Papa La Gui

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O PapalaguiDiscursos de tuiavii, chefe de tribo de Tiava nos Mares do Sul (Samoa)Recolhidos por Erich Sheurmann (aps a I Guerra Mundial)Edies Antgona Lisboa 1999 (74 pginas)Eventuais gralhas tipogrficas que encontre so devidas a desatenes do TextBridge e propositadas: ajudam a aprofundar o texto

I De como o Papalagui cobre as carnes com inmeros panos e esteirasO Papalagui1 esfora-se o mais possvel por bem cobrir as suas carnes. O homem s existe realmente como homem acima do pescoo; quanto ao corpo e aos membros, no passam de carne, eis o que me disse um Branco muito respeitado e tido por muito sbio. Achava ele que s se deve levar em considerao a parte do corpo onde reside o esprito e bem assim todos os bons e maus pensamentos: ou seja, a cabea. O Branco deixa de bom grado a cabea descoberta e, em rigor, tambm as mos. No entanto, cabea e mos mais no so do que carne e ossos. Aquele que deixa ver as carnes no pode ter a pretenso de ser considerado pessoa de bons costumes. Quando um mancebo faz de uma donzela sua mulher, desconhece sempre se esta o enganou, pois nunca antes lhe viu o corpo2. Ainda que seja bela como a mais bela das taopo 3, sempre uma rapariga dever tapar o corpo, para que ningum o veja nem sinta prazer em v-lo. Tudo quanto se refere carne pecado. Assim fala o Papalagui. Com efeito, segundo o seu modo de ver, s o esprito grande. O brao que, pronto a desferir, se ergue luz do sol, uma seta do pecado. O peito palpitando sob a vaga da respirao a aljava do peca-do. Os membros com que a virgem da aldeia dana para ns uma sva 4 so pecadores. At mesmo aquelas partes com que se fazem os filhos, para maior alegria da vasta terra, so pecado. Tudo quanto carne, pecado. Em cada tendo h um prfido veneno que se transmite de homem para homem. O espectculo da carne basta, s por si, para envenenar quem o presencie, para o intoxicar, corromper e tornar to desprezvel como aquele que expe a sua carne. Eis o que proclamam as sagradas leis morais do homem branco. por essa razo que o corpo do Papalagui est, da cabea aos ps, coberto de tecidos, plos e panos to cingidos e grossos que jamais olhar humano ou raio de sol poder atravess-los; to cingidos, que o corpo se lhe torna plido, branco e depauperado como as flores que crescem no mais recndito da floresta virgem. Deixai agora, avisados irmos destas muitas ilhas, que vos descreva o peso que cada Papalagui carrega sobre o corpo. Por baixo de tudo, uma fina pele branca, feita de fibras de uma planta e chamada pele de cima, envolve o corpo nu. Deitam-na ao ar e deixamna cair de cima para baixo sobre a cabea, o peito e os braos, at s coxas. Segue-se, enfiada de baixo para cima pelas pernas e as ndegas, at ao umbigo, uma pele a que chamam pele de baixo. Estas duas peles so cobertas por uma terceira, mais grossa, tecida com os plos de um animal langero de quatro patas, especialmente criado para esse efeito. Esta ltima pele constitui o pano5 propriamente dito. composto, na maior parte das vezes, por trs partes,4 5

Branco, o Senhor. Por outras palavras, o europeu. Nota de Tuiavii: mesmo mais tarde, s muito raramente lho mostrar, e s noite ou hora do crepsculo. 3 Virgem da aldeia, rainha das donzelas.2

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Dana indgena. O pano dos indgenas, ou tanga.

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uma que cobre a parte superior do corpo, a outra a parte mdia e a terceira as ndegas e as pernas. Estas trs partes esto presas umas s outras por conchas6 e atilhos feitos com a seiva seca da rvore da borracha6-bis, de modo que parecem formar uma s pea. Este pano geralmente cinzento, como a lagoa durante a estao das chuvas; no deve ser de cor viva, excepto a parte mdia do pano dos homens que gostem de dar que falar, dos que muito cortejam as mulheres. Por fim, cobre-se os ps com uma pele macia, e depois com uma pele muito dura. A pele macia geralmente e1stica e adapta-se bem ao p, o que no de modo algum o caso da pele dura. Esta tirada da pele de um animal robusto, pele essa que se mergulha em gua, se raspa navalha, se bate e se expe ao sol at ela endurecer por completo. O Papalagui confecciona com esta pele uma espcie de canoa de bordos levantados, e suficientemente grande para que l caiba um p. Faz uma para o p esquerdo e outra para o p direito. Prendem-se e atam-se estas canoas para os ps com cordas e ganchos, de modo a que os ps repousem num estojo rgido, como o bzio em sua concha. O Papalagui usa estas peles nos ps desde o nascer ao pr-do-sol, leva-as quando vai de malaga7, quando vai danar e at mesmo quando faz muito calor, como por exemplo depois de uma chuvada tropical. Como isto contra a natureza e o Branco dse conta disso! como isto d cabo dos ps e os faz cheirar mal, e como, de facto, a maior parte dos ps europeus no capaz de suster-se nem de trepar a uma palmeira, o Papalagui tenta disfarar a sua loucura cobrindo a pele, j de si vermelha, desse animal, com uma grande poro de lama e esfregando-a durante muito tempo at faz-la brilhar, brilho esse que cega os olhos e os leva a desviarem-se. Houve uma vez na Europa um Papalagui que se tornou muito conhecido e que muita gente acorria a ver, porque ele dizia: No nada bom trazer nos ps peles assim to apertadas e pesadas; andai mas de ps descalos, ao ar livre, quando o orvalho da noite cobre a erva, e nunca doena alguma entrar convosco. Era um homem muito so e muito sbio; mas troaram dele e depressa o esqueceram. Tal como o homem, tambm a mulher tem o corpo e as ancas enroladas em muitos panos e esteiras. Devido aos cordes, a sua pele est coberta de cicatrizes e esfoladelas. Os seios torna6 7

ram-se-lhe moles e perderam o leite, por causa da presso de uma esteira que vai do pescoo at ao baixo-ventre e se prende frente, no peito, e tambm nas costas, esteira essa que espinhas de peixe, arames e cordes tornam muito dura. Assim, a maior parte das mes d a seus filhos leite contido num rolo de vidro fechado em baixo e munido em cima de um mamilo artificial. E tambm no o seu prprio leite que elas lhes do, mas o leite de uns horrveis animais vermelhos e cornudos, o qual lhes tirado com toda a fora das quatro tetas que possuem no baixoventre. Os panos das mulheres e das raparigas so, de resto, mais finos que os dos homens e podem ser coloridos e berrantes. Alm disso, o pescoo e os braos podem ter mais carne a mostra do que os dos homens. E no entanto de bom tom que uma rapariga se cubra com muitas peles; dizem ento as pessoas com complacncia: pdica, o que para eles significa: respeita o que mandam os bons costumes. Por isso que eu nunca entendi por que que as mulheres e as raparigas tm direito a deixar ver a carne do pescoo e das costas durante grandes fonos 8 e festins, sem que tal seja vergonha. Mas o que reala o carcter solene dos festejos talvez seja o facto de tudo o que at ali no era permitido, o ser agora, justamente. Os homens que tm sempre o pescoo e as costas muito tapados. Um al 9 usa, do pescoo at aos peitos, um pedao de pano caiado, do tamanho de uma folha de taro. Por cima disso, coloca um aro alto, igualmente branco, o qual enrola volta do pescoo. Passa, atravs deste aro, um bocado de pano colorido, d-lhe um n como os que prendem os barcos, fura-o com um prego de oiro ou uma prola de vidro e deixa isso tudo dependurado sobre o escudo do peito. Muitos Papalaguis usam igualmente aros caiados nos punhos, mas nunca nos tornozelos. Esse escudo do peito e esses aros caiados so para ele importantssimos. Nunca um Papalagui se apresentar sem este adorno diante de uma mulher, e muito menos se o aro tiver perdido o brilho e a brancura. por isso que muitos als altamente colocados mudam todos os dias de escudo do peito e de aros caiados. Enquanto que a mulher possui inmeros panos de festa de todas as cores, os quais do para encher vrios bas, e gasta os seus pensamentos a ver se sabe que pano lhe agrada mais pr hoje ou amanh, e se este dever ser curto ou comprido, falando tambm com muito amor da espcie de enfeite que nele ir pregar, o homem, esse, s possui, na maior parte das8 9

e 6-bis Botes e elsticos. De viagem.

Reunies, festas nocturnas. Amo, cavaleiro.

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vezes, um nico trajo de festa, e quase nunca fala dele. o que se chama o trajo de pssaro, ou seja, um pano muito preto que termina em ponta, nas costas, como o rabo do papagaio dos bosques10. Esse trajo de gala obriga a usar, igualmente, peles brancas volta das mos, e peles volta de cada um dos dedos, to apertadas que o sangue ferve e aflui ao corao. Por isso os homens de bom senso podem permitir-se no as enfiar, contentando-se em segurar na mo tais peles ou de as prender no pano, altura dos peitos. Quando um homem ou uma mulher deixa a sua cabana e sai para a rua, cobre-se ainda com um outro pano mais amplo, que grosso ou fino conforme o sol brilha ou no. Cobrem tambm a cabea, os homens, com um vaso preto, teso, arredondado e oco, semelhante ao telhado das nossas casas de Samoa, e as mulheres, com grandes entranados de vime ou cestas viradas s avessas, nos quais prendem flores que nunca murcham, penas, pedaos de pano, prolas de vidro e toda a espcie de ornamentos. Parece a tuiga 11 de uma taopo na dana da guerra, mas esta muito mais bonita e no corre o perigo de cair da cabea durante a dana, ou quando h vendaval. Os homens brandem esses tectos de cabana para cumprimentarem as pessoas que encontram, ao passo que as mulheres apenas inclinam o fardo que trazem cabea um tudo-nada para a frente, como um bote mal carregado. S noite, quando vai deitar-se na sua esteira, que o Papalagui tira todos aqueles panos; mas logo se envolve num outro, esse nico, aberto do lado dos ps, que deixa a descoberto. As raparigas e as mulheres usam geralmente um pano de noite ricamente decorado roda do colo, mas s raramente se mostram assim. Mal o Papalagui se deita na esteira, logo se cobre at cabea com as penas tiradas da barriga de um grande pssaro e envoltas num grande pano, para no carem e voarem em todos os sentidos. Essas penas fazem o Papalagui transpirar e do-lhe a iluso de estar deitado ao sol, mesmo10 11

quando este no brilha. Porque o Papalagui no presta grande ateno ao sol verdadeiro. claro que, assim, o corpo do Papalagui se torna branco, macilento e no reflecte alegria. Mas assim que ele gosta de viver. As mulheres, sobretudo as raparigas, tomam sempre cuidado em proteger a pele, em evitar que avermelhe quando a luz mais forte e, sempre que esto ao sol, hasteiam, para sua defesa, um grande tecto por cima da cabea. Como se a plida cor da lua fosse mais bonita do que a luz do sol! Mas o Papalagui gosta de arvorar, em todos os domnios, um saber e uma lei l a seu modo. Acha bonito o nariz que tem, pontiagudo como um dente de tubaro; o nosso, sempre redondo e mole, declara-o feio e disforme, ao passo que para ns precisamente o contrrio! Como o corpo das mulheres e das raparigas anda sempre tapado, os homens e os adolescentes ardem em desejo de ver as suas carnes: o que muito natural. Pensam nisso noite e dia e falam muito das formas do corpo das mulheres e das raparigas, e sempre como se o que belo e natural fosse um grande pecado e s pudesse ser apreciado nos stios mais escuros. Se eles deixassem ver abertamente as suas carnes, j eram capazes de pensar noutras coisas; j no espreitariam as raparigas, nem diriam palavras impdicas quando passa alguma. Mas a carne pecado, obra do ai-tu 12. Poder haver, amados irmos meus, mais estpido pensar? A crermos no que diz o Branco, devamos desejar, tal como ele, que a nossa carne fosse dura como a rocha vulcnica e desprovida do seu belo calor interno! Ora o que ns devemos regozijarnos pelo facto de a nossa carne ainda poder dialogar com o sol, e de podermos mover as nossas pernas como o cavalo selvagem, pois que nenhum pano as entrava, pele alguma sobrecarrega os nossos ps, e nem sequer temos de cuidar em no deixar cair o que nos cobre a cabea. Regozijemo-nos vista da virgem que mostra o seu corpo em plena luz do sol e da lua. O Branco, crendo-se obrigado a muito cobrir-se para esconder a sua vergonha, parvo, cego, insensvel verdadeira alegria.12

Trata-se provavelmente do fraque Adorno da cabea.

Esprito maligno, diabo.

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II Das arcas de pedra, das gretas de pedra, das ilhas de pedra e do que entre elas hO Papalagui mora, como o mexilho do mar, dentro duma concha dura. Vive entre pedras, como a escolopendra entre as fendas da lava. Tem pedras a toda a volta, de lado e por cima. A sua cabana assemelha-se a um ba de pedra posto ao alto; um ba cheio de cubculos e de buracos. Entra-se e sai-se da concha de pedra por um s e mesmo stio. O Papalagui chama a esse stio entrada quando entra na cabana, e sada quando sai, muito embora uma e outra sejam exactamente o mesmo. H um grande batente de madeira que temos que empurrar com toda a fora antes de poder penetrar na cabana. Mas isso s um comeo: somos obrigados a empurrar mais uns quantos batentes e s depois que ficamos realmente dentro da cabana. A maior parte das cabanas habitada por maior nmero de pessoas do que as que h numa s aldeia de Samoa. E preciso, por isso, saber-se exactamente o nome da aga13 que se quer visitar. Porque cada aga ocupa a sua prpria parte do ba de pedra, no cimo, em baixo ou a meio, direita, esquerda ou mesmo em frente. Alm disso, na maior parte das vezes, uma aiga nada sabe da outra, mas mesmo nada, como se entre elas houvesse, no apenas uma parede de pedra, mas Manono, Apolima, Savaii14 e inmeros mares. Muitas vezes mal sabem o nome das que lhes esto ao lado e quando se encontram, ao entrar para o abrigo, cumprimentam-se de m vontade ou zunem, quais insectos hostis, como se estivessem zangadas de se verem constrangidas a viverem perto uma da outra. Quando uma aga mora l em cima, junto ao telhado da cabana, temos que trepar em ziguezague ou roda, atravs de vrios ramos, antes de chegar ao stio onde o nome da aga estiver escrito na parede. Vemos ento uma graciosa imitao de um mamilo de mulher, o qual devemos premer at soar um grito que far vir a aga. Esta, graas a um buraquinho redondo e gradeado aberto na parede, v se no se trata de um inimigo. S depois abre. Se reconhece um amigo, desprende logo um grande batente de madeira solidamente fechado a cadeado e puxa-o contra si, o que permite ao visitante entrar por essa fresta na cabana propriamente dita.13 14

Esta novamente cortada por inmeras e rijas paredes de pedra e assim continuamos a insinuar-nos de batente em batente, a passar de um ba para outro ba cada vez mais pequeno. Cada ba a que o Papalagui chama sala possui um buraco atravs do qual entra a luz, e se for grande, dois ou mais buracos. Esses buracos so tapados com vidro, que se pode afastar para fazer entrar ar fresco nos bas, coisa assaz necessria. H, no entanto, muitos bas sem buracos para o ar e para a luz. Um Samoano depressa sufocaria num ba assim, onde no passasse ar fresco, como acontece em todas as cabanas de Samoa. Alm disso, os cheiros da cabana-cozinha tambm tm que sair. O ar que vem de fora no , em geral, melhor; quase incompreensvel que um homem no morra em tal stio, que o desejo de sair dali o no transforme em pssaro, que lhe no cresam asas para poder tomar impulso e levantar voo, rumo ao ar livre e ao sol. Pois, mesmo assim, o Papalagui gosta dos seus bas de pedra e no se apercebe de quanto eles so malsos. Cada ba tem o seu fim prprio. O ba maior e mais claro destina-se s fonos15 da famlia ou ao acolhimento dos visitantes; h outro que serve para dormir. a que se pem as esteiras, isto , que se as estende sobre um estrado de madeira com ps altos, a fim de que o ar passe por baixo delas. Num terceiro ba, tomam-se as refeies e fazem-se nuvens de fumo; no quarto, guardam-se os alimentos; cozinhase no quinto, e toma-se banho no ltimo, que o15

Famlia 3 ilhas do grupo de Samoa.

Reunies, assembleias, encontros.

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mais pequeno, e tambm o mais belo cubculo. Est enfeitado com grandes espelhos, o cho embelezado com uma camada de seixos multicolores e, mesmo ao meio, h uma grande bacia de metal ou pedra na qual corre gua fria ou gua aquecida ao sol. E nessa grande bacia, maior mesmo do que o belo tmulo de um chefe de tribo, que uma pessoa se mete, para limpar e lavar o seu corpo de toda a poeira dos bas. Cabanas h, claro, com maior nmero de bas. Como tambm h cabanas onde cada criana, e cada servo do Papalagui, possui o seu prprio ba. H-os at para os ces e para os cavalos. pois nestes bas que o Papalagui passa a vida. Encontra-se, consoante a hora, ora num, ora noutro ba. a que crescem os seus filhos, entre pedras e muito acima do cho, s vezes mais alto do que o cimo de uma grande palmeira. De vez em quando o Papalagui deixa os seus bas privados, como ele lhes chama, e vai at outro ba destinado aos negcios, onde no quer que o incomodem e onde mulheres e filhos so indesejveis. Enquanto isso, as raparigas e as mulheres preparam as refeies na cabana-cozinha, do brilho s peles para os ps ou lavam os panos. Se os Papalaguis so ricos e podem dar-se ao luxo de ter criados, so estes que fazem tais trabalhos enquanto os Papalaguis vo fazer visitas ou procurar novas provises de alimentos. H, na Europa, tantos homens a viverem deste modo quantas palmeiras h em Samoa, ou mesmo muitos mais. Alguns ho-de ter, por certo, um desejo ardente de ver a floresta, o sol e a luz; mas isso geralmente tido por doena a precisar de remdio. Quando algum se no mostra contente com aquela vida vivida no meio das pedras, dizem: um indivduo desnaturado, o que quer dizer: ignora o que Deus destinou para o homem. Esses bas de pedra encontram-se em grande nmero e muito prximos uns dos outros; nenhuma rvore, nenhum arbusto os separa; encontramse ombro a ombro, como homens, e em cada um deles h tantos Papalaguis como numa aldeia de Samoa. Do outro lado, distncia de uma pedrada, encontra-se uma outra fila de bas, igualmente ombro a ombro e habitados por homens. Entre essas duas filas h uma estreita greta a que o Papalagui chama rua. Essa greta , s vezes, to longa como um rio e coberta de pedras duras. Muito se tem que andar, primeiro que se encontre um stio mais desafogado; mas a precisamente que vm desembocar outras gretas. Tm o mesmo comprimento dos rios de gua doce e as suas aberturas laterais so outras tantas gretas de pedra, semelhantes s demais. Pode-se assim deambular dias inteiros entre essas gretas antes de se dar com

uma floresta ou um naco de cu azul. Nunca, no meio das gretas, se v, na realidade, a cor do cu. que em cada cabana h pelo menos um, e por vezes vrios stios, onde se faz fogo, e assim o ar est sempre cheio de fumo e de cinza, como acontece durante a erupo da grande cratera de Savaii. Esse ar insinuase pelas gretas, de modo que os bas de pedra mais altos parecem-se com os limos dos pntanos de mangrove, e os homens apanham com terra negra nos olhos e nos cabelos e com areia dura nos dentes. Mas isso no impede que os homens percorram as tais gretas desde manh at noite. Alguns sentem mesmo com isso um especial prazer. Em certas gretas reina a confuso: escoam-se os homens por elas como espessa vasa. So as ruas que comportam enormes caixas de vidro onde esto dispostas todas as coisas de que o Papalagui necessita para viver: panos, ornamentos para a cabea, peles para os ps e para as mos, provises de comida, carne, alimentos a srio como sejam os frutos, os legumes, e muitas coisas mais. Tudo ali est para tentao dos homens. Mas ningum tem o direito de tirar o que quer que seja, mesmo em caso de extrema necessidade; para isso preciso ter recebido uma licena especial e feito uma oferenda. Nessas gretas, o perigo ameaa por todo o lado, pois no s os homens caminham em tropel, como circulam e galopam a cavalo em todas as direces ou se fazem transportar em grandes bas de vidro que deslizam sobre rampas metlicas. O barulho enorme. Fica-se surdo dos ouvidos, por via dos cascos dos cavalos e dos ps dos homens cobertos de peles duras, que ferem as pedras do cho. H crianas a gritar, h homens a gritar de alegria ou de terror, grita toda a gente! S aos gritos que conseguimos fazer-nos ouvir. A barulheira geral: so uns estalos, uns batuques, um estrondo tal, que mais parece a falsia de Savaii em dia de grande tempestade. Mas o bramido desta mais agradvel, no nos d cabo dos sentidos, como o das gretas. Resumindo: bas de pedra com os seus muitos homens, fundas gretas de pedra correndo para um lado e para outro, quais mil e um rios, com seres humanos l dentro, barulho e estrondo, poeira negra e fumo por toda a parte, rvore alguma no horizonte e nada de cu azul, nada de ar puro ou de nuvens a isto chama o Papalagui uma cidade, criao de que muito se orgulha; quando muitos h, que ali vivem, que nunca viram uma floresta, um cu lavado ou o Grande Esprito, face a face. Homens que vivem como os animais que rastejam nos pegos e se escondem sob os corais; e ainda estes esto rodeados pela lmpida gua do mar, e o sol ainda lhes chega com a sua clida boca. Orgulhar-se- o Papalagui desses calhaus que assim juntou? O Papalagui um indivduo de um bom senso algo singular. Faz imensas

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coisas sem sentido que o pem doente, e apesar disso gaba-se e vangloria-se delas. A cidade , pois, isto de que eu acabo de falar. Mas h muitas cidades, cidades pequenas e cidades grandes. As maiores so aquelas onde moram os chefes do lugar com postos mais elevados. As cidades encontram-se dispersas no meio das terras, como as nossas ilhas no meio do mar. A distncia que as separa corresponde por vezes que ns temos que percorrer para ir tomar banho ao mar, mas tambm, outras vezes, a um dia de caminho. Todas as ilhas de pedra esto ligadas entre si por caminhos j traados. Mas pode-se igualmente viajar num barco terrestre, comprido e estreito como um verme, que cospe fumo sem parar e desliza com grande rapidez sobre uns fios de ferro, com mais rapidez do que uma canoa de doze lugares em plena corrida. Mas se apenas quisermos dizer talofa16 a um amigo de outra ilha, no precisamos de ir a sua casa ou de correr dentro daquilo. Sopramos a mensagem em fios metlicos que se estendem, como lianas, de uma a outra ilha de pedra, e a mensagem chega ao stio designado mais depressa do que um pssaro em pleno voo. Entre todas essas ilhas de pedra, estende-se a terra propriamente dita, chamada Europa. uma terra em parte bonita e frtil, como a nossa. Tem rvores, rios e florestas e tambm aldeias verdadeiras. Embora as suas cabanas sejam igualmente de pedra, nem por isso deixam de estar, na maior parte das vezes, rodeadas de rvores carregadas de fruta; a chuva lava-as por todos os lados, e seca-as o vento. Nessas aldeias moram homens dotados de natureza diferente da dos habitantes das gretas. Chamam-lhes homens do campo. Tm mos mais rugosas e panos mais sujos que os homens das gretas, muito embora possuam muito mais de16

comer do que eles. A sua vida muito mais bela e saudvel do que a dos homens das gretas. Mas no isso o que eles acham, e por isso invejam os outros a quem chamam mandries, por eles no trabalharem na terra, nem enterrarem e desenterrarem frutos. So ambos inimigos, pois os homens do campo tm que alimentar os homens das gretas com o produto da sua terra, guardar, criar e engordar o gado e partilh-lo com eles. De qualquer modo, custa-lhes sempre muito abastecer de alimentos os homens das gretas e nunca percebem realmente por que que estes usam mais belos panos do que eles, tm mos mais brancas e no so obrigados, como eles, a suar ao sol e a tiritar chuva. Coisa que, de resto, preocupa muito pouco o homem das gretas. Este est persuadido de que tem direitos superiores aos do homem do campo e que aquilo que faz tem mais valor do que enterrar ou desenterrar frutos. Este conflito entre as duas partes no provoca contudo qualquer guerra entre elas. Quer viva entre gretas, quer viva no campo, o Papalagui acha que tudo est bem como est. Quando o homem do campo entra nas gretas, admira o poderio do homem que as habita, e este canta e arrulha sempre que atravessa as aldeias do homem do campo. O homem das gretas deixa o homem do campo engordar artificialmente os seus porcos, e este deixa o homem das gretas construir e gozar os seus bas de pedra. Quanto a ns, filhos livres do sol e da luz, desejamos continuar fiis ao Grande Esprito e no sobrecarregar com pedras o seu corao. S indivduos desvairados e doentes, homens que largaram a mo de Deus, sero capazes de viver felizes entre gretas daquelas, sem sol, sem luz e sem vento. Reconheamos a incontestvel felicidade do Papalagui, frustremos as suas tentativas de construir, ao longo das nossas margens banhadas pelo sol, os seus bas de pedra, e de destruir a nossa alegria com pedras, gretas, sujidade, barulho, fumo e areia, como desejo seu fazer.

Saudao de Samoa; letra: Amo-te.

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III Do metal redondo e do papel fortemir17, para que ningum lho roube. Pensam nisso todos os dias, a toda a hora, a todo o instante. Todos, todos eles o fazem! At mesmo as crianas devem e so obrigadas a pensar nisso. o que a me lhes ensina e o que elas vem o pai fazer. Todos os Europeus so assim! Ao caminharmos pelas gretas do Siamani18, ouvimos a todo o passo uma voz gritar: mark!. E logo o mesmo grito: mark! Ouvimo-lo por toda a parte: esse o nome do metal brilhante e do papel forte. Em Falani19, franco; em Peletania20 schilling, em Itlia lira. Marco, franco, xelim, lira, tudo a mesma coisa. Tudo tem o mesmo nome: dinheiro, dinheiro. O dinheiro de facto o Deus do Papalagui, se a gente considerar Deus aquilo que mais se adora. E preciso notar que nas terras do homem branco impossvel viver sem dinheiro, uma s vez que seja, do nascer ao pr-do-sol. Se no tiveres dinheiro nenhum, no poders matar a fome nem mitigar a sede, no encontrars esteira para a noite, sers lanado no fale pu pu 21 e falar-se- de ti em muitos e variados papis22; tudo isto s por no teres dinheiro! Tens que pagar, isto , tens que dar dinheiro pelo cho sobre o qual caminhas, pelo stio onde se encontra a tua cabana, pela esteira onde passas a noite, pela luz que ilumina a tua cabana. Tens que pagar para teres direito a disparar sobre um pombo ou para banhares o teu corpo no rio. Sempre que queiras ir aos lugares onde os homens costumam folgar, onde eles cantam e danam, ou sempre que queiras pedir um conselho ao teu irmo, ters que dar muito metal redondo e papel forte em troca. Por tudo tens que pagar. Por todo o lado h irmos teus que te estendem a mo e te desprezam ou se enfurecem se nada l deixares. Nem o teu mais humilde sorriso, nem o teu mais cordial olhar chegam para lhes comover o corao. Abrem as goelas e gritam-te: Miservel! Vagabundo! Ladro! Tudo isto quer dizer a mesma coisa e a maior afronta que nos podem fazer. At para nasceres tens que pagar e quando morreres a tua aga tem que pagar pela tua morte, para poder depositar o teu corpo na terra e pela grande pedra que te pem sobre a tumba, em sinal de recordao. Descobri uma nica coisa pela qual se no pede ainda dinheiro na Europa, coisa que cada um pode fa17 18

Escutai-me bem, meus avisados irmos, crde no que vos digo, e considerai-vos felizes por ignorardes os males e as angstias do homem branco. Como todos vs sois testemunhas, o missionrio proclama que Deus amor e que um bom cristo deve ter sempre a imagem do amor presente no seu esprito. E por essa razo que, segundo ele, o Papalagui dirige a sua prece ao grande Deus. Mas ele mentiu-nos, ele enganou-nos, o missionrio; o Papalagui corrompeu-o, de modo que ele nos engana usando as palavras do Grande Esprito. A verdadeira divindade do homem branco o metal redondo e o papel forte a que ele chama dinheiro. Quando se fala a um Europeu do Deus do amor, ele faz uma careta e sorri. Sorri de to ingnua maneira de pensar. Quando Lhe estendem uma pea de metal redondo e brilhante ou um papel grande e forte, logo os seus olhos brilham e a saliva lhe assoma aos lbios. O dinheiro o objecto do seu amor, o dinheiro a sua divindade. Todos os homens brancos pensam nisso, at mesmo a dormir. Muitos h cujas mos se tornam aduncas e semelhantes s patas da grande formiga dos bosques, fora de manejarem a todo o instante o metal e o papel. Muitos h cujos olhos se tornaram cegos fora de contarem o dinheiro. Muitos h que pelo dinheiro sacrificaram o riso, a honra, a conscincia, a felicidade e at mesmo mulher e filhos. Quase todos eles sacrificam a sade ao metal redondo e ao papel forte, isto , ao dinheiro. Trazem-no dentro dos panos, dobrado e metido em duras peles. noite, pem-no debaixo do seu rolo de dor-

Travesseiro ( francesa). Alemanha. 19 Frana. 20 Inglaterra (deturpao de Bretanha). 21 Priso, cadeia, calabouo. 22 Jornais.

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zer as vezes que quiser: respirar o ar. Julgo que ter ficado esquecido, mas no me admirava nada que, se as minhas palavras fossem ouvidas na Europa, no exigissem logo, por via disso, algum metal redondo e algum papel forte. Porque os Europeus esto sempre cata de novos motivos para pedir dinheiro. Sem dinheiro, tu s, na Europa, um homem sem cabea e sem membros; no s nada. Tens que ter dinheiro. Precisas de dinheiro como precisas de comer, de beber e de dormir. Quanto mais tiveres, melhor vives. Se tiveres dinheiro, poders ter tanto tabaco, tantos anis e tantos panos quanto o dinheiro que tiveres. Se tiveres muito, poders ter muitas coisas. por isso que todos desejam ter muito dinheiro. Cada qual mais do que o vizinho. Da a sua avidez, o seu olhar cravado em tudo quanto toca a dinheiro. Atira uma pea de metal redondo para a areia e vers as crianas precipitarem-se, baterem-se para a apanhar; aquele que a apanha o vencedor, e com isso rejubila. Mas raramente se deita assim dinheiro para a areia. De onde nos vem o dinheiro? Como que se faz para ter muito dinheiro? Oh, vem de muitas maneiras, umas fceis, outras difceis: quando cortas o cabelo ao teu irmo, quando lhe tiras o lixo da frente da cabana, quando conduzes uma canoa na gua, quando tens uma ideia interessante. Devo acrescentar, para ser justo, que se tudo exige muito papel forte e muito metal redondo, tambm se torna fcil arranj-lo a troco de qualquer coisa. Basta que faas uma aco a que eles na Europa chamam trabalho. Trabalha e ters dinheiro, diz uma lei moral europeia. H aqui uma grande injustia; mas o Papalagui nem quer sonhar, nem sequer quer pensar nisso, pois nesse caso seria forado a reconhec-la. Nem todos aqueles que tm muito dinheiro trabalham muito. Todos eles gostariam, at, de ter muito dinheiro sem trabalhar. A coisa passa-se assim: quando um Branco tem dinheiro suficiente para a sua comida, para a sua cabana, para a sua esteira e algo mais ainda, manda logo o seu irmo trabalhar para ele, graas ao dinheiro que tem a mais. Destina-lhe, para comear, aquele trabalho que lhe pe as mos sujas e rugosas. Manda-o limpar os seus prprios excrementos. Se mulher, arranja uma criada para o seu servio, a qual tem que limpar-lhe a esteira suja, os pratos da comida e as peles para os ps, e remendar os panos rasgados; e tudo o mais que faa ter que ser til para a ama. Ele ou ela tm ento tempo para se consagrar a um trabalho mais importante e mais divertido, que no suje tanto as mos, que no canse e que renda mais dinheiro. Se construtor de pirogas, deve o outro ajud-lo tambm a construir pirogas. Fica

com a maior parte do dinheiro que este ganha a ajud-lo e que de facto deveria caber-lhe por inteiro, e, logo que lhe possvel, pe dois, e depois trs irmos seus a trabalharem para si; e assim em nmero crescente, at chegarem a cem e mais, vo os seus irmos construindo pirogas para ele. E isto at chegar ao ponto de nada mais fazer do que deitar-se na esteira, beber kava23 europeu, queimar os seus rolos de fumo24, entregar as canoas j prontas e arrecadar o metal e o papel que outros, com o seu trabalho, ganharam para ele. Dizem ento os homens: rico. Invejam-no, adulam-no e falam-lhe com palavras bonitas e escolhidas. Porque, no mundo dos Brancos, a importncia de um homem no determinada nem pela sua bravura, nem pela sua coragem, nem pelo fulgor do seu esprito, mas sim pela quantidade de dinheiro que possui ou que capaz de ganhar por dia, dinheiro esse que ele fecha no seu grande ba de ferro, o qual nenhum tremor de terra capaz de destruir. Muitos Brancos h que amontoam o dinheiro que para eles outros ganharam, o depositam num stio bem guardado e para a vo acarretando sempre mais, at que um dia j no precisam de mandar os outros trabalhar para eles, trabalhando o dinheiro no seu lugar. Nunca consegui perceber como que isso era possvel, sem haver magia negra; e no entanto tudo se passa assim: o dinheiro multiplica-se como as folhas de uma rvore e o homem at quando dorme vai enriquecendo. Um Papalagui que possua, por si s, muito dinheiro, bem mais do que os seus irmos e o bastante para facilitar o trabalho de cem, ou at mil homens, nada reparte com eles; antes rodeia com as mos o metal redondo e senta-se em cima do papel forte, com um olhar cheio de avidez e de volpia. E quando lhe perguntam: O que que tens inteno de fazer com todo esse dinheiro? Nada mais podes fazer, nesta terra, do que vestir-te, matar a fome e mitigar a sede!, no sabe o que responder, ou ento diz: Tenho inteno de ganhar mais dinheiro, ganhar sempre mais e mais ainda! E a gente logo v que o dinheiro o ps doente e lhe ocupa agora todos os pensamentos. Fica doente e obcecado, porque a sua alma se afinca ao metal redondo e ao papel forte, que, a seu ver, nunca lhe chega, pelo que no pode deixar de arrebanhar o mais possvel. incapaz de dizer para consigo: quero ir-me embora deste mundo como para c vim, sem dar motivo a queixas e sem fazer mal; pois assim, na verdade, me enviou o Grande Esprito a esta terra: sem metal redondo e sem papel forte. H quem assim pense, mas so raros. A maior parte23

Bebida popular de Samoa, preparada com as razes do arbusto de Kava. 24 Cigarros, charutos.

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deles ficam doentes, no recobram mais a sade do corao e regozijam-se com o poder que a abundncia de dinheiro lhes confere. Ficam inchados de orgulho, como frutos podres sob a chuva tropical. Fazem, com volpia, trabalhar duramente muitos dos seus irmos, enquanto o seu corpo engorda e se fortalece. Procedem assim sem que a conscincia os apoquente. Regozijam-se dos seus belos dedos brancos que j no tm que sujar-se. Roubam a todo o passo a fora de outros homens e fazem-na sua, sem que isso os atormente ou lhes tire o sono. No sonham sequer em dar aos outros uma parte do seu dinheiro, para lhes facilitar a vida. H pois, na Europa, uma metade que trabalha muito e se suja, e outra metade que trabalha muito pouco ou nada. A primeira no tem tempo de sentar-se ao sol, ao passo que a outra o tem de sobra. Diz o Papalagui que os homens no podem ter todos o mesmo dinheiro, nem sentar-se todos juntos ao sol. graas a esta doutrina fomentada pelo dinheiro que ele se permite ser cruel. Tem o corao duro e o sangue frio; mostra-se at velhaco, falso, raramente honesto e sempre perigoso quando corre atrs do dinheiro. Quantas vezes no acontece um Papalagui bater noutro por dinheiro, ou, para dele o desapossar, mat-lo, adormec-lo com o veneno das suas palavras! por isso que raro um Papalagui ter confiana noutro, pois todos conhecem a sua comum fraqueza. Nunca a gente sabe, assim, se um homem que tem muito dinheiro ter bom corao; muito possivelmente ser m pessoa. Nunca a gente sabe como ou donde vem a riqueza a algum. Em contrapartida, tambm o homem rico no sabe se as honras que lhe prestam so devidas sua pessoa ou ao seu dinheiro; a maior parte das vezes ao dinheiro. E por isso que eu no percebo por que que aqueles que no tm muito metal redondo nem muito papel forte tanto se envergonham disso e tanto invejam o homem rico, em lugar de se considerarem, isso sim, dignos de inveja. De facto, assim como de mau gosto um homem atravancar o peito com muitos colares de conchas, igualmente o ser com o pesado fardo do dinheiro. Dificulta-lhe a respirao e tira-lhe a liberdade de movimentos de que os seus membros necessitam.

Mas nenhum Papalagui quer renunciar ao dinheiro. Nem um s o faz. Quem no gosta dele alvo de zombarias, valea25. A riqueza isto , ter muito dinheiro torna uma pessoa feliz, diz o Papalagui, e tambm: O pas que tiver mais dinheiro ser o mais feliz! Todos ns, meus sbios irmos, somos pobres. A nossa terra a mais pobre luz do sol. No temos metal redondo e papel forte que cheguem para encher um ba. Segundo o modo de pensar do Papalagui, somos uns pobres mendigos. E no entanto, quando vejo os vossos olhos e os comparo com os dos ricos als, os deles parecem-me embaciados, mortios e cansados, ao passo que os vossos irradiam, como a grande luz, alegria, fora, vida e sade. S vi olhos iguais aos vossos nos filhos do Papalagui antes deles aprenderem a falar, pois at a nada sabem de dinheiro. Oh! como o Grande Esprito nos favoreceu, protegendo-nos desse aitu! O dinheiro um atu, pois tudo quanto lhe diz respeito mau e espalha o mal. Quem s mexe em dinheiro fica sujeito ao seu sortilgio e quem gosta dele tem que o servir e consagrar-lhe, por toda a vida, a sua fora e alegria. Prezemos os nossos hbitos, que dizem ser digno de desprezo quem algo exige pela hospitalidade que oferece ou quem reclama uma alofa26 por cada fruto que d! Prezemos os nossos hbitos, que no permitem que um possua imenso e o outro nada, ou que um possua muito mais que o outro! E assim no nos tornaremos, em nosso corao, iguais ao Papalagui, que capaz de se sentir feliz e contente mesmo quando, ao lado, o seu irmo est triste e infeliz. Tomemos, sobretudo, muito cuidado com o dinheiro! Tambm a ns o Papalagui nos estende o metal redondo e o papel forte para nos despertar o desejo de o possuir. Pretende ele que o dinheiro torna uma pessoa rica e feliz! J muitos de ns se deixaram seduzir e contraram essa grave doena. Mas se vs acreditardes nas palavras deste vosso humilde irmo, se estiverdes conscientes de que digo a verdade quando afirmo que o dinheiro no faz ningum alegre e feliz, antes traz grave perturbao ao ser humano; e que no possvel ajudar ningum com dinheiro e torn-lo realmente mais feliz, mais forte e alegre ento havereis de odiar o metal redondo e o papel forte como ao vosso maior inimigo.25 26

Parvo, estpido. Presente, recompensa, gorjeta.

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IV As muitas coisas tornam o Papalagui mais pobrediferente de hora para hora, semeada de grandes flores que nos do uma luz ora doirada ora argntea. Para qu ser parvo, para qu criar ainda mais coisas para alm das coisas sublimes que o Grande Esprito nos d? Nunca, mas nunca, poderemos ns igual-lo, porquanto o nosso esprito demasiado pequeno e demasiado fraco para se medir com o poder do Grande Esprito, e a nossa mo demasiado fraca para se medir com a sua mo magnfica e possante. Tudo quanto fizermos ser medocre, nem sequer vale a pena falar nisso. Com a ajuda de um pau podemos alongar o nosso brao, com a ajuda de uma tanoa 27 aumentar o cncavo da nossa mo, mas nunca Samoans ou Papalagui algum fez uma palmeira ou um tronco de kava. O Papalagui julga-se na verdade capaz de obrar tais coisas, julga-se to forte como o Grande Esprito. Eis porque, do nascer ao pr-do-sol, milhares e milhares de mos mais no fazem do que fabricar coisas, coisas humanas cujo sentido ignoramos e cuja beleza desconhecemos. O Papalagui procura inventar sempre novas coisas. As suas mos tornam-se febris, o seu rosto, cor-de-cinza, e curvadas as suas costas; mas os olhos brilham-lhe de felicidade sempre que consegue uma nova coisa. Logo todos a querem ter, todos a adoram e a celebram com cantos na sua lngua. Oxal, irmos meus, me acrediteis quando vos digo: eu descobri o que se oculta por detrs dos pensamentos do Papalagui, eu vi o que ele pretende, to claramente como ao sol do meio-dia. Destruindo, por onde quer que passe, as coisas do Grande Esprito, pretende ele, pelas suas prprias foras, fazer reviver o que mata e persuadir-se a si mesmo que o Grande Esprito criador das vrias coisas. Imaginemos, irmos, que de repente surge a grande tempestade e arranca a floresta virgem e as montanhas, com todas as suas folhas e rvores, e leva sua frente todas as conchas e os animais da lagoa; imaginemos que no mais haver flores de ibisco para as nossas donzelas enfeitarem os cabelos, que tudo, tudo quanto est vista desaparece, que s nos resta a areia, e que o solo se assemelha palma da mo estendida ou a uma colina pela qual escorreu a lava incandescente: lamentaramos ento ter perdido tudo as palmeiras, as conchas, a floresta virgem. Pois precisamente onde se erguem as inmeras cabanas dos Papalaguis esses stios a que eles chamam cidades o solo est to rido como a palma da27

Podereis reconhecer tambm o Papalagui pelo seu desejo de nos fazer crer que somos pobres e miserveis e que necessitamos de muita ajuda e piedade, em virtude de no possuirmos coisas. Queridos irmos destas muitas ilhas: permiti que vos diga o que uma coisa. A noz de coco uma coisa, o enxota-moscas, o pano, a concha, o anel, o prato da comida, o adorno da cabea, so outras tantas coisas. Mas h duas espcies de coisas. H coisas que o Grande Esprito cria sem ns vermos e que nos no exigem, a ns, humanos, qualquer esforo ou trabalho, coisas tais como a noz de coco, a concha e a cabana, e h coisas que os homens criam, que exigem muito esforo e trabalho, tais como o anel, o prato ou o enxotamoscas. Pretende ento o alii que so estas coisas criadas pelas suas prprias mos, as coisas humanas, que nos fazem falta; pois no possvel que se esteja a referir s coisas criadas pelo Grande Esprito. Quem, realmente, ser mais rico e possuir mais coisas do Grande Esprito do que ns? Passeai os olhos vossa volta, at ao longnquo horizonte, onde a grande abbada azul se apoia na borda da terra: est tudo cheio de grandes coisas a floresta virgem com os seus pombos selvagens, os seus colibris e piriquitos, a lagoa com os seus pepinos do mar, as suas conchas, as suas lagostas e outros animais aquticos, a praia com o seu rosto claro, a pele macia da areia, o grande mar capaz de imitar o guerreiro furioso, capaz tambm de sorrir como uma taopo, a grande abbada azul

Recipiente de madeira com vrios ps, no qual se prepara a bebida nacional.

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mo! por isso que o Papalagui perdeu o trambelho e brinca ao Grande Esprito para esquecer o que no tem. Como assim pobre, e a sua terra triste, apodera-se das coisas, colecciona-as como um louco que apanhasse folhas murchas e com elas enchesse a casa. Mas tambm por isso que ele nos inveja e deseja que nos tornemos pobres semelhana dele. sinal de pobreza o homem precisar de tanta coisa; mostra, com isso, que pobre em coisas do Grande Esprito. O Papalagui pobre porque est obcecado pelas coisas. J no pode passar sem elas. Quando ele, das costas da tartaruga, faz um instrumento para alisar os cabelos (depois de lhes aplicar um leo), logo de seguida faz ainda uma pele para esse instrumento, um pequeno ba para pr a pele e mais um ba grande para pr o ba pequeno. H bas para os panos, para os tecidos de cima e os tecidos de baixo, para os tecidos de limpar o corpo, tecidos para cobrir a boca e outros tecidos mais, bas para pr as peles para as mos e as peles para os ps, bas para o metal redondo e para o papel forte, bas para as provises e para o livro santo, numa palavra: para tudo quanto h. De todas as coisas faz ele inmeras coisas, quando uma s bastava. Quando entramos numa cabanacozinha europeia, vemos uma poro de pratos de comida e de utenslios de cozinha que nunca so usados. Para cada alimento h uma tanoa diferente, uma para a gua, outra para o kava europeu, mais outra para a noz de coco e outra ainda para o pombo. Numa cabana europeia h sempre tantas coisas que, mesmo que todos os homens de uma aldeia de Samoa carregassem mos e braos com elas, nem assim conseguiriam levar tudo. H, numa nica cabana, to grande nmero de coisas, que a maior parte dos chefes de tribo Brancos necessita de imensos homens e mulheres que outra coisa no fazem seno pr essas tais coisas no seu lugar e limpar a poeira que as cobre. E at a taopo mais importante gasta grande parte do seu tempo a contar as suas inmeras coisas, a mud-las de um lado para o outro e a limp-las. Sabeis, irmo, que eu no minto, e que vos digo toda a verdade tal como a vi, sem tirar nem pr. Crde que h na Europa homens que encostam a arma de fogo sua prpria fronte, pois preferem deixar de viver do que viver sem coisas. Porque o Papalagui embriaga o seu prprio esprito de toda maneira e feitio e, assim, convence-se a si prprio que no pode viver sem coisas, do mesmo modo que um homem no pode viver sem comer. por isso que eu nunca encontrei na Europa

uma cabana onde pudesse instalar-me, onde nada me impedisse de estender os membros em cima duma esteira. Todas as coisas lanavam chispas e tinham cores to berrantes que eu no conseguia pregar olho. Nunca encontrei verdadeira tranquilidade e nunca senti, como ento, tantas saudades da minha cabana de Samoa, onde s o que h uma esteira e um rolo de dormir, onde s o que chega at mim a suave brisa do mar. Quem tem poucas coisas considera-se pobre e isso f-lo sentir-se triste. No h Papalagui algum que seja capaz de cantar e mostrar um olhar feliz se apenas possuir, como ns, uma esteira para dormir e uma tanoa para comer. Muito se lamentariam os homens e as mulheres do mundo branco se vivessem nas nossas cabanas! Tratavam logo de ir buscar madeira floresta; traziam depois carapaas de tartaruga, e vidro, e arame, e pedras de todas as cores, bem como outras coisas mais; as suas mos no paravam, de manh noite, at a cabana de Samoa ficar repleta de pequenas e grandes coisas, coisas que se decompem, todas elas, rapidamente, que um fogo ou uma chuvada tropical bastam para destruir, de modo que sempre preciso tornar a fazer outras. Quanto mais realmente europeu for um homem, mais necessidade ter de coisas. Eis a razo por que as mos do Papalagui nunca param de fazer coisas. A razo por que o rosto dos Brancos se apresenta geralmente cansado e triste, por que s muito poucos gastam tempo com as coisas do Grande Esprito, e a jogar no largo da aldeia, e a compor e cantar canes joviais, ou a danar ao domingo, em plena luz do dia, ou a fruir dos seus membros de todas as formas possveis, como a ns nos dado fazer28, que eles tm sempre coisas a fazer. E coisas a guardar. Coisas que se fincam, que se agarram a eles como as formiguinhas das praias. Para se apropriarem das coisas, cometem toda a espcie de crimes, sem que isso lhes afecte o nimo. Guerreiam-se, no porque a sua honra esteja em jogo, ou para medir foras, mas apenas por cobia das coisas de outrem. Apesar disso, todos eles tm conscincia de quo pobre a sua vida; seno, no haveria tantos Papalaguis venerados por terem levado a vida inteira a molhar cabelos em lquidos de vrias cores e a pintarem assim belas imagens sobre esteiras brancas. Esses copiam todas as belas coisas criadas por Deus, com todos os cambiantes de cor e toda a sincera alegria de que so capazes. Criam igualmente, com as28

As comunidades das aldeias de Samoa renem-se amide para jogar ou danar em conjunto. A prtica da dana comea na adolescncia. Cada aldeia tem os seus cantos e o seu poeta. noite, em todas as cabanas se ouvem canes. So muito agradveis ao ouvido, no s pela lngua, rica em vogais, dos insulares, mas tambm pelo seu sentido musical, de rara pureza.

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mos, homens de terra mole, desprovidos de panos, raparigas de belos movimentos livres como os da taopo de Matautu29 ou figuras de homens brandindo davas, retesando o arco ou espiando pombos na floresta. O Papalagui constri tambm grandes cabanas de festa especialmente para esses seres humanos de barro, que as gentes vm de longe visitar, a fim de frurem da sua divina beleza. Envoltos nos seus muitos e grossos panos, os visitantes postam-se diante dos homens de barro e estremecem de emoo. Vi Papalaguis chorarem de alegria vista de uma tal beleza, que eles mesmos perderam. E eis que, hoje, os homens brancos querem trazer-nos os seus tesouros, as suas coisas, para tambm ns nos tornarmos ricos! Contudo essas coisas no passam de setas que envenenam mortalmente o peito daquele que atingido. Ouvi um Branco que conhece bem a nossa terra dizer: Temos que lev-los a ter necessidades! Necessidades, quer dizer coisas! E acrescentou depois esse homem inteligente: S ento que eles ganharo de facto gosto pelo trabalho! E props29

nos que empregssemos tambm a fora das nossas mos a fazer coisas, coisas para ns, claro, mas, acima de tudo, coisas para ele, Papalagui! Como se tambm ns devssemos ficar derreados, envelhecidos e curvados! Irmos destas muitas ilhas: temos que tomar cuidado e permanecer vigilantes, pois as palavras do Papalagui parecem bananas doces, mas esto cheias de dardos ocultos, feitos para matar toda a luz e a alegria que h em ns. No esqueamos nunca que, parte as coisas do Grande Esprito, de poucas coisas mais necessitamos. Ele deu-nos olhos para ver as suas coisas. Ora necessrio mais que uma vida para um homem as ver todas. Nunca da boca do homem branco saiu mentira maior do que esta que ele diz: As coisas do Grande Esprito no servem para nada; s as coisas do homem so teis, muito teis, as mais teis! Por mais numerosas, por mais refulgentes, brilhantes, sedutoras e aliciantes que sejam, nunca as coisas do Papalagui tornaram mais belo o seu corpo, mais brilhantes os seus olhos, mais apurados os seus sentidos. As coisas dele no servem, pois, para nada; e por conseguinte, o que ele diz e tenta impor-nos vem direito do esprito mau, os seus pensamentos esto imbudos de veneno.

Aldeia de Upolu.

V O Papalagui nunca tem tempoO Papalagui adora o metal redondo e o papel forte, gosta de encher a barriga com uma srie de lquidos provenientes de frutos mortos, e com carne de porco, boi e outros horrveis animais, mas acima de tudo gosta de uma coisa que se no pode agarrar e que no entanto existe: o tempo. Leva-o muito a srio e conta toda a espcie de tolices acerca dele. Embora no possa haver mais tempo do que o que medeia do nascer ao pr-dosol, isso para o Papalagui nunca o bastante. O Papalagui nunca est contente com o tempo que lhe coube e censura ao Grande Esprito por no lhe ter dado mais. Chega mesmo a blasfemar contra Deus e a sua grande sabedoria, dividindo e subdividindo cada novo dia que nasce, segundo um plano bastante preciso. Corta-o como se cortaria em pedaos uma noz de coco mole com um cutelo. As vrias partes tm todas elas um nome: segundos, minutos, horas. O segundo mais pequeno que o minuto e este mais pequeno do que a hora. As horas so feitas de todos os segundos e minutos juntos, e preciso ter sessenta minutos e

muitos mais segundos para fazer uma hora. uma coisa muito confusa que eu na realidade nunca percebi, pois me indispe reflectir mais do que o devido sobre coisas to pueris. O Papalagui, contudo, faz disso toda uma cincia. Os homens, as mulheres e at mesmo as crianas que ainda mal se tm nas pernas trazem consigo, quer presa por grossas cadeias de metal que lhe pendem do pescoo, quer

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atada ao punho com a ajuda de uma correia de coiro, uma pequena mquina achatada e redonda onde podem ler o tempo, o que no mesmo nada fcil. Ensinam isso s crianas encostando-lhes a mquina ao ouvido, para lhes despertar a curiosidade. Pode-se facilmente pegar em tal mquina s com dois dedos; l dentro tem umas mquinas parecidas com as que h no bojo dos grandes barcos que todos vs conheceis. Mas nas cabanas h outras mquinas do tempo, grandes e pesadas, e outras ainda suspensas no cimo das mais altas cabanas, para que se veja bem de longe. Quando decorreu um certo tempo, isso -nos indicado por dois dedinhos postados na parte de fora da mquina; ao mesmo tempo que ela solta um grito e um esprito bate num ferro que h l dentro, fazendoo ressoar. Sim, h um barulho enorme, um formidvel estrondo, nas cidades europeias, ao fim de certo e determinado tempo. Ao ouvir o barulho da mquina do tempo, queixa-se o Papalagui assim: Que pesado fardo! Mais uma hora que se passou! E, ao diz-lo, mostra geralmente um ar triste, como algum condenado a uma grande tragdia. No entanto, logo a seguir principia uma nova hora! Como nunca fui capaz de entender isto, julgo que se trata de uma doena grave. O tempo escapa-se-me por entre os dedos!; O tempo corre mais veloz do que um cavalo!; D-me um pouco mais de tempo tais so os queixumes do homem branco. Dizia eu que se deve tratar de uma espcie de doena... Suponhamos, com efeito, que um Branco tem vontade de fazer qualquer coisa e que o seu corao arde em desejo por isso: que, por exemplo, lhe apetece ir deitar-se ao sol, ou andar de canoa no rio, ou ir ver a sua bem-amada. Que faz ele ento? Na maior parte das vezes estraga o prazer com esta ideia fixa: no tenho tempo de ser feliz. Mesmo dispondo de todo o tempo que queira, nem com a melhor boa vontade o reconhece. Acusa mil e uma coisas de lhe tomarem o tempo e, de mau grado e resmungando, debruase sobre o trabalho que no tem vontade nenhuma de fazer, que no lhe d qualquer prazer e que ningum, a no ser ele prprio, o obriga a fazer. Quando de repente se d conta de que tem tempo, que tem realmente todo o tempo sua frente, ou quando algum lhe d tempo os Papalaguis do frequentemente tempo uns aos outros, mesmo a aco que mais apreciam , nessa altura, ou j no tem vontade, ou j se cansou desse trabalho sem alegria. E geralmente deixa para o dia seguinte o que podia fazer no prprio dia.

Pretendem alguns Papalaguis que nunca tm tempo. Correm desvairados de um lado para o outro como se estivessem possudos pelo aitu [diabo] e causam terror e desgraa onde quer que cheguem, s porque perderam o seu tempo. Esse estado de frenesi e demncia uma coisa terrvel, uma doena que nenhum homem de medicina pode curar, doena que atinge muitos homens e que os leva desgraa. Como vivem obcecados pelo medo de perderem o seu tempo, todos os Papalaguis sejam homens, mulheres ou crianas de tenra idade , sabem com exactido quantas vezes nasceu o sol e a lua desde que viram pela primeira vez a luz do dia. Este acontecimento considerado to importante que o celebram, a intervalos de tempo fixos e regulares, com flores e grandes festas. Reparei, muitas vezes, que eles, no meu lugar, se sentiam envergonhados quando, ao perguntarem-me a idade que tinha, eu no era capaz de responder a tal pergunta, que s me dava vontade de rir! Mas no podes deixar de saber a tua idade! Eu calava-me, pensando para comigo: mais vale no saber. Ter uma idade, quer dizer: ter vivido um determinado nmero de luas. Isto de se perguntar qual o nmero de luas apresenta grandes perigos, pois foi assim que se acabou por determinar quantas luas dura em geral a vida dos homens. Ora acontece que cada um, sempre muito atento a isso, passadas que foram j inmeras luas, dir: Pronto! no tarda muito que eu no morra! Nada mais ento lhe causa alegria e, de facto, acaba por morrer da a pouco tempo. Raros so os que, na Europa, dispem realmente de tempo. Ou talvez nem sequer existam. por isso que eles passam a vida a correr velocidade de uma pedra lanada ao ar. A maior parte olha para o cho, quando caminha, e balana muito os braos para ir mais depressa. Quando os detm, gritam indignados: Que ideia a tua, de me vires perturbar! No tenho tempo! E tu, trata de empregar bem o teu! Tudo se passa como se o que anda depressa tivesse mais valor e bravura do que o que vai devagar. Vi um homem cuja cabea parecia prestes a estoirar, e cujo rosto passava sucessivamente do vermelho ao verde, um homem que rolava os olhos em todos os sentidos, que abria a boca como um peixe que vai morrer e batia com os ps e com as mos, tudo porque o seu criado chegara um pouco mais tarde do que tinha prometido. Esse atraso mnimo representava para o amo uma perda enorme e irreparvel. O criado teve que se ir embora da cabana, pois o Papalagui expulsou-o, dizendo: J me roubaste muito tempo! Quando um indivduo no tem a mnima considerao pelo tempo, s estamos a perder o nosso com ele! Encontrei, uma nica vez, um homem que no se queixava de estar a perder tempo e que o tinha de so-

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bra; mas esse era pobre, sujo e desprezado. As pessoas desviavam-se, para o evitar, e ningum o respeitava. No entendi tal comportamento, pois ele andava devagar e tinha um olhar sorridente, calmo e bondoso. Quando lhe perguntei qual a razo disso, o seu rosto crispou-se e respondeu-me com voz triste: Nunca soube empregar o meu tempo de maneira til; por isso que no passo de um pobre-diabo desprezado por toda a gente! Aquele homem tinha tempo, mas nem mesmo ele era feliz. O Papalagui emprega todas as suas foras, bem como a sua capacidade de raciocnio, em tentar ganhar tempo. Utiliza a gua, o fogo, a tempestade e os relmpagos para parar o tempo. Pe rodas de ferro nos ps e d asas s palavras, s para ganhar tempo. E porqu tanta canseira? Como que o Papalagui emprega o seu tempo? Nunca percebi muito bem, embora, pelos seus gestos e palavras, sempre me tivesse dado a impresso de algum que o Grande Esprito tivesse convidado para um fono. A meu ver, precisamente por o Papalagui tentar reter o tempo com as mos, que ele se lhe escapa por entre os dedos, como uma serpente por mo molhada. O Papalagui nunca deixa que ele venha ao seu encontro. Corre sempre atrs dele de

braos estendidos, no lhe concede o repouso necessrio, no o deixa apanhar um pouco de sol. Tem que ter sempre o tempo ao p de si, para lhe cantar ou contar qualquer coisa. Mas o tempo calma, paz e sossego, gosta de nos ver descansar, estendidos na nossa esteira. O Papalagui no se apercebeu ainda do que o tempo , no o compreendeu. E por isso que o maltrata, com os seus modos rudes. Oh! meus queridos irmos! Ns nunca nos queixmos do tempo, ammo-lo e acolhemo-lo tal como ele era, nunca corremos atrs dele, nunca tentmos amalgam-lo ou cort-lo em pedaos. Nunca ele nos deixou desesperados ou acabrunhados. Se algum de ns h a a quem falte tempo, que diga! Todos ns o possumos em quantidade, no temos razes de queixa. No precisamos de mais tempo do que o que temos, temos sempre tempo suficiente. Sabemos que atingiremos o nosso alvo a tempo, e que muito embora ignoremos quantas luas se passaram, o Grande Esprito nos chamar quando lhe aprouver. Devemos curar o Papalagui da sua loucura e desvario, para que ele volte a ter a noo do verdadeiro tempo que tem perdido. Devemos destruir as suas pequenas mquinas do tempo e lev-lo a confessar que h muito mais tempo do nascer ao pr-do-sol do que ao homem lhe dado gastar.

VI O Papalagui tornou Deus mais pobrepor ser ele prprio. Quando um homem diz: A minha cabea minha e de mais ningum!, tem razo, tem muita razo, e contra isso ningum ter nada a objectar. Aquele a quem uma mo pertence, ser quem mais direitos tem sobre ela. At aqui estou de acordo com o Papalagui. Mas ele tambm diz: A palmeira minha!, s porque ela cresce, por acaso, diante da sua cabana. Como se tivesse sido ele a faz-la crescer! Nunca a palmeira poder pertencer-lhe, nunca! A palmeira a mo que Deus nos estende, atravs da terra; Deus tem muitas mos. Cada rvore, cada erva, o mar, o cu e as nuvens so outras tantas mos de Deus. Podemos tocar-lhes e regozijar-nos com isso, mas l por isso no temos o direito de dizer: A mo de Deus a minha mo! No entanto isso o que o Papalagui faz. O Papalagui tem uma maneira de pensar particularmente confusa. Est sempre a ver como que isto ou aquilo lhe poder ser til ou dar-lhe certos direitos. No se preocupa em pensar nos homens em geral, mas apenas num, o qual acaba sempre La quer dizer, na nossa lngua, meu, e tambm teu, o que, por assim dizer, vai dar ao mesmo. Pelo contrrio, na lngua do Papalagui no h palavras mais diferentes do que eu e teu. Meu designa algo que minha pertena, e s minha. Teu designa algo que s a ti pertence. Diz pois o Papalagui, a

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respeito de tudo quanto se encontre nas imediaes da sua cabana: isto meu. Ningum, a no ser ele, tem direito quilo. Por toda a parte onde vs, e tudo quanto vejas junto do Papalagui, seja fruto, rvore, ribeiro, floresta ou um monte de terra, sempre ele te dir: Isto meu! Toma cautela, no toques no que te no pertence! E se tu, mesmo assim, tocares, desata a gritar, a chamar-te ladro, o que um termo particularmente humilhante, e tudo isso s porque te atreveste a tocar num meu do teu prximo. Ento, os seus amigos, e bem assim os servos dos chefes de tribo de mais alta estirpe acorrem, acorrentam-te, levam-te para o fale pu pui, e eis-te proscrito para o resto dos teus dias. H leis especiais que fixam com preciso a quem pertencem os vrios meus, para que ningum desate a tocar nas coisas que outra pessoa declarou pertencerem-lhe. H na Europa seres humanos que tm por nica ocupao velar por que ningum transgrida essas leis, ou seja, ningum tire ao Papalagui aquilo de que ele mesmo se apropriou. Com isto, quer o Papalagui convencer-se a si prprio que obteve um verdadeiro direito, como se Deus lhe tivesse definitivamente cedido a sua propriedade, como se fosse a ele, e no a Deus, que as palmeiras, as rvores, as flores, o mar, o cu e as nuvens pertencem. O Papalagui obrigado a ter estas leis e estes guardas para os seus inmeros meus, a fim de que aqueles que tm poucos ou nenhuns meus se no apoderem deles. De facto, quando uns se apropriam de muitos, os outros ficam sem nenhuns. Porque nem toda a gente conhece as manhas e os sinais secretos precisos para se apropriar de muitos meus. Para o fazer, h que ser dotado de um certo carcter, o qual nem sempre corresponde ideia de honra que ns temos. Aqueles que possuem poucos meus, porque no querem magoar Deus nem roubar-lhe coisa alguma, so provavelmente os melhores de todos os Papalaguis, mas no os h muitos, de certeza. A maior parte deles rouba Deus sem a mnima vergonha. So incapazes de agir de outro modo. Muitas vezes, ignoram que se comportam mal, precisamente porque todos procedem assim sem reflectirem no que fazem, e sem se envergonharem. H tambm aqueles a quem o pai oferece todos os seus meus na hora em que nascem. Deus, em todo o caso, j quase nada tem. Com isso do meu e do teu, os homens j quase tudo lhe tiraram. Os raios de sol que Deus manda a todos, j no so repartidos de igual maneira, pois alguns gozam mais deles do que outros. Na maior parte das vezes, s um pequeno nmero de Papalaguis beneficia das belas e grandes praas soa-

lheiras, mas muitos so os que, na sombra, recebem apenas uns plidos raios de sol. Deus j no pode sentir verdadeira alegria, pois j no e o alii sii [Senhor] todo-poderoso, no meio do Seu grande reino. O Papalagui renega-o quando diz: tudo meu! Embora pense muito, no pensa o bastante para disso se dar conta. Pelo contrrio, afirma que a sua maneira de proceder honesta e conforme com as leis. Mas aos olhos de Deus no o . O Papalagui, se reflectisse bem, saberia que aquilo que no estamos aptos a guardar nos no pertence, e que, no fundo, nada h que possamos conservar. Perceberia ento que se Deus nos deu o seu vasto reino, foi para que todos nele tivssemos lugar e a vivssemos felizes. E esse reino era suficientemente grande para poder proporcionar a todos um pequeno lugar ao sol e uma pequena alegria. Todos teriam, na verdade, um lugar debaixo de uma palmeira, um pequeno espao onde poisar os ps. Foi isso que Deus previu e quis. Como podia ele ter esquecido um s que fosse de entre os seus filhos? E, no entanto, quantos homens no andam em busca do pequeno lugar que Deus lhes reservou! Como o Papalagui no respeita os mandamentos de Deus e se arroga o direito de criar as suas prprias leis, Deus envia-lhe muitos inimigos da sua propriedade. Envia-lhe a velhice, a degradao, a podrido, envia-lhe a humidade e o calor que destroem os meus. Entrega os seus tesouros sanha do fogo e da tempestade. Mas, sobretudo, instila o medo na alma do Papalagui, a ansiedade quanto quilo tudo de que se apropriou. Para que lhe no levem de noite o que de dia juntou, v-se o Papalagui forado a permanecer acordado; o seu sono nunca , por isso, verdadeiramente profundo. V-se forado a ter as mos e o esprito constantemente presos ponta dos seus meus. Oh! como todos esses meus o atormentam a cada passo, como eles exclamam entre gargalhadas: Roubaste-nos a Deus, mas ns agora torturamos-te e fazemos-te sofrer a valer! Mas Deus infligiu ao Papalagui um castigo ainda pior do que o medo: a luta entre os que tm pouco ou nenhum meu e os que de muitos se apropriaram. uma luta encarniada e sem merc, a que se trava noite e dia. Todos eles sofrem com essa luta, que lhes tira a alegria de viver. Os que so ricos deveriam partilhar aquilo que tm, mas esses nada querem dar. Os que nada tm querem que lhes dem alguma coisa, e nunca obtm nada. Estes, tambm no pela glria de Deus que combatem: ou tardaram simplesmente em roubar, ou nisso se mostraram desajeitados, ou, por ltimo, nunca se lhes proporcionou a ocasio. Muito poucos se do conta de que esto de facto a pilhar o reino de Deus. S muito raramente se ouve o apelo de algum homem justo exortando toda a gente a restituir o meu a Deus.

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Que pensareis vs, irmos, de um homem que, possuindo uma cabana suficientemente grande para l caber toda a aldeia de Samoa, recusasse o seu tecto, por uma noite que fosse, ao viandante que passa? Que pensareis de um homem que, tendo nas mos um cacho de bananas, nem uma s oferecesse ao esfomeado que lha pede? Leio no vosso olhar a indignao e vejo nos vossos lbios um grande desprezo. Pois exactamente assim que o Papalagui se comporta em todas as circunstncias da vida. Ainda que tenha cem esteiras, nem uma s dar a quem nenhuma tem. Antes o censura por no a possuir. Pode ter uma cabana cheia, de alto a baixo, de provises mais que suficientes para ele e para toda a aiga, que nunca lhe passar pela cabea ir procura dos que nada tm que comer, dos plidos e esfomeados. E, no entanto, muitos so os Papalaguis plidos e esfomeados. A palmeira deixa cair as folhas e os frutos quando estes amadurecem. O Papalagui vive como uma palmeira que retivesse folhas e frutos, dizendo: So meus! No tendes o direito de os apanhar ou de os comer! Como faria ela ento, quando viessem os novos frutos? A palmeira bem mais sensata do que o Papalagui. verdade que entre ns tambm alguns h que tm mais do que os outros. Honramos, assim, o chefe de tribo que possui mais esteiras e mais porcos. Mas o respeito que lhe testemunhamos devido sua pessoa e no s suas esteiras e aos seus porcos, que ns mesmos, alis, lhe oferecemos como aloja, a fim de lhe exprimirmos a nossa alegria e louvarmos o seu nimo valoroso e o seu esprito lcido. O Papalagui, esse, tem respeito pelo grande nmero de esteiras e de porcos que o

seu irmo possui, e no pelo seu valor e inteligncia, que no lhe interessam para nada. No tem por assim dizer nenhum respeito por um irmo que no possua esteiras nem porcos. Como as esteiras e os porcos no vo ter por si mesmos a casa dos pobres e esfomeados, tambm no v o Papalagui qualquer razo para ser ele a levar-lhos. que ele no tem respeito pelos seus irmos, mas to somente pelas suas esteiras e pelos seus porcos. Se ele amasse e respeitasse os seus irmos, e no lutasse contra eles por causa dos meus e teus, logo lhes levaria as esteiras de que necessitam para que compartilhassem tambm do seu grande meu. Partilharia a sua esteira com eles, em vez de os deixar expostos s trevas da noite. Mas o Papalagui ignora que Deus nos deu as palmeiras, as bananas, o delicioso taro, as aves da floresta e os peixes do mar para ns todos gozarmos deles e sermos felizes; todos, e no apenas alguns, enquanto os demais se vem forados a viver na indigncia e na misria. Se Deus pe assim tantos bens nas mos do homem, para que este os partilhe com o seu irmo, quando no, o fruto apodrece-lhe nas mos. Porque Deus estende as suas inmeras mos a todos os homens; no desejo seu que um tenha muito mais do que o outro, ou que algum diga: Eu tenho um lugar ao sol, mas o teu lugar, esse, sombra! Todos temos um lugar ao sol. Quando Deus guarda tudo na sua mo justa, no h lutas nem misria. O Papalagui, esse manhoso, quer fazer-nos crer o seguinte: Nada pertence a Deus! a ti que pertence tudo quanto consigas abarcar com as tuas mos! No demos ouvidos a estas palavras insensatas e atenhamo-nos nossa justa convico de que tudo pertence a Deus.

Nota de Erich Scheurmann:Se eu disser ao leitor que os indgenas de Samoa vivem em comunidade de bens, fcil entender por que que Tuiavii adopta um tom desprezvel ao falar da nossa concepo de propriedade. Os conceitos meu e teu no vigoram em Samoa, na acepo que ns lhes damos. Aquando das minhas viagens, sempre os indgenas partilharam muito naturalmente comigo o seu tecto, a sua esteira, a sua comida. Sucedeu-me frequentemente um chefe de aldeia dizer-me, ao receber-me pela primeira vez: O que a mim me pertence, pertence-te a ti tambm! Os habitantes das ilhas no tm a noo de roubo. Tudo pertence a todos. Tudo pertence a Deus.

Outros captulos da obra: DAS PROFISSES DO PAPALAGUI E DA CONFUSO QUE DA RESULTA DO LUGAR ONDE SE SIMULA A VIDA E DOS MUITOS PAPIS A GRAVE DOENA DE ESTAR SEMPRE A PENSAR

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