenchidos com argumentações

lógicas ou são omitidas sutilmente, consciente ou inconscientemente, diluindo como

consequência, as dúvidas que uma contradição ou vazio possa suscitar no leitor.37

A elaboração de metanarrativas para o caso do encontro entre o Congo e os europeus é

requente na historiografia, o que resulta preocupante, pois, como analisado acima, não existe

uma tradição escrita que sirva de âncora para comprovar a existência de certo tipo de

instituições sociais no reino antes da chegada portuguesa, nem um volumem documental

suficiente para avaliar ou cotejar aquilo que é postulado como “verdade” sobre essa historia.

Desde essa perspectiva, para gerar uma contra metanarrativana historia do Reino do Congo é

necessário que a produção historiográfica dedique especial atenção às contradições, dúvidas,

vazios nas fontes e nos assuntos marginais, desde uma perspectiva contextualizada

regionalmente e que tenha em conta os interesses geopolíticos que havia sobre essa região no

inicio da modernidade. Tal encaminhamento metodológico permitirá a elaboração de narrativas

não sequenciais, tampouco unilineares, o que conduzirá a diferentes possibilidades

interpretativas sobre um mesmo evento ou de um documento, e, ainda, poderá revelar lutas de

interesses entre os diferentes setores sociais envolvidos nos processos sociopolíticos da região

num período determinado.

Com esse giro metodológico, os vazios, as contradições e as confusões apresentadas nas

fontes sobre o primeiro período de encontro entre o Congo e os europeus, 1483-1549,se

transformam em janelas privilegiadas para questionar o tipo de relações dos primeiros Mani

Congo após o arribo lusitano.

3. Contra-metanarrativa: Uma história de perguntas, vazios documentais e polêmica

entre o Congo e a empreitada escravista Atlântica

Consideramos que a ausência de conflitos no período do encontro na tese cunhada pela

obra de Thornton, não é corroborada à luz das fontes primárias do período. Pelo contrário o

TheKongolese Saint Anthony: Dona Beatriz Kimpa Vita and the Antonian Movement, 1684–1706, Cambridge: Cambridge University Press; 1998. 37 Para ampliar o conceito de metanarrativa e metahistória, ver a obra de White, Hayden. Metahistory: the historical imagination in Nineteenth Century Europe. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1973. Tambémver White, Hayden. The content of the Form: Narrative Discourse and Historical Representation. Baltimore:Johns Hopkins University Press, 1987.

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conjunto de documentos sobre o tema, composto por: cartas escritas pelos líderes do Congo;

alvarás, regimentos, forais e correspondência escrita pelos reis de Portugal; e correspondência,

livros de contas, registros alfandegários e crônicas escritas pelos traficantes, pelos funcionários

da coroa lusitana e pelo clero, tanto no Congo, Luanda e São Tomé, são as peças do quebra-

cabeça para revelar confusas contendas, pugnas, hesitações e oposições no contexto de

cristianização e introdução de um mercado escravista no antigo reino do Congo entre 1483 e

1549. Vejamos alguns exemplos dos conflitos que as fontes revelam sobre o contexto e que

abrem interrogantes que não são plenamente respondidos através da construção de

metanarrativas.

Iniciemos exibindo algumas fontes a miúdo citadas nas metanarrativa. A primeira delas

diz respeito a sequencia de líderes do Congo, funcionários e elite da sociedade que teria

abraçado sem cogitação à fé cristã, costumes, insígnias e luxos que dela derivavam. Tal

afirmação não considera que o rei Mani João I Nzinga a Nkuwu, primeiro da realeza a ser

batizado em torno de 1491, renegou da fé cristã vários anos antes da sua morte em 1506.

Affonso IMvemba a Nzinga, filho do rei João I Nzinga a Nkuwu, considerado o segundo rei

cristiano do Congo, escreveu os sucessos uma carta em 1512 onde narrou os acontecimentos da

época:

foi por o dito rei meu padre recebida a ensinançaChristã, e nella mostrou bom começo, do qual por enveja do diabo inimigo da Cruz foi por seus dias apartado, e assi desviado que nam obrou nelle a graça de Deos. Nos quaes tempos em que estas cousas se começaram, e passaram sendo nos moço de pouca idade, e aluminado da graça do Spiritosancto, [continua expondo os princípios da fe cristã]. E sendo nos neste verdadeiro conhecimento, e continuando nos ensinos dos religiosos, e fieis Christãos, caímos em grande avorrecimentodelRei nosso padre, e dos grandes de seus regnos, e gentes deles, o qual com grande desprezo, e muita miséria nos desterrou pera terras mui longe, onde apartado da sua vista e de suas graças passamos muito tempo.38

Do fragmento citado podemos observar que a inserção do cristianismo na sociedade

Congo não foi simples e poderiam ter influenciado conflitos que induziram ao rei João I

Nzinga a Nkuwua renegar da fé cristã e a se inimizar com seu filho. Essa confusão não pode

ser resolvida através do postulado historiográfico de um incondicional colaboracionismo que

omite a confusão de sucessos e pareceres dos congoleses involucrados.O conflito ao parecer

não se reduziu ao rei e seu filho, pois por várias décadas as cartas do rei AffonsoMvemba a

Nzinga, sucessor de João, reiteram que ‘os grandes do reino’ não apoiaram a conversão,

38 Manifesto ou carta notificatória do rei do Congo D. Affonso aos principais senhores do seu reino – 1512. In Paiva Manso, Levy Maria Jordão de. História do Congo. Lisboa: Typographia da academia, 1877, p. 7.

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em nosso desterro, houvemos recado como el Rei meu padre estava em passamento de morte, e que outro nosso irmão se apoderava do regno, não lhe pertencendo por direito senão a nós, como primeiro, e primogênito que somos, e que isto fizera com favor de todos os grandes, e senhores do reino e gentes dele que a nos tinham ódio, por conseguirmos a fé de nosso senhor Jesu Christo.39

Aqui AffonsoMvemba a Nzinga sugere que os conflitos de sucessão foram gerados pela

nova fé. A historiografia informa sobre a existência de diversidade de formas de sucessão que

não se limitavam à herança de bens ou de cargo através de pai para o filho homem

primogênito, aos moldes europeus. É o caso do Congo. Segundo as pesquisas de Jan Vansina,

na mais antiga organização do Congo a herança era matrilinear e virilocal, isso significa que a

herança de cargos e bens era através da linha materna e que as mulheres, uma vez casadas,

mudavam para aldeia do esposo. Por isso, as crianças do casal cresciam com pessoas que não

eram parentes, nem das quais herdariam nada. Somente quando o tio materno morria, o

sobrinho mudava para a aldeia do falecido e herdava o cargo e os bens.40Se assim fora, em

1506 quando morreu JoãoNzinga a Nkuwu, seria o sobrinho pela linha materna quem herdaria

o trono do Congo.

O assunto não deixa de ser confuso não podendo ser metanarrado como uma sequencia

ao perceber que em varias cartas, o Mani Congo reitera que era seu irmão o principal opositor à

sua coroação; entretanto, ressalta o total apoio do seu primo PedroNkanga a Mvemba, quem

tinha viajado e retornado de Portugal para a província onde Affonso morava e quem estava

ameaçado de morte pelo pai de Affonso, o rei João.41 Seria esse primo PedroNkanga a

Mvemba, favorecido do Mani Affonso, o legítimo sucessor do rei? Chegou Nkanga a

Mvembaa ser coroado como Mani Congo? A assídua conversão de Affonso estaria vinculada

antes com o interesse em herdar o reino, que em uma convicção religiosa como sugere

Thornton? Tendo em conta que o modelo de hereditariedade da nova religião beneficiaria com

o trono ao filho primogênito, esta é uma conjectura que deve ser examinada. Com respeito a

esse conflito, em The development of an African catholic church in the kingdom of Kongo

(1491-1750) Thornton afirmou que

39Manifesto ou carta notificatória do rei do Congo D. Affonso aos principais senhores do seu reino – 1512. In Paiva Manso, Levy Maria Jordão de. História do Congo. Lisboa:Typographia da academia, 1877,p. 8. 40Vansina, Jan. Paths in the rainforest.Towards a history of political tradition in the Ecuatorial Africa. Madison: The University of Wisconsin Press, 1990, p. 110 – 113.. 41 Alvará de D. Joao II mandando dar a Joao Soares, que partia para Congo com D. Pedro, diversas peças de vestuário, 10 de dezembro de 1493. In Paiva Manso, Levy Maria Jordão de. História do Congo. Typographia da academia, Lisboa,1877,p. 2.

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O batismo do rei e seus principais nobres foi harmonioso [o termo em inglês é smoothly] e ambos os lados parecem ter ficado satisfeitos. Se o cristianismo alguma vez foi contestado, foi nestes primeiros anos, e de fato é conhecido que Joao renunciou à fé ou pelo menos se afastou dela no final do seu reinado. Seu filho Afonso, cujas cartas são a única fonte dos eventos no final do reinado de João, apresentaram a disputa de sucessão que se seguira à morte do Rei João (por volta de 1506) como uma luta entre a parte cristã, representada por Afonso, e a pagã, representada pelo irmão de Afonso. Na medida em que uma evidente descrição própria pode representar a verdadeira convicção de ambas às partes, esse conflito pode ser visto como um desafio para o estabelecimento do cristianismo no Congo, como de fato foi visto por muitos historiadores do Congo. Seja qual for a verdade sobre o assunto, a religião cristã nunca enfrentou outro desafio sério sociedade dentro do Congo após a adesão de Afonso ao trono.42

Ainda identificando a existência desse conflito, Thornton interpretou a conversão da

realeza do Congo, a maneira de uma metanarrativa, como harmoniosa e geradora de satisfação,

e agregou que uma vez que ManiAffonso Mvemba a Nzingachegou ao trono, isto é, entre 1509

e 1540, não houve mais ameaças para a instalação dessa religião no Congo. No entanto, a

pugna pela sucessão não foi muito aprazível quando varias cartas entre o Mani Congo e

Portugal narram que a fação oposta atacou AffonsoMvemba a Nzinga na capital do Congo,

logo após a morte do pai, o Mani João.43

Existem indícios de que os problemas continuarampelo menos até 1514, quando, numa

extensa carta, AffonsoMvemba a Nzinga expõe que precisavam de clérigos, navios,

espingardas e bombardas para “queymarmos a casa grande dos ydolos por que se

lhaqueymassemos sem termos ajuda dos cristãos, lloguo nos tornariam a por gerra pera nos

matar”.44 Nessas mesmas décadas, Affonso registrou nas cartas a necessidade de

profissionais,pedreiros, educadores, e inclusive mandou fidalgos para serem educados em

Portugal, mas logo apresentou queixas por terem retornado ao Congo sem nenhuma

educação.45 O contexto registrado nessa carta de ManiAffonso favorece nossa hipótese sobre as

42Thornton, John K. (1984). The development of an African catholic church in the kingdom of Kongo (1491-1750),The journal of African history, Vo. 25, No. 2, p. 148-149. “The baptism of the king and his major nobles went smoothly, and both sides seem to have been well pleased. If Christianity was ever challenged, it was in these early years, and in fact Joao was reputed to have renounced the faith, or at least cooled in it, towards the end of his reign. His son Afonso, whose letters form our only source for the events at the end of Joao reign, presented the succession dispute that followed the death of King Joao (about 1506) as a struggle between a Christian camp, represented by Afonso, and a pagan camp, represented by Afonso’s brother. To the extent that such a clearly self-serving account can represent the true convictions of both parties, this conflict can be seen as a challenge to the establishment of Christianity in Kongo, as indeed it has been viewed by many historians of Kongo. Whatever the truth of the matter, the Christian religion never faced another serious challenge from within Kongo society after Afonso’s accession to the throne.” 43O reconto dessa batalha em Carta de armas que el-rei D. Manuel mandou ao rei do Congo, e publicação delas por decreto deste – 1512. In Paiva Manso, Levy Maria Jordão de. História do Congo. Lisboa:Typographia da academia, 1877, p. 11. 44 Carta de D. Affonso rei do Congo, a elrei D. Manuel 5 de outubro de 1514. In Paiva Manso, Levy Maria Jordão de. História do Congo. Lisboa: Typographia da academia, 1877, p. 15. 45Por exemplo a Carta de D. Affonso, rei do Congo, pedindo a el-rei de Portugal o ajudasse nas coisa de religião, que pela ambição e cobiça dos que foram ensinar ainda estava como vidro e lhe mandasse pedreiros e carpinteiros

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fissuras internas gerados pelo início da cristianização do Congo, na mesma medida que

interpela a tese sequencial de Thornton sobre a harmonia da conversão.

Para aprofundar na hipótese, podemos ainda aproximar esse processo ampliando as

variáveis do contexto e incluindo a instalação dos portugueses e da igreja cristã na ilha de São

Tomé desde 1470 e até 1534,data em que foi aprovada a fundação da diocese nessa ilha. Ainda

que fosse desabitada antes do arribo lusitano, São Tomé rapidamente se transformou num dos

maiores entrepostos comercial do tráfico de pessoas africanas do século XVI. Quando ali

desembarcaram as naus em 1470, a coroa lusitana estava no meio a agudos conflitos religiosos

na Península Ibérica e decidiu degredar para lá uma parcela da população judia, alguns deles

como escravizados, e junto como eles mandou presos perigosos que não queria manter no

reino. Ademais dessa população, antes de terminar o século XV já era claro que o clima da ilha

era favorável para a introdução da monocultura de cana de açúcar, o que impulsou a rápida

migração de fazendeiros que instalaram as primeiras monoculturas açucareiras baseadas, em

grandes extensões de terra, com mão-de-obra escravizada.

Observe-se que, enquanto ManiJoao do Congo questionava sua conversão ao

cristianismo, os reis de Portugal, João II (1481–1495)e Manuel I (1495-1521), distribuíam

várias cartas de privilégios e forais (1485, 1493 e 1500) aos habitantes da ilha de São Tomé.

Em 1493, se referindo especificamente ao Rio Real e ilha atlântica Bioko (frente a atual

república de Camarões que foi renomeada de Fernando Pó) até o Manicongo46concedem:

“queremos e nos praz que por as ditas mercadarias que na dita ylha e terra limitada ouver ajam

e resguatem em ella pera sy escravos e quaeesquer outras mercadorias que hyouver”.47

Ademais os islenhos eram estimulados ao negócio de exportação de especiarias como o açúcar

e pimenta, que seriam isentas de impostos. 48 O agir dos fazendeiros e traficantes de São Tomé

para uma igreja que queria fazer, cidade do Congo, 31 de maio de 1515; ou, a Carta de D. Affonso, rei do Congo, pedindo a el-rei D. Manuel I Para conseguir ista e outras mercês enviava também a Portugal os seus sobrinhos D. Francisco e D. Pedro Affonso, cidade do Congo, 31 de maio de 1515. Em Streit, Robert, BibliothecaMissionum, n. 1-2217, anos 1053 – 1599. VerlagHerder Freiburg, 1951, p. 268. 46Mani Congo era o título do rei do Congo na língua kikongo. 47 Carta de licencia aos moradores de povoadores da ilha de São Tomé para resgatarem pimenta, escravos e outras mercadorias, desde o Rio Real e Ilha de Fernando Pó até ao Manicongo. Em Madeira SantosEmilia e Albuquerque Luis, PortugaliaeMonumenta Africana, vol. 2, Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1993, p. 135. 48 Carta-foral concedida ao capitão moradores e povoadores de São Tomé. 1485. Em ATT Chanc. D. João II, L. 1, fls. 4v – 5. Publicado em Madeira SantosEmilia e Albuquerque Luis, PortugaliaeMonumenta Africana, vol. 1, Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1993, p. 349 - 352. Livro das Ilhas, privilégios outorgados aos moradores de São Tomé, Lisboa, 26 de Março de 1500, Em Brásio, Antonio. Monumenta Missionária Africana, Lisboa: Agência Geral de Ultramar. Série 1, Tomo 1, 1952, p. 183 – 184. Livro das Ilhas, Carta de Mercê aos povoadores de S. Tomé, Lisboa, 20 de março de 1500, em Brásio Antônio. (1954). Monumenta Missionária Africana, Série 1, Tomo 4, , [África Ocidental (1469-1599) - Suplemento aos Séculos XV e XVI], Lisboa: Agência Geral do Ultramar, p. 21.

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na expansão desses “negócios” ficaram claros nas várias cartas do rei do Congo pedindo para o

fortalecimento da igreja interna ao reino e para não enviar mais traficantes são-tomeenses. Por

exemplo, o Mani Congo reitera o nome de Fernão de Melo, que recebeu do rei de Portugal o

donatário hereditário da ilha entre 1499 e 1510, e quem foi sucedido pelo seu filho entre 1510 e

1517. Em ambos os casos eles teriam negligenciado o envio de presentes e mercadoria do

Congo para Portugal e até teria sequestrado embaixadores congoleses, enquanto realizava

descidas para o Congo para efetuar o sequestro de pessoas denominado ‘resgates’.

Paradoxalmente, várias das queixas do Congo ocorrem simultâneas com as cartas de

privilégios enviadas por Portugal, aumentando os direitos sobre o Congo dos fazendeiros e

traficantes islenhos, incluídos os Melo.49

A aproximação à administração lusitana no contexto de São Tomé na virada para o

século XVI através da ligação dessa diversidade de fontes, pode indicar que fosse secundária a

busca por fortalecer a conversão do reino ou de instalar plenamente a instituição da igreja na

região, pois o objetivo explícito dos documentos era instalar um comércio, sobretudo centrado

no tráfico de pessoas. À complexa configuração social e política de São Tomé devida à

distância com a metrópole, ao tipo de povoamento e aos interesses sobre África, se somam as

constantes pugnas de poder e sonegação dos impostos sobre a compra-venda de pessoas (as

demais mercadorias não pagavam impostos), as resistências da população escravizada e a

tomada das cidades por parte dos moradores da floresta, denominados de Angolares, que nunca

foram escravizados. A origem dos Angolares em São Tomé é bastante desconhecida, tampouco

se sabe o porquê desse nome. De acordo com Garfield, esse setor da população se formou

depois do naufrágio de uma embarcação escravista em meados do século XVI e os Angolares

lograram sobreviver porque nadaram até São Tomé. Estudos linguísticos comparados sugerem

quesejam procedentes da sociedade Mbundu, localizada (ao sul do reino do Congo, na África

Centro-Ocidental).50

Desde os primórdios do trafico transatlântico, os interesses do clero católico sobre os

territórios ultramarinos portugueses foi bem marcante, a ponto de rivalizar com o governo

49 Sobre os privilégios recebidos e a instabilidade ética e económica da administração dos de Melo ver: Garfield, Robert.The era oftheDonatarios 1499 – 1522. EmA History of São Tomé Island, 1470-1655. Evanston: NorthwesternUniversity Press, capítulo 2, 1971. p. 24 - 44. São três cartas de doação da capitania de S. Tomé a Fernão de Melo, de 2,11 e 15 de dezembro de 1499, em Em Madeira Santos Emilia e Albuquerque Luis, PortugaliaeMonumenta Africana, vol. 2, Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1993, p. 497-505. Para um reconto crítico do ocorrido nas décadas de administração dos donatários de Melo ver Carta de Affonso rei do Congo, a elrei D. Manuel 5 de outubro de 1514, p. 14, 20, 29. 50Garfield, Robert. A History of São Tomé Island, 1470-1655. Evanston: Northwestern University Press, 1971, p. 76-79.

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colonial e como os traficantes europeus. Um dos motivos da contenda estava vinculado com o

pagamento do imposto da dízima sobre a venda das pessoas escravizadas, que, desde o foral

ditado pelo rei de Portugal em 1485, era doada para a igreja em São Tomé.

A concessão dos impostos dos donatários e feitores de escravos à igreja pela compra-

venda de pessoas foi reiterada pelo rei de Portugal em varias provisões e alvarás ao longo dos

séculos XV e XVI. Em 1504, por exemplo, lhe outorgou ao clero o valor da venda de seis

escravizados anualmente que seriam extraídos da Fazenda real da ilha, a ponto que, segundo

Robert Garfield; “o estabelecimento da igreja, como quase todo em São Tomé era dependente

do comércio de escravos. Para apoiá-la, o rei decretou que os primeiros sacerdotes

(Agostinianos que estavam aí para fundar um hospital e uma igreja) deviam receber uma renda

correspondente à venda de seis escravos, a ser pago a cada 24 de junho, no dia de São João

Batista, proveniente da conta da Fazenda real da ilha.”51E já, em 1516, “adicional aos seis

escravos para a manutenção da igreja, 14$000 foram outorgados ao vicário. Ademais, cada um

dos quatros oficiais da igreja receberia como renda, o valor da venda de três escravos

anualmente.”52

Esses dados nos permitem sugerir que a igreja só podia se sustentar com onegócio

denominado ‘resgate de escravos’ do Congo para São Tomé, e por tanto, tinha interesse na sua

continuação. Garfield analisou os livros de impostos de compra e venda de pessoas africanas e

as queixas apresentadas pelo clero ante o rei de Portugal, e constatou que estes setores geraram

uma pugna secular. Enquanto o governo da ilha longe do controle da coroa praticava a máxima

evasão de impostos, a igreja aumentava a vigilância sobre o pagamento certo à coroa. As

decisões políticas por parte de Portugal em São Tomé implicaram a chegada indiscriminada de

comerciantes de pessoas no Congo, tal como foi denunciado pelo rei Affonso. Segundo

Garfield,

É no Congo onde que podemos encontrar a raiz da prosperidade de São Tomé, assim como seus posteriores problemas. [...] Missionários tinham sido enviados para esse reino tão cedo quanto 1491, porém os padres foram logo substituídos por agentes da nova cultura de traficantes de escravos, e eram muitas vezes os mesmos padres, mas numa nova roupagem.

51Garfield, Robert. A History of São Tomé Island, 1470-1655. Evanston: Northwestern University Press, 1971, p. 26. “The early church establishment, like nearly all else in São Tomé, was dependent on the slave trade. To support it, the king decreed that the first priest (Agustinians who were to found a hospital and church on the island) were to be supported by the income of the sale of six slaves, to be paid each St. John the Baptist’s Day (24 June) from the account of the Fazenda Real of the island.” O documento citado por Garfield esta no Arquivo da Torre do Tombo, Místicos, II, Fl. 280v, 3 de maio de 1504. 52Garfield, Robert. A History of São Tomé Island, 1470-1655. Evanston: Northwestern University Press, 1971, p. 35. O documento que Garfield cita está no Arquivo da Torre do Tombo, CC, 1-19-131, 29 de fevereiro de 1516.

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São Tomé como entreposto principal de todo o comércio da Baixa Guiné, e como consumidor de escravos ele mesmo devido às plantações de açúcar em expansão, rapidamente se envolveu nos assuntos internos do Congo. A maioria dos traficantes que iam ao Congo era habitante de São Tomé. De qualquer forma, praticamente todos os que iam para o Congo tinham que passar pela ilha e muitos se tornaram partidários do ponto de vista de São Tomé, que procurava minar o poder da monarquia congolesa, na esperança de que a situação caótica resultante produzira escravos em grande número e evitasse a interferência nesse comércio das autoridades congolesas.53

Enquanto isso, o Mani Congo seguia enviando cartas ao rei de Portugal e ao Papa,

solicitando clérigos e a instalação de uma diocese na capital do Congo, as quais foram poucas

vezes respondidas.54 As cartas também solicitavam notícias do seu filho Henrique, que foi

enviado a Roma para receber educação religiosa e foi elevado ao cargo de bispo no ano de

1518.55 No entanto, ao parecer o bispo congolês nunca retornou e tampouco foi instalada uma

diocese no Congo; ao contrário, foi instalada em São Tomé em 1534 uma diocese com

jurisdição eclesiástica sobre o Congo.56 Qual a relação entre a negativa de instalar uma diocese

na nova região supostamente ‘conquistada para a fé’, com o incremento do sequestro e tráfico

de pessoas procedentes da região? Estaria relacionada com os vínculos entre o clero e a

execução desse tráfico de congoleses?

Outro indicio dos possíveis interesses da coroa portuguesa no reino do Congo pode ser

observado no documento de instruções denominado regimento outorgado pelo Manuel I rei

português em 1512 a Simão da Silva, para sua viagem ao sul do Congo. Ali o rei de Portugal

faz uma longa exposição sobre a necessidade de deixar claro ao rei do Congo os altos custos

dos mantimentos e soldos dos funcionários da coroa portuguesa no Congo e da manutenção

dos jovens fidalgos congoleses em Portugal e, em seguida insiste que, como pagamento, todas

as embarcações deveriam voltar carregadas com o máximo de pessoas escravizadas, cobre e

53Garfield, Robert. A History of São Tomé Island, 1470-1655. Evanston: Northwestern University Press, 1971, p. 51. "It was in the Congo that one could find the root of São Tomé’s prosperity and its later troubles. […] Missionaries had been sent to the kingdom as early as 1491, but priests were soon superseded as agents of the new culture by slave-traders, who were often the self-same priests in a new guise. São Tomé, as the entrepot for all trade in Lower Guinea and as a consumer of slaves in its own right for its expanding sugar plantations, quickly became involved in the Congo internal affairs. Most of the traders who went to Congo were inhabitants of São Tomé. In any event, virtually all who went to the Congo had to pass through the island and many became partisans of São Toméan point of view, which sought to undermine the power of the Congolese monarchy, hoping that the resulting chaotic situation would produce slaves in great number and prevent interference in the trade by the Congo authorities.” 54 Carta do rei do Congo D. Affonso a el-rei de Portugal, 25 de agosto de 1526, Erbittet die Errichtung von Mbanza-Kongo alsBischofssitz. Citado em Streit, Robert, BibliothecaMissionum, n. 1-2217, anos 1053 – 1599. VerlagHerder Freiburg, 1951, p. Streit, p. 295 55CedulaConsistorialisLeonis X, Roma, 5 de mayo de 1518, publicada enCuvelier-Boon, HetOud-Koninkrijk Kongo, Brugge, 1941,369. Citado, Streit, Robert, BibliothecaMissionum, n. 1-2217, anos 1053 – 1599. VerlagHerder Freiburg, 1951, p. 281. 56BullaPauli III. Didaco epíscopo S. Thomae, Roma, 3 de novembro de 1534, Citado, Streit, Robert, BibliothecaMissionum, n. 1-2217, anos 1053 – 1599. VerlagHerder Freiburg, 1951, p. 325.

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marfim que fosse possível transportar a nau, “e principalmente venham bem carregadas de escravos

[...] dizendo-lhe que se em sua terra se resgatarem escravos levareis mercadorias para se resgatarem,

mas por saberdes que ele não o consente e não levastes, e lembrando-lhe a grande despesa que se cá faz

na mantença e ensino de seus filhos, por onde ele deve de carregar os ditos navios o mais

abastadamente que ele poder.”57De acordo com esse documento, o rei de Portugal reconhecia que

o rei do Congo não consentia com o resgate de pessoas e que o seu enviado devia persuadi-lo

para que aceitasse o negocio escravista, o qual seria pago com mercadoria. Tratar-se-ia assim

de estimular uma persuasão argumentativa que favorecesse unicamente aos interesses

escravistas de Portugal? A.C. de C.M. Saunders, ao analisar o regimento de 1512 interpretou

que “O comércio do continente africano com as ilhas do golfo da Guiné parece ter registrado uma

enorme expansão no século XVI, especialmente depois de, em 1512, uma missão portuguesa ameaçar o

Manicongo com a cessação de todo o comércio caso ele não fornecesse escravos.”58Saunders agrega

que os primeiros escravos provenientes do Congo chegaram à Europa, na cidade de Valencia

em 1513.59 Dito isto, podemos perguntar: se a escravidão e a venda de pessoas no Congo era

uma prática tão corrente como o sustenta Thornton, porque as pessoas escravizadas

procedentes do Congo, aonde desembarcaram as naus escravistas de Portugal em 1483,

levaram três décadas para serem comercializadas em Europa?

Quinze anos depois de iniciado o tráfico de pessoas, no ano de 1526, o ManiAffonsoI

Mvemba a Nzinga apresentou o que poderia ser considerada uma primeira denuncia sobre a

compra-venda de pessoas no Congo e uma expressão da consciência do engano por parte desse

rei

E não havemos este dano por tamanho como é que os ditos mercadores levam cada dia nossos naturais filhos da terra e filhos de nossos fidalgos e vassalos e nossos parentes por que os ladroes e homens de má consciência os furtam com desejo de haver assim as coisas e mercadorias desse Reino que são desejosos, os furtam e os trazem a vender em tanta maneira Senhor é esta corrução e devassidade que nossa terra se despovoa toda o que vossa alteza não deve haver por bem nem seu serviço. E por isto evitarmos não temos a necessidade desses reinos mais que de padres e algumas poucas pessoas pera ensinarem nas escolas nem menos de nenhuma mercadorias somente vinho e farinha para o santo sacramento, porque pedimos a vossa alteza nos queira ajudar e favorecer nesse caso, em mandar a seus feitores que não mande cá mercadores nem mercadorias, porque nossa vontade é que nestes reinos não haja trato de escravos nem saída para eles.” (o destaque é do documento original).60

57Esse Regimento se encontra no Arquivo da Torre do Tombo, e foi publicado em Brásio, Antônio. Monumenta Missionária Africana, Série 1, Volume 1, 1953, p. 228 – 246. 58Saunders,A. C. de C.M. (2008). História Social de Escravos e Libertos Negros em Portugal 1441-1555. Imprensa Nacional Casa da Moeda, Lisboa, p. 41. 59 Saunders, A. C. de C.M. (2008). História Social de Escravos e Libertos Negros em Portugal 1441-1555. Imprensa Nacional Casa da Moeda, Lisboa, p. 59. 60 Carta do rei do Congo ao rei D. João III 6 de julho de 1526. Em Paiva Manso, Levy Maria Jordão de. (1877). História do Congo. Typographia da academia, Lisboa, p. 53.

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A citação acima permite inferir as profundas mudanças de posição do ManiAffonso

com respeito àquelas mantidas ainda jovem com ânsia de ser rei. Affonso, não foi tão

cristianíssimo como considerado pelas metanarrativas acerca do Congo, pois de fato exibiu

hesitações com respeito à relação com Portugal e com o cristianismoao longo do seu reinado a

ponto que, no ano de 1525, ele expulsou europeus do reino.61

Adicional aos fatores assinalados, somemos que para 1526 já havia portugueses

preambulando Luanda, ilha continental que até então fazia parte do território do Congo, e era

lugar de extração das conchas que serviam como moeda no reino.62 Foi nesse mesmo ano que

Balthasar de Castro, um português acolhido pelo rei do Congo logo de ser preso na terra de

Angola, solicitou ao rei de Portugal “descobrir o que há por este seu reino acima”.63 Em

resposta, em documento de c. 1520 o rei de Portugal enviou um regimento para Castro

autorizando que fora descobrir Angola,

Depois que com ele assim falardes e virdes que está disposto para receber a água do baptismo, mandareis ao navio pelas coisas que lhe enviamos, as quais lhe apresentareis com as melhores palavras de amor e amizade que puderdes, e lhe dareis conta das mercês que sempre fizemos ao rei do Congo por ser bom cristão, e como honrado e avantajado é entre os outros por isso e assim por ser grande servidor nosso e por dar todo aviamento a nossos resgates: e que, fazendo-o sempre assim, seremos lembrados dele para lhe fazer bem e mercê como acostumamos fazer àqueles que se chegam e dão a nossa amizade. [...] E todo poreis em memorial; e, quanto a coisa valer mais e cá for mais estimada, tanto menos lhe dareis entender que a estimais para não encarecerem. Carregando vós o dito rei de Angola o navio de escravos e marfim ou metais,[...] e se dito navio puder trazer mais escravos daqueles que o dito rei nos enviar, até a ilha [de São Tomé] trareis aqueles que mais couberem no navio.64

Desse modo, o rei de Portugal não somente omitiu a petição feita pelo rei do Congo de

não enviar mais mercadores de escravos, mas, nesse mesmo ano autorizou um emissário para

‘descobrir’, desde o sul, outra rota para o tráfico de pessoas, marfim e metais. Até o final do

seu reinado Affonso continuou mantendo sistemáticas queixas sobre os mercadores,

destacando que muitos traficantes eram padres e missionários, e talvez esteja relacionado com

61 Alvará de Affonso, rei do Congo, onderando que enviassem para Portugal nove franceses. 27 de dezembro de 1525. Em Streit, Robert, BibliothecaMissionum, n. 1-2217, anos 1053 – 1599. VerlagHerder Freiburg, 1951, p. 293. 62O fato da cidade de Luanda estar dentro dos limites do reino antes da chegada dos lusitanos é aceito pelos principais historiadores do Congo, ver M’bokoloElikia, África Negra: história e civilizações, Volume 1, Salvador, EDUFBA, 2009, p. 193; sobre a extração das conchas nzimbu em Luanda e seu valor como moeda ver Hilton, Anne. The Kingdom of Kongo, Oxford: Oxford University Press, 1985, p. 6-7 e 41. 63Em Paiva Manso, Levy Maria Jordão de. História do Congo. Lisboa: Typographia da academia, 1877, p. 56. 64 Regimento dado pelo rei para descobrir Angola. Em Albuquerque, Luis de. Angola no século XVI, Lisboa: Alfa, 1989, p. 24 – 25.

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isso que em carta de 1540, escreveu para o rei de Portugal que um padre chamado frei Álvaro e

logo outro individuo, tinham atendado contra sua vida.65

Tampouco o seguinte rei cristão do Congo, Diogo I Nkumbi a Mpudi, manteve uma

relação de constante apoio ao cristianismo. Seu reinado apresentou, como os anteriores,

contendas e divergências. Para ampliar mais o debate, destacamos como exemplo o conflito

apresentado com a chegada ao Congo dos primeiros Jesuítas em 1547.66O problema se

visualiza com a carta de 28 de janeiro de 1549 quando o Mani Diogo se queixou do mau

procedimento dos padres da Companhia e dos demais portugueses, exigindo-lhe o traslado

imediato dos mesmos para fora do Congo.67 Em 18 de fevereiro de 1549, um português

escreveu ao rei de Portugal que Diogo, rei do Congo, “além do pouco acatamento que tivera

para com o bispo, chegara a mandar descer do púlpito e sair da igreja os padres da Companhia

por estigmatizarem os males do povo”.68 Em seguida, o rei Diogo expulsou aos padres da

Companhia de Jesus, não sendo esta a única expulsão dessa ordem do reino do Congo antes de

terminar o século XVI.69

Conclusões

Parti da constatação da inexistência do islã ou de árabes na África Centro-Ocidental,

região onde se desenvolveu uma sociedade hierárquica denominada Congo. Com a chegada os

portugueses a elite Congo optou pelo batismo e essa condição a eximia da escravização

segundo os interesses da guerra justa que justificava a invasão e escravização de populações

fora da Europa. Ainda assim, a população do Congo foi sometida ao tráfico e escravização

transatlântica o que permite perguntar como foi instalado esse tráfico na região do Congo. As

fontes primárias aqui analisadas são o início da proposta interpretativa que a pesquisa de

doutorado em curso pretende sustentar. O volume de fontes sobre o tema é muito maior do que

aqui analisado, mas já podemos problematizar a tese do colaboracionismo dos reis do Congo

no que diz respeito à cristianização e instalação do tráfico escravista transatlântico, a qual não

65 Carta de Affonso rei do Congo para o rei de Portugal, Em Paiva Manso, Levy Maria Jordão de. História do Congo. Lisboa: Typographia da academia, 1877, p. 76 - 77. 66 Carta de D. Joao III ao rei do Congo, recomendando-lhe quatro jesuítas que mandave ao seu reino, 9 de agosto de 1547. Em Paiva Manso, Levy Maria Jordão de. História do Congo. Lisboa: Typographia da academia, 1877, p. 83 - 84. 67 Paiva Manso, Levy Maria Jordão de. (1877). História do Congo. Typographia da academia, Lisboa, p. 91 – 92. 68 Em Paiva Manso, Levy Maria Jordão de. (1877). História do Congo. Typographia da academia, Lisboa, p.93- 96. 69 Destaque para a polémica participação dos Jesuítas no Congo, a ponto que lideraram uma sublevação em Luanda em 1592, e o rei de Espanha decretou sua imediata expulsão em 1592. Brasio, Antonio, Monumenta Missionária Africana, 1ra. Serie,Volumen XV, p. 328-330.

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se sustenta à luz das hesitações, expulsões de clérigos e europeus e solicitações constantes para

deter o envio de traficantes de pessoas da região.

Desse modo, o alegado colaboracionismo somente pode ser sustentado através de

metanarrativas que opacam as fissuras e contradições que revelam os documentos do período.

Essas interpretações podem ser colocadas em questão quando abordamos as fontes no contexto

de dinâmicas geopolíticas mais amplias, incluindo, por exemplo, os interesses da coroa

portuguesa e da igreja católica sobre o Congo, Luanda e São Tomé. Finalmente, exibi alguns

exemplos que permitem visualizar as contradições e vazios nas fontes e nas decisões das elites

do Congo, que somente através de um enquadramento mais amplo e contextualizado permitirão

compreender porque o reino do Congo se tornou um dos núcleos de formação do tráfico

escravista no inicio do mundo moderno.

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