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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL INSTITUTO DE ARTES DEPARTAMENTO DE ARTES VISUAIS PAPEL MACHÊ BUSCANDO SEU ESPAÇO EM PORTO ALEGRE Cristina Schmitz Porto Alegre, dezembro de 2015.

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL

INSTITUTO DE ARTES

DEPARTAMENTO DE ARTES VISUAIS

PAPEL MACHÊ BUSCANDO SEU ESPAÇO EM PORTO ALEGRE

Cristina Schmitz

Porto Alegre, dezembro de 2015.

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL

INSTITUTO DE ARTES

DEPARTAMENTO DE ARTES VISUAIS

PAPEL MACHÊ BUSCANDO SEU ESPAÇO EM PORTO ALEGRE

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como

requisito parcial para a obtenção de título de

Licenciada em Artes Visuais pelo Instituto de Artes

da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Orientadora

Profª. Drª. Paula Ramos

Banca examinadora

Profª. Drª. Paola Zordan

Profª. Drª. Joana Bosak de Figueiredo

Porto Alegre, dezembro de 2015.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço o incentivo da minha família pelo retorno ao curso de Artes

Visuais/UFRGS, projeto não concluído nos anos 1990. Em especial, pelo apoio do

meu marido, Pedro Henrique, e meu filho, João Pedro.

Agradeço aos entrevistados, sem os quais a realização deste trabalho não

seria possível e que, além da entrevista que concederam, muitos me atenderam

atenciosamente quando precisei de informações extras: Bina Monteiro, Carol W.,

Ceiça Alles, Celia Von Mengden, Chô Dornelles, Décio Presser, Denise Haesbaert,

Ena Lautert, Maísa Stolz, Marlene Kozicz, Moacir Chotguis, Tina Zappoli e Nives

Cicin-Sain.

Agradeço ao Instituto de Artes da UFRGS, a todos os professores e

colegas que, nesta jornada, me acrescentaram vivências.

Agradeço aos “bons ventos” por ter trazido como orientadora de estágio a

professora Paola Zordan, que fez toda a diferença no momento final do curso,

quando eu já não queria continuar na Licenciatura, também por ter conseguido que

nosso grupo se sentisse bastante unificado, muito importante em momentos

decisivos.

Agradeço à professora Laura Castilhos, por me proporcionar a alegria de

encerrar o curso aprendendo a maravilhosa técnica da aquarela, um desejo antigo.

Quero agradecer ao professor Francisco Rüdiger pelas inesquecíveis aulas

de Filosofia da Arte e Filosofia da Cultura; representaram, para mim, uma mudança

de interesses e leituras.

Agradeço à minha orientadora, Paula Ramos, por ter-me orientado e

incentivado a pesquisar sobre este assunto pouco estudado e francamente

surpreendente: o papel machê; ainda, por ter-me recebido diversas vezes em sua

casa, pela paciência e inúmeras correções para que este trabalho atingisse

qualidade. Agradeço à professora Paola Zordan, por estar novamente presente

neste momento, como integrante da banca; ao professor Paulo Gomes, que

integrou a banca de qualificação, pelas sugestões, que me auxiliaram na pesquisa;

e à professora Joana Bosak, que gentilmente aceitou o convite para integrar a

banca final.

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RESUMO

Este trabalho, desenvolvido no âmbito da Conclusão de Curso de Licenciatura em Artes

Visuais, apresenta e discute o lugar do papel machê no circuito artístico de Porto Alegre.

Apresenta um pequeno histórico da presença do papel machê na arte ocidental e oriental,

desde o século X, evidenciando seus usos além do artesanato e mostrando também seu

caráter experimental na arte contemporânea internacional. Na sequência, situa o papel

machê em Porto Alegre, a partir de mapeamento, entrevistas e debates com artistas e

galeristas, sobre a inserção desse material e técnica no circuito artístico local.

PALAVRAS-CHAVE

Papel machê; arte e artesania; circuito artístico em Porto Alegre.

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ABSTRACT

This project, developed on the scope of the Visual Arts Degree Course Conclusion,

presents and discusses the paper mache’s place in Porto Alegre’s art scene. It presents a

small history of paper mache’s presence on the occidental art, since the 10th century,

evidencing it’s uses apart from handicraft and showing as well it’s experimental

characteristic in the international contemporary art. In sequence, situates the paper mache

in Porto Alegre, by mapping, interviews and debates with artists and gallerists, about the

insertion of the material and technic in the local art scene.

KEY-WORDS

Paper mache; arts and crafts; arts scene in Porto Alegre.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO..................................................................................................................07

1. PAPEL MACHÊ: BREVES APONTAMENTOS SOBRE

SUA PRESENÇA NA ARTE.......................................................................................10

1.1 Cartapesta: o papel machê na Itália..................................................................14

1.2 Objetos e arte decorativa..................................................................................24

1.3 O papel machê na arte popular.........................................................................32

1.4 O papel machê na arte contemporânea............................................................35

2. O PAPEL MACHÊ NO CIRCUITO ARTÍSTICO DE PORTO ALEGRE.......................43

2.1 Papel machê: mercado e preconceito...............................................................65

2.2 O papel machê no ensino da arte.....................................................................73

CONCLUSÃO...................................................................................................................83

REFERÊNCIAS................................................................................................................85

APÊNDICES

Apêndice 1: Entrevista com Bina Monteiro.............................................................87

Apêndice 2: Entrevista com Carol W. ....................................................................91

Apêndice 3: Entrevista com Ceiça Alles.................................................................94

Apêndice 4: Entrevista com Celia Von Mengden....................................................97

Apêndice 5: Entrevista com Chô Dornelles...........................................................100

Apêndice 6: Entrevista com Décio Presser...........................................................103

Apêndice 7: Entrevista com Denise Haesbaert.....................................................104

Apêndice 8: Entrevista com Ena Lautert...............................................................107

Apêndice 9: Entrevista com Maísa Stolz...............................................................109

Apêndice 10: Entrevista com Marlene Kozicz.......................................................113

Apêndice 11: Entrevista com Moacir Chotguis.....................................................116

Apêndice 12: Entrevista com Tina Zappoli............................................................119

Apêndice 13: Entrevista com Nives Cicin-Sain.....................................................120

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INTRODUÇÃO

O assunto desta pesquisa nasce de um interesse muito pessoal, que me intriga

desde antes da realização do curso de Licenciatura em Artes Visuais; vem da minha

experiência de ateliê. Sempre me chamou a atenção e me incomodou o fato de as

pessoas, de um modo geral, quando confrontadas com trabalhos feitos em papel machê,

reagirem de forma estranha. Elas ficam, quase sempre, incomodadas ao saber que as

peças são feitas em papel. Comecei a questionar por que elas se sentem assim.

Há dez anos desenvolvendo experiências com papel machê, percebi o potencial

deste material tão versátil. Visto como um “meio democrático” devido à sua acessibilidade,

o papel machê foi, muitas vezes, o único meio para artistas iniciantes, justamente por seu

baixo custo e alta plasticidade.

As esculturas produzidas em papel machê, em relação às produzidas com outros

materiais tradicionais, como o bronze e o ferro, quase sempre não são vistas como arte e

sim como “artesanato”. A escolha que o artista faz do material continua a ser um

componente crítico no mercado artístico e também para o público. Por quê?

Penso que um material tão interessante, que teve sua importância na história da

arte e nas artes aplicadas, e ainda muito desconhecido atualmente, merece uma revisão.

Através da pesquisa realizada para este Trabalho de Conclusão de Curso, entendi

que esta é uma questão histórica. Muitos irão se surpreender que, na Itália, durante a

Renascença, Donatello foi apenas um dos vários artistas que experimentou o papel

machê, servindo-se deste material para muitas aplicações importantes; e que o papel

machê teve seu auge como material: objetos criados e moldados a partir de papel e cola,

ou seja, o papel machê, têm sido apreciados e utilizados ao longo do tempo. Mas, no final

do século XIX, devido à enorme produção de obras populares, artesanais e a aplicações

industriais do papel machê para diversos usos, além do surgimento de novos materiais, ele

deixou de ser novidade e saturou o mercado. Houve, então, uma mudança deste material,

da esfera da arte para o artesanato e, depois, para a esfera industrial; isso foi, de um

modo geral, entendido pela crítica de arte e pelo público como uma desclassificação do

papel machê. Por fim, durante o século XX, o material ficou claramente na esfera

artesanal.

Quando se faz um levantamento e se percebe que objetos e obras de papel machê

datados do século II d.C. e outros com mais de 300 anos continuam inteiros, que artistas

do calibre de Donatello, Sansovino, Bernini e Algardi muito usaram este material e que as

artes aplicadas na arquitetura de toda uma época se beneficiaram com suas qualidades,

acredito que questões interessantes apareceriam hoje, se o circuito das artes

reconhecesse e valorizasse o papel machê como material expressivo.

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Ao escolher a Licenciatura em Artes Visuais, pesou o fato de eu ter tido já um bom

número de alunos/as no meu ateliê. Apesar de ser um público bem específico, diferente da

realidade escolar, percebi que essas pessoas se entusiasmavam muito com as

possibilidades de criação com o papel machê. Imaginei que, na escola, o papel machê

poderia trazer esse “entusiasmo” também aos alunos. Sentindo-me confiante, marquei “x”

para Licenciatura, pois percebi que teria um material surpreendente para trabalhar em sala

de aula, além de ser acessível; também por ser um material não-convencional e altamente

versátil, que possibilita muitas maneiras de trabalhar; por fim, começar pela escola, a

inserir o papel machê, material tão “democrático”, é uma maneira de fazer com que este

comece a ser conhecido e valorizado.

Em Porto Alegre, tanto no Museu de Arte do Rio Grande do Sul (MARGS), como

no Museu de Arte Contemporânea Rio Grande do Sul (MAC-RS), e mesmo na Pinacoteca

Barão de Santo Ângelo, do Instituto de Artes da UFRGS, instituições públicas que

preservam e exibem coleções dos séculos XIX, XX e XXI, não se encontra nenhuma peça

de papel machê em seus acervos. Então, qual é o lugar do papel machê em Porto Alegre?

Onde ele circula?

A contribuição desta pesquisa é discutir a presença e a circulação do papel machê

e o porquê da sua ausência e desvalorização no meio artístico local.

Para estruturar a pesquisa, a primeira parte apresenta breves apontamentos

acerca do desenvolvimento histórico da técnica do papel machê, dos destinos

predominantes de objetos de papel machê e grandes artistas que o utilizaram em suas

obras. Esse histórico é construído a partir, principalmente, de dois autores: Ezio Flammia e

Marion Elliot, referenciais teóricos para uma melhor compreensão acerca dessa ampla

utilização e experimentação do papel machê no tempo e no espaço. Uma pesquisa pela

Internet, longa e continuada, mas recompensadora, buscando imagens das obras dos

artistas comentados nesta primeira parte, foi necessária, pois, sem ela, o leitor não

conseguiria alcançar o que o texto revela sobre o tema.

No segundo capítulo, parto de entrevistas com galeristas e artistas locais para dar

início a uma “história” do papel machê em Porto Alegre e levantar questões sentidas e

comentadas por este grupo, ou seja, a dificuldade de inserção e o preconceito com o

material. Além das entrevistas, percorri galerias e instituições a procura de obras de papel

machê. Esta segunda parte é basicamente a problematização citada acima, sustentada

pelas “vozes” dos entrevistados. Ao todo, conversei com 12 pessoas: Bina Monteiro, Carol

W., Ceiça Alles, Celia Von Mengden, Chô Dornelles, Décio Presser, Denise Haesbaert,

Ena Lautert, Maísa Stolz, Marlene Kozicz, Moacir Chotguis e Tina Zappoli.

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Fechando a pesquisa, apresento o papel machê no ensino da arte, quando foi

usado como um material versátil em escola pública, gerando muitos incentivos e

conquistas; seu uso em escolinhas de arte e, por fim, um relato sobre o papel machê

durante o meu estágio, em 2014. Penso que, nesta segunda etapa, está a grande

contribuição desta pesquisa. Talvez, este pequeno começo possa ser considerado um

grande começo, uma vez que nenhum registro existia antes desta investigação; e que esta

sirva, principalmente, para evidenciar o papel machê, seus pontos fortes, suas

peculiaridades e tantas possibilidades.

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Papel machê vem do francês papier maché, que significa “papel mastigado”. É

uma massa de papel picado, amassado, embebido em água, coado e depois misturado

com cola e, eventualmente, com outros materiais. Com esta massa é possível moldar

objetos em diferentes formatos, utilitários e decorativos.

Historiadores atribuem a T’sai Lun, um oficial da Corte Imperial Chinesa (150 d.C.),

a invenção do papel, por meio de polpação de redes de pesca e restos de roupas,

umedecendo e batendo a mistura até formar uma pasta. Usando uma peneira, secava esta

pasta ao sol, e a fina camada que ficava depositada transformava-se em uma folha de

papel. O papel machê, assim como o papel, vem, portanto, de restos.

No século V, o uso do papel estava generalizado por toda a China e sua difusão foi

fulminante, atingindo Kashmir, no norte da Índia no século VI, a África no século X e o sul

da Europa no século XII (BERND, 1994).

Assim, a história do papel machê está ligada ao processo histórico da produção do

papel, através de sua evolução, difusão e aproveitamento como material. Os métodos

demorados de fabricação do papel estimularam sua reutilização após o primeiro uso. O

papel machê nasce dessa reutilização do papel. É na própria China que encontramos, no

século II d. C., os mais antigos objetos em papel machê, como capacetes usados para a

guerra (SARAF, 1987).

Como material e técnica, o papel machê é agradável de trabalhar, responde com

facilidade ao tato e possibilita formas diversas: permite, também, a adoção de diversos

tipos de papel. A base do papel machê é a polpa de papel e a cola. A partir da polpa, o

artista trabalha formas diversas, inclusive em escala monumental.

PAPEL MACHÊ: PASSO A PASSO

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Apesar de sua simplicidade no processo de produção, o papel machê guarda

especificidades, de acordo com os povos e regiões de onde provém. Objetos em papel

machê, pertencentes a períodos e a áreas geográficas diferentes permitem apreciar suas

grandes qualidades e distintas técnicas no campo da arte, do artesanato e também da

indústria.

Ao se confeccionar algo com qualquer material, seja madeira, ferro, argila ou

papel, é necessário conhecer técnicas de manipulação do mesmo, algo que, aliás, se

adquire experimentando e exercitando.

Ao lado de materiais ditos “nobres”, como o mármore e o bronze, a escultura

também experimentou um material “pobre”, como o papel machê. Ainda hoje, quando se

trata de papel machê, tem-se em mente sua condição efêmera, no sentido de que as

máscaras, carros alegóricos e peças para cenografia são descartadas, destruídas depois

de seu uso.

A matéria-prima do papel machê, trapos e papel, seria motivo para considerar uma

obra feita com esse material em um outro nível na hierarquia da arte, uma vez que não

está na lista de materiais tradicionalmente considerados para fazer escultura, como o ouro,

a prata, o mármore, o bronze, ou a madeira?

Pesquisando em livros de história da arte, dificilmente encontramos qualquer

referência a trabalhos em papel machê. Isso nos sugere que, na historiografia, foram

considerados somente os trabalhos confeccionados com os chamados materiais “nobres”.

Quando encontramos, por exemplo, textos ou referências a trabalhos produzidos a partir

de materiais como o estuque ou papel machê? Muito raramente. As obras que

sobreviveram é que nos permitem compreender a evolução da técnica do papel machê.

Também através de documentos de registros de pagamentos a artistas e artesãos e

registros de compra de grandes quantidades de papel para a produção de cenários,

estátuas, molduras e outros, podemos presumir que o papel machê foi amplamente

produzido e utilizado por artistas e artesãos em vários campos da arte (FLAMMIA, 2011).

No final do Renascimento e ao longo do Barroco, este material foi amplamente

experimentado e empregado por renomados artistas, e pode-se entender como estes

encontraram soluções para realizar tão variados trabalhos.

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1.1 CARTAPESTA, O PAPEL MACHÊ NA ITÁLIA

A cartapesta – como era chamado o papel machê na Itália – teve grande

importância durante o Renascimento, pois, das oficinas de Donatello (1386–1466), Antônio

Rosselino (1427–1479), Benedetto da Majano (1442–1497) e outros grandes escultores do

Quattrocento florentino, saíram trabalhos de alta qualidade artística, tanto quanto as

esculturas feitas com outros materiais escultóricos tradicionais.

Giorgio Vasari (1511–1574), em seu Vidas dos artistas, narra que a cartapesta, na

Itália, começa em Siena, após experimentações de Jacopo della Quercia (1374–1438).No

final do século XIV, Jacopo della Quercia recebeu a tarefa de fazer uma escultura para o

memorial do túmulo de Giovanni d’Azzo Ubaldini. Estimulado pela necessidade de realizar

em curto espaço de tempo a escultura, ele experimentou uma massa composta de

diferentes ingredientes obtidos por trituração e imersão, como argila, farinha, cola e

resíduos de tecidos. O artista modelou, sobre uma armação de madeira, este composto,

que é a massa usada para a cobertura. O novo material era adequado para modelar, em

curto espaço de tempo, rápidas esculturas, imitando o mármore e o bronze, entre outros.

Com esta nova técnica, Jacopo della Quercia alcançou resultados surpreendentes.

(CAMANZI, 2014). Segundo Ezio Flammia, o papel machê, nesse período, teve boa

reputação entre os artistas e o público. Assim, em meados do século XV, nas oficinas de

Florença, começa uma abundante produção de cópias de obras religiosas neste material.

O papel machê atendia às necessidades da produção em série para um público específico.

Os artistas se ocuparam das encomendas de peças para cópias em papel machê, e essa

produção de cópias sacras devocionais inicia na oficina de Donatello (1386–1466)

(FLAMMIA, 2011). Em sua oficina, os moldes eram feitos de materiais baratos, como o

estuque e a terracota. Destes, saíam as cópias em papel machê. O tema era a Madona

com criança. Por exemplo, o baixo-relevo em mármore conhecido como Madonna Pazzi

(1442), de Donatello, é considerado o “gerador” de muitas “madonas com criança” que

foram criadas a partir de então. Porque, nesta obra, Donatello elaborou uma nova

iconografia da Virgem com o Menino Jesus: ambos se olham diretamente nos olhos,

alcançando uma intensidade emocional entre mãe e filho como jamais havia sido

representado antes (FLAMMIA, 2011). Existe uma cópia, em estuque, da Madonna Pazzi,

pertencente a um colecionador particular.

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A enorme repercussão dessas obras sacras fez com que surgisse uma categoria

específica de artesãos. Esta nova produção em série, chamada Madonneri, destinou-se ao

público popular de fiéis que queriam um exemplar para veneração e são encontradas até

hoje em casas italianas (FLAMMIA, 2011).

É também atribuída a Donatello uma escultura de madeira policromada conhecida

como Madonna di Verona, produzida enquanto ele trabalhava em Pádua, entre 1443 e

1454. Estudiosos acreditam que o modelo foi criado com a intenção de ser reproduzido,

pois existem cópias em estuque, terracota e papel machê (FLAMMIA, 2011). No Museu

Victoria and Albert, em Londres, existe um exemplar em estuque; no Metropolitan Museum

of Art, em Nova Iorque, uma versão em terracota e, no Museu do Louvre, em Paris, uma

versão em papel machê, conforme imagens a seguir.

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Analisando as quatro peças da Madonna di Verona, feitas em diferentes materiais,

a peça em papel machê tem as formas mais “suavizadas” do que a de madeira, por

exemplo. As dobras do tecido na manga da Madona são mais delicadas, parecem mais

realistas. E, ainda em relação às outras duas, de terracota e de estuque, a de papel machê

parece ter mais profundidade e se salienta, em beleza, por suas formas e cores.

Outro artista, muito reconhecido, Lucca della Robbia (1400–1482), produziu o

relevo abaixo, em papel machê, da Virgem com o Menino Jesus. Existem outros exemplos

desta composição no Museu BODE, em Berlim e uma no Louvre, em Paris (SOTHEBY’S,

2001). Mesmo que esta seja uma cópia feita a partir de um baixo-relevo usado como

molde, como era de costume nesta produção de baixo custo, a riqueza de detalhes nas

asas dos anjos e nas colunas nos mostram exemplos do que o papel machê permite fazer

enquanto a peça ainda está úmida. Em função de ser uma massa moldável, pode-se

acentuar detalhes que não sairiam bem nas cópias. É nesse ponto que o artista dá seu

toque final.

Também Antônio Rosselino (1427–1479) está entre os artistas protagonistas do

Quattrocento que experimentou o papel machê e o estuque para os baixo-relevos, com

grande habilidade e resolução artística. Um baixo-relevo em mármore, atribuído ao artista,

apresenta a Virgem com a criança na mesma posição de outras obras que são cópias,

uma em papel machê e outra em estuque.

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A conclusão, segundo FLAMMIA, é de que as cópias foram feitas a partir do baixo-

relevo em mármore, pela oficina de Rossellino ou por quem tivesse um molde do mármore

(FLAMMIA, 2011).

A produção serial de imagens da Virgem, por todo o Renascimento, difundiu-se da

arte toscana para Pádua, Emília Romana, Umbria e outras regiões. Ainda hoje, em igrejas

dessas regiões, encontram–se estas obras em papel machê, para veneração dos fiéis

(FLAMMIA, 2011). Tais obras atravessaram o tempo e continuam com qualidade tanto

quanto as demais, feitas em pedra ou madeira, por exemplo. Basta ver as fotografias e

percorrer os museus. Por isso, pensar que o papel machê é pouco resistente por ter como

matéria-prima papel e trapos prova somente o preconceito e o desconhecimento em

relação a este material.

Para dar um exemplo da versatilidade do papel machê, considero interessante

apresentar um elemento que, de tão requintado, acabou sendo procurado como obra de

arte: as molduras em papel machê. Em Florença e Siena, no final do século XV, os artistas

projetavam molduras como parte integrante de suas pinturas, porque a burguesia começou

a encomendá-las para decorar suas casas. Existiam oficinas especializadas na produção

de molduras em papel machê, que usavam o mesmo método dos baixo-relevos: matrizes

de gesso (FLAMMIA, 2011).

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As molduras são um belo exemplo para percebermos que a razão dos artistas

terem usado o papel machê para confeccioná-las não foi o baixo custo, mas sim porque o

material permitia soluções ornamentais ricas e diferentes. Neste caso, facilitou muito a

produção de molduras, que antes eram trabalhadas em madeira e levavam um tempo

imenso de execução, além de serem bastante pesadas.

Ainda para entendermos como os artistas foram experimentando e descobrindo

diversos usos para o papel machê, um outro exemplo de como foi possível inovar na arte e

avançar na área do entretenimento, no século XVII: Vasari descreve em Vidas que, em

homenagem à passagem do Imperador Carlos V, o artista Domenico Beccafumi (1486–

1551) construiu uma estátua de 5 metros de altura. O monumento era uma máquina que

se movia: a estrutura era de ferro, oca por dentro, para que pessoas entrassem e fizessem

a estrutura se mover e, por fora, era toda revestida de papel machê. Apesar de volumosa,

não pesava muito, devido ao material empregado. A estrutura ambulante acompanharia o

imperador durante seu trajeto. Esta máquina antecipou em vários séculos os conhecidos

carros alegóricos das escolas de samba, por exemplo (FLAMMIA, 2011).

Mas foi Jacopo Sansovino (1486–1570) que retomou as experimentações dos

grandes artistas de Siena, aperfeiçoando o papel machê, a partir das próprias exigências

estéticas, e obteve ótimos resultados.

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É provável que a escultura Madona com Criança, preservada no Szépmuvészeti

Múzeum, em Budapeste, tenha sido feita como protótipo, para futura elaboração em

bronze, segundo estudiosos (FLAMMIA, 2011). O papel machê é perfeito para receber

qualquer tipo de tintura, é um material que tem uma absorção impressionante. Os

renascentistas souberam aproveitar esta característica do material para o dourado, o

prateado e o bronze em seus protótipos.

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Ezio Flammia, estudioso do papel machê, artista e restaurador, foi o responsável

pela restauração do Cristo Deposto, de autor anônimo do século XVII e, como bom

conhecedor, diz que esta é uma obra requintada de papel machê. A escultura é muito leve,

pesa apenas 5 quilos. Esculturas desse tipo são preservadas em algumas igrejas,

principalmente no sul da Itália (SEVERI, 2013).

Olhando para a imagem do Cristo Deposto, é difícil acreditar que seja feita de

papel machê. O acabamento liso e o tamanho da escultura – mede 1, 63m e pesa 5 Kg –

nos levam a pensar em outros materiais, como madeira, gesso ou terracota, menos papel

machê. Mas, como obra devocional, usada para ser carregada nas procissões, o papel

machê era justamente o material ideal, pois a obra podia ser facilmente transportada pela

sua leveza.

Gian Lorenzo Bernini (1598–1680) soube aproveitar muito bem o papel machê,

testando com ele, a perfeita eficácia de uma obra antes de fazê-la em bronze. Imagine a

satisfação de Bernini, ao poder fazer um “protótipo” de suas obras. Por ser muito leve e

permitir grandes escalas, o papel machê era ideal para esta função. A partir dessa época,

o uso do papel machê na arte é impressionante.

O artista podia realizar, primeiramente, um lay-out de sua criação, apresentando-a,

assim, a seu cliente, in loco, antes de produzi-la em bronze. Ou seja, antes de fazer a

“arte-final” de sua criação, devidamente aprovada pelo encomendante. Sim. Foi assim que

Bernini e outros artistas, no Barroco, aproveitaram a funcionalidade do papel machê.

Um exemplo é uma peça feita para o túmulo da Irmã Maria Raggi, na Igreja de

Santa Maria sopra Minerva, em Roma. Bernini executou um trabalho em papel machê

dourado, em baixo-relevo, representando o rosto da beata e que depois foi feito em bronze

(FLAMMIA, 2011). Este trabalho é preservado no Museo del Palazzo de Venezia, e a

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sobrevivência desta peça é um triunfo para a crítica poder estudar as formas e estágios de

desenvolvimento de uma obra de arte.

Era possível visualizar a obra como se esta já fosse a final. Então, o artista podia

testar a posição, a inclinação, o efeito visual de volume, luz e sombra no monumento, e até

mesmo imitar o material final, como o bronze, pela cor. Enfim, analisar tudo o que fosse

necessário e então poder partir para o bronze. Principalmente em trabalhos de grande

dimensão, pois a leveza do papel machê permitia a fácil locomoção da obra (o protótipo).

Que outro material seria tão adequado para esta função? Ter como recurso o papel

machê, acredito, equivalia a uma ajuda inestimável. Então, se o papel machê não foi o

produto final de uma obra, ele, sem dúvida, proporcionou ao artista a certeza de que sua

obra estava pronta para ser finalizada em bronze ou outro material.

Bernini, que também se interessava pelo teatro, percebeu que o papel machê era o

material ideal para construir as máquinas e dispositivos para criar efeitos surpreendentes.

Ele conseguiu explorar em suas criações os recursos expressivos do papel machê, nos

cenários, carros alegóricos e também para fazer cópias de suas esculturas.

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Entre 1623–1624, Bernini esculpiu em mármore Alma Danada. Uma rara cópia em

papel machê é considerada ‘exemplo de prova’ para obter um bronze (FLAMMIA, 2011).

Sabendo que estudiosos consideram esta cópia em papel machê um exemplo de prova,

pode-se mesmo perceber que um cuidado maior em relação à estética não foi a principal

intenção nesta peça; parece que foi feita apressadamente, a julgar pela beleza do original,

em mármore.

Termino esses vários exemplos de artistas renomados que usaram o papel machê,

como Alessandro Algardi (1594–1654), um dos mais importantes escultores do século

XVII. De sua produção restou um exemplar, Magdalena, da Coleção Martinelli de Perugia

(FLAMMIA, 2011). O interessante nesta peça é a aparência do material: parece uma

escultura em madeira. Ninguém diria, acredito, olhando apenas para a escultura, que ela é

de papel machê. Então, sempre me pergunto: por que, quando é revelado que a peça é de

papel machê, sua importância diminui? Sim, porque houve um período em que as obras de

temas religiosos feitas em papel machê foram sendo desprezadas pelas instituições,

inclusive religiosas, em razão do material empregado ser considerado “vil”, um material

desonroso para tratar de temas sagrados.

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Depois de tanto apresentar técnicas, um vídeo muito interessante mostra o

processo de esculturas de santos feitas em papel machê, em 1949, em uma fábrica em

Lecce, sul da Itália. Este vídeo está disponível no link abaixo:

http://www.britishpathe.com/video/pasteboard-statues-aka-papier-mache-statues/query/religions

1.2 OBJETOS E ARTE DECORATIVA

A prática de reciclar resíduos de papel em objetos moldados foi introduzida na

Pérsia e na Índia, no século XV, especialmente em Kashmir, Índia (SARAF, 1987).

O tradicional método de Kashmir é deixar os resíduos de papel e trapos de molho,

em água, por vários dias, até se desintegrarem. Depois, a água em excesso é coada e são

misturados trapos e palha de arroz ao resíduo de papel, que então é triturado com um

pilão de madeira. Esta pasta obtida é deixada secar ao sol. A polpa seca é misturada com

aitij (farinha de arroz) e sareesh, cola feita de gordura animal ou de peixe. Esta mistura é

colocada em um molde. O molde é, em primeiro lugar, coberto com tiras finas de papel

colado e, em seguida, coberto pela pasta de papel. Em seguida, a peça é alisada e, depois

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de seca, é cortada a partir do molde, em duas metades. Após, elas são novamente unidas.

A superfície é revestida por uma camada de cola e gesso, lixada e então são aplicadas

camadas de papel de seda. A cor da base é pintada e os desenhos são feitos à mão livre

(SARAF, 1987).

Transmitida de geração em geração, esta técnica é mantida pelos artesãos até

hoje, por famílias que se reúnem para trabalhar em lojas de pequeno porte. Os objetos,

ricamente decorados, resistentes e leves, variam desde enfeites de Natal até porta-copos,

incluindo caixas de tamanhos e formas variadas.

Os séculos XVIII e XIX assistem ao refinamento deste material. A forma peculiar do

papel machê tornou-o um produto prático para a criação de objetos de formas e tamanhos

variados, destacando-se nas várias formas de arte aplicada, e assim continuou a

experimentação, com diversos materiais adicionados à massa básica de papel machê. O

papel machê começa a ser inserido para uso industrial: muitos experimentos com o

material foram feitos, visando diferentes necessidades.

Acompanhando as mudanças no processo de produção, o papel machê, por sua

infinita possibilidade de uso, espalhou-se por toda a parte; foi aplicado a vários artefatos e

foi chamado de “técnica universal” (FLAMMIA, 2011). Ele não é uma novidade ou uma

invenção desta época, mas aqui alguns elementos começaram a ser incorporados à

massa, para dar sustentação diferente, dependendo do artigo. Começando que, para a

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produção em série, foram criadas amassadeiras mecânicas para obter grande volume de

massa de papel machê para a produção.

Na metade do século XVIII, o papel machê se afirma como substituto do estuque,

ficando conhecido como “falso estuque”, que era uma mistura de papel machê, gesso, cola

animal e outras substâncias usadas para endurecer. O “falso estuque” podia ser modelado

diretamente na parede, mas especialmente prensado em moldes para a réplica dos

ornamentos (TOLLER, 1962). Isso permitiu que o trabalho fosse pré-fabricado. Esse

método poupou custos e tempo na produção, porque antes os trabalhadores eram

obrigados a fazer os relevos no local, causando extremo desconforto e demora.

Como nos informa Jane Toller, no início do século XVIII, um fabricante inglês

chamado Wilton criou um material à base de gesso, misturado com fibras vegetais, como

feno, palha, cascas de árvores e outros, conhecido como Fibrous slab – algo como “laje

fibrosa”. Wilton fazia ricos ornamentos com este material. Na verdade, tudo o que até

então tinha sido feito em estuque (TOLLER, 1962).

O papel machê também foi usado como material à prova de som. Ferdinando Fuga

(1699-1782) adaptou uma sala do Palácio Real de Nápoles, em 1768, para o teatro, para

melhorar sua acústica. Pelo mesmo motivo, a partir do século XVIII, as decorações em

estuque foram substituídas pelo papel machê, que, além de absorver o som, tinha custo

menor; a produção era rápida e ainda era mais apropriado para o uso do branco e do

dourado. Foi usado também para fazer os tetos de igrejas, para esconder as treliças e, nos

palácios, como tetos falsos, para tornar os ambientes mais confortáveis (FLAMMIA, 2011).

Na Inglaterra, em 1772, Henry Clay revolucionou a indústria do papel machê com a

invenção de um papel resistente ao calor: painéis laminados feitos a partir de folhas

coladas, ao invés da polpa de papel. Eram selados com óleo de linhaça e secos

lentamente em fogo brando. Isso os fazia extremamente fortes e resistentes. Usados para

fazer móveis, paredes dos coches de carruagens, artigos do cotidiano, eram resistentes e

ideais para pintura e envernizamento (ELLIOT, 1998). Assim, o papel machê foi o material

de um dos comércios mais importantes na Inglaterra, pelos próximos cem anos.

Em 1780, George Jackson fundou a fábrica Jackson & Son Ltd., com sede em

Londres. Produzia ornamentos decorativos para interiores, em gesso e papel machê.

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E até artefatos improváveis podem ser produzidos em papel machê. Conhecido por

experimentar novos materiais e métodos de construção, Werner Christie comprou a

fazenda Hop, em Bergen, Noruega, em 1784 e construiu uma igreja com papel machê

(SPALLUTO, 2013). As paredes foram feitas de pedra, mas na parte interna eram todas

revestidas de papel machê, assim como as colunas. As imagens bíblicas, em seu interior,

também foram feitas de papel machê. Em sua experimentação, Christie desenvolveu uma

mistura de papel tão resistente que ficava dura como pedra. A mistura era secreta, mas

sabe-se que ele usou algodão, papel velho, gesso e pó de mármore. Em 1829, a igreja, já

deteriorada, foi demolida pelo novo proprietário da fazenda Hop (SPALLUTO, 2013).

Em 1816, Jennens e Bettridge assumem a fábrica de Henry Clay e elevam o papel

machê, introduzindo-o na área de design, ao adicionar todos os tipos de refinamentos

artísticos e outros práticos, como lascas de madrepérola, marfim e pedras preciosas

(ELLIOT, 1998).

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Para se ter uma idéia, na Grande Exposição de Londres, no Palácio de Cristal

(1851), o papel machê foi saudado como material importante; foi o auge do papel machê

na Europa, entre 1850-55 (TOLLER, 1962).

Também nos EUA, o papel machê foi um sucesso desde então. A fábrica Litchfield

Manufacturing Company produzia em papel machê itens como estojos para canetas e

várias versões de caixas de relógios decorativos, que foram muito bem recebidas na Feira

Mundial de Nova Iorque, em 1854 (ELLIOT, 1998).

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Curiosamente, o papel machê sempre encontrou espaço onde a falta de recursos

ou a escassez de materiais esteve presente. Isso demonstra sua importância. Para cada

caso, uma solução possível foi encontrada, com a experimentação e o uso desse material.

Como nos conta Nichols, a falta de cadáveres para fazer dissecações humanas,

fundamentais para estudar anatomia, frustrou o estudante de medicina Louis Auzoux,

(1797–1880). Experimentando sua própria mistura de papel machê, Auzoux desenvolveu

modelos “dissecáveis” e destacáveis, que poderiam ser usados diversas vezes sem dano

algum. Seus modelos foram assinados como Anatomie Clastique1, pois seguiam o

exemplo da fabricação de fantoches (NICHOLS, 2012). Foi uma mudança radical e o papel

machê se adaptou perfeitamente às novas necessidades. Auzoux fundou uma fábrica, em

1827: os modelos se tornaram sucesso comercial, sendo usados por universidades,

hospitais e escolas (MAERKER, 2008).

Presente desde sempre na arte, o conceito de mimesis foi colocado em prática por

Auzoux. Não tendo o devido acesso aos órgãos de que tanto necessitava para seus

estudos, imitou a natureza e foi além, ao criar seus modelos anatômicos destacáveis. Por

1 Louis Auzoux é o designer da anatomia que ele chamou clastique (do grego klastos – conjunto de peças), o princípio é a articulação de uma peça anatômica em seus constituintes elementares, que o observador pode desmontar e montar livremente, para observar a forma e o tamanho, para respectivos relatórios. Fonte: http://gallica.bnf.fr; acesso em 24/10/2015.

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serem coloridos e alguns em escala bem maior do que a real, são lúdicos, lembram jogos

e brinquedos de montar.

Sempre se adaptando a novos usos, o papel machê foi muito adotado na criação e

produção de brinquedos. Dentre esses, as bonecas foram o principal produto. De 1820 em

diante, em Sonnenberg e Nuremberg, na Alemanha, as cabeças das bonecas eram feitas

com papel machê. Eram usados moldes metálicos, nos quais a mistura era prensada

(ELLIOT, 1998).

Na província de Mantova, a primeira fábrica italiana de brinquedos de papel machê

foi fundada por Luigi Furga Giornini, em 1880 (FLAMMIA, 2011). A nova produção fez uso

de equipamentos e a matéria prima, o papel, era obtido através da reciclagem de papel.

Os processos nas fábricas eram rápidos: o papel era colocado de molho em recipientes

com cola animal quente, em seguida, este papel era colocado em formas metálicas e

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prensado duas vezes: uma para retirar o excesso de água e a outra para prensar o papel

na forma. Depois de secos, eram retirados das formas, montados, lixados e recebiam tinta

em spray e por último, eram acabados à mão (FLAMMIA, 2011). O processo era altamente

padronizado, a qualidade não importava tanto quanto a quantidade dos produtos.

O papel machê também foi usado na tradicional área de fantoches e marionetes.

Os marionetes, pouco diferentes dos fantoches, tinham somente a cabeça feita de papel

machê, porque o corpo e os membros tinham de ser mais pesados para dar naturalidade

aos movimentos, sendo que estes eram feitos de madeira. Poucos destes típicos artefatos

da arte do papel machê sobreviveram, porque os próprios criadores não investiam na sua

restauração e conservação (FLAMMIA, 2011).

Mas aqui, a produção era artística e totalmente manual. Um a um, eram criados

desde personagens da commedia dell'arte até personagens das tradições locais.

Maravilhas foram feitas com o papel machê, como os cavalos de Furga, do final do

século XIX. Hoje, são peças raras e caras, só para colecionadores (FLAMMIA, 2011).

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Os mascareri (fabricantes de máscaras), em Veneza, igualmente usavam papel

machê e tecido nas máscaras, que podiam ser modeladas sem qualquer restrição de

formas e tamanhos, sendo leves e muito duráveis (FLAMMIA, 2011).

É possível aprender hoje a técnica antiquíssima das máscaras venezianas, sob a

orientação do famoso escultor e mestre do papel machê Guerrino Lovato. Vídeos do

mestre veneziano ensinando a técnica estão disponíveis na internet. Famosos diretores de

filmes já usaram as máscaras de Guerrino, como Franco Zefirelli, em “La Traviata”, e

Stanley Kubrick, em “Eyes wide shut”, (MONDONOVO). É o papel machê no cinema

também. O material foi usado desde os primórdios do cinema e da televisão, até meados

do século XX, para fazer cenários em tamanhos monumentais, etc (FLAMMIA, 2011).

1.3 O PAPEL MACHÊ NA ARTE POPULAR

A partir da segunda metade do século XIX, há um abandono gradual deste material

na produção de arte, mas um uso cada vez mais intenso na produção de artesanato. O

declínio na produção de arte de papel machê é acentuado quando uma enorme produção

de artesanato e aplicações industriais invade o mercado. Lentamente, o papel machê vai

sendo marginalizado no campo da arte.

Hoje, ele está concentrado em peças da arte popular e do artesanato. A arte

popular indica a presença daquilo que é relativo à cultura popular. O artista popular é

aquele que exerce sua arte sem ter frequentado a academia; sua arte é intuitiva, ele

inspira-se em lendas, crenças e costumes de sua região, mas, apesar disso, suas obras

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são artisticamente reconhecidas. Já o artesanato, é relacionado à peças consumidas de

forma massiva, reproduzidas em grande escala, sem valor artístico. Os materiais usados

para fazer artesanato são os mais viáveis economicamente, pois o custo final precisa

também ser viável, é um meio de ganhar a vida.

O renascimento do papel machê no século XX se deu porque havia um mercado

mundial predisposto à qualidade dos produtos feitos com este material.

Nas Filipinas, na região de Paete e cidades vizinhas, a população realiza festivais

anuais. Segundo Kangas, em 1920, Maria Bague teve a idéia de cobrir as esculturas de

madeira com papel machê e depois usar as figuras destacadas do molde (takas) para

vender durante as festividades (KANGAS, 2008). Aqui, uma nova técnica surge. A múltipla

produção de objetos de papel machê exige, primeiro, que seja feita uma escultura em

madeira, que são os moldes. Utilizam-se, então, pedaços de papel embebidos em amido

de arroz para sobrepor esta peça de madeira. Várias camadas são coladas. Depois de

seca, corta-se a peça em duas metades com uma faca afiada, retirando as partes da peça

de madeira. Unem-se as duas partes cortadas, colando tiras de papel para formar uma só

peça, as takas.

Hoje, estes moldes continuam a ser valorizados, por serem os representantes da

arte em papel machê, em seus distintos séculos, e estão nas coleções de vários museus:

Victoria and Albert Museu, Museu Nacional do País de Gales, o Litchfield Historical Society

e o Museu Nacional das Filipinas (KANGAS, 2008).

No interessante filme-documentário Turumba, de Kidlat Tahimik, a ocupação

artesanal de uma família filipina é fazer objetos de papel machê para vender durante as

tradicionais festividades de Turumba.

Link do filme Turumba: http://www.youtube.com/watch?v=dUxngpbldXk

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Nas festas populares, efêmeras, o papel machê reina quase absoluto, como no

Brasil, no México, na Espanha, na Itália e em países da Europa.

No Brasil, onde mais encontramos peças de papel machê, é no Carnaval, quando

é amplamente usado nos carros alegóricos e em adereços para fantasias. No México, a

tradição do papel machê é muito conhecida, principalmente nos objetos usados nas

festividades, como o Dia dos Mortos. Uma variedade de esculturas em papel machê é feita

durante todo o ano para comemorar esta data. Muitos artistas modelam à mão seus

trabalhos, o que confere a criatividade, qualidade e a fama dessa expressão (ELLIOT,

1998).

A Espanha representa uma força contemporânea na produção de papel machê

para as festas populares e efêmeras. Tanto na procissão de Corpus Christi, com os

gigantes e cabezudos, quanto no festival de Las Fallas, onde os fallas (construções

colossais feitos de materiais combustíveis, como a madeira e o papel machê) são

queimados no final da festividade. É o clímax da festa (ELLIOT, 1998). Esses cenários e

personagens apresentam uma qualidade e beleza de detalhes que impressionam.

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1.4 O PAPEL MACHÊ NA ARTE CONTEMPORÂNEA

A arte contemporânea admite toda sorte de material. Por exemplo, Niki de Saint

Phalle (1930-2002), foi uma das primeiras artistas a resgatar e revalorizar o papel machê

na arte. Experimentou o papel machê em 1963 e usou-o em sua primeira série de

esculturas, chamada Nanas (Moças).

Um dos projetos mais lendários de Niki de Saint Phalle foi sua famosa Hon, na qual

usou uma estrutura metálica e revestiu com diversas camadas de tiras de tecido, papel e

cola. Todo o processo da papietagem em escala monumental, apresentada em Estocolmo,

na Moderna Museet (MAUREL, 2014).

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Na década de 70, houve uma redescoberta da fabricação artesanal de papel por

artistas europeus e norte-americanos. Este renovado interesse pelo papel feito à mão fez

com que a comunidade artística percebesse que o papel poderia ser usado muito além da

maneira tradicional – seu uso como suporte. O papel não se limitaria mais a ser apenas o

apoio, mas seria adotado como um meio independente. Artistas como Robert

Rauschenberg (1925–2008), Robert Zakanitch (1935) e David Hockney (1937), usaram a

polpa de papel em suas obras.

Fazendo um contraste do comercial com o artesanal, Rauschenberg incorporou

imagens de revistas impressas em seda japonesa sobre a superfície de polpa de papel

molhada. A série Pages and Fuses, é altamente experimental. Nela, Rauschenberg fez

investigações sobre as possibilidades da pasta de papel (TYLER, 2013).

David Hockney, em 1978, usou o papel machê de maneira absolutamente incrível:

ao invés de usar tintas, adicionou pigmento à polpa de papel machê e usou essa polpa

colorida como palheta em suas obras, principalmente na série Piscinas, finalizada em

formatos grandes (GATTI, 2012).

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Robert Zakanitch (1935), artista contemporâneo aclamado pela crítica nos anos 70

em Nova Iorque, como um dos fundadores do movimento “padrão decorativo”. O artista

buscava uma outra forma para a pintura, que não fosse a representação e a abstração.

Em 1979, com a polpa de papel colorida, fez experiências e chegou à “ornamentação”;

para ele, uma nova via para a pintura que vinha procurando: “Você pode fazer o que

quiser. A idéia de pintar com as mãos foi imediata”, disse o artista. Para o artista, o

importante era ser fiel ao material – a pintura era feita com pasta de papel colorida. Em

suas obras, ele deixou propositalmente buracos e bordas cruas, porque queria que o

processo aparecesse (TYLER, 2015).

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Quando a artista croata, Nives Cicin-Sain (1961) saiu da Escola de Arte, seu

primeiro objetivo foi a Fotografia: “[...] aprendi muito a respeito de luz e composição e eu

realmente sou grata por essa experiência, porque aprendi a observar”. Mas o papel machê

já a acompanhava desde os 16 anos de idade, quando experimentou a receita da massa

básica, encontrada em um jornal alemão. Aperfeiçoou-se neste material, e, no início da

carreira, criava peças para o teatro, como máscaras e objetos para cenografia, mas seu

caminho atual, é fazer arte sem se preocupar com encomendas ou comissões: “[...] foi um

tempo em que adquiri muita experiência, mas agora ficou para trás”.2

A artista gosta de trabalhar com a figura humana, por expressar muitas emoções.

Nives criou sua própria massa de papel machê depois de anos de experimentações. Em

seu trabalho mistura materiais como madeira, papelão e palha; abusa dos relevos, uma

das coisas ricas que este material oferece, feitos com a própria massa.

2 Os dados relativos a Nives Cicin-Sain estão nos Apêndices.

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Podemos perceber como é possível trabalhar com o papel machê de uma maneira

mais contemporânea. Não é preciso ficar ligado ao papel machê utilizando-o sempre do

mesmo modo. Os artistas têm demonstrado suas experiências com o material. Cabe ao

artista adequar o material à sua proposta artística, como o fizeram Niki de Saint Phalle,

Robert Rauschenber, David Hockney e Nives Cicin-Sain.

Stephen Hansen (1950), por exemplo, faz esculturas representando pessoas em

tamanho natural. Para isso, aproveita-se da leveza e da plasticidade que o papel machê

oferece para suas figuras, que lembram caricaturas em situações do cotidiano. É

interessante ressaltar que Hansen trabalhou com vários materiais escultóricos antes, mas

gostou mesmo foi do papel machê, porque, com ele, encontrou várias soluções para o seu

trabalho. Hansen diz que “[...] é uma boa maneira de construir algo grande, é fácil de

adaptar e arrumar qualquer coisa na peça” e porque “não há processo de fundição”. 3

Fiz questão de incluir o artista francês Paulo Grangeon4 porque é um bom exemplo

do que venho tentando demonstrar ao longo da pesquisa sobre a qualidade e a

versatilidade do papel machê. O artista não poderia ter usado material mais adequado

para seus 1600 pandas. Os pandas fizeram uma viagem pelo mundo em 2014 para

conscientizar que esta espécie está em extinção. Cada panda de papel machê tem como

tarefa representar um panda real que ainda existe, comovendo as pessoas por onde eles

passam como se fossem os verdadeiros. 1600 pandas World Tour passou por várias

cidades e foram fotografados em pontos turísticos de Berlim, Tóquio, Paris, Hong Kong.

Para realizar esta tarefa e levar esta tropa para rodar o mundo, só mesmo com

esse material, pois não há problema em transportar 1600 pandas de papel machê em um

único avião. Um aspecto interessante é que este tour das esculturas faz circular também o

3 Fonte: http://www.zenithgallery.com. Acesso em 22/07/2015

4 http://hk-magazine.com/city-living/article/paulo-grangeon. Acesso em 07/11/2015.

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papel machê, pois imagino que uma curiosidade por parte do público deva surgir quanto

ao material utilizado para movimentar essa quantidade de peças.

Após o reconhecimento do uso do papel machê no campo da arte, onde foi

largamente experimentado e utilizado, cada técnica tentando se adaptar melhor às

necessidades de obras e produtos, podemos dizer que sua produção tem, sim, uma

importância para a arte.

Experiências e resultados com o material surgiram ao longo dos séculos e isso não

é pouca coisa. No que se refere ao manuseio do material, não importa a esfera, se da arte

ou do artesanato, o que importa é que isso gerou resultados e conhecimentos que são

adaptáveis a qualquer âmbito. Na Itália, onde o papel machê viveu realmente sob o signo

da arte, hoje existe um renovado interesse por parte de artistas, restauradores e

instituições em valorizá-lo novamente por tudo o que representou no passado. Os artistas

estão retomando o papel machê como material expressivo, seja por seu custo, por sua

leveza ou beleza plástica. Artistas e designers adaptam o material a novas idéias,

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afastando o preconceito sobre a pretensa “pobreza” do material. O que se percebe é que,

analisando a história do papel machê, talvez uma nova fase de renascimento deste

material esteja acontecendo.

Este breve panorama da presença do papel machê na arte e, depois, nos

ambientes industriais, é importante porque nos mostra o desenvolvimento deste como

material e técnica, adaptado às diversas necessidades e isso, efetivamente, teve seus

desdobramentos no campo das artes visuais.

Apenas na última década é que alguns historiadores da arte, como Wilhelm Bode e

Louis Courajod perceberam o tamanho e o valor da obra de arte em papel machê devido a

excepcional qualidade de obras atribuídas a grandes artistas do Renascimento e do

Barroco. Em 2008, pela primeira vez, foram exibidas somente obras em papel machê,

mostrando a excelência do material na Itália. À época, o diretor e curador do Museu

Diocesano de Milão, Paolo Biscottini,5 disse:

Este material até agora nem mesmo é considerado uma

técnica artística. Com esta exposição, queremos colocá-lo de

volta no fluxo de produção artística do nosso país. Há uma

lacuna cultural que esperamos não fechar, mas pelo menos

indicar. E eu acho que vai ser uma grande ajuda para o

estudo de sua própria restauração.

Conhecer um pouco do que já foi feito com o material faz-nos entender como é

possível começar a mudar o julgamento a respeito do papel machê, pois é o artista que,

com sua linguagem e material expressivo, transformará a obra em algo não valioso, mas

de valor.

5 Fonte: https://museodiocesano.wordpress.com/tag/paolo-biscottini/Acesso em 14/11/2014.

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2.0 O PAPEL MACHÊ NO CIRCUITO ARTÍSTICO DE PORTO ALEGRE

Como começar a falar acerca da presença do papel machê em Porto Alegre?

Se, no berço artístico deste material – a Itália –, pesquisadores, restauradores e

historiadores da arte, vivendo em meio às obras de artistas consagrados que trabalharam

com a cartapesta (papel machê), reclamam da falta de registros e de uma história deste

material, o que dizer de lugares onde o papel machê nem mesmo é muito conhecido?

É o caso de Porto Alegre.

Atualmente, existe muita coisa a respeito do papel machê na Internet, vídeos com

o passo-a-passo da técnica e também livros. Isso pressupõe que muitas pessoas estejam

usufruindo destas facilidades, e também que, dentre essas pessoas, bons artistas poderão

surgir, quando descobrirem e se encantarem com o potencial do material. E, assim como

antigamente, quando o papel machê se propagou de Siena para outras regiões da Itália e

da Europa, hoje a Internet nos presta este serviço, levando o papel machê para todos os

lugares. Também a Porto Alegre.

Hoje, percorro os espaços onde obras e artefatos produzidos a partir desta técnica

estiveram ou estão em Porto Alegre e procuro historicizá-los. Porque tudo tem um

começo. Mas, onde estão as esculturas/objetos de papel machê em Porto Alegre?

Existem? Quais instituições culturais e artísticas têm em seu acervo obras desse tipo?

Onde circulam as peças?

Curiosamente, ao iniciar a minha “busca” pelo papel machê nas instituições do

circuito artístico de Porto Alegre, deparei-me com uma exibição coletiva intitulada Qual é a

sua máscara?, na Galeria Gravura.6 Logo me ocorreu que, dentre os artistas, certamente

algum deles teria se lembrado de usar um material tão típico relacionado a este artefato: o

papel machê.

6 Rua Corte Real, Petrópolis.

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De fato, dentre os materiais encontrados, como cerâmica, madeira e alguns bem

contemporâneos, como tela aramada, estavam lá as peças em papel machê. Percebi que,

em se tratando de máscaras, as pessoas preferem usar a técnica da papietagem. Entendo

que isso se deva ao fato dela ser mais leve, mais rápida para fazer, secar e ficar pronta.

Suzane Wonghon7 (1952) é artista plástica e professora de artes. Consolidou seu

talento com a pintura, mas eventualmente trabalha com o papel machê e a papietagem.

Na coletiva Qual é a sua máscara?, usou a papietagem para modelar suas três máscaras

coloridas. Essas ficavam, cada uma, sobre uma tela pequena, de formato quadrado,

servindo como fundo e suporte ao mesmo tempo. Podiam ser retiradas do suporte para

que as pessoas interagissem. Essa era, inclusive, uma das idéias norteadoras da exibição:

proporcionar aos visitantes usar, fotografar e postar as imagens em redes sociais.

A artista plástica Maria Inês Rodrigues8 (1943) é pintora, escultora e gravadora. Foi

aluna de Iberê Camargo (1914–1994), Vasco Prado (1914–1998) e Alfredo Volpi (1896–

1988), mas é consagrada na área da gravura. Na coletiva, exibiu trabalho em papietagem:

para a estrutura da máscara, foi usado um cartão grosso; para o topo da máscara, uma

esfera de isopor e, como acabamento, a papietagem.

Sandra Kravetz9 (1956), iniciou suas atividades artísticas com pintura no Atelier

Livre da Prefeitura. Participou da mostra coletiva de máscaras usando a técnica que

aprendeu ao longo de dois anos com Chô Dornelles – o papel machê. Sandra Kravetz

utilizou a massa do papel machê para confeccionar sua máscara. Uma tela em formato

grande, com detalhes tridimensionais feitos também com papel machê, servia de fundo

para o objeto.

7 Fonte: http://www.almendares.com.br. Acesso em 10/07/2015. 8 Fonte: Catálogo da artista Maria Inês Rodrigues, 2003. FUMPROARTE. 9 Fonte: http://sandrakravetz.blogspot.com.br. Acesso em 02/10/2015.

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As obras e artistas rapidamente citados exemplificam o quadro contemporâneo do

papel machê no circuito comercial e institucional das artes visuais em Porto Alegre.

Percorrendo esses espaços, consegui construir uma percepção dos trânsitos dessa

técnica. Observamos alguns dados e artistas que se voltam, em Porto Alegre, ao papel

machê.

Na Galeria Tina Zappoli, existem peças de papel machê da artista Maria Lídia

Magliani10

(1946–2012). São duas máscaras/rostos de parede e duas esculturas da

exposição Em Gerais, de 1990. Toda a parte escultórica da artista foi em papel machê. Na

época em que morou em Tiradentes, Minas Gerais, Magliani desenvolveu uma série de

esculturas com barro e serragem, misturando ora um, ora outro, ao papel machê. Isso

confere às peças maior peso, remetendo, muitas vezes, à cerâmica. Mas, ao olhar de

perto, percebe-se a mistura do papel com o barro, fruto das experiências da artista.

10 Os dados relativos a artista Maria Lídia Magliani estão em Apêndices/entrevistas/Tina Zappoli.

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Conversando com Décio Presser, da Galeria Arte&Fato, descobri que o papel

machê circulou bastante pela galeria. Chô Dornelles, Milca Chang, Marlene Kozicz e

Moacir Chotguis foram artistas que expuseram seus trabalhos de papel machê e

papietagem no espaço. Atualmente, a galeria não dispõe de nenhuma peça feita com o

material.

O artista Chô Dornelles11

(1948) ficou conhecido quando suas “gordinhas” de papel

machê estouraram pelo Brasil no final dos anos 1980. A partir de então, começou a

receber convites para exposições e, em 1988, expôs na Galeria Arte&Fato. Eram objetos

escultóricos e uma série de “gordinhas” de papel machê.

11 Os dados relativos ao artista Chô Dornelles estão em Apêndices/entrevistas/ Chô Dornelles.

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Chô Dornelles trabalha misturando outros elementos com a massa do papel

machê; como serragem e limalha de ferro, para obter diferentes resultados em suas peças.

Segundo Chô Dornelles, o papel machê entrou pela primeira vez no MARGS em

2004, com a exposição intitulada Papier Maché!12

. Vários artistas expuseram peças em

papel machê, entre os quais o próprio Chô, Celia Von Mengden, Milca Chang e Tânia

Teixeira. Nessa exibição, Chô apresentou uma série de esculturas, inclusive de parede,

nas Salas Negras do Museu.

12 A exibição Papier Mâché!, no MARGS, foi de 09 de junho a 12 de julho de 2004.

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Milca Chang (1948)13

fez experiências com pintura e desenho orientada por

Elizethe Borghetti (1955) e Plinio Benhardt (1927–2004). Mas, em sua primeira exposição

individual, Pedestais Humanos, na Galeria Arte&Fato, em 2004, foi o papel machê que

Milca adotou para suas dez esculturas com pedestais. Em sua nova linguagem artística –

a escultura – o papel machê ganhou importância em formas simples, únicas e com cores

terrosas. Décio Presser diz que, de longe, notava-se que eram peças de papel machê,

pelo aspecto típico do material.

Moacir Chotguis (1954), artista que trabalha muito com a papietagem, expôs na

Arte&Fato, em 2011. Seu trabalho, que ele chama de Cidades Flutuantes, são formas

grandes que lembram mandalas, como ele próprio diz, todas feitas com a técnica da

papietagem, pois Moacir desejava a leveza final em seus trabalhos, em sua maioria peças

de parede. O artista trabalha formas que se repetem e isso vem da época em que cursou

pós-graduação em Expressão gráfica, pela Faculdade de Arquitetura, pela UFRGS, quando

executava muitas maquetes e módulos com papel. Segundo afirma em entrevista,

escolheu a papietagem porque queria trabalhar formas grandes sem precisar recorrer a

ferramentas pesadas: “[...] o papel machê pode me dar o que eu quero, pois me oferece a

questão da leveza; posso carregar para onde eu quiser; posso fazer coisas grandes”.14

13 Fonte: http://www.cpovo.net/jornal/vitrine/N189/pdf/vit06.pdf; acesso em 10/07/2015. 14 Os dados relativos ao artista Moacir Chotguis estão em Apêndices/entrevistas/Moacir Chotguis.

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Com a massa do papel machê, ele acrescenta sempre um elemento novo em cima da

papietagem, como algum relevo, por exemplo.

Marlene Kozicz (1946) faz pintura, desenho, gravura e escultura. Considera–se

uma alquimista por gostar de misturar as coisas: em sua trajetória artística, sempre

privilegiou aprender diversas técnicas. A artista diz que sempre teve sintonia com o papel:

quando criança, usava o papel para inventar coisas, pois na infância não havia recursos

para comprar brinquedos. Faz uns dez anos que descobriu o quanto podia fazer com o

papel e, desde então, começou a trabalhar com o papel machê e a papietagem. Gostou da

textura e da versatilidade que o papel oferece: “[...] o papel machê é rico porque te

permite, né? Com papel e arame tu fazes loucuras!” 15

Na exposição Novas dimensões, de 2012, na Arte&Fato, Marlene Kozicz expôs

objetos tridimensionais e algumas peças de parede – figuras de mulheres feitas com a

técnica da papietagem. Em outras de suas peças, o jornal para a papietagem é usado

também como acabamento, fazendo as vezes das tintas para pintura. Para isso, Marlene

seleciona as páginas coloridas de jornais para, com elas, dar cor às suas mulheres .

15 Os dados relativos à artista Marlene Kozicz estão em Apêndices/entrevistas/Marlene Kozicz.

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Quando cursava Bacharelado em Artes Visuais no Instituto de Artes da UFRGS,

em 1997, Carol W.16

(1979) precisava de um material para as disciplinas iniciais de

escultura. Procurou por um que lhe oferecesse funcionalidade e praticidade. Após buscas

em revistas e livros, achou interessante o papel machê e começou a experimentá-lo.

Passava as tardes na garagem de casa fazendo papietagem. Com o tempo, começou a

experimentar a mistura de outros materiais na massa básica de papel machê, até

encontrar o que intuitivamente buscava. Desde então, é o material que a acompanha.

Carol W. cria personagens inspirados em histórias; seu trabalho fala de sonhos,

seus personagens são lúdicos, teatrais; compõem gestos e cenas congelados no tempo,

mas são cheios de vida, feitos em papel machê, com muita poesia. Originalmente, a

inspiração veio das bonecas de papel e pano que sua mãe e sua avó faziam para ela

brincar na infância. Criando personagens, revive esses momentos. E as cores – múltiplas

e alegres –, essas vêm dos padrões dos tecidos, que sua memória gentilmente traz à tona

na hora do acabamento das peças.

16 Os dados relativos à artista Carol W. estão em Apêndices/entrevistas/Carol W.

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Guardanapos estampados também compõem o “guarda-roupa” de seus personagens: “[...]

essa vontade de transformar os bonecos em trabalhos tridimensionais vem daí, eu sinto

que eu faço brinquedos e bonecas”. A artista gosta da textura e do aspecto rústico do

papel machê e faz questão que o material transpareça em seus personagens.

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Célia Von Mengden17

(1955) sempre se sentiu encantada por bonecos. Ainda na

faculdade, quando cursava Artes Visuais no Instituto de Artes da UFRGS, ela fez um curso

de fantoches com o conhecido “bonequeiro” Mario de Ballentti (1962). Sua experiência

com a papietagem e o papel machê somam 25 anos, tempo que trabalhou como

professora de artes, quando, aliás, começou a fazer fantoches de papel machê com seus

alunos. A partir de então, Celia percebeu que tinha em mãos um material “simples” e

“fantástico”, que poderia ser usado em vários projetos de artes. O resultado estético do

papel machê a surpreendeu, tanto quanto os trabalhos realizados por seus alunos.

Passado esse tempo de escola, a artista consegue, hoje, dedicar-se integralmente

à sua produção artística – e o que é sua produção artística? São bonecos. Hoje, ela une

suas preferências – bonecos e papel machê – para desenvolver obras que são, nada mais

que o resultado direto de seu universo de educadora: personagens da literatura infantil,

que amadureceram nessa trajetória pessoal e que revelam a confiança no material que

sempre usou e escolheu para as esculturas: o papel machê.

17 Os dados relativos à artista Célia Von Mengden estão em Apêndices/entrevistas/Célia Von Mengden.

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Na Galeria Duque, uma exposição com várias obras em papel machê de Maísa

Stolz18

(1984) foi uma surpresa no final da minha busca por esse material pelas galerias de

Porto Alegre. Maísa começou a usar o papel machê no final do curso de Artes

(UFRGS/2010), quando precisou encontrar o material adequado para seu Trabalho de

Conclusão de Curso. A artista queria fazer a escultura de um porco grande para uma

intervenção urbana, e nenhum dos materiais com os quais trabalhou durante o curso lhe

serviram: eram pesados, necessitavam de ferramentas específicas, etc. Por sugestão de

um professor, experimentou moldar com papel a forma que desejava obter. Maísa

experimentou e deu tão certo que não quis mais deixar de usar o papel machê.

Recentemente, a artista, que então trabalhava com papel machê e com bonecas

de pano, resolveu unir os dois procedimentos, resultando em uma série de personagens

de papel machê, vestidos com roupas de tecido. Nessa série, que ela chama de Híbridos,

a artista propõe, ainda, outras associações: seus personagens são híbridos de homens

com animais e referenciam ícones da História da Arte, como Mona Lisa, de Leonardo Da

Vinci (1452–1519) e a Bailarina, de Edgar Degas (1834–1917). Maísa Stolz fez

cruzamentos entre conceitos e materiais nesses personagens híbridos, fazendo com que

estes ganhassem mais força expressiva. Essas experimentações, que repensam as

categorias tradicionais da arte, ainda hoje, causam certo “estranhamento”,19

– no sentido

de pasmo diante daquilo que não se conhece ou não se espera –, mas esse

estranhamento é, também, uma forma singular de vermos e apreendermos o mundo,

transformando e desafiando as ideias pré-concebidas sobre este e sobre as formas da

arte. Isso permite-nos entrar numa dimensão nova, só visível pelo olhar estético ou

artístico.

18 Os dados relativos à artista Maísa Stolz estão em Apêndices/entrevistas/Maísa Stolz. 19 Ostrannenie (Estranhamento), foi um termo utilizado pelo formalista russo Viktor Chklovski em seu trabalho “A Arte como processo”, de 1917. Fonte: http://www3.usp.br/significacao/pdf/38_15.pdf

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Ana Alegria20

(1947) desenvolveu seu trabalho em pintura, desenho, escultura,

gravura e fotografia. Estudou desenho com Vasco Prado (1914–1998) e gravura com Iberê

Camargo (1914–1994). Aprendeu a técnica do papel machê com Antonia Eiriz (1929–

1995), em Havana, Cuba. Participou de diversos salões nacionais e internacionais e tem

obras em acervos, museus e coleções como o MARGS, o MAC, o Centro Wifredo Lam

(Cuba) e a Coleção Hoffman – La Roche (Suíça). Com o papel machê se envolveu de

forma lúdica e alegre:

Ana pintou e modelou a fauna de seu próprio sobrenome.

Colocando por aqui uma língua, por ali um sexo, ou umas

asas. Em cima de rodas o que deve rodar. Seus bichos,

personagens e signos, são engendros utópicos do único lugar

onde todos somos ou gostaríamos de ser simplesmente

felizes. 21

Ana Alegria adora signos e cores: em seu trabalho de fotografia e de pintura

existem muitos registros de signos, formas geométricas e cores vibrantes, elementos que

a artista usou também nas esculturas em papel machê. As esculturas de Ana Alegria são

bichos fantásticos – como os “cronópios”22

de Júlio Cortázar (1914–1984). Os “cronópios”

são seres que buscam a alegria, são criativos, sensíveis e sonhadores; querem estar e

viver o mundo poeticamente. Assim, os seres de Cortázar – que não têm “forma”, mas sim

“conceitos” – são imaginados por Ana Alegria como bichos de formas arredondadas e de

cores alegres; seus desenhos são signos que vem diretamente de seus registros

fotográficos. Os “cronópios” de papel machê da artista nascem através de um material tão

leve quanto a vida que esses personagens desejam levar.

20 Fonte: http://gestual.com.br. Acesso em 24/09/2015. 21 Orlando Hernández – escritor cubano, poeta e crítico de arte. Fonte: http://escritoriodearte.com. Acesso em 24/09/2015. 22 O conceito de cronópios foi criado por Julio Cortázar e são personagens que estão no livro Historias de Cronopios Y de Famas, de 1962. Fonte: http://www.loscuentos.net; acesso em 12/11/2015.

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Em 2011, Ana Alegria retornou ao mercado de arte, com a mostra Meu pequeno

Circo, na Galeria Gestual, apresentando pinturas, guaches e objetos em papel machê. A

artista criou bichos tridimensionais em papel machê especialmente para esta mostra, para

acompanhar os gestos das suas telas e guaches.

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Bina Monteiro (1952) não é uma artista do papel machê. Começou trabalhando

com pintura sobre tela e papel, depois foi para a madeira, criando obras recortadas

bidimensionais e algumas tridimensionais e, hoje, trabalha sobre a tela, a madeira e o vinil,

mas o que mais gosta de fazer é assemblage. E o papel machê entrou na sua vida nesta

época (anos 2000). Foi quando descobriu que este material poderia lhe proporcionar o que

os objetos em si e os outros materiais e técnicas, como a madeira e a pintura, não

conseguiam, para as representações em suas assemblages: “[...] então, a partir daí achei

que tinha um caminho maravilhoso para explorar – que é o papel machê – nas minhas

assemblages”.23

23 Os dados relativos à artista Bina Monteiro estão em Apêndices/entrevistas/Bina Monteiro.

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Bina Monteiro utiliza o papel machê não para ser “bonito” ou “bem-feito”. Em seu

trabalho, interessa que o material lhe possibilite representar mais exatamente uma textura,

como, por exemplo, o lodo ou uma almofada, coisas que precisou materializar em suas

assemblages. Para isso, a artista se “apropria” do papel machê, dessa versatilidade de

poder remeter a qualquer coisa.

A artista plástica Denise Iserhard Haesbaert (1949) é pintora e escultora. Foi na

pintura que se consagrou como artista, realizando diversas exposições individuais e

coletivas no Brasil e no exterior.

Denise chegou ao papel machê em 2004, após um curso com Maria Lídia Magliani

e, segundo ela, enlouqueceu porque queria fazer – e fez – muitas experiências com o

material.

O papel machê entrou na minha vida mais como uma

ferramenta para eu poder falar do ‘tempo’. Não foi assim... eu

não fui atrás do material. Eu pensei num material e aí

aconteceu tudo junto: o curso da Magliani...24

24 Os dados relativos à artista Denise Haesbaert estão em Apêndices/entrevistas/Denise Haesbaert.

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Para suas esculturas – os pêndulos – que foram exibidos na mostra Meta-

Morphósis na Galeria Arte&Fato em 2005, a artista queria falar sobre o “tempo”, conceito

que atravessa seus trabalhos e, antes de optar pelo papel machê, a artista havia pensado

na cerâmica:

A cerâmica precisa da queima, é pesada e é cara. O papel

machê é um processo muito rico porque tu fazes o início, o

meio, o fim e terminas!

Denise Haesbaert acha impressionante a possibilidade que o papel machê oferece.

A artista, que valoriza muito o “processo” de trabalho, deu-se bem com o material porque

este lhe permite misturar materiais antagônicos e materiais poveros. Além da plasticidade,

a artista gosta quando o papel machê fica “natural”, quer dizer, evita processos que

“escondam” o material, como lixar, pintar, envernizar. E quando quer que a cor apareça,

ela mistura direto na massa o pigmento, pois, desta maneira, não cobre a superfície,

deixando o papel machê aparente. Abaixo, a aparência inconfundível do material e um

exemplo de como o papel machê pode ser protagonista sem deixar de lado os materiais

que ele possibilita agregar durante o processo de trabalho.

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Podemos perceber como os artistas encontram abordagens únicas para se

envolver com o papel machê. Este pode se adaptar às formas de produção artística

contemporânea. Na área do design, por exemplo, pode oferecer novas soluções para o

desenvolvimento sustentável.

Vem do curso de Artes Visuais, na FEEVALE, em 2003, a forma como Ceiça

Alles25

(1951) trabalha com planos e ângulos em seus trabalhos com o papel machê.

Durante o curso, fazia muitas maquetes com cartolina, pesquisando planos. Com o tempo,

decidiu transformar uma das maquetes, que lhe lembrava um bicho, em um “bicho

mesmo”. Usou papelão para construir os planos e ângulos do objeto e usou a papietagem

para o acabamento. Animada com o resultado, nos trabalhos seguintes, resolveu usar a

massa do papel machê para o acabamento das peças, que são, basicamente, de “design”,

conforme Ceiça Alles. As peças da artista são esculturas funcionais: o Trono tem formas

elegantes e em nada lembra algo “frágil”, palavra costumeira ao se referir a trabalhos feitos

em papel machê. A Girafa e outras peças são inspiradas em bichos. Esse mundo animal

de Ceiça é uma mistura de objetos e móveis, que lembram os tradicionais bancos

zoomórficos indígenas. Desde suas formas, todo o trabalho é muito lúdico; a pintura e os

desenhos para simular o casco e a pelagem dos animais, somente confirmam isso.

25 Os dados relativos à artista Ceiça Alles estão em Apêndices/entrevistas/Ceiça Alles.

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O papel machê é utilizado por artistas, muitas vezes, para tratar de questões como

o consumismo e a reciclagem. Claro, a ideia de um mundo mais consciente

ambientalmente é ótima, mas o papel machê não deve ser visto tão somente como um

nicho de reciclagem, e sim ser valorizado como material escultórico.

Por certo é um material que parte do aproveitamento do que seria descartado,

portanto, é uma técnica “ecológica”; não parte de um material nobre, mas pode se

transformar em algo nobre.

Ena Lautert (1924) começou a fazer pedras de papel machê, o material que elegeu

para suas esculturas, reciclando materiais. Um dia, querendo aproveitar a espuma

expandida que guardava, quis fazer uma pedra. Ena sempre gostou de pedras. Lembrou

do papel machê quando se encantou, tempos atrás, ao descobrir que, ao secar, a massa

do papel machê ficava “[...] dura como uma pedra”. A consistência e a leveza deste

material logo lhe agradaram. Desde então, “[...] tenho uma vontade louca de fazer pedras”,

diz. E as pedras grandes necessitam de muito “enchimento”, por isso, guarda tudo:

embalagens plásticas, sacolas, jornais, etc. Tem como objetivo transformar o lixo em arte:

“[...] acho importante a conscientização. Reciclar o lixo, cuidar da natureza. Eu sou uma

cidadã, sempre fui”.26

Mas, para além do conceito ambiental, as pedras sempre estiveram no caminho de

Ena Lautert “para o bem”. Ela lembra que, desde pequena, quando visitava a avó, elas se

sentavam à beira do riacho onde havia “pedras grandes e lindas”. As formas, tamanhos e

texturas das pedras de papel machê de Ena nos dão a perfeita idéia de pedras reais, mas,

ao levantarmos uma delas, somos surpreendidos, pelo peso “quase zero” da pedra. É uma

sensação engraçada poder levantar uma pedra grande sem esforço algum – a situação

faz-nos sorrir. À época de seu aniversário de 82 anos, Ena Lautert produziu 82 pedras,

uma para cada ano de vida, pedras pequenas e pedras grandes, para contar uma trajetória

de vida. Hoje, quase dez anos depois, aos 91 anos, Ena Lautert continua a fazer pedras:

Graças à arte, estou sempre ocupada. As pessoas não

sabem o quê fazer; principalmente os idosos, que se

aposentam e ficam deitados ou assistindo televisão...têm que

se ocupar!

Uma das pedras de papel machê de Ena Lautert, repousa em meu ateliê –

presente da artista – e já rendeu inúmeros “trotes”, por conta de seu peso.

Ena Lautert sempre quis valorizar outros materiais que não fossem o bronze ou a

pedra, por exemplo: “[...] acho que uma obra de arte pode ser feita com qualquer material”.

Desde 2007, tem se voltado para as possibilidades técnicas do papel machê. Algumas

26 Os dados relativos à artista Ena Lautert estão em Apêndices/entrevistas/Ena Lautert.

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pedras, Ena corta ao meio para que se possa ver o seu interior, é quando sua

preocupação com o meio ambiente aparece de forma explícita.

Celia Von Mengden sempre inseriu em suas aulas de artes a reciclagem: muito

papelão, jornal, isopor, arames e outros materiais de sucata. A sucata, segundo Célia, é

muito boa para o processo de criação em aula; os alunos gostam bastante, mas sempre

que trabalhou com sucata, os alunos não queriam levar o trabalho para casa, achavam

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muito feio. Já os trabalhos feitos com papel machê eles faziam questão de levar para casa:

“[...] o papel machê tem um ótimo resultado estético”, diz Celia.

Também Maísa Stolz sempre usa material reciclado para criar suas formas. Ela

conta que, em uma escultura em que estava trabalhando a base, começou a colocar os

materiais recicláveis e a forma foi surgindo sem intenção nenhuma. Achou muito curioso

“[...] como às vezes parece que a coisa se forma sozinha”. Gostou do resultado que o

próprio material foi formando e assim deixou como concluído. Sempre utilizando grande

quantidade de materiais, como jornal, caixas de embalagens, etc, o papel machê é a

oportunidade ideal para a reciclagem de papel.

Suzane Wonghon encontrou nas embalagens tetra pak de leite uma maneira de

reaproveitamento deste material descartável mas muito sugestivo por sua forma

geométrica e modular. Para a exposição Descartável, reciclável, funcional,27

na Galeria

Arte &Fato (2006), Suzane criou animais lúdicos que estão aí para questionar: “Quando

manipulado com talento, por que o lixo não pode virar arte?” Os objetos feitos com papel

machê tiveram como estrutura as embalagens de leite longavida que, ao serem

reaproveitadas, pode-se dizer que foram transformadas em arte ecológica.

27 Fonte: http://artefatogaleria.blogspot.com.br;acesso em 04/09/2015.

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O que há de comum no universo destes artistas que trabalham com o papel machê?

Quando perguntados: “Por quê o papel machê?” as respostas foram:

“Porque eu precisava de um material que me permitisse carregar facilmente”;

“Porque eu queria valorizar um material diferente“;

“Porque eu precisava de um material leve”;

“Porque eu precisava fazer formas grandes”;

“Porque eu não queria um material que necessitasse de forno ou ferramentas”;

“Porque é acessível e o resultado plástico final é muito bom”,

“Porque posso modificar quando quiser”, etc.

Todas as respostas convergem para uma palavra: versatilidade. Não existe outro

material igual. Os artistas renascentistas já sabiam disso. Lembre-se do que fizeram com

este material e suas peças estão no mundo até hoje. É, então, um material frágil? A

fragilidade do papel machê é um mito. Engana-se quem pensa que ele é/foi usado no

efêmero por ser um material “pobre”, sem resistência, etc. Tais conceitos a respeito do

papel machê não podem estar mais equivocados.

2.1 PAPEL MACHÊ – MERCADO E PRECONCEITO

Embora, no cenário da arte contemporânea, não exista preconceito com materiais,

os artistas que se expressam pelo papel machê são vistos, quase sempre, como artesãos.

Este preconceito com o material desencoraja e “desmoraliza” os artistas que desejam levar

seu trabalho para as galerias de arte. É onde o artista quer estar para comercializar seu

trabalho.

O poder de legitimação é o poder de dizer o que é e o que não é arte. O campo

artístico é o espaço simbólico em que acontece a luta pelo poder de legitimidade e onde se

formam os valores das obras de arte, dos artistas e demais agentes deste campo. É na

articulação entre o campo artístico e seu mercado que se efetua a formação de valores

artísticos e econômicos. Por isso, o mercado de arte é primordial para a concepção de

uma profissionalização dos agentes da arte.

Para Pierre Bourdieu, um campo é concebido como um espaço social

multidimensional de relações sociais entre agentes que compartilham interesses em

comum. É um espaço de disputa entre os “dominantes”, – os que possuem maior capital

(poder) para poder intervir no campo e empregam estratégias para conservarem suas

posições, – e os “dominados” – os que desejam ascender e assumir posições,

empregando, geralmente, estratégias de subversão. A estrutura do campo é uma relação

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de força entre os agentes; e, em cada campo específico, existe um conjunto de interesses

compartilhados, que garantem seu funcionamento.

Embora o campo de produção erudita possa não estar nunca

dominado por uma ortodoxia, está sempre às voltas com a

questão da ortodoxia, ou seja, com a questão dos critérios

que definem o exercício legítimo de um tipo determinado de

prática intelectual ou artística (BOURDIEU, 2011, p. 108).

O que estrutura o universo social é a posse de diferentes tipos de capital:

econômico, cultural, social e simbólico. No campo artístico existem dois tipos de

hierarquização, que incidem sobre seus agentes: um princípio de hierarquização interna –

que define dominantes e dominados no campo e que favorece os artistas conhecidos e

reconhecidos por seus pares:

A qualidade do artista ou do erudito parece ser tão difícil

definir porque só existe na e pela relação circular de

reconhecimento recíproco entre os artistas, os escritores e os

eruditos. Todo o ato de produção cultural implica na

afirmação de sua pretensão de legitimidade cultural

(BOURDIEU, 2011, p. 108).

O princípio de hierarquização externa é o que situa o campo artístico e seus agentes no

conjunto do universo social. O grau de autonomia de um campo de produção cultural

dentro do campo de poder (sociedade) se dá na medida em que o princípio de

hierarquização externa está subordinado ao princípio de hierarquização interna:

Quanto mais o campo estiver em condições de funcionar

como o campo de uma competição pela legitimidade cultural,

tanto mais a produção pode e deve orientar-se para a busca

de distinções culturalmente pertinentes em um determinado

estágio de um dado campo, isto é, busca dos temas, técnicas

e estilos que são dotados de valor na economia específica do

campo por serem capazes de fazer existir culturalmente os

grupos que os produzem. É a própria lei do campo que

envolve os intelectuais e artistas na dialética da distinção

cultural. Esta mesma lei que impõe a busca da distinção,

impõe também os limites no interior dos quais tal busca pode

exercer legitimamente sua ação (BOURDIEU, 2011, p. 109).

Muitos dos artistas que procuram as galerias acreditam ter seu trabalho recusado

por ser em papel machê. Não que escutem dos galeristas ser “esse” o motivo, mas eles

dizem que isso está nas entrelinhas.

Ena Lautert por exemplo, expôs as “pedras” de papel machê na Usina do

Gasômetro (2006), no MARGS (2010) e participou de várias coletivas; foi indicada para o

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Prêmio Açoriano de Artes Plásticas – Destaque em Escultura (2007), entre outros. Mas,

quando quis colocar seu trabalho nas galerias, não obteve sucesso:

Muita gente diz: “Papel machê? Não quero.” É o preconceito.

Tive uma experiência que – acho com muita certeza – a

pessoa não aceitou meu trabalho porque era em papel

machê. A obra deve agradar, mas não em função de seu

material.28

Carol W. tentou diversas vezes colocar seu trabalho em galerias de arte locais mas

nunca conseguiu um espaço. Acredita que o material não é valorizado por ser um material

“barato”, considerado artesanal e porque remete a trabalhos “escolares”. E tem a questão

da nomenclatura: Carol W. é chamada de “artesã” porque trabalha com o papel machê.

Por que tem essa desvalorização? As pessoas valorizam a

obra pelo material. Estou no mercado há 17 anos. Eu sinto

que no Brasil e, em especial, no Rio Grande do Sul, a arte é

vista de uma forma muito atrasada em relação ao resto do

mundo.

Célia Von Mengden reitera; segundo ela, muitas pessoas acham que o papel

machê é uma técnica usada só para artesanato:

Já ouvi muitas pessoas dizerem, quando falo que trabalho

com papel machê: “Ah, tu fazes artesanato!” Tu ficas

pensando... Sabe, é uma questão de valorização do mercado.

Na Inglaterra, por exemplo, me surpreendi até com os preços

que os artistas cobravam pelas peças de papel machê. No

Brasil, isso não existe.

Chô Dornelles, à época de suas famosas “gordinhas” de papel machê, vendeu

muito bem em uma galeria de São Paulo, por exemplo. Recentemente, tentou colocar uma

nova série de objetos criados em papel machê na mesma galeria, mas não quiseram,

porque era em papel machê.

Tem preconceito, sim. E não é só com o papel machê; é com

papel em geral. Lembro, no tempo da Magliani, as pinturas

dela em papel ninguém queria porque não iriam durar... Uma

grande bobagem, pois tem papel da Antiguidade inteiro até

hoje.

Décio Presser, da Arte&Fato, lembra das “gordinhas” de Chô Dornelles; elas

também estiveram em sua galeria nos anos 1980, e venderam muito bem, segundo ele.

Milca Chang e Moacir Chotguis foram outros artistas que tiveram trabalhos de papel

machê expostos neste espaço, nos anos 2000. Décio Presser também acha que o

28 A partir desta etapa da pesquisa, todos os depoimentos reproduzidos estão em Apêndices.

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preconceito não é em relação ao material, e diz que, na galeria, expõe peças mais

contemporâneas, que não vai expor “bonequinhas”:

Na verdade, é a forma que o pessoal trabalha com o papel

machê que parece artesanato, porque fazem “carinhas” e

“bonequinhas’. O papel machê pode ser trabalhado de forma

mais contemporânea.

Tina Zappoli confirma; diz que as esculturas de Maria Lídia Magliani, por exemplo,

sempre venderam muito bem. A galerista não acredita que o preconceito maior seja em

relação ao material:

O trabalho do artista – no caso, a Magliani – estava acima do

material que ela usava, o papel machê. Nunca senti nenhum

tipo de preconceito em relação a isso. Acho que depende

muito do trabalho do artista.

O papel machê, quando é “disfarçado”, digamos assim, parece não encontrar

grandes rejeições, até que se revele. As pessoas admiram o trabalho do artista, mas ao

saber que o material é papel machê, acontece, geralmente, a seguinte situação: a

fisionomia se transforma na mesma hora, como que uma “decepção instantânea”,

acompanhada da pergunta: “Papel?” É como se a peça tivesse se auto-destruído naquele

instante, na frente da pessoa. É o tal preconceito atuando. Por que, quando revelado, a

obra em papel machê perde a majestade? Isso é histórico. Como vimos no início desta

pesquisa, no século XVII, na Itália, as obras sacras “não mereciam ser feitas com um

material considerado “pobre; vil”. Mais adiante, uma “saturação” de objetos feitos com o

material, para diversos segmentos, fez o papel machê perder sua aura e acabou

banalizado.

Marlene Kozicz lamenta pelo fato deste material não ser valorizado. Quando

expôs na Arte&Fato, em 2012, apresentou pinturas e esculturas em cerâmica e em

papietagem. Essas eram cabeças com pedestais e algumas eram de parede.

Todos acharam maravilhosas (as esculturas), mas ninguém

comprou porque eram de papel. O Décio (Presser) me disse

que o problema era esse. É um preconceito com o papel. É

como a gravura; nunca expus minhas gravuras, mas sei que

se eu cobrar R$ 500, ninguém vai comprar porque é papel.

Com Maísa Stolz, aconteceu o exemplo acima, em que as pessoas, ao saberem

que ela trabalha com papel machê, mudam o seu comportamento.

Quando isso acontece, ela mostra seu trabalho e explica que o material é muito

resistente, faz uma comparação com a resistência, dureza e a durabilidade da madeira e

as pessoas vão entendendo melhor do que se trata.

Depois que conhecem seu trabalho, as pessoas dizem: “[...] nem parece papel

machê.” “[...] mas eu queria que parecesse!” diz Maísa. A artista não quer ter que

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“disfarçar” o papel machê e por isso mesmo fez uma das peças da mostra na Galeria

Duque, Menino do Rio, e deixou a peça ao natural, quer dizer, sem pintar nem revestir com

algum outro material, porque acha que “precisamos assumir o papel”. Antes de escolher o

material que iria trabalhar, ela refletiu muito e constatou que as pessoas não valorizam o

papel, o que a levou a se perguntar:

Quando o artista trabalha com mármore branco, por exemplo,

seu trabalho vai ficar branco porque o material é assim, é do

material. Então, por que não deixar o papel aparecer?

Por que o papel machê é encontrado nos ateliês dos artistas, mas dificilmente

consegue entrar no sistema da arte de Porto Alegre, tanto em galerias, como em museus?

Para Tina Zappoli, é porque talvez não haja artistas importantes se manifestando

com o papel machê e cita o trabalho da Magliani com o material: um trabalho forte, que

todo mundo reconhece:

Acredito que, se o artista é importante e se meter a fazer

papel machê, ele se coloca nas galerias. É uma questão de

trabalho, de linguagem. Talvez porque não tenha nenhum

artista contemporâneo de alto nível fazendo papel machê. Às

vezes, tem os modismos, né?

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Creio que, o problema de quem trabalha com papel machê se agrava, por conta

dos galeristas terem preferência por artistas já “consagrados” no mercado, porque então,

todo mundo reconhece seu trabalho. Outro motivo, é que o mercado rejeita obras de papel

machê que fiquem no limiar do artesanato. Essas duas questões, portanto, seriam as

principais justificativas para que o papel machê não esteja presente nas galerias e

instituições de Porto Alegre.

Do ponto de vista do mercado de arte, quando o papel machê é usado sempre da

mesma maneira, – objetos utilitários, bonecos, fantoches – ele não se coloca no mercado

profissional por não estar sendo trabalhando com um conceito e uma trajetória própria. Os

galeristas citam artistas que trabalharam o papel machê de forma contemporânea: Milca

Chang, Maria Lídia Magliani e Denise Haesbaert, por exemplo.

Para a artista e diretora cultural da Associação dos Amigos do Museu de Arte

Contemporânea do Rio Grande do Sul, (AAMACRS), Bina Monteiro, esta é a principal

razão:

Eu acho que existe isso. As coisas, quando ficam muito no

limite do artesanato: O que é mais artesanato? É difícil para

as pessoas reconhecerem: Não, isso aqui não é um mega-

artesanato; essa pessoa aqui já é um artista, ele faz uma

arte, é uma coisa mais ou menos assim. Acho que, se o

artista se apropriar do papel machê para fazer um trabalho

contemporâneo, criar uma outra utilização para o papel

machê, se ele fica na mesmice, fica sem um valor realmente.

A queixa dos artistas, por certo, é esta visão preconceituosa, onde se enxerga o

material e não se dá valor ao trabalho. O meio é mais importante que a obra. Meu fim não

é levar adiante queixas, mas antes compreender o motivo desta rejeição. Que direção é

preciso tomar?

Esta dificuldade de se encaixar nos perfis das galerias, que já têm pouca abertura

para a produção de jovens artistas, faz com que estes busquem lugares alternativos para

expor e comercializar o seu trabalho: como bares, cafés e outros espaços. Ali também

existem relações entre o artista e o público; o artista forma uma clientela, há oferta e

procura também. Mas não é o lugar que legitima a arte; sendo assim, o artista fica de fora

do mercado profissional. “[...] Eu já expus em galeria”, diz Moacir Chotguis. Foi em 2011,

quando a Galeria Arte&Fato não cobrava pelo espaço, somente o percentual de venda da

obra. Mas, em 2014, quando Moacir Chotguis quis expor novamente na galeria, as regras

haviam mudado:

A Arte&Fato cobra assim: tu ficas 15 dias, tens o convite, a

vernissage, a divulgação, a imprensa. Não precisa te

preocupar com nada, mas tens que bancar: são R$ 4.000,00.

E ainda, o que tu venderes, a galeria cobra 40% da venda.

Não tenho condições.

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Em outras galerias, o valor é ainda maior e, segundo o artista, “[...] é preciso

vender o carro para fazer uma exibição”.

Moacir diz que atualmente está “alternativo” porque procura por espaços não-

convencionais onde possa expor seu trabalho. Em 2014 expôs no Café Fon Fon (Rua

Vieira de Castro, 22) e ficou satisfeito com o interesse das pessoas pelo seu trabalho:

Quanto mais exposições tu fazes, melhor. Vais formando um

grupo, vão chegando pessoas interessadas no teu trabalho.

Se tu vais fazer numa galeria, vais levar um tempão nesse

processo de formação de um público teu. E aí? Tens que

pagar R$ 4.000, R$ 8.000, até quando?

Há quem venda sua produção de papel machê sem problemas, mas fora das

galerias, como é o caso de Marlene Kozicz:

A alegria do processo tu perdes quando começas a te

relacionar com as galerias. Perdes porque tens que fazer

‘isso’ ou ‘aquilo’ e porque teu espaço é ‘este’. Não é mais

fazer como antes, brincando. Mas tudo é difícil aqui em Porto

Alegre. Às vezes tu produzes inutilmente, mas é assim.

Outros artistas, buscando uma autonomia, investem em espaços próprios, como os

“coletivos de artistas”, trazendo novas inspirações ao cenário artístico. Esses grupos

trabalham, pesquisam, fazem oficinas e tem um local próprio para exibir sua produção,

trazendo, ainda, novos públicos. Estes espaços acabam suprindo uma demanda de

trabalhos e artistas novos, que não são “consagrados” pelo mercado profissional. Ter seu

trabalho exposto, sendo visto é também uma questão de ter esperança de poder ser

lançado futuramente no mercado profissional e ser reconhecido. Nos coletivos, a

comercialização se torna mais acessível para o público do que nos espaços

convencionais, pois o artista negocia diretamente sua obra. Outra vantagem é que os

artistas podem desenvolver seus trabalhos experimentais sem se preocupar em “ajustar” o

trabalho para que fique mais comercializável, como acontece, geralmente, em galerias.

Maísa Stolz faz parte do coletivo de artistas Bestiário desde 2013, e foi ali que vendeu

seus primeiros trabalhos em papel machê:

Quando abriram o Bestiário, fizeram uma exposição e

coloquei meus bichos também. Vendi tudo e pensei: “Se

vendi é porque gostaram, puxa vida isso é bem legal!

Celia Von Mengden e Carol W. já colocaram seus trabalhos em lojas, mas o

problema é que os lojistas acabam por colocar 100% em cima e fica difícil vender, pois as

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pessoas acham muito caro. Ou, então, baixam o valor do artista em função de seu trabalho

estar sendo vendido em uma loja de artigo de decoração. Como diz Carol, “[...] acontece

uma relação muito diferente com o trabalho, que acaba sendo visto como artesanato e isto

acaba prejudicando o trabalho do artista”. Para resolver esta questão, Carol desenvolve

uma linha voltada para a arte aplicada, colocando estas peças em lojas, sem precisar se

“violar” vendendo suas esculturas a preços de pechincha:

Cansei de vender minhas esculturas que levo semanas

trabalhando por um preço muito baixo. Me sentia mal comigo

mesma.

Formas alternativas os artistas sempre souberam encontrar e são diversas as

maneiras de “se arranjar”. Desde oficinas, cursos, palestras, venda direta a amigos,

exposições em shoppings, aula em escolas, feiras e espaços públicos como o Caminho

das Artes e o Bric da Redenção, entre outros. Cabe a cada artista saber qual rumo seguir,

o que é melhor para si e seu trabalho.

De fato, essa crítica que os galeristas fazem aos artistas que fazem bonecos, é

pertinente, todavia, há artistas que se expressam através de seu universo; colocam em

sua arte nada mais do que uma trajetória de vida, de conhecimentos. E se o resultado

disso se concretiza em arte figurativa – bonecos –, fazer um “pré-conceito” sem analisar a

obra, dizendo se tratar de artesanato e não arte, tampouco está correto. A arte popular

também não se apropria do figurativo?

É preciso citar Delacroix :”Todos os temas tornam-se bons

pelo mérito do autor. Oh! Jovem artista, aguarda um tema?

Tudo pode servir, o tema é você mesmo, são as suas

impressões e emoções diante da natureza. É em você que é

preciso sondar, e não ao seu redor”. O verdadeiro tema da

obra de arte é a maneira propriamente artística de apreender

o mundo, ou seja, o próprio artista, sua maneira e seu estilo,

marcas infalíveis do domínio que exerce sobre sua arte

(BOURDIEU, 2011, p. 111).

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2.2 O PAPEL MACHÊ NO ENSINO DA ARTE

Uma das grandes dificuldades para os professores, ao se pensar na realidade da

sala de aula, é “alcançar” alunos desmotivados. As atividades hoje, mais do que nunca,

devem ser dinâmicas, provocadoras, precisam estimular alunos acostumados com seus

celulares com internet e redes sociais sempre à disposição, mesmo em sala de aula,

“escondido” dos professores. Sabemos que o computador é um recurso maravilhoso

também para as aulas de artes, pois pode-se trabalhar propostas bem contemporâneas.

Mas é preciso enfatizar a importância de saber manipular materiais, isso é tão importante

quanto interagir com as idéias.

O papel machê pode desempenhar este papel como material e processo. O

professor teria em mãos um material instigante que pode ser usado em projetos dos mais

variados, com resultados sempre bons, além de orientar os alunos inserindo conceitos

ambientais como a reciclagem, pois pode-se aproveitar jornal, caixas de produtos, caixas

de ovos, papel de embrulho e muitos outros, porque a massa do papel machê aceita

diversos tipos de papel. Uma vez que a falta de material é sempre um problema na escola

pública e, principalmente, para o professor de artes, o papel machê é uma excelente forma

de driblar o problema.

Celia Von Mengden, artista plástica e professora de artes, trabalhou por 25 anos

com seus alunos usando o papel machê. Começou a usá-lo como solução para o

problema da falta de materiais, geralmente existente na escola pública. Lembrou do papel

machê quando quis fazer fantoches com os alunos: “[...] Quando comecei na escola, eu

quis fazer uns fantoches com os alunos e me lembrei direto do papel machê; era o material

perfeito para fazer os fantoches, era barato e acessível.” O resultado foi ótimo. Dali em

diante, Celia incorporou o papel machê nas práticas de artes: “[...] eu fiquei impressionada

com o resultado dos trabalhos dos alunos”.

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Com o passar dos anos, Celia organizou o currículo de artes da escola. Unindo escultura,

papel machê e papietagem, abrangia a História da Arte, desenvolvendo projetos que

contemplassem os vários alunos, desde o jardim até a oitava série.

Muitos professores não têm sala própria para a aula de artes, o que dificulta muito

o trabalho, limitando as atividades. Aconteceu com Moacir Chotguis. Ele diz que a maioria

dos professores de artes não tem uma pesquisa, um projeto: “[...] eu acho que este

material dá um alimento fantástico para o professor de artes”. Diz que gostaria de trabalhar

com o papel machê nas suas aulas, mas esbarra no problema da sala. Além de os alunos

não levarem o material que o professor pede, existe a questão do espaço. É preciso um

local adequado para poder deixar os trabalhos secando até a aula seguinte, até porque dá

muita sujeira.

Celia conquistou sua sala de artes na Escola Ildo Meneghetti porque o trabalho

desenvolvido com o papel machê sempre resultava em trabalhos surpreendentes e os

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alunos adoravam trabalhar com o material. A escola chegou a ganhar o Orçamento

Participativo, por desenvolver esse projeto. Com isso, a disciplina de artes foi valorizada, a

escola adquiriu um liquidificador industrial, secador de cabelos e outros materiais para as

oficinas de artes.

Celia Von Mengden explorou muito bem o papel machê na escola e o resultado

disso foram convites para expor os trabalhos dos alunos. “[...] o aluno gosta de saber que

vai expor.” Com um dos trabalhos expostos, a escola ganhou também o prêmio “Arte na

Escola”, em 2012. Foi com um projeto interessante: Viajando na História. Os alunos

escolheram um período da História da Arte para criar malas de viagem temáticas usando

como material o papel machê e a papietagem. A escola foi também convidada a expor os

fantoches dos alunos em uma mostra só de objetos de papel machê, no MARGS, e, no

Mercado Público, os alunos desfilaram chapéus feitos com a papietagem, sob o título: O

que você tem na cabeça?

Denise Haesbaert tem experiência de mais de 20 anos com crianças e

adolescentes, ministrando oficinas em seu ateliê. Atualmente o ateliê “O Pequeno Artista”

é o espaço onde Denise desenvolve oficinas para crianças de 4 a 12 anos. A proposta do

ateliê é estimular a expressão artística as crianças através de experimentações de

diversas técnicas e brincadeiras. As crianças têm oportunidade de conhecer linguagens

como: desenho, pintura, modelagem, escultura, papel machê, teatro, monotipia, entre

outras. Nas oficinas, cada uma com uma temática diferente, a experimentação e o

processo são altamente valorizados.

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Denise também trabalha com o papel machê, mas há uma dificuldade,

especialmente com as crianças menores, porque hoje elas querem trabalhos instantâneos.

O papel machê é, por sua natureza, um processo demorado e acaba sendo mal

aproveitado por esta questão da pressa:

O problema todo agora com eles é que estão acostumados a

apertar um botão e saltar tudo pronto. Então, nós, na

escolinha, visamos o processo em qualquer material: tem que

ter começo, meio e fim.

Hoje, percebe-se que essa dificuldade – que não se limita às crianças e

adolescentes – é parte desta nova cultura, que é imediata, não há mais um tempo de

espera, não pode haver demora. Em geral, professores de artes e artistas que ministram

oficinas de papel machê em seus ateliês enfrentam essa pressa louca, pois os alunos

querem sempre acelerar o processo. Por outro lado, Denise diz que quando trabalha com

fantoches, os alunos mais velhos gostam porque o resultado no final fica muito bom.

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O papel machê, para resultar em um trabalho bom requer um projeto, pensar a

construção da peça, sua estrutura básica antes de aplicar a massa. É como construir um

prédio: para ser firme e não desabar, é preciso que a estrutura seja adequada, forte o

suficiente para que se possa ir avançando com a massa, que é pesada quando está

úmida. Em geral, quando se começa, temos uma idéia de como vai ser a peça, mas em

algum momento pode haver mudanças não previstas. O material contribui para o processo

criativo à medida que vai-se avançando o trabalho, e esta é uma grande vantagem do

papel machê: a peça vai sendo trabalhada por etapas de secagem, que são necessárias

para o bom funcionamento do processo todo. Ao respeitá-las, temos a grande vantagem

de observar a peça; e esta “espera” se mostra muito benéfica porque permite que se

possa arrumar ou alterar algo na peça, sem dano algum, se necessário ou desejado. Basta

ter paciência e aproveitar o que o papel machê nos possibilita.

Meu projeto de Estágio em Artes Visuais foi realizado durante o ano letivo de 2014,

na Escola Estadual de Ensino Fundamental Plácido de Castro, em Porto Alegre, com uma

turma de 7ª série e uma turma de 8ª série.

O primeiro dia em que eu dei aula na escola foi, na verdade, durante o primeiro

semestre, que normalmente é reservado à “observação” da classe. Mas foi porque, junto

com o professor, que não era de artes, e sim de ciências, uma “parceria” aconteceu: o

professor e eu acertamos que eu “assumiria” as aulas, trazendo um projeto para cada

aula, sob “tutela” dele. Concordamos que seria bom para todos: para os alunos, para o

professor, pois ele não tinha o conhecimento para as aulas de artes e assim poderia “ver”

o que um professor de artes faz numa aula de artes, e para mim, porque já poderia “sentir”

as turmas e pensar melhor no meu projeto para o segundo semestre. Pensei, então, em

uma atividade que pudesse atrair os alunos, e resolvi fazer uma aula de criação de

carimbos para impressão: seriam duas aulas contínuas, as quais os alunos teriam todo um

processo: criar um desenho, para construir, cada um, o seu carimbo e na sequência usá-lo

para imprimir. Claro, levei todo o material para não ficar com o “pincel na mão”. Foi ótimo.

Descrevi esse momento porque, após isso, senti que meu projeto teria chance de

dar resultados positivos. Resumindo, percebi que, apesar da habitual agitação, os alunos

gostaram de construir o carimbo, de fazer uma “coisa com as próprias mãos”. E mais:

gostaram de usar tinta, pincel, sujar as mãos, pintar com as mãos, essas atividades que

deixam as crianças pequenas fazerem, mas que “tiram” dos alunos maiores, porque faz

muita “sujeira” e dá muita “incomodação”. É importante apresentar aos alunos atividades

que tenham um processo, uma “construção”, e fazer que eles percebam que isso vale a

pena, pois o resultado leva a alguma coisa a mais do que o simples “passar do tempo”.

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Sabemos que a falta de espaço próprio para as aulas de artes colabora para que o

professor se “acomode” e desenvolva planos de aula com atividades “limpas”; também que

existem outros “n” problemas, mas acredito na conquista de espaço. Porque é, também,

uma questão de organização: quando se percebe que os alunos estão interessados,

trabalhando, este, é um bom sinal; é nesta hora que pode-se conversar com a turma,

explicar que as atividades podem ser proveitosas, prazerosas, mas que existe uma

responsabilidade, que é básica: trazer os materiais pedidos e limpar o espaço depois de

sujar. Dizia sempre aos meus alunos: temos 50 minutos de aula, por que não aproveitar?

Nesse contexto, as atividades lúdicas constituem meios de aprendizagem e

habilidades. O papel machê, por exemplo, contém em seu processo, o lúdico: manipula-se,

experimenta-se, diverte-se e socializa-se. Porque uma atividade e um material envolvente

trazem trocas entre os alunos; e trabalhar com/em grupos ajuda, pois favorece a auto-

estima, a imaginação, o raciocínio e também traz uma espécie de “competição”, porque

cada qual quer fazer “melhor”, “mais bonito” e então resultados acontecem. Acredito nisso.

Eu assisti a isso no meu estágio.

Pela minha experiência de 10 anos em ateliê, desenvolvendo experiências com o

papel machê, percebi neste material tão despretensioso um potencial absolutamente

transformador. É a partir desta experiência que desenvolvi um projeto para o estágio, que

desprende este material do conceito tradicional de suporte, para elevá-lo a um material de

expressão artística contemporâneo, que se sustenta como material pelo que possibilita em

termos expressivos e estéticos. Quis compartilhar a minha experiência de ateliê com os

alunos de 7ª e 8ª séries da Escola Estadual de Ensino Fundamental Plácido de Castro,

através de uma proposta que aborda, a partir do papel, conceitos, práticas e produções

com uma linguagem da arte contemporânea.

O objetivo geral era apresentar o papel como material protagonista, como um meio

em si mesmo, elevando-o de mero suporte para um material de expressão artística.

Aproveitando o conceito de eco sustentabilidade, as atividades visaram ao

reaproveitamento de materiais (embalagens de papel usadas no dia a dia), englobando,

assim, aspectos do projeto referentes a uma mudança de paradigma dos alunos com a

(re)utilização do papel.

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Uma outra questão, a falta crônica de materiais para as aulas de artes em escolas

públicas, somada ao esquecimento dos alunos em trazer o material básico, foi também um

fator que me trouxe a certeza de estar trabalhando com um material que não nos deixaria

“na mão”, pois é altamente acessível.

Ao longo do estágio, trabalhamos com diversos tipos de papel. A cada aula, uma

nova forma de perceber o que o papel pode nos possibilitar – dobraduras, módulos

tridimensionais, esculturas com papelão. Dessa maneira, gradualmente, os alunos

adquiriram as etapas necessárias para no final trabalharmos escultura com as técnicas do

papel machê e da papietagem. Acreditei ser necessário desenvolver aptidões mais básicas

com o material num primeiro momento, pois o papel machê e a papietagem requerem

certas habilidades, acabamentos e muita paciência.

No final do projeto, levei máscaras minhas, feitas em papel machê e papietagem e

passei para a turma poder ver, tocar e sentir o material depois de pronto. Nada como ver

de perto. Ficaram surpresos com o que é possível fazer com o papel e também com a

“dureza” da peça, que parecia madeira. Lembrei a eles que, para ficar com este aspecto, o

trabalho teria que ter muitas camadas de papel e muita paciência com o acabamento,

alisamento, etc. Em quatro aulas de 50 minutos cada, os alunos criaram, produziram e

finalizaram suas máscaras, mostrando que os conceitos e as habilidades desenvolvidas no

percurso do projeto renderam experiências positivas e, claro, muitas fotos.

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Esses são exemplos que servem para outras escolas públicas. É verdade que as

dificuldades existem, mas tudo se conquista, começando pelos alunos.

Recordo-me, quando também fui aluna do ensino fundamental, que, às vezes, a

aula de ciências era fora da sala de aula: a professora nos fazia “catar” folhas e flores no

pátio da escola, para, num segundo momento, já em sala novamente, abrir o livro de

ciências e fazer um “reconhecimento” das partes da folha ou da flor, com uma folha e uma

flor “reais”. Simples. Eficiente. Nunca esqueci.

Fiz isto com minhas turmas de estágio. Foi bom. Acredito que a aula de artes pode

ser este espaço onde as coisas podem ser “diferentes”, menos rígidas, ter uma certa

“ausência de regras”. Fizemos quase a metade das atividades fora da sala de aula. É

possível manipular materiais fora da sala de aula, por que não? Basta organizar-se,

planejar. Com uma fita crepe, tesoura e papelão, fomos fazer peças tridimensionais

sentados ao ar livre. Como disse antes, acredito que são atitudes assim que conquistam

os alunos. Ao conquistá-los, a relação aluno-professor adquire mais confiança.

Aprendendo a usar/manipular o papel machê, desvendamos suas exigências

particulares, aprendemos a pensar “em cima” do material, de suas possibilidades e de

como melhor aproveitá-lo. Por exemplo, moldar um objeto em papel machê requer um

entendimento diferente do que moldar em argila: o primeiro exige uma estrutura antes de

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aplicar a massa, enquanto com o segundo, molda-se direto. Ficar atento às especificações

do material estimula o raciocínio, gera experiência e domínio da técnica.

Sabemos que a prática na educação artística também desperta vocações que

podem se desenvolver na área de criação. Dar oportunidades aos alunos com uma prática

e técnica não-convencionais abre rotas experimentais, estimula o interesse e o processo

criativo e agrada a professores e alunos. Valorizar o papel machê é uma maneira de

acabar com a falsa idéia de que nas aulas de artes somente os materiais tradicionais

podem resultar em bons trabalhos.

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CONCLUSÃO

Como vimos, o papel machê, na História da Arte, teve seu espaço, quando foi

usado por parte de grandes artistas do Renascimento e do Barroco, proporcionando a

esses possibilidades únicas, que os auxiliaram no processo de criação de suas obras. Por

vezes, foi usado como “protótipo”, mas também foi usado como material escultórico.

Tantas experiências e usos ao longo do tempo fez do papel machê um material “universal”,

no sentido de ser usado “para tudo e por todos”. Foi quando a produção industrial e o

artesanato se apossaram dele; e foi este, também, o seu pior momento na arte, como

material, pois acabou “caindo na vala comum”, e isso era inaceitável em certos períodos

da História da Arte.

Mas o papel machê deixou seu legado: a qualidade e a beleza de muitas obras

renascentistas que sobreviveram mostram que o material não é “frágil”, como é o

pressuposto; e toda essa “universalidade” que ele experimentou também nos mostra que

ele é, de fato, muito versátil. Por exemplo, na arte contemporânea, o papel machê retomou

um espaço, por essa característica que lhe é peculiar. Preconceitos à parte, olhemos para

o que ele possibilitou em termos artísticos. O que aconteceu com o papel machê é que

essa possibilidade de modificar a sua massa básica, deixando que se agregue outros

materiais, fez dele um material sempre em ”estado de experiência”, revelando-se sempre,

de alguma forma, como um material “novo”. Essa mudança que ele permite faz crescer

também as formas dos artistas trabalharem com ele; portanto, pode o papel machê, por

meio do artista, chegar a um nível de qualidade que não deve ser negligenciado.

Em Porto Alegre, o papel machê está presente. Ocasionalmente, aparece no

circuito por conta de alguns artistas que já possuem reconhecimento. As queixas dos

artistas são fundadas na desvalorização do papel machê como material expressivo,

porque é papel, porque é frágil, não tem durabilidade. E, também, porque é visto como

artesanato, quando artistas usam-no para o “figurativo”. A questão é que há uma enorme

diferença entre o trabalho do artista e do amador; geralmente, a experiência deste se

resume em conseguir fazer um modelo, seguir um padrão, não vai além disso. O artista,

este não se contenta em aprender a fazer: ele experimenta, desenvolve, vai muito além; é

curioso, apaixona-se pelo material e cria linguagem e refinamentos próprios. Em Porto

Alegre, os artistas que trabalham com o papel machê precisam fazer mais “malabarismos”

do que outros artistas, para poderem expor e vender seus trabalhos. Enquanto o papel

machê não conseguir um lugar nas galerias e instituições, mostrando que pode atingir

qualidade tanto quanto os outros materiais, estará sendo exibido em lugares alternativos.

O que percebo é que os artistas contemporâneos que trabalham com o papel

machê continuam tendo a mesma relação com o material, que tinham os artistas do

passado: experimentam o possível com este material, para chegar a uma expressão

própria, que lhe agrade, ou ainda, mudar quando lhes convêm. Isso é inerente ao papel

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machê; as “receitas” são múltiplas, e múltiplos os resultados. Pergunto: que outro material

se deixa experimentar, misturar com tamanha variedade, compondo uma massa que

resulta sempre diferente?

É possível começar a ter um olhar mais atento a este material milenar, que artistas

daqui e mundo afora utilizam como forma de expressão, indiferentes ao preconceito que

sabem existir, ao ter seu trabalho, muitas vezes, negado como arte. As instituições

poderiam dar um apoio a novas abordagens com o papel machê, ao examinar o passado

histórico e glorioso que o papel machê já teve, sim, pelo mundo. E se muitos dos artistas

que fazem dele o seu meio de expressão são considerados “artesãos”, é porque o papel

machê ainda não “reluz”.

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APÊNDICE 1

ENTREVISTA: BINA MONTEIRO (1952)

Formada e Comunicação Social (Publicidade/ PUC 1977).Cursou “Elementos Pictóricos”

com Fernando Baril (1980). Fez cursos com Mônica Zielinsky, Rubens Gerschmann, Luis

Paulo Baravelli. Iniciou com pintura, passou pelos trabalhos em madeira. Em suas

assemblages descobriu o papel machê como um material que poderia lhe proporcionar

representações que não conseguiria com outro material. Presidiu a Chico Lisboa de 2002

a 2006. Participa de várias exposições individuais fora e dentro do país.

Entrevista concedida pela artista em 02 de outubro de 2015.

Estou começando um registro a respeito do papel machê em Porto Alegre, procurando os

artistas com seus trabalhos. Sei que este não é teu material usual, mas vi trabalhos teus

no catálogo da Chico Lisboa em que tu usaste o papel machê.

BINA MONTEIRO – Acho ótimo, acho fantástico. O que a gente tiver para pesquisar

depois é bom, é história, né?

Como você começou a trabalhar com o papel machê?

BINA MONTEIRO – Eu não sou artista do papel machê, mas eu me aproprio do material

para tentar falar o que eu tenho que falar. Sou pintora de início, depois passei a usar a

madeira, fazia trabalhos recortados em madeira. Depois da madeira, foi fácil agregar

objetos, foi uma trajetória bem linear. Teve uma época que eu comecei a fazer muita

assemblage; comecei a guardar e criar coisas para mostrar na assemblage. Teve uma

série de trabalhos que eu chamei “Relicário do Rio Grande” – que eu falava das coisas da

nossa terra – história, política e lendas – todos são assemblages. São caixas de 2 x 2 m,

outras são menores. Comecei com o papel machê numa caixa pequena, estava

trabalhando uma lenda que se chama ‘Manancial’ – é a história de uma mulher que

abandona o campo e termina se embrenhando em um pântano onde tem aquelas areias

movediças, um lodo. Acaba ela e o cavalo sendo tragados pelo lodo e naquele local em

que ela morreu nasceu uma roseira. Achei bonita a história e resolvi fazer uma

assemblage: peguei um rosto desenhado e colei no fundo, então pensei como iria

representar o lodo? E me lembrei do papel machê. Fiz todo o contorno por dentro da caixa

como se fossem uns ‘morros’ e pintei a cor do lodo. Vi que realmente o papel machê me

servia para representar uma série de coisas que eu queria transmitir. Daí que eu digo que

eu não uso o papel machê, eu me aproprio da técnica para transmitir coisas. Então, a

partir daí achei que tinha mais um caminho maravilhoso para explorar, que é o papel

machê, nestas assemblages. Outro trabalho de assemblage com 2 x 2m, foi “Santos

protetores do Rio Grande”- é uma espécie de altar e ali estão os santos protetores mais

representativos daqui do Rio Grande. Os rostos dos santos, moldei todos em papel machê,

o fundo era todo branco, como se fosse um altar. Depois teve um trabalho sobre a

sexualidade. Achei que o tema devia estar um pouco camuflado o tema e usei o papel

machê para camuflar: no centro do trabalho tem uma espécie de ‘almofada’ que abre –

para fazer esta almofada, representar a textura etc, é que usei o papel machê. Esta

almofada tem uma portinha, quando abre tem um nu antigo e dentro tem portinhas

também com vários cartões postais com imagens sensuais.

O papel machê veio então para te auxiliar nas representações, pois ele se transforma,

coisa que outro material não possibilita tanto...

BINA MONTEIRO - Eu nunca me utilizei do papel machê para fazer coisas ‘bonitas’ ou

bem-feitas porque acho que iria sair do que eu faço. Eu sempre usei para fazer coisas

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mais toscas, para mostrar que não é um trabalho artesanal, mas sim uma coisa que me

basta, entende? Porque eu olho para o meu papel machê e sei que ele não é

tecnicamente bom e bonito, mas o que me proponho é o suficiente. Eu fiz uma exposição

em Portugal e comecei, nesta época, a procurar coisas em brics; tudo o que eu achava

interessante, guardava para fazer as assemblages. Então achei um cartão postal de um

artista gráfico alemão do começo do século – era um diabinho – e aquilo me inspirou a

fazer alguma coisa. Fiz dois corações de papel machê, que funcionam como duas

portinhas que abrem no meio. Então me apropriei do papel machê mais uma vez porque a

madeira, a pintura e os objetos em si não conseguiram representar aquilo que eu queria.

Por exemplo, a madeira, ela fica bidimensional, claro que eu poderia fazer uma escultura

em madeira, mas não é a mesma coisa, porque o papel machê é mais lúdico, ele te dá

essa possibilidade mais lúdica. É tão perto do trabalho manual, tu tens que ter um pouco.

Os artistas normalmente conhecem várias técnicas para realmente poder usar tudo, ter o

conhecimento para se manifestar. E foi desta maneira que introduzi o papel machê na

minha vida.

É um material que permite fazer muitas coisas...

BINA MONTEIRO - Tem uma exposição que fiz na Casa de Cultura Mario Quintana, onde

fiz uma espécie de filme dos meus trabalhos – era uma edição dos meus trabalhos – eles

se mexiam. Então eram duas salas: uma era a sala expositiva com os trabalhos e a outra,

separada por uma cortina preta, era um cinema, onde passava um ‘filme’ dos trabalhos

que estavam expostos na sala ao lado. E os meus espectadores eram 3 bonecos em

tamanho natural que construí novamente usando o papel machê - um homem e duas

mulheres – que ficavam sentados assistindo o filme. Faz pouco tempo que desmanchei

eles; estavam aqui no atelier. Tenho uma afinidade legal com o papel machê, gosto de

manuseá-lo

Qual a razão de não ter mais artistas usando o papel machê? É algum preconceito? Que

achas?

BINA MONTEIRO – Eu acho que não é por causa do material. Acho que o papel machê

está muito em cima do artesanato e as pessoas não sabem diferenciar. Então quando a

coisa fica muito no limiar, parece que tu estás fazendo mais um artesanato do que uma

obra de arte.

Mas quem tu achas que enxerga dessa maneira: o público, o artista, quem?

BINA MONTEIRO – Eu acho que é o público. Ele não consegue ver e considerar que

aquilo é arte. É um preconceito. Se tu vais pensar em termos de comercialização e oferece

um objeto de papel machê, é um preço e um objeto de cerâmica é outro preço.

Mas por quê?

BINA MONTEIRO – Acho que é pela facilidade. Porque é papel, todo mundo domina, não

tem tanto suor quanto como trabalhar com cerâmica... não sei. Até poderia dizer que o

mercado não absorve também coisas de papel com tanta facilidade. Porque se tu pegas

um trabalho em tela e colocas um preço e o mesmo trabalho tu representas em papel, o

preço é outro, o mercado não absorve da mesma maneira, porque tem fungo, coisas

assim. Aqui não tem tanto um mercado de arte, sabe? Mas se tu vais comercializar em

São Paulo, a coisa é nítida, é muito nítida: “- Qual é o material? Papel? Ah, então é essa

faixa aqui. É tela? É essa faixa aqui.” Então tem tudo isso, é mais perecível. Porque

antigamente, arte era para a vida inteira, tinha que ser um bem durável, e o papel nunca

foi um bem durável. Agora a arte já não precisa ser para a vida toda. Arte é um momento,

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uma representação do momento. Tu vês, os colecionadores de livros tem que ter coisas

bem especiais para preservar o papel.

O grande drama do papel machê é ser papel...

BINA MONTEIRO – É verdade. Papel é fácil de manusear - não querendo nivelar por baixo

– qualquer um pode fazer papel machê, - não estou dizendo ‘de qualidade’ ou não. É

diferente tu ser um bom fotógrafo, para isso tu tens que saber fazer. Por exemplo, tem

pessoas que fazem coisas utilitárias de papel machê e fazem de maneira fantástica, mas

aí tem que ter mais técnica.

A maioria dos artistas se queixam que, quando perguntados sobre o que fazem e a

resposta é papel machê, dizem então que são chamados de artesãos, em função do

material escolhido, que remete ao artesanato.

BINA MONTEIRO – Eu acho que existe isso, as coisas quando ficam muito no limite do

artesanato. O que é mais artesanato? É difícil para as pessoas reconhecer: - Não, isso

aqui não é um mega artesanato, essa pessoa aqui já é um artista, ele faz uma arte, é uma

coisa mais ou menos assim. Acho que se o artista se apropriar do papel machê para fazer

um trabalho contemporâneo, criar uma outra utilização para o papel machê... Se os

artistas pegam o papel machê só para fazer representações de bonecos e essas coisas

assim, ele fica na mesmice, fica sem um valor realmente. Para o artista que que não tem

uma trajetória pessoal e pega obras de outros artistas ou fica fazendo releituras é muito

ruim, o mercado de arte também não gosta disso. O artista não vai ter um valor no

mercado de arte copiando outros artistas.

Mas voltando às comparações, por exemplo, com a cerâmica. O papel machê é muito

mais resistente que a cerâmica...

BINA MONTEIRO – É verdade. Ele é mais resistente mas eu não sei...essa pergunta eu

faço pra ti: - Tu não achas que essa sensação de pegares um objeto e ele não

corresponder o efeito visual com o peso...assim, tu pegares o objeto e dizer: - ah isto aqui

é cerâmica e quando tu pegas é super-leve, então te dá uma sensação de fake, de uma

coisa fingida, sabe?

Mas é porque as pessoas não conhecem o material. Eu não quero disfarçar o papel

machê, fazer com que se ‘pareça’ com cerâmica. Eu quero acabar com o preconceito,

mostrar o que ele é realmente.

BINA MONTEIRO – Ah bom, por isso é que te pergunto. Se não queres fazer de conta..

então talvez as pessoas não conheçam essa nova linha do papel machê.

Queres ver? Donatello utilizou o papel machê para fazer santos para uma camada que não

poderia pagar as estátuas feitas nos materiais nobres. A partir de um molde de madeira,

ele fazia cópias de santos. Dali para frente o material se propagou pela Itália. No

Renascimento e no Barroco ele foi um material amplamente utilizado na arte e outros

segmentos. Muitas destas obras estão vivas até hoje. Então, falar em fragilidade do

material já não é muito adequado. E quanto tempo tem que durar uma obra?

BINA MONTEIRO – Interessante isto que tu falaste do Donatello. Se for pensar, Donatello

popularizou a arte quase, ao fazer múltiplos em uma época que não existia o plástico né?

Mas o que quero dizer, é que o papel machê não tem uma identidade própria, uma função

específica, tem sido utilizado com várias características. Eu usei ele para fingir ‘tal coisa’,

não usei para dizer: isto aqui é papel machê. A gente estava fazendo um questionamento:

por quê o papel machê não é valorizado, não? Eu acho que esta questão dele não ter uma

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característica que seja reconhecível, se tu estás fazendo uma pintura em tela, num linho

bom, tu fazes questão de que ele apareça, sabe? Tu dá umas pinceladas e nem cobre

toda a superfície porque tu queres mostrar que o teu suporte é um suporte bom. Papel

machê, ele não proporciona isso, ele não mostra quase o suporte né? Eu não sei, nunca vi

alguém utilizar o papel machê para valorizar o papel machê. Eu vejo as pessoas fazerem,

mas eu vejo elas ‘tapar’, acho que isto é uma coisa que, neste sentido, não deixa o papel

machê valorizado, ele não é valorizado talvez, até pelo próprio artista que faz o trabalho.

Quando eu trabalho com o papel machê, eu faço questão que o material apareça. Não vou

alisar ou pintar a peça para ‘disfarçar’ porque justamente a textura do papel machê é

única, eu quero que apareça. O ‘pintar’ não é uma questão para disfarce do material, pelo

menos para vários artistas que trabalham com o papel machê, entende?

BINA MONTEIRO – Talvez falte o artista que valorize o papel machê, assim como tu dizes

que fazes questão de mostrar a textura, etc. A própria Ana Alegria que trabalhou a vida

inteira com papel machê, não deixava um pedacinho sem pintura. Tu sabias que era papel

machê porque batia na peça e era leve. Então talvez falte isso, assim como tu fazes: - Isso

é um papel machê, com muito orgulho.

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APÊNDICE 2

ENTREVISTA: CAROL W. (1979)

Artista plástica formada pelo Instituto de Artes/UFRGS em 1997. Dedica-se ao desenho,

pintura e escultura. Ilustra livros. Trabalha há mais de 14 anos com a técnica do papel machê.

Teve seus trabalhos de papel machê expostos na Casa de Chá da Villa de Caras no Festival

de Cinema de Gramado e nas Mostras Casa Cor e Casa & Cia. Expôs no Shopping Moinhos

(POA) em 2007 - esculturas de papel machê – sob o título “Amigos imaginários”.

Entrevista concedida pela artista em 19 de agosto de 2014.

Como você começou a trabalhar com o papel machê?

CAROL – Eu cursava Artes no Instituto de Artes/UFRGS em 1997. Quando começaram as

primeiras disciplinas de escultura, eu precisei encontrar um material como modo de expressão,

porque na época eu não tinha como comprar materiais caros. Eu comecei a olhar os livros

antigos de artesanato da minha mãe e encontrei a técnica da papietagem. O livro ensinava a

fazer um vaso: a partir de um vaso que era usado como molde, eram aplicadas várias camadas

de papel sobrepostas: -“ Peguei um vaso da minha mãe, pratos e um bojo de abajur e passava

as tardes na garagem de casa fazendo camadas e mais camadas...”

Começastes a produzir também com o papel machê?

CAROL – Depois, com o acesso à internet ficou mais fácil porque eu encontrei livros

estrangeiros que eram raros na época, não existia muito a respeito. Nestes livros haviam

exercícios, dicas e técnicas com o papel machê. Depois de várias tentativas fui adquirindo

experiência; minha família me apoiava. No início eu reproduzia, nos vasos, telas de pintores

como Picasso e Klimt.

O que te incentivou a continuar com o papel machê?

CAROL – Teve um professor do Instituto de Artes que incentivou os alunos que tivessem

alguma produção a levar para a aula para que todos pudessem conhecer. Eu estava muito

insegura, mas levei quatro vasos. Os colegas adoraram e começaram a me encomendar

vasos!

Gostas de experimentar novos materiais junto à massa do papel machê?

CAROL – Depois que experimentei o papel machê, comecei a misturar cimento, areia;

colocava vários materiais na massa até encontrar o que eu queria e me apaixonei pelo papel

machê de uma forma que nunca mais quis deixar de usá-lo. O que começou como um artifício

para driblar a falta de dinheiro durante o curso, virou uma paixão.

De onde vem tua inspiração para criar teus personagens?

CAROL – Minha mãe costurava roupas para mim e minha irmã e minha avó fazia bonecas de

pano e de papel para brincarmos. Essa vontade de transformar os bonecos em trabalhos

tridimensionais vem daí: “- Eu sinto que faço brinquedos e bonecas”. As cores que eu uso nas

minhas peças vem dos panos, dos padrões supercoloridos que minha mãe e minha avó

usavam nas roupas e nos bonecos de pano. É a parte que eu mais gosto no meu trabalho - a

‘roupa’ e a ‘maquiagem’ – enfeitar, sobrepor estampas. E meus personagens surgiram a partir

de histórias, como “Meu reino por um caramelo” e “Amigos Imaginários”.

Já expuseste teus personagens de papel machê? Como foi?

CAROL – Expus vários personagens dessas histórias, criando um mundo fantástico, alegre e

colorido no Shopping Moinhos. As pessoas tinham vontade de tocar nas peças pelo

encantamento que causavam. Gosto de me camuflar no meio das pessoas, não ser a ‘artista’

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naquela hora, só para poder ver e sentir a reação delas. Ainda mais num shopping onde a

circulação é enorme e variada, com crianças e pessoas de todas as idades.

O que tu gostas no papel machê?

CAROL – Da textura que o papel machê oferece, do aspecto rústico que é ao mesmo tempo,

delicado. Gosto de deixar essa aparência visível nos bonecos. Sabe, todo mundo teve sua

infância, a sua história, mas nós, como artistas, somos privilegiados por poder colocar para fora

o que está dentro de nós. Eu sempre me pergunto: “ – Por quê eu gosto tanto disto? Por quê

eu faço isto?” Todos os pensamentos, dúvidas, tudo o que se passa na hora de fazer uma peça

está ali, se mistura ao trabalho e isto não tem valor...

Nas tuas oficinas, o que as pessoas buscam?

CAROL – Quando me requisitam para dar uma oficina, me pedem que eu faça em um ou dois

dias, no máximo. Mas acaba-se fazendo um trabalho muito simples, porque não dá tempo de

explorar, entender o material. Eu percebo que os alunos têm pressa em terminar a peça, eles

não têm paciência. “- Vamos secar no forno”, me dizem. Mas o papel machê tem o seu tempo:

tempo de fazer e tempo de secar, ele ensina a ter paciência, é uma técnica milenar, é preciso

respeitar o processo. Tem aquelas que querem fazer igual às minhas peças: “- Quero fazer

aquele cabelo”. Eu tento dissuadir, dizendo que todos têm que achar o seu caminho, pois o

trabalho do artista é fruto de pesquisa, experiência e tentativas. Algumas eu consigo

convencer, mas tem uns que vem com a ideia fixa, querendo copiar o meu o ou trabalho de

outros artistas.

Quanto a teu público comprador?

CAROL – Eu tenho clientes de todo o tipo; os que sentem o que tu sentes - que aquela peça te

diz alguma coisa; e tem clientes que querem comprar porque “é da Carol W.” ou porque “minha

amiga tem” ou ainda porque “está na internet”. Eu não me importo com isso, apenas são

valores diferentes. Eu sinto orgulho quando as pessoas gostam do meu trabalho. Muitas

pessoas pedem que eu faça uma peça menor, mas igual à original, que elas viram. É uma

coisa que as pessoas não entendem. Criamos a peça, é peça única. Não trabalho com réplicas

menores em função de preço. Atualmente já estou mais zen em relação estas coisas. Têm

também as propostas ‘indecentes’, como fazer palestras sem custo, oficinas sem custo, como

se o artista não precisasse de dinheiro para viver.

Você acha que existe um preconceito em relação ao papel machê por parte do circuito

artístico?

CAROL – Tem. Por ser um material barato, considerado artesanal e que remete à trabalhos

escolares. Eu já tentei diversas galerias em Porto Alegre e São Paulo, mas não obtive sucesso.

Eu acho que o que interessa numa obra é a expressão que o artista trabalha, indiferente da

técnica. Com a sucata é a mesma coisa, acontece o mesmo tipo de relação, porque é

considerado um material ‘pobre’, ‘desclassificado’, um refugo. Por que tem essa

desvalorização? Quando converso com as pessoas sobre trabalhos feitos com sucata, o tom

de voz já muda. As pessoas valorizam a obra pelo material. Outra questão é a nomenclatura:

me chamam de artesã direto, só porque eu trabalho com papel machê! Estou no mercado há

17 anos; eu sinto que, no Brasil, e em especial no Rio Grande do Sul, a arte é vista de uma

forma muito atrasada em relação ao resto do mundo. As pessoas não sabem distinguir um

trabalho que tem uma autoria, de um artesanato.

Os artistas acabam procurando lugares alternativos para expor e vender...

CAROL – E acontece uma relação muito diferente com o trabalho, que acaba sendo visto como

artesanato. Os lojistas por exemplo, baixam o valor da tua obra em função de ser vendida em

uma loja que vende artigos de decoração. Assim, o artista acaba prejudicando o seu trabalho.

Mas eu encontrei outras alternativas de trabalho para poder sobreviver sem precisar me ‘violar’

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tendo de vender minhas esculturas a preços de pechincha. Além das aulas e oficinas no atelier,

eu desenvolvi uma linha voltada ao design e arte aplicada, como capas de almofadas, potes,

jogos americanos, os quais faço em série para poder ter um preço menor de venda. Cansei de

vender minhas esculturas que levo semanas trabalhando, por um preço muito baixo; me sentia

mal comigo mesma. E os conselhos que mais ouço são: “- Por quê tu não expões no Bric?”

Como se o Bric fosse a meta de todos.

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APÊNDICE 3

ENTREVISTA CEIÇA ALLES (1951)

Bacharel em Artes Visuais FEEVALE (2009). Trabalhou com fotografia; fez oficinas de papel

artesanal e papietagem. Cria objetos de design a partir de planos e ângulos usando a técnica

da papietagem e do papel machê.

Entrevista concedida pela artista em 8 de maio de 2015.

Quando e como você começou a trabalhar com o papel machê?

CEIÇA ALLES – Minhas histórias nunca são lineares. Tinha 12 anos (1963) quando vi, pela

primeira vez, uma receita de papel machê, que me encantou. Gostei foi da ideia de FAZER

alguma coisa, um objeto qualquer. Foi num livro popular na época, para crianças e pré-

adolescentes, chamado Tesouro da Juventude. A receita era com jornal, farinha e até formol

(?!). Tentei fazer, mas nada funcionou e desisti.

Em 2003, estudando artes visuais na Feevale, aprendi a fazer folhas de papel, do que gostei

muitíssimo. Comecei a fazer em casa também, mesmo sem ter o equipamento adequado;

então, para fazer folhas, ia batendo/pressionando a massa com as mãos, até ficarem mais ou

menos lisas e finas.

No meio tempo, fiz uma oficina de papietagem, que também gostei. Alguns anos depois, uma

colega me convidou a fazer, com ela, umas máscaras para um grupo de dança oriental. E foi

esse, afinal, o primeiro trabalho de papel machê que fiz.

Por que escolheste o papel machê?

CEIÇA ALLES – Também em 2003 tive minhas primeiras aulas de escultura, algo para o que

pensava não levar o menor jeito. Mas gostei particularmente de esculturas com planos e, na

época, fiz diversas maquetes, pequenas, em cartolina. Uma delas, quando dobrada, me

lembrou um cachorro ou um gato e aquilo ficou na minha cabeça. Algum tempo depois da

experiência com as máscaras, decidi tentar transformar a tal maquete em um bicho mesmo, e

achei que o mais adequado seria partir de uma base em papelão e papietar. Gostei, mas, não

sei bem por que, ao querer fazer outro decidi que cobriria a base com papier machê.

Que tipo de trabalho você faz com papel machê? (figurativo, abstrato)

CEIÇA ALLES – Diria que o trabalho é, basicamente, de design: faço bichos, em geral planos e

com ângulos e objetos como fruteiras, porta-incenso, molduras para espelhos, coisas do

gênero. Gostaria muito, entretanto, de fazer alguma peça enorme, sem forma definida,

arredondada, mas nunca me parece ter tempo para começar.

Que tipo de experiência foi útil ou importante para você gostar e seguir com o papel machê?

CEIÇA ALLES – Certamente as aulas de papel reciclado e as de papietagem.

Já experimentou ou criou diferentes massas, incorporou outros materiais à massa básica?

Gostou da experiência?

CEIÇA ALLES – Sim. Já fiz algumas peças incorporando areia, por exemplo, e uma torre com

mais ou menos 1,60m de altura, com base de tela de arame torcida, preenchida com jornal,

coberta com papel machê misturado a cimento e areia.

Usa a técnica da papietagem? Em que ocasiões acha mais apropriada?

CEIÇA ALLES – Não, praticamente não uso. Só gosto de fazer papietagem com goma de

farinha e é um processo complicado e demorado. No papier machê uso cola branca, de

preferência Cascorez.

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Como é sua relação com o “tempo” na hora de trabalhar com o material? Ao criar, projetar e

partir para a produção?

CEIÇA ALLES – Em tudo que faço, gosto de imaginar que o tempo seja infinito. Levo muito,

muito tempo mesmo para fazer uma peça. Do que menos gosto é da montagem da base.

Tenho, na verdade, relativamente poucas peças diferentes pois, como são muito trabalhosas, a

não ser objetos pequenos, só faço por encomenda. E as pessoas, em geral, querem alguma

coisa que já viram. Mas, eventualmente, invento novas. Gosto de ter novas ideias.

Como tem sido tua prática ao longo do tempo? Mudou seu modo de trabalho?

CEIÇA ALLES – Sim. Em algum momento, nem lembro por que, incorporei o uso de um

pirógrafo à produção. Creio que, inicialmente, era só para cortar alguma borda. Mas, com o

tempo, incrementei a ferramenta, fiz uma peça plana e, hoje em dia, a uso muitíssimo em tudo.

Às vezes, uso até ferro de passar roupa para deixar a peça mais lisa.O pirógrafo, por outro

lado, me permitiu fazer recortes nos trabalhos.

O que te interessa ao fazer/criar uma obra? Pensas antes no material ou no objeto?

(Por exemplo, às vezes imaginamos um objeto mas o material não é o ideal)

CEIÇA ALLES – Creio que, inicialmente, pensava mais no material mas, hoje, devido ao que

disse - a questão das encomendas - tornou-se tudo uma coisa só.

Uma das boas coisas do papel machê é a possibilidade de mudar o objeto em meio à

produção ou até mesmo no final , como acrescentar ou tirar elementos, por exemplo – sem

dano à peça final. Você usa desta vantagem do material? Como é tua relação com isto?

CEIÇA ALLES – Acho que devido à forma que trabalho - sempre sobre alguma base - isso

nunca foi necessário e nem seria possível. Nunca é uma coisa livre.

Teu trabalho tem/teve alguma influência de alguma época especial da tua vida?

Ceiça Alles - Bem, como relatei, encantei-me com a ideia de usá-lo aos 12 anos.

Nas tuas obras, o conceito de reciclagem, tão lembrado ao se falar deste material, tem

importância?

CEIÇA ALLES – Sim e não. Não uso jornal, por exemplo, devido à tinta. Mas reaproveito todo o

papel toalha que uso em pintura, papel de embrulho, papel de seda, mas também uso papel

novo. Tenho cuidados especiais com a água, reutilizo a mesma por algum tempo. Fica

guardada na geladeira.

Achas que existe algum preconceito em relação ao papel machê no circuito artístico? E o

público em geral?

CEIÇA ALLES – Em princípio diria que sim. Fazendo um paralelo com a cerâmica, que também

faço, eventualmente. Já participei de coletivas de cerâmica e entendo. Muita da cerâmica que

aparece não tem um conceito de arte, são apenas objetos decorativos.

Participaste de exposições somente com peças em papel machê? (Galerias, outros locais)

CEIÇA ALLES – Não, nunca. Na verdade, não conheço mais ninguém que faça papel machê.

Fora isso, não faço objetos de arte, são de design.

Você sente que as pessoas relacionam o papel machê diretamente com ‘artesanato’ e não

‘arte’?

CEIÇA ALLES – Olha, sinceramente não sei. Eu mesma vejo meu trabalho como design e não

como arte, mas só porque nunca fiz uma proposta de arte com papier machê. Faço,

novamente, um paralelo com a cerâmica: dependerá da proposta, no meu entender. Nas

coletivas de (cerâmica) que participei havia de tudo: algumas propostas de arte, outras de

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técnicas avançadíssimas de cerâmica, coisas simples, coisas simplórias, coisas kitsch, enfim,

de tudo um pouco. Creio que seria parecido se fosse papel machê...

Você vende/vendeu bem suas obras em galerias ou outros locais?

CEIÇA ALLES – Não, apenas por encomenda, para amigas e amigas de amigas.

Existe um ‘rebaixamento’ de valor da peça por ser de papel machê?

CEIÇA ALLES – Não faço ideia. Eu não sei avaliar nada muito bem. Se eu fosse considerar o

tempo que levo para fazer alguma coisa, diria que estou fazendo doações. Mas não dá para eu

me basear por isso, até porque gosto de levar o tempo que bem entender.

Você acha que, as mesmas obras, se fossem em material mais ‘nobre’, como madeira, ferro ou

bronze, teria uma diferença na hora da venda?

CEIÇA ALLES – Acredito, sim, que as pessoas valorizem mais uma escultura em outros

materiais. Quanto a objetos, creio que os bichos que faço, se fossem em madeira, teriam, mais

ou menos, o mesmo preço. Mas quando se trata de pratos, por exemplo, um de vidro moldado

- em que se investe um pouco mais, mas que não dá quase nada de trabalho para fazer, é

mais valorizado do que um de papel.

Já tiveste teu trabalho negado em exposições ou galerias por causa do material escolhido?

(papel machê)

CEIÇA ALLES – Como disse, nunca fiz algum trabalho de arte em papel machê, então nem

propus nenhum a qualquer galeria ou exposição.

Você faz oficinas? Cursos? Tem procura?

CEIÇA ALLES – Não, nunca fiz. Só dei algumas aulas de papel reciclado (gostaram muito) e

dei uma oficina curtíssima em uma semana acadêmica (não me pareceram muito

entusiasmados).

O que as pessoas querem fazer/pedem nas oficinas ou nos cursos?

CEIÇA ALLES – Bem, nessa minha minúscula experiência, ninguém perguntou ou pediu nada

em especial.

Como você vê a relação do público com o papel machê?

CEIÇA ALLES – Em geral, quem vem à minha casa e vê algum trabalho, gosta muito. Mas é

raro vir alguém que não tenha nada a ver com arte. Quem mais gosta são artistas, arquitetos,

fotógrafos, gente mais ou menos dessa área. Pessoas muito convencionais não têm o menor

interesse. Apenas, às vezes, quando digo que algo é feito de papel, se espantam e começam a

ver com outros olhos. Surpreendeu-me não teres perguntado nada sobre o acabamento que,

até certo ponto, é o que mais gosto de fazer. Minhas peças são pintadas com tinta acrílica e

adoro fazer detalhes - estamparia é outra das

minhas paixões, embora não use estampas de fato. Gosto muito de fazer esse tipo de pintura

artesanal. Cobrir superfícies é outra coisa de que gosto desde pequena. Sempre quis pintar.

Pintar qualquer coisa, até uma parede. Não pinto coisas grandes por não ter físico para isso.

Aliás, só gosto de trabalhar sentada e, de preferência, gosto de fazer coisas pequenas.

CEIÇA ALLES – Bem... tentei fazer um apanhado geral, mas achei um exagero. só que não

tem importância. é só para que fique bem claro o que faço. Vais enjoar de tanto ver coisas

parecidas. Não imagino que vás ter mais qualquer pergunta, mas, se tiveres...

Estou realmente louca para ver teu trabalho, principalmente devido ao fato de estar muito

curiosa para ver o que as outras pessoas fazem. Um dia, de repente, faço arte e não só

objetos. Achei legal pensar sobre o que faço. Obrigada pela oportunidade.

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APÊNDICE 4

ENTREVISTA: CELIA VON MENGDEN (1955)

Arte-educadora e artista plástica. Desenvolveu vários projetos trabalhando esculturas em

papietagem e em papel machê na escola Ildo Meneghetti, por 25 anos. Atualmente, se dedica

às esculturas de bonecos em papel machê.

Entrevista concedida pela artista em 12 de agosto de 2015.

Como você começou a trabalhar com o papel machê?

CELIA – Eu sempre fui encantada por bonecos. Quando ainda estava na faculdade, eu fiz um

curso de fantoches e marionetes com o Mario de Ballentti. Quando comecei na escola, eu quis

fazer uns fantoches com os alunos e me lembrei direto do papel machê. A papietagem e o

papel machê eram materiais perfeitos para fazer os fantoches, era barato e acessível.

Eles gostaram de trabalhar com o papel machê?

CELIA – Quando começamos, foi de maneira bem rudimentar. Eu adoro escultura e o papel

machê era o que eu podia fazer com os alunos. Comecei com o fantoche simples, aquele que a

gente faz uma bola de jornal e coloca fita crepe para fazer a cabeça do fantoche. Depois se

trabalha com a papietagem e a massa do papel machê para fazer os detalhes. Eles adoraram,

cada um escolheu um personagem.

Quais níveis de alunos trabalhavas com o papel machê?

CELIA – Eu trabalhei com os meus alunos do Jardim até a oitava série. Todos. Nos últimos

anos (6ª, 7ª e 8ª séries), eu desenvolvia projetos mais específicos com estes alunos, que

duravam o ano todo. As aulas abrangiam a História da Arte, as culturas desde a pré-história,

passava pela Idade Média, Renascimento, Impressionismo, Expressionismo até os dias de

hoje.

Os resultados eram bons?

CELIA – Eu fiquei impressionada com o resultado dos trabalhos dos alunos. Geralmente eu

trabalhava o primeiro semestre com a papietagem, que era para eles irem se acostumando

com o material. Começavam fazendo a capa do portfólio com a técnica da papietagem. Todos

tinham o seu portfólio. No Jardim, por exemplo, eu trabalhava só com a papietagem, de

maneira simples, com os pequenos. Fazia uma forma grande onde todos trabalhavam juntos,

colando seus pedaços de papel na peça. Eu podia dizer que tinha um aproveitamento de 95%

dos meus alunos. Eles gostavam não só da prática, mas do momento da pesquisa, para fazer

algo que eles quisessem.

Conheces outros professores que usam o papel machê nas aulas de Arte?

CELIA – Eu acho que o professor de Arte tem muita preguiça. Eu fazia assim: “- Quem quiser

traz um real para comprar cola branca”. Alguns se amarravam. Mas quando eles viam os

trabalhos feitos, bons trabalhos, aí começavam a trazer, cuidavam e valorizavam seu material.

Tens que conquistar os alunos. Eu pedia para cada um trazer 1 rolo de papel higiênico. Eles

traziam o de pior qualidade, e eu trocava com os da escola, que eram melhores para trabalhar.

A gente vai negociando e vai acontecendo.

Mas para trabalhar com escultura e usar materiais que necessitam um mínimo de espaço para

trabalhar e deixar os trabalhos secando, é preciso ter uma sala especial, uma sala para artes.

Tinha a sua?

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CELIA – Eu conquistei uma sala própria. Como eu fazia oficina, a escola ganhou o Orçamento

Participativo pelo trabalho que eu desenvolvia com os alunos. Então a nossa sala tinha um

liquidificador industrial, prensa hidráulica, secador de cabelos, todo o material necessário.

Minha sala era melhor do que a de muitas escolas particulares.

Qual era a escola?

CELIA – Escola Municipal Ildo Meneghetti. Nunca pensei que iria gostar de dar aula. Me formei

no bacharelado e depois fiz a licenciatura. Fiz o concurso para o município e fiquei por 25 anos

na mesma escola. Os meus alunos já sabiam que iriam ser meus alunos e que iríamos

trabalhar com o papel machê. Nós ganhamos o prêmio nacional “Arte na Escola”, com o papel

machê. Foi um trabalho muito bom com o tema “Viajando na História’, onde criamos malas

temáticas com papel machê e papietagem.

Hoje nas licenciaturas de Artes se valoriza muito o “sucatário” como uma forma de trabalhar

uma linguagem mais contemporânea, por ser barato e trabalhar processo de criação. O papel

machê também pode ser usado dentro desse mesmo conceito e ainda incluir a questão de

reciclagem, não achas?

CELIA – Sempre usei muito papelão, jornal, isopor, arames e outros materiais. Eu acho assim:

a sucata é boa para trabalhar. Mas a sucata não dá um resultado final muito bom, ela é boa

para o processo de criação mesmo, mas depois o aluno não quer nem levar para casa. Já o

papel machê tem um ótimo resultado estético. Os alunos fazem questão de levar o trabalho

deles para casa porque o trabalho fica bonito.

E como trabalhas, que tipo de projeto, tendo faixas etárias bem diferentes?

CELIA – Por exemplo, eu tinha alunos especiais, com dificuldades. Então para fazer os

fantoches eu usei porongo para fazer de cabeça e eles usavam o papel machê nos detalhes,

para fazer os olhos, o nariz, a boca. Com o primeiro ano, eu trabalhava passarinhos de papel

machê e com os anos finais eu fazia projetos para trabalhar o ano todo.

Sempre trabalhavas tua prática visando usar o papel machê?

CELIA – Sim. Por ser um material de muitas possibilidades. Teve um ano que trabalhamos

roupas escultóricas, por exemplo, era tudo reciclado. Estudamos vários artistas, épocas

diferentes da história. Eu tinha um material feito por mim, que eram uns painéis de apoio.

Conforme o tema, eu mostrava as imagens como se fossem videoclipes, para que eles

pudessem observar culturas diferentes. Porque o conteúdo faz a aula ter um significado junto

com a prática. Em outra atividade, trabalhamos toda a História da Arte. Usamos um papelão

em formato A3 como fundo e os alunos moldaram uma cabeça em argila e depois papietaram

em cima desse molde. Usaram a massa do papel machê para fazer os detalhes. O trabalho era

baseado em um momento da história da arte. Então cada aluno escolhia um artista, uma época

e este era seu tema. Para fazer o fundo, que era o papelão, os alunos colaram imagens de

livros e revistas antigos de arte que tínhamos ganho. Depois, colavam a cabeça feita com a

papietagem e o papel machê neste fundo. Ficamos com um material didático muito bom, era

toda a linha de tempo, da pré-história até os dias atuais.

Os trabalhos eram expostos?

CELIA – Sim. Havia uns painéis nas paredes do refeitório da escola e ali eu fazia as

exposições. Todos iam ver; professores, pais, alunos. O aluno gosta de saber que vai expor.

Fizemos muitas exposições fora da escola também. No MARGS, na Usina do Gasômetro, no

Santander, no Mercado Público, na galeria da Prefeitura. E quando não tinha fora, eu fazia na

escola. Nós fizemos a primeira exposição de alunos no MARGS. Era uma exposição de papel

machê, o Chô Dornelles me convidou. Lá, nós expomos os fantoches de papel machê. Depois,

no Santander, fizemos uma exposição com as malas de viagem feitas com a papietagem e a

massa. Na Câmara dos vereadores, expusemos sapatos de papel machê, no Mercado Público

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fizemos um desfile de chapéus, feitos com papietagem, intitulado “O que você tem na sua

cabeça?” Tem fotos de tudo.

E teu trabalho como artista?

CELIA – Enquanto eu dei aula, não consegui desenvolver o meu trabalho como artista. Só

depois que me aposentei, fazem sete anos, é que comecei a fazer o meu trabalho. Eu uso no

meu trabalho escultórico o papel machê e a papietagem juntos. Este meu trabalho de bonecos

eu comecei há dois anos. Desde lá venho fazendo, sou muito detalhista. Gosto de brincadeiras.

Como artista que trabalha com o papel machê como material escultórico, achas que existe um

preconceito em relação a este?

CELIA – As pessoas acham que esta é uma técnica usada só para artesanato. E não é. Não

tenho muita experiência com o meu trabalho de artista porque estou começando agora, mas já

ouvi muitas pessoas dizerem, quando falo que trabalho com papel machê: “- Ah, tu fazes

artesanato!” Em termos de galerias, eu acho que se o artista já tem um nome no mercado, não

tem problema. Mas se tu és iniciante, sim. Porque tu queres ver? A gente, que trabalha com

este material, quando vê um trabalho de papel machê de qualidade até se surpreende. São

poucas as pessoas aqui que fazem um bom papel machê, nos outros países se vê um papel

machê tão bom...Na Inglaterra, por exemplo, eu me surpreendi até com os preços que os

artistas cobravam pelas peças de papel machê. No Brasil isso não existe. Como tu vais cobrar

uma peça de papel machê? Tu ficas pensando: sabe, é uma questão de valorização do

mercado. A arte não deveria ser uma coisa preconceituosa. A técnica, o material não importam,

o que interessa é o trabalho do artista. Aqui no Brasil só se ouve falar do papel machê no

Carnaval. Não sei se o preconceito é porque o material é usado em uma festa popular...

Muitos artistas procuram hoje lugares alternativos para expor porque fica cada vez mais difícil

expor nas galerias. Vendes tuas peças?

CELIA – Coloquei meu trabalho na loja da Fundação Iberê Camargo. Vendi muitos

passarinhos, mas o problema é que eles colocam 100% em cima. Tu vês, eles ganham mais

do que a gente, que faz o trabalho e ainda fica mais difícil vender porque as pessoas acham

caro. O trabalho da Carol W, por exemplo, acho maravilhoso, já era para estar nas galerias,

mas é exatamente isso, as galerias inviabilizam. Cada artista tem o seu tema. E esse tema –

contos e personagens – é um tema meu, é o universo infantil porque trabalhei sempre em

escola, é toda uma história toda de educadora. Tu não trabalhas fora do teu universo.

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APÊNDICE 5

ENTREVISTA: CHÔ DORNELLES (1948)

Autodidata. Iniciou seu trabalho em arte na década de 80, quando residia em São Paulo,

através da tapeçaria. Trabalhou nesse período com adereços para teatro. Em 1985 participa da

coletiva Tendência, MASP, São Paulo. De volta a Porto Alegre realiza a primeira individual na

Galeria Arte&Fato em 1988. Autor das populares gordinhas de papel machê. Ministra oficinas

de papel machê em seu atelier. Participou da mostra coletiva de papel machê no MARGS

(2004).

Entrevista concedida pela artista em 25 de março de 2015.

Como você começou a trabalhar com o papel machê?

CHÔ – Foi em 1973. Sabe a Rua Augusta, em São Paulo? Aquilo era o máximo nos anos 70.

Tudo o que era moda, todos os modismos estavam lá. Naquela época, todo mundo que

frequentava a Augusta, e era gente de grana, começaram a usar uma pedra egípcia azul-

turquesa. Ficou caríssimo aquilo. Eu pensei: -“ Ah, mas eu quero uma, vou inventar”. Comecei

a misturar materiais e cheguei nessa massa que trabalho até hoje, são 40 anos. Fiz uma pedra

e comecei a usar.

Para imitar a pedra?

CHÔ – Sim. E saiu igual, igual, igual...Olha que incrível: eu tinha contado essa história numa

palestra que fiz aqui em Porto Alegre, e uma aluna que eu estava dando aula, disse: “- minha

mãe tinha uma pedra dessas”, e não é que eu ganhei da minha aluna, uma dessas pedrinhas?

30 anos depois eu ganhei uma dessas pedrinhas. Mas, bem, na época, lá na Augusta, eu

comecei a usar a pedrinha num colar e começaram a me pedir. Comecei a fazer para vender.

Dali começou a crescer minha linha de colares e pulseiras com tecidos, pedrinhas, papel

machê, tudo junto. E comecei a fazer tapeçaria também. Acabei expondo no MASP, tudo por

causa da pedrinha egípcia.

Fiquei muito tempo fazendo isso em São Paulo. Durante 15 anos vivi da tal pedrinha. Vendia

para o pessoal do teatro, todo mundo vivia coberto de badulaques, colares e pulseiras, era tudo

muito criativo. Vendia para lojas também.

E depois desses 15 anos vivendo da pedrinha?

CHÔ – Voltei para Porto Alegre. Eu sou daqui, Foi quando comecei a fazer as “Gordinhas” de

papel machê. Lembra das “gordinhas” que eu fiz? Estouraram por todo o Brasil. Nessa época,

final dos anos 80, começaram a me propor exposições, então comecei a fazer as “gordinhas”

de cerâmica, porque não ia dar conta de fazer em papel machê. Tive que fazer forma para as

gordinhas de cerâmica.

Atualmente, estás fazendo teu trabalho com papel machê?

CHÔ – Estou com a cerâmica, mas o papel machê sempre do lado. As aulas do atelier são

com o papel machê. Me chamaram para dar aulas de cerâmica, mas eu não tenho

conhecimento para tanto. Não é como o papel machê, que eu tenho 40 qnos de experiência.

E as tuas experiências com a massa do papel machê? Experimentastes muito?

CHÔ – Eu já fiz de tudo com a massa. Misturei tudo que é tipo de material, fibras. Eu parto

sempre da minha primeira massa, aquela que fiz a pedra. Faço as misturas a partir dela.

Quando morei na Itália, trabalhei com o paperclay, uma argila que leva papel na massa e dá

para queimar em forno de cerâmica. O papel machê também dá para queimar em forno...Agora

estou fazendo umas máscaras em cerâmica, vou colocar em uns quadros, tem mais ou menos

uns 25x25 cm. Mas já fiz em papel machê também.

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Na Galeria Tina Zapolli tem duas máscaras de papel machê da Magliani. Conheces?

CHÔ – A Maria Magliani era minha amiga. Convivemos muito tempo em São Paulo. Ela morou

comigo num apartamento lá e começou a fazer papel machê comigo (anos 70). Nós

inventávamos, fazíamos umas coisas bem legais. Depois ela começou a fazer um papel machê

maravilhoso, misturado com serragem. Ela fez coisas lindas em papel machê.

Essa coloração diferente que tem no teu trabalho, é feita misturando argila?

CHÔ – Trabalho também com a serragem, depende muito do tipo de madeira. As cores variam

conforme a serragem usada. – “Agora que tu começaste a falar disso me deu vontade de

trabalhar com papel machê...” Quando eu fiz papel artesanal, claro, fui investigar fibras.

Misturava tudo que é tipo de fibras, espada-de-são-jorge, sisal, até coco de cavalo e fica

maravilhoso! Então, pegava estas fibras e misturava com o papel machê. Tudo o que eu fazia,

ia e voltava com o papel machê sempre. Adquiri muita técnica de mistura. Trabalhei com

limalha de ferro, porque, sabe, o ferro começa a enferrujar no processo de secagem do papel

machê.

Tu achas que existe um preconceito em relação ao papel machê como material escultórico?

CHÔ – Olha, naquele tempo quando eu fiz as “gordinhas” de papel machê, expus numa galeria

em São Paulo e vendi muito bem. Recentemente, fiz uma série nova de trabalho, não lembro

qual foi agora, e tentei colocar na mesma galeria. Mas eles não quiseram porque era papel

machê. O dono da galeria até me deu um contato de um lugar alternativo para expor lá em São

Paulo...Tem preconceito sim, e não é só com o papel machê, é com o papel em geral. Lembro,

no tempo da Magliani, as pinturas em papel ninguém queria porque não iam durar...uma

grande bobagem, pois tem papel da Antiguidade inteiro até hoje.

É mais por parte do público ou das galerias, esse preconceito?

CHÔ – Por exemplo, em Caxias do Sul, teve uma galeria onde expus uma série de potes

grandes, que lembravam umas urnas, de cerâmica. Eu fiz com uma técnica antiquíssima, dos

etruscos, que aprendi quando estive na Itália, foi muito bom. Essa galeria, acho uma das

melhores daqui do sul, ela tem uns módulos ótimos para expor os trabalhos, é super bem

equipada. Mas ela tem restrição com o papel machê. Agora, o público, não reparei, não

questiona muito do material. Já os colecionadores, aqueles que investem, quando a coisa é de

papel, eles têm restrição sim.

E os lugares alternativos para expor?

CHÔ – Estou no Bric da Redenção e já estive no Caminho das Artes. As peças que eu fazia, o

pessoal adorava, sempre vinha gente nova para conhecer. Teve vezes, no Bric, que eu vendia

num só domingo R$ 1.000. Se fosse todo o domingo assim...Mas eu vendo muito para cliente

particular. Tenho uma clientela minha. Quando faço um trabalho novo, eles compram. “-

Porque é uma corda bamba, né Cristina?” Principalmente em Porto Alegre. Se tu vais pro Rio

ou São Paulo, é um pouco melhor. E também tem isso: o artista gaúcho que expõe e vende em

São Paulo ou no Rio fica sendo visto aqui como “in”, caso contrário, é “out” mesmo...

Com o preço dos trabalhos, tens problemas?

CHÔ – Olha, eu tenho o meu preço, que às vezes, entra em dissonância. É mais alto, mas é o

meu trabalho. Tenho 40 anos de carreira, então me respeitem né? As pessoas falam: “- Ah,

mas isso tu fazes em um ou dois dias...” É, mas precisa de 30 anos para fazer isso!

Como são as aulas no atelier? O que os alunos buscam?

CHÔ – Olha, eu digo: - “Eu vou dar todas as condições, eu acompanho, vou facilitar tudo, mas

tu tens que achar o teu caminho e evoluir”. Geralmente quem vai fazer o curso, é por

passatempo. Alguns, muito poucos mesmo, vão para acrescentar algo ao trabalho deles.

Tenho alunas que estão comigo há 10, 12 anos. Elas vão e voltam. São pessoas que tem

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grana, mas é raro comprarem uma peça minha; querem imitar, fazer o meu trabalho E não é

por falta de dinheiro. De vinte, trinta pessoas, tu tiras uma que quer mesmo fazer, aproveitar. É

que não são artistas, não precisam disso para viver também, acham que precisa ter muito

espaço em casa para fazer e que dá muita sujeira.

Fazes peças únicas, mas também usas moldes para as peças de papel machê?

CHÔ – O papel machê é muito bom porque tu consegues tirar, acoplar, fazer qualquer coisa.

Eu uso moldes também, por que não? Fiz cópia de uma moldura muito bonita para molde, e

depois tirei cópias em papel machê. Não tem porque não fazer assim...

Essa história de preconceito, eu fico pensando nesse pessoal que compra porque quer enfeitar

a casa, e, nada que daqui a cem anos a gente não esqueça, porque, quem vai querer aquilo

por mais de 50 anos? Então...vamos ser menos preconceituosos, não tem nada tão eterno...é

muito mesquinho isso. O preconceito é uma grande bobagem. Por exemplo, no Bric, eu levo as

minhas peças envoltas em plástico e as pessoas dizem: “- Ah, mas tu trazes isso, assim?” e eu

digo: “- Sim, nunca quebra nada mesmo”. Eu acho que tem um monte de coisa boa no papel

machê: e a versatilidade é a principal, depois a durabilidade. - Eu tenho peças de 40 anos...

Ah, e sabias que o papel machê entrou pela primeira vez no MARGS em 2004? O Paulo

Amaral era o diretor. Fiz uma série de esculturas que foram expostas nas Salas Negras do

MARGS. Era tudo marrom, ficou muito lindo naquelas Salas Negras... A Maria Helena Estrada,

da Revista ARC Design, de São Paulo, veio, se apaixonou , comprou uma peça e eu saí na

revista, por dois anos, entre os dez designers do Brasil, com esta série de papel machê.

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APÊNDICE 6

ENTREVISTA: DÉCIO PRESSER

Galerista – Galeria Arte & Fato

Entrevista concedida pelo galerista em 14 de novembro de 2014.

Quais artistas que usavam o papel machê como material escultórico a galeria trabalhou?

DÉCIO – Fiz uma exposição do Chô Dornelles nos anos 80. Ele fazia as Gordas de papel

machê, fazia muito sucesso. Vendi bem aqui na galeria. Também teve o trabalho da Milca

Chang, daqui de Porto Alegre. Ela fazia uma espécie de discos de papel machê, Eram peças

escultóricas com um suporte, algumas eram de parede. O trabalho dela se olhava de longe e

se sabia que era de papel machê, pelo aspecto. Foi no início dos anos 2000.

Você acha que existe algum preconceito em relação ao material, o papel machê, no circuito

artístico local?

DÉCIO – Na verdade, é a forma que o pessoal trabalha com o papel machê que parece

artesanato, porque fazem “carinhas” e “bonequinhas”. O papel machê pode ser trabalhado de

forma mais contemporânea. O preconceito maior não é por causa do material. Por exemplo,

aqui na galeria exponho peças mais contemporâneas, não vou expor bonequinhas. Se é uma

coisa diferente que o artista faz, tudo bem, porque às vezes tu nem percebe que é papel

machê, pelo tratamento dado à peça.

E as peças de papel machê que tiveste na galeria venderam bem?

DÉCIO – Sim. Outra questão é o preço. Às vezes, porque tem nome, o artista coloca o preço lá

em cima e fica muito difícil vender.

Lembras de outros artistas?

DÉCIO – A Marlene Kozicz foi outra artista que fiz uma exposição “Novas dimensões” aqui na

galeria em 2010. Ela pinta e faz cerâmica, mas tinha trabalhos de papel machê também.

Eram esculturas em papel machê?

DÉCIO – Nesta exposição ela apresentou, além das pinturas e da cerâmica, trabalhos em

papel machê. Eram máscaras. Na verdade, eram rostos, lembravam as pinturas dela

transportadas em três dimensões. Ela usou a técnica da papietagem. Eram esculturas de

parede e tinham o tamanho de máscaras.

O papel machê é ótimo para peças de parede pela sua leveza. As pessoas não estranham a

leveza do material?

DÉCIO – Mais recentemente, em 2012, fiz uma exposição do Moacir Chotguis. Ele também usa

a técnica da papietagem. As peças dele eram grandes, muito leves e coloridas.

O Chô Dorneles, depois de ter feito com papel machê, começou a fazer suas “Gordas” em

cerâmica, queria dar uma “valorização” maior às peças, não sei se porque o papel machê era

muito leve...

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APÊNDICE 7

ENTREVISTA: DENISE HAESBAERT (1949)

Pintora e escultora. Graduada em Artes Plásticas pelo Instituto de Artes da Universidade

Federal do Rio Grande do Sul, graduação em escultura, 1974.

Pós Graduada / Especialização em Poéticas Visuais – Pintura, Desenho e Instalação: Processo Híbridos pela Fevalle, Novo Hamburgo, RS, 2008. Fez vários cursos de especializações em diversas áreas como desenho sob a orientação de Edgar Koetz; gravura em metal com Iberê Camargo; pintura com Paulo Porcela, Carmen Vieira, Jailton Moreira, Michael Chapman e Karin Lambrecht; papier maché com Magliani. Freqüentou Workshop com Charles Watson e Carlos Vergara – Oficina das Missões em Santo Ângelo, RS, 2003. Realizou diversas exposições coletivas e individuais no exterior e no Brasil.

Entrevista concedida pela artista em 17 de outubro de 2015.

Estou começando um registro a respeito do papel machê em Porto Alegre, buscando, antes de

um reconhecimento, um conhecimento sobre o material, para que este possa começar a ser

visto com menos preconceito.

DENISE H. – É que não consideram muito o papel machê, né? E a importância dele agora é

fundamental, pelo reaproveitamento de material. Eu fiz massa com caixa de remédio, guias

telefônicos velhos, pode-se reaproveitar tudo.

O papel machê pode se transformar em qualquer coisa...

DENISE H. – Sim. Ele agrega qualquer material. No meu caso, eu não quis sair do conceito do

meu trabalho, do meu tema, que é o ‘tempo’ e ‘coisas femininas’. Fui buscar no papel machê

alguma coisa que eu pudesse fazer ligado ao ‘tempo’ ; por isso eu usei o pêndulo. Mas com o

‘feminino’ eu não consegui. Não consigo trabalhar sem ter uma amarração.

Qual foi o motivo de ter escolhido o papel machê e não a cerâmica, por exemplo?

DENISE H. – Muito pelo problema da queima. A cerâmica precisa da queima, é pesada e é

cara. O papel machê é um processo muito rico: tu fazes o início, o meio, o fim – e termina! Eu

fiz um curso com a Magliani quando ela esteve aqui em Porto Alegre que foi maravilhoso. Foi

uma semana e eu enlouqueci porque eu queria fazer várias experiências, agregando outros

materiais ao papel machê, como um trabalho em que usei estômago de vaca. Isso foi perto de

2004 e depois comecei a dar aula de papel machê porque todo mundo pedia. Tive umas dez

alunas, inclusive a Ena Lautert. As pedras, ela fez comigo. Ela começou no atelier e eu dei a

idéia para fazer as pedras. Fiz a curadoria dela no Gasômetro. Foi uma época em que ela

estava mal e eu sugeri que ela fizesse alguma coisa relacionada com ‘pedras no caminho’ e

começou assim. Também para dar o contraponto da leveza do material com o peso da pedra.

Então ela começou a trabalhar - deslanchou – e até hoje está fazendo pedras. Agora que

estamos falando, é que estou me dando conta: o papel machê entrou na minha vida mais como

uma ferramenta para eu poder falar do ‘tempo’. Não foi assim, que eu fui atrás do material. Eu

pensei num material e aí aconteceu tudo junto: o curso da Magliani...Eu fui contemporânea da

Magliani. Ela mandava eu fazer uma coisa e eu fazia 3, 10. Eu enlouqueci; misturei voal com

papel machê, vendi bastante.

Por quê parou de usar o papel machê?

DENISE H. – Eu não sei porque eu parei de fazer papel machê... Sinceramente eu não

sei...porque dá até para fazer em casa, em qualquer cantinho. Talvez por falta de tempo

porque, quando fiz um pós-graduação, eu continuei pintando. Não tinha mais tempo: ou eu

pintava ou eu fazia papel machê. Não consigo fazer tudo ao mesmo tempo. Estou até com

duas encomendas de papel machê faz meio ano. E essa coisa, quando pedem, já não gosto, já

me dá um pé atrás. É como com a minha pintura: porque querem igual ‘àquele’, “só que em

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azul, ‘assim e assim’, para combinar com a minha parede” e isso me corta totalmente a

vontade.Também porque o nosso tempo (clima) é muito úmido, o material é difícil de secar,

principalmente no inverno.

A possibilidade que o material oferece é bem ampla, não?

DENISE H. – A possibilidade que ele dá é impressionante. Até foi com a Rosali Plentz, que trabalhava também com cerâmica e tinha muitas peças quebradas, que eu dizia:” - Rosali, mistura as coisas.” Eu adoro misturar as coisas. Eu gosto de extremos, de misturar materiais antagônicos. São desafios, tem tudo a haver com o meu ser. Eu trabalhei ferro, que é duro, com o papel machê, que é leve. Valorizo muito o caminho do meio, gosto do processo. Esta coisa do manual, isso faz falta. Coisa boa tu teres uma idéia e executar, não só ter a idéia e mandar executar. Eu vi que faltou para mim, nestes três anos, eu não coloquei a ‘mão na massa’. O meu processo é assim: depois que eu faço a coisa é que vou escrever sobre ela. Já tentei fazer o contrário, fazer o esboço, mas não deu, porque a coisa vai acontecendo...

O que tu mais gostas do papel machê? DENISE H. - Eu gostei da plasticidade do papel machê. Eu gosto muito de trabalhar com

materiais poveros. Eu usei, por exemplo, em um trabalho, pó de cupim e fica muito bom. Fiz

experiência com cimento, mas não gostei, não deu certo. Mas com pó de mármore ficou

fantástico porque gosto muito do monocromático.

Gostas quando o papel machê aparece no final, como material?

DENISE H. - Não gosto de pintar o papel machê. Acho que ele fica falso, parece que ele quer

se passar por cerâmica entendeu? Os pratos (de parede) que eu fazia, eu juntava os

pigmentos na massa porque assim o papel machê fica natural, aparece o material. No

momento que tu começas a lixar, pintar, tu escondes o papel machê. Eu não conseguiria colorir

meu trabalho de papel machê porque eu gosto de experimentar, tem muitas possibilidades, o

material tem que aparecer.

Por quê tu achas que não tem mais papel machê nas galerias? É preconceito,

desconhecimento do material ou o quê? Estou tentando buscar questões como o porque do

artista ficar de fora das galerias...

DENISE H. – É que não é vendável. Por isso que eu digo: eu gosto de amarrar com um

conceito. Essa coisa também, de personagens já carimbados, o mercado de arte não valoriza,

está saturado já. Pegar um ícone e fazer releitura não é valorizado. Eu vou te dizer: na

realidade, é muito pelo nome do artista, tem isso aqui. Tu tens que saber o que tu estás

fazendo, ter um conceito. A exposição na Arte & Fato que fiz com a Rosali Plentz, com papel

machê, foi muito boa. Vendi muito para arquitetos (os pêndulos). E vendi muito do meu papel

machê para gente que sabia que eu fazia, me encomendavam. Em lojas – na Ser e Estar eu

vendi muitos dos meus pratos de parede. Fiz também uma exibição das minhas alunas do

atelier na Arte & Fato, ficaram muito ricos os trabalhos.

As pessoas acham, ainda, que uma obra deve durar uma vida inteira ou mais, e quando se fala

em papel machê, logo aparece a relação com a fragilidade...

DENISE H. – Não tem mais espaço para isso aí. Mas é que não tem educação nem cultura

para entender um outro olhar. Às vezes me sinto deslocada aqui. Pelo contrário, é um material

muito resistente. Fiz até uma cadeira de papel machê. Dá para fazer móveis de papel machê,

mas é muito trabalhoso. O papel machê é fantástico.

E na escola ‘O Pequeno Artista’, as crianças (de 4 a 12 anos) gostam de usar o papel machê?

DENISE H.- Os pequenos não gostam. O problema todo agora com eles, é que estão

acostumados a apertar um botão e saltar tudo pronto. Então, nós, na escolinha, visamos o

processo, em qualquer material: tem que ter começo, meio e fim. E também para finalizar eles

têm dificuldade, pois é tudo rápido, instantâneo e mal-feito. Nós estamos penando lá. E aí, com

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o papel machê, eles acham muito demorado. Também não gostam de sujar as mãos. Com os

grandes, nós fizemos os bonecos de papietagem, fantoches. Isto eles gostaram, porque

quando eles veem o resultado, eles gostam.

E tu, pretendes voltar a trabalhar com o papel machê?

DENISE H. – Eu vi que, nestes três anos que não fiz nada, eu fiquei doente. Problema no

joelho, no ombro, tudo somatiza. Vou voltar a trabalhar, é isto que eu preciso. Muitos dos meus

trabalhos vem de momentos da minha vida: agora estou num momento de ouro. Estou já com

ima idéia para trabalhar.

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APÊNDICE 8

ENTREVISTA: ENA LAUTERT (1924)

Trabalha com pintura e esculturas com papel machê. Em 2007 foi indicada na categoria

escultura para o !º Prêmio Açoriano de Artes Plásticas. Participou de várias exposições

individuais e coletivas .

Entrevista concedida pela artista em 07 de maio de 2014.

Quando você começou a trabalhar com o papel machê?

ENA LAUTERT – Comecei a fazer arte por incentivo do meu filho, em 1982. Mas foi em

Goiânia que conheci o papel machê e me encantei com o material. Lá, conheci muitos artistas,

e uma me convidou para aprender a fazer a massa (do papel machê). Na ocasião, fiz uma

bandeja e um pato. Quando voltei a Porto Alegre, não fiz mais papel machê, voltei a fazer

minhas pinturas. Quando tinha a minha loja, a Ser e Estar, encontrei a Denise (Haesbert) e ela

me perguntou se eu queria fazer papel machê. Pensei: Puxa vida...poderia voltar com o papel

machê agora...Porque eu aprendi um pouco, mas nunca mais tinha feito nada. Fui lá e fiz

coisas com balão, essas coisas que a gente aprende, meio artesanais.

Como foi e como tem sido sua experiência com o papel machê?

ENA LAUTERT – Me encontrei totalmente com o papel machê. Fiquei muito satisfeita com a

consistência, que, quando secava, ficava duro como uma pedra. Tenho uma vontade louca de

fazer pedras. Comecei de novo. Desde 2007, tenho me voltado para as possibilidades técnicas

deste material.

E as pedras? Como chegou nas pedras?

ENA LAUTERT – Na época que comecei a fazer as pedras, eu tinha a Ser e Estar (loja). Eu

guardava a espuma expandida que vinha nas embalagens dos produtos. Já tinha muito deste

material guardado ocupando espaço, e, um dia, em casa, tive a idéia de fazer uma pedra.

Sempre gostei de pedras, da natureza. Convivi muito, desde pequena, com um arroio na casa

de minha avó, era tão lindo, sentávamos nas pedras e conversávamos. Eram pedras grandes,

lindas. Bom, e ai fiz uma pedra e levei para a Denise (Haesbert) e ela gostou. No fim do ano

fizemos uma exposição coletiva (com os trabalhos dos alunos da Denise) na Arte & Fato, eu

pendurei cinco pedras de papel machê. E assim comecei com as pedras. Então surgiu este

projeto, a Denise me incentivou a participar de um edital lá para o Gasômetro. Fui selecionada

para uma exposição e não parei mais de fazer pedras...

Seu trabalho, em especial, as pedras, envolve material reciclado. É um conceito importante na

obra?

ENA LAUTERT – Eu guardo tudo, quero fazer pedras grandes. Guardo o lixo reciclável, como

embalagens plásticas, sacos, jornais e tudo o mais, para usar nas minhas pedras. O meu

objetivo sempre é transformar o lixo em arte, acho importante a conscientização, reciclar o lixo,

cuidar da natureza. Eu sou uma cidadã, sempre fui. Desde pequena, eu aprendi a ajudar os

outros. Aprendi muitos trabalhos manuais. Eu sempre tenho vontade de fazer alguma coisa. E,

graças à arte, estou sempre ocupada. As pessoas não sabem o que fazer, principalmente os

idosos, que se aposentam e ficam deitados ou assistindo televisão...Têm que se ocupar!

Gostas de ministrar oficinas?

ENA LAUTERT – Sempre aceitei fazer oficinas à convite, porque não vou começar agora a

fazer oficinas. Fiz uma pedra de 2 metros de altura, que está no Museu de Montenegro. Fiz

com a comunidade, todos trabalhando juntos. Eu adoro trabalhar com a comunidade.

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E quanto às pedras? Tem pedras cortadas ao meio, pedras com papel dentro e com outros

materiais adicionados...

ENA LAUTERT – Eu quero ver o interior das pedras. A primeira vez que vi o interior de uma

concha foi em Praga, num museu. Fiquei sempre com aquilo na cabeça e pensei: - um dia vou

cortar uma das pedras para ver como fica por dentro. Primeiro, cortei uma pequena. Eu misturo

muitos materiais, como cinzas, plástico e outros mais.

Talvez eu possa relacionar esse meu querer ver o interior das coisas com a Yoga. Porque

quando eu fiz Yoga, eu sempre quis descobrir muita coisa do corpo, aprendi a me concentrar, a

relaxar e a aceitar as limitações do corpo.

O que o papel machê lhe trouxe de bom?

ENA LAUTERT – Achei muito boa a consistência do papel machê para fazer esculturas. Uma

massa que dá para moldar, que seca, fica dura e muito leve. Isso me deixou muito satisfeita em

relação à arte. Queria muito valorizar um outro material que não fosse o bronze, a prata, para

agradar com a minha arte. Acho que uma obra de arte pode ser feita com qualquer material.

Você acha que existe um preconceito geral em relação à arte em papel machê?

ENA LAUTERT – Muita gente diz: - Papel machê? Não quero. É preconceito. Tive uma

experiência, que acho, com muita certeza, que a pessoa não aceitou meu trabalho porque era

de papel machê. A obra deve agradar, mas não em função de seu material... Porque o pastel

seco, outro material que eu trabalhei, nunca teve problema. Foi quando eu mudei para as

pedras...sempre sinto esse preconceito, e, às vezes, pensava: - será que eu mudo? (de

material).

Onde expôs sua arte em papel machê?

ENA LAUTERT – A Exposição “Pedras”, na Galeria Iberê Camargo da Usina do Gasômetro

(2006), na Galeria Gravura (2002); A Exposição “Pedras”, no MARGS, em 2010. Participei de

várias exposições coletivas e recebi prêmios, em 2007- fui indicada para o 1º Prêmio Açorianos

de Artes Plásticas 2007- destaque em Escultura, em 2008 fui selecionada para o 2º Salão de

Artes SINAP/AIAP. Em 2011, na 72 NY Gallery, teve a exibição “ Estou ficando de Pedra”, e

em 2014, a exibição “Rede de Pedras”, em Anápolis, Brasília.

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APÊNDICE 9

ENTREVISTA: MAÍSA STOLZ (1984)

Artista plástica - Graduada em Bacharelado em Artes Visuais pela UFRGS (2010) e em

Design de Moda pela FEEVALE (2006). Desenvolve seus trabalhos na área artística sobre

as técnicas escultóricas de papietagem e papel machê. Participa do Bestiário - coletivo de

artistas desde 2013.

Entrevista concedida pela artista em 17 de setembro de 2015.

Como você começou a trabalhar com o papel machê?

MAÍSA – Me formei em 2010 em Artes com ênfase em escultura pela UFRGS e para o

meu TCC eu queria fazer uma escultura de um porco grande para uma intervenção

urbana. Não tinha nenhum material que eu já tivesse usado, como a cerâmica, o ferro e

outros que eu pudesse usar para este trabalho. Então um professor me sugeriu trabalhar

com papel, ir modelando a forma com papel e fita. Fui para casa testar e fiz um “Charles

Chaplin” e levei para o professor. Ele me disse que havia ficado melhor do que ele

esperava e eu perguntei a ele: “- É só isso?” Então entendi o que era e fiz os meus porcos

modelados com papel, terminei meu TCC e me formei.

Dentre os materiais escultóricos que tu trabalhastes no Instituto de Arte, nenhum serviu

para o teu projeto final da faculdade. O papel machê resolveu tua questão e ajudou para a

decisão de dar continuidade ao teu trabalho de artista?

MAÍSA – Sim. Depois, já na saída da faculdade, eu percebi que tinha gostado muito de

trabalhar com o papel. Eu pesquisei e estudei sozinha porque na faculdade nunca tinha

ouvido falar em papel. Comecei a testar a papietagem, o papel machê, a cola de grude,

toda essa trajetória que todos passam. Quando saí do Instituto de Artes me senti muito

bloqueada por causa da teoria, não consegui criar nada. A gente sai com o conceito de

que precisa ter uma idéia brilhante, sensacional e eu não tive nenhuma. Não sabia o que

fazer nem que material iria usar. Mas eu gostei do papel primeiro porque achei fantástico e

depois porque eu gostava muito de soldar na faculdade, trabalhar com ferro, mas como eu

tenho problema de coluna, eu não poderia continuar porque tinha que fazer muita força, as

estruturas eram muito pesadas para ficar movendo. E o papel machê era leve, eu tinha

gostado muito do resultado e foi indo...e me apaixonei! Não vejo mais nada, o papel tem

que estar presente, fico cada vez mais louca, pesquisando.

Após tu elegeres o papel machê como material escultórico, foi mais fácil começar depois

da tua experiência na faculdade?

MAÍSA – Eu não sabia ‘o que’ fazer, as pessoas me falavam: “- Por quê não fazes

qualquer coisa primeiro, para ir testando?” Então comecei a fazer uns bichos, um ratinho,

um sapinho, etc. Quando abriu o Bestiário (coletivo de artistas), fizeram uma exposição e

coloquei meus bichos também. Vendi tudo e aí eu pensei: “- Se vendi é porque gostaram,

puxa vida isso é bem legal!” Isso me incentivou a continuar com o papel. Mas então eu

comecei a trabalhar com o papel machê, com a massa, porque as outras peças eu tinha

feito com a papietagem.

Gostas de misturar materiais ou outros elementos à massa do papel machê, fazer

experiências?

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MAÍSA – O tecido entrou no meu trabalho com o papel machê porque comecei a trabalhar

com tecido também. Eu participei de um edital de pesquisa e o meu assunto era “A perda

da tradição de fazer bonecas de pano”. Na minha pesquisa o ‘fazer’ estava incluído,

porque fazer só pesquisa não tinha graça né? O bom era resgatar a prática, então fiz

oficinas também. Comecei também com as bonecas de pano. Então eu tinha dois

trabalhos bem separados: o papel machê e o tecido. Pensei: “- Por quê estou fazendo isso

comigo? Por quê não misturar?

Os teus personagens híbridos que estão na Galeria Duque são resultado desta tua

experiência com os dois materiais...

MAÍSA – Sim, eu fiz esta série, que são os híbridos, de papel machê “vestido” com tecido.

Juntei os dois. Tu vais gostar, no DMAE tem o híbrido “Menino-galinha”, uma peça que fiz

metade menino, metade galinha, com papel machê e penas. Quando fui convidada pela

Dayse Viola (curadora) a expor na Galeria Duque, ela queria que eu levasse também

minhas peças “comerciais”, mas eu não quis. Levei as que considero ‘artísticas’.

Podes falar delas?

MAÍSA – São minhas peças ‘comerciais’. Achei que não eram para a galeria. Eu sempre

tive no meu pensamento o meu trabalho ‘comercial’ e o meu trabalho ‘artístico’, que é livre,

faço o que eu quiser. Como as pessoas gostavam também das ‘comerciais’, comecei a ver

um pouco diferente, mas ainda continuo vendo separado, o comercial é para vender.

Eu gostei muito do teu trabalho como artista, além do modo como trabalhas com o papel

machê, com um cuidado e acabamento muito bons. É um trabalho bonito, tu não podias

ficar de fora da minha pesquisa...

MAÍSA – Pois é, depois que as pessoas viram o meu trabalho, me perguntavam: “- Como

é que eu nunca tinha visto o teu trabalho? - Como eu não te conhecia antes?” eu

respondia: “- É que não tinha o ‘antes’”. Porque comecei agora, até então eu estava

experimentando. Quando achei que o trabalho estava bom, resolvi expor. E agora está

acontecendo tudo rápido. Quando tu me falastes da tua pesquisa sobre o papel machê e a

entrevista, eu pensei: “- Ah, que coisa mais legal! Sabe? Isso é uma coisa que eu faria,

pesquisar o papel machê”.

O que te interessa ao criar/produzir uma obra? Pensas antes no material ou na peça?

MAÍSA – Eu acho que a peça tem que ter algo diferente, que chame. Não é só passar uma

idéia, tem que ter uma alma. Tu falastes em acabamento né? Eu sou muito detalhista. Isto

vem do meu trabalho, da parte teórica: eu gosto muito do belo, da beleza. Acho que isto

está faltando cada vez mais no mundo, por isso estamos cada vez mais violentos,

estressados. Parece uma coisa boba né? Acho a beleza uma coisa reconfortante.

Percebes algum preconceito em relação ao papel machê? Não falam em artesanato?

MAÍSA – Quando as pessoas me perguntam com o que eu trabalho e eu falo que é com

papel machê, elas me olham com uma cara horrível. Mas, depois que conhecem o meu

trabalho me dizem: “- Mas nem parece papel machê”. Mas eu queria que parecesse! No

início, antes de escolher o material para fazer o meu trabalho – este, da releitura dos

bichos – eu pensei e fiquei com raiva de não valorizarem o papel, porque, quem trabalha

com mármore branco, por exemplo, o trabalho vai ficar branco porque ‘é’ mármore, é do

material. Então, por quê não deixar o papel aparecer? Deixar a peça crua, mostrando o

papel, sem ter de revestir ou pintar para disfarçar? Foi então que eu deixei uma das peças

ao natural, só no papel machê, não colori nem revesti. A gente têm que assumir o papel.

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Quando levei umas peças para a Expointer, algumas senhoras se lembraram de quando

fizeram papel machê no colégio, outras, ao saberem que era papel machê, diziam: “-

Papel?” Eu respondia: “- Papel, e higiênico ainda...” Foi legal mostrar para o público o que

se pode fazer com o papel, que pode ficar bom. Mas o que achei curioso é que, para elas,

tudo é ‘jornal’. Como se não existisse outro tipo de papel. Teve um cachorro que fiz com

papietagem e usei um livro. As pessoas diziam que era jornal, porque tinha as letrinhas

aparecendo e perguntavam: “É jornal?” E eu dizia, já brava: “Não, é livro”. Mas não estão

vendo que existe uma diferença? É só olhar. Então é muito curioso isso, não existe para

elas outro tipo de papel.

Vendeste bem?

MAÍSA – Muitos diziam: “- Tudo isso?” E a pergunta se repetia; teve um senhor que olhou

e disse: “- Tudo isso, menina?” Me indignei e pensei comigo: “Agora tu vais me ouvir”,

então disse a ele: “Eu levo duas semanas ou mais para produzir uma peça. Se o senhor

conseguir pegar um papel e transformar nisso...” Então alguns acabavam compreendendo

o porquê de cobrar R$ 200, por exemplo.

E quanto à leveza, as pessoas não te perguntavam ou associavam à fragilidade?

MAÍSA – Na Expointer, as pessoas pegavam as peças com tanto cuidado, como se

fossem desmanchar. Eu dizia que não precisava, que o material é muito resistente.

Quando eu via que não estavam acreditando, eu dizia: “É como madeira - e batia com a

mão na peça - dura muito tempo”. Assim acabavam entendendo um pouco melhor.

Uma das características do papel machê que é bem útil, é a capacidade de arrumar,

acoplar ou tirar partes se preciso, sem estragar a peça. Isso favorece no processo de

criação e produção da peça ou até depois, não achas?

MAÍSA – Sim. Às vezes as coisas caem, e penso – se é cerâmica quebra e estraga a peça

– e isso não me serve porque eu quero poder consertar, não me preocupar se a peça caiu.

O papel machê tu sempre podes consertar, a única coisa é que não pode molhar. Eu

sempre digo que pode passar um pano úmido na peça, sem problemas, mas não pode

colocar direto debaixo d’água.

Tuas peças parecem serem mais pesadas do que leves quando se olha...

MAÍSA – Já me falaram que minhas peças têm um peso. Eu coloco muito material

reciclado, então, isso dá um peso. “-Tu, que também trabalhas com o papel machê, não

tens a impressão que às vezes, a coisa se forma sozinha?” Por exemplo, teve uma peça, a

do macaco, quando fui fazer a base, o chão, à medida que eu ia colocando o material

reciclado, aquilo ia se formando sem nenhuma intenção e eu pensei: “- Mas ficou bom, vou

deixar assim”.

Uma outra questão é quando o artista faz oficinas. Geralmente quem procura é porque

gosta do trabalho do artista e alguns acabam querendo fazer igual. Existem por aí

inúmeras ‘cópias’ de trabalhos, isso acaba banalizando o trabalho de autoria, não

achas?

MAÍSA – Eu tenho duas alunas no meu atelier, já fiz oficinas também, mas as pessoas

não querem copiar o meu trabalho. Acho que elas já partem do princípio que é difícil, é

muito trabalhoso, não vão conseguir. Eu digo que é só se dedicar, eu incentivo a fazer.

Quando eu fiz aula com a Carol W. eu aprendi a fazer as mãozinhas e braços de

caninhos. Então eu quis experimentar, fiz cinco bonecas. Eu queria ver se saía uma

coisa diferente do que eu sempre faço. Eu fiz e não saiu nenhuma igual aos dela. Eu

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achei legal porque eu aprendi com ela mas saiu do ‘meu’ jeito. Até porque se ficasse

igual, eu não iria mais fazer. Já me falaram que o meu trabalho não se parece com o

de ninguém, que é bem original. E se eu quero uma referência, se eu quero fazer uma

ovelha, eu pego uma foto e não uma obra ou desenho de alguém, para não influenciar

no trabalho.

Essa questão da pressa do trabalho ficar pronto é o que ajuda as pessoas a se

afastarem do papel machê, mesmo que gostem, porque acham muito trabalhoso e

demorado o processo, concordas?

MAÍSA – É difícil achar quem faça papel machê. As pessoas não têm paciência, elas

têm pressa, querem que o trabalho fique logo pronto e não acreditam que o papel

machê leva tanto tempo para fazer! Meus alunos ficam loucos para terminar,

perguntam se tem forno para secar. Eu digo que não, que o papel machê demora para

secar, falo para eles que o forno burla as regras do papel machê.

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APÊNDICE 10

ENTREVISTA: MARLENE KOZICZ (1946)

Artista plástica, trabalha com pintura, gravura e esculturas em papel machê. Sua trajetória

artística teve início na década de 80, com maior ênfase na pintura. Participou de ateliês

coletivos e de exibições coletivas na Galeria Arte & Fato, Centro Municipal de Cultura, Bolsa de

Arte, MAC, Galeria Xico Stockinger, Internacional de Miniart Exchange Brasil/Argentina.

Entrevista concedida pela artista em 19 de agosto de 2015.

Como foi que você começou a usar o papel machê?

MARLENE – Eu sou muito curiosa e sou apaixonada por processos. Tenho muito de

alquimista, de misturar as coisas. Então eu busquei alguém que me mostrasse o básico. Fiz

aulas com a artista plástica Ondina Pozoco, ela dava um curso de processo criativo, tu viajavas

bastante, era muito bom. Eu adoro jornal, amo jornal. Eu gostei de trabalhar com a papietagem

e a massa do papel machê para as minhas esculturas. Esse material não é muito explorado.

Eu gostei da textura que o material oferece no final, depois de seco. O papel machê é rico

porque ele te permite né? Quanta coisa que tu tens vontade de fazer, e sabe que pode fazer.

Com papel machê e arame tu fazes loucuras! Acho que é essa a riqueza do material. Tu podes

texturizar, ele não é definitivo. Tu podes tirar, cortar, arrumar. Eu até serro o meu trabalho de

papel machê, é maravilhoso.

Tens preferência pelo papel machê ou pela papietagem?

MARLENE – Combino no meu trabalho o papel machê e a papietagem. Fiz muitos objetos,

tudo eu vendi: jarros, mesas, banquinhos. Eu faço com camadas de papelão, em alguns eu uso

o MDF para a base porque senão ‘empena’, principalmente nas peças grandes. Então eu

conjugo tudo: papelão, MDF, jornal e papel machê nos meus trabalhos. É tudo a mesma

matéria-prima.

Já de início te anunciaste como uma alquimista, pois gostas de misturar coisas. Então já

experimentaste outros materiais junto com o papel machê...

MARLENE – Não tem fase melhor na arte. Agora que eu estou entrando numa fase mais

profissional, eu sinto uma saudade do tempo inicial, que é de experimentar. Fazer por fazer,

sem objetivo. Essa é a fase mais produtiva do artista.

Podes me dar um exemplo experimental teu?

MARLENE – Teve uma exposição no MARGS onde expus umas forminhas com pintura dentro.

Naquela época eu estava fazendo papel reciclado e fui comprar uma essência para adicionar

ao processo do papel e vi umas forminhas. Pensei: - vou levar. E um belo dia comecei a pintar

no fundo de uma forminha. Foram 21 mini-pinturas. Passei tinta-base nas forminhas para pintar

direto no fundo. O resultado ficou muito bom. Então esse processo é que eu acho que resulta

em coisas maravilhosas.

E as experiências com o papel machê?

MARLENE – Eu tenho uma sintonia com o papel. Desde criança, quando eu brincava muito

com papel para fazer bonecas e roupas para elas. Naquela época a gente inventava, não

tínhamos recursos para comprar brinquedos. É, na verdade, um retorno à minha infância. Eu

não sabia que podia fazer tanta coisa com o papel. Faz uns dez anos que eu descobri o quanto

eu podia fazer com o papel. Adoro jornal. Separo as páginas coloridas para usar em trabalhos.

A colagem com o jornal é muito boa, eu acho o jornal macio, o trabalho fica bom. Quando uso

resina, então...Endurece bem o trabalho e dá um acabamento lindo. É uma pena que não

valorizam.

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Por que tu achas que não valorizam?

MARLENE – Queres ver? As esculturas de papietagem com pedestal das cabeças que eu

expus na Arte & Fato em 2012, todos acharam maravilhosas mas ninguém comprou porque

eram de papel. O Décio (Presser) me disse que o problema era esse.Porque eram de papel.

Resolvi levar para casa e ver o que fazer com elas, porque as formas estavam muito bonitas,

mas se eu fizesse de novo com papel, iriam ‘empacar’. Todas as esculturas que fiz com

papietagem eu vendi, mas vendi direto, não foi pela galeria. É um preconceito com o papel. É

como a gravura. Nunca expus minhas gravuras, mas sei que se eu cobrar R$ 500, ninguém vai

comprar porque é papel.

Se acham o trabalho maravilhoso, então o problema é com o material, não?

MARLENE – As máscaras de parede eu vendi nesta ocasião. Acho que é porque eram de

parede. As peças tridimensionais de parede são mais aceitas do que as esculturas neste

material. Acho que o problema também é quando aparece demais o jornal no acabamento, no

tratamento final. Aí não sai. É o preconceito. Quando faço o acabamento com papel de seda,

não tem problema. Te coisas na arte que tu tens que te aperceber.

Então, se o artista quer vender, precisa mudar seu material expressivo para poder expor nas

galerias?

MARLENE – Têm que ser peças diferentes. Se são peças bem diferentes, eu acho que vende.

Até o Gaudêncio Fidelis, do MARGS, pegou uma escultura de uma cabeça e gostou. São

preconceitos. Acho que existe muito essa coisa de grupos, que se dizem os donos da verdade.

Eles criam esses preconceitos e todo mundo vai atrás. Então não compram porque pensam: -

Como vou colocar uma coisa dessas lá em casa? É muito complicado. Teve um senhor que

ficou umas duas horas olhando uma das peças de parede (de papietagem). Ele gostou mas

olhava e perguntava sobre a geometria. Dava uma volta, ia e voltava, olhava de lado, virava a

cabeça, mas no final comprou a peça.

Tuas peças de papel machê, são, na verdade, tuas pinturas, só que em 3 dimensões, não?

Quero dizer, a temática.

MARLENE – Teu fiz muitas cabeças em papel machê, vendi tudo. Às vezes me arrependia de

vender. A gente acaba esquecendo tudo o que já fez. Porque tem muita coisa que a gente faz

que não pensa em vender. Faz porque tem que fazer. Tem coisas que são acidentais e dão

certo. O que quero dizer, é que tem muita coisa boa que a gente faz sem intenção, aquilo

nasceu.

Como é a tua massa de papel machê? Podes revelar?

MARLENE – Eu faço a massa da seguinte maneira: o papel não vai no liquidificador. Eu ralo o

papel em uma peneira grande, parece coco ralado no final. Dependendo da maneira que tu

ralas o papel, mais graúdo ou mais miúdo, muda a textura também. A massa é boa porque me

permite, por exemplo, aparentar uma pedra e posso alisar partes se eu quiser.

Disseste que estás em uma fase bem profissional agora. Com o papel machê?

MARLENE – Depois desta minha exposição, em 2012, na arte & Fato, eu achei que faltou

alguma coisa, estava numa fase que precisava mexer no meu trabalho. Conversei com o Décio

(Presser) e ele me disse: - Por quê tu não conversas com a Ana Zavadil? Aliás, passaram dois

anos, quase não fiz nada. Como aquela exposição me deixou a desejar, fiquei dois anos

parada. Então o Décio me disse que a Ana Zavadil poderia me dar uma orientação, um

caminho a seguir. Pensei: - Vou falar com ela. Ela foi ao meu atelier, mostrei o meu trabalho.

Ela viu minhas pinturas e então eu parti para uma técnica nova, de trabalhar pintura com muito

carvão. E saí do formato pequeno para o grande, na pintura. O trabalho é demorado, tem um

processo de maturação. A riqueza está no processo. Quando a gente começa a se tornar

extremamente profissional – e a gente leva anos – levei 20 e tantos anos, agora é que estou

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ficando mais conhecida e profissional. Vou participar de uma exposição coletiva no Rio de

Janeiro, estou com as portas mais abertas porque estou com a curadora, a Ana Zavadil. Então,

como agora, que estamos falando das coisas que já fiz com o papel machê, dá umavontade de

começar a fazer... mas é que agora estou com as pinturas. Estas telas enormes levam muito

tempo. Mas eu vou voltar com o papel machê. E é por isso que eu volto a dizer que, essa

alegria do processo tu perdes quando começas a te relacionar com as galerias e exposições.

Perdes porque tens que fazer ‘isso’ ou ‘aquilo’ e porque teu espaço é ‘este’ e tal. Tu acabas

perdendo a liberdade. Quando tens curadores, eles vão quase te encaminhando, não é mais

como a gente fazer como antes, brincando. Mas tudo é difícil aqui em Porto alegre. Às vezes,

tu produzes inutilmente...mas é assim.

O que o papel machê, como técnica e material, te trouxe de bom?

MARLENE – O que eu gosto mesmo é essa coisa de misturar. É fascinante. Por isso acho que

a gente vive um mundo de felicidade. São por coisas pequenas, tão simples. Eu acho que tu

tens que aprender tudo que é técnica possível. Depois tu esquece a técnica porque ela já está

infiltrada dentro de ti. Quando tu começas a trabalhar, ela entra em ação e inconscientemente

começa a aparecer e a sair a ‘tua’ técnica, o ‘teu’ jeito, a ‘tua’ linguagem. É lindo isso, muito

bonito. E o papel machê veio para complementar o meu trabalho.

Quero reunir todos os artistas entrevistados que trabalham com o papel machê para, em grupo,

nos conhecermos e conversarmos sobre temas em comum, problemas, o que tu achas?

MARLENE – Acho boa essa coisa de grupo até para a gente tentar quebrar esse preconceito

que existe. Faz mesmo. Ano que vem organiza um grupo, acho maravilhoso. É tão amplo, cada

um com seu trabalho, suas idéias. A idéia de um grupo é muito boa.

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APÊNDICE 11

ENTREVISTA: MOACIR CHOTGUIS (1954)

Formado pelo Instituto de Artes da UFRGS em Licenciatura e Bacharelado em pintura; com pós-graduação em Expressão gráfica, pela Faculdade de Arquitetura, UFRGS. Na escultura usa a técnica da papietagem e do papel machê. 17º Salão de Artes Plásticas/Câmara Municipal de Porto Alegre/RS, Menção Honrosa (2006).

Entrevista concedida pela artista em 20 de novembro de 2014.

Como você começou a trabalhar com o papel machê?

MOACIR – Foi interessante. Na minha família, todo mundo é artista. A minha sogra foi

uma ceramista com 30 anos de pesquisa e eu comecei a trabalhar com ela, a fazer formas

escultóricas. Depois, comecei a pintar pratos de cerâmica. Minha sogra tinha toda a

estrutura para trabalhar com a cerâmica: forno, pigmentos, espaço. Mas, quando ela

faleceu, foi tudo vendido e o espaço para trabalhar com a cerâmica terminou. Foi uma

época muito frutífera. Saí da cerâmica então e pensei: - O que posso fazer agora? Queria

um material que eu pudesse carregar facilmente. Não queria pedra, madeira para esculpir,

nada disso. Queria um material leve, mas que me proporcionasse o trabalho com formas

grandes, que não precisasse de ferramentas pesadas, fornos, essas coisas. E aí escolhi o

papel. Pesquisei então, o papel machê.

Que idéia tiveste para iniciar e experimentar o novo material?

MOACIR – Comecei fazendo umas máscaras, o volume eu trabalhava com a massa do

papel machê. Mas o que fechou mesmo, foram as mandalas. Em 1990 fiz pós-graduação

em Arquitetura. Eu sempre gostei da questão de fazer módulos, repetições, fazer

maquetes, e aí pensei: - o papel machê pode me dar o que eu quero, pois me oferece a

questão da leveza; posso carregar para onde eu quiser, posso fazer coisas grandes.

Porque trabalhar com a cartonagem e a papietagem nesse meu processo de repetir

formas fechou com o que eu queria.

Estás trabalhando atualmente com o papel machê ou a papietagem?

MOACIR – Quando tu me ligaste para a entrevista e falaste sobre o papel machê, eu fiquei

com vontade de trabalhar de novo. Porque eu sou assim: no meu processo, eu dou um

grande foco no material e vou até um limite; aí me dá um cansaço e eu mudo de material,

dou um tempo. Então, depois que tu me ligaste, fiquei pensando de novo no papel machê

e estou com uma idéia de trabalhar uma torre de papel (papietagem).

É o papel machê ou a papietagem?

MOACIR – Quanto à questão da massa de papel machê, eu quero também trabalhar. Eu

gosto de criar, dentro da forma, um elemento com a massa que possa dar um novo tom no

trabalho.

É na escola, nas tuas aulas de Artes, o papel machê entra?

MOACIR – Olha, eu vejo que a maioria dos arte-educadores não tem uma pesquisa em

Artes. Eu acho que este material dá um alimento fantástico para o arte-educador. O

problema de trabalhar com o papel machê em sala de aula, primeiro: é o material. A escola

não dá nenhum material, e os alunos também não trazem quando a gente pede. E se tu

pedires dinheiro, é outro problema. O professor não tem como bancar o material. E tem

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também a questão da limpeza da sala, aí não dá. É um problema. Quando eu tiver a sala

de artes vou ter como trabalhar

Voltando ao artista, então, estás com vontade de retomar o papel machê?

MOACIR – Eu quero sim, continuar com as minhas mandalas. Essas formas repetidas

que eu chamo de “Cidades flutuantes”.

E quanto às exposições?

MOACIR – Estou expondo no Café Fon Fon (de 1º de novembro a 15 de dezembro 2014),

fica na Vieira de Castro. Vai ficar lá até 15 de dezembro. Estou alternativo. Quero expor

em bares. Vou procurar outros lugares para expor.

E as galerias?

MOACIR- Já expus em galerias. Em 2011, na Arte & Fato, quando era na Rua São

Manoel. Mas depois que a galeria mudou de endereço e foi para a Protásio Alves, eu falei

com o Décio (Presser) que queria expor e ele me disse que agora as condições eram

outras para expor. Queria R$ 4.000 para expor meu trabalho. Aí é um problema. Da outra

vez, não paguei para expor lá. Só gastei com a vernissage, o convite, essas coisas.

As galerias não cobram o percentual sobre a venda?

MOACIR- A Arte & Fato cobra assim: tu ficas 15 dias, tens o convite, a vernissage, a

divulgação, imprensa. Não precisa te preocupar com nada, mas tens que bancar. São R$

4.000. E ainda, o que tu venderes, a galeria cobra 40% da venda. Não tenho condições.

E nas outras galerias?

MOACIR- As outras, como a Tina Zapolli, por exemplo, que cobra R$ 8.000, daí para cima,

e a Bolsa de Arte é mais ainda, uns R$ 14.000, tu tens que vender o teu carro, porque é de

muito dinheiro que estamos falando.

Na verdade, o artista banca desde sempre, não?

MOACIR – Sim. Mas ele tem que escolher. Ou banca ou fica à margem. Tem que pensar,

não é 8, nem 80. Por isso que no bar tem vantagens: não pago para expor no espaço, se

vender, dou 10%. Tem o coquetel, o banner, o convite, mas não gasto nem 10% do que a

galeria quer cobrar.

Porque ainda tem o seguinte: na galeria, se não vender naquele prazo, não pagas nem o

investimento da exposição. Tem que ser meio corajoso né...

MOACIR – Acho que o artista tem que ser corajoso. Mas tem que procurar lugares

alternativos: bares, galerias alternativas. Porto Alegre está cada vez crescendo mais, está

mudando. Tu, como artista, tens que formar um público comprador. Tu vais expondo, as

pessoas vão olhando, conhecendo, se interessando, perguntando o preço. Por exemplo,

no Café Fon Fon, muitas pessoas se interessaram, perguntaram o preço. Então, é uma

formação de compradores. Quanto mais exposições tu fazes, vais formando um grupo, vão

chegando pessoas interessadas no teu trabalho. Mas isso também é um investimento, tem

o vernissage, o convite, a divulgação. Se tu vais fazer numa galeria, tu vais levar um

tempão nesse processo de formação de um público teu. E aí? Tens que pagar R$ 4.000,

R$ 8.000, até quando?

Acho que o artista tem que andar com suas pernas. Tem lugares bons em Porto Alegre. E

também mostrar teu trabalho para colecionadores, é gastar sapato mesmo.

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Eu queria te perguntar se tu achas que, o material, por ser papel machê, encontra uma

dificuldade maior de aceitação no circuito das artes em Porto Alegre?

MOACIR – Eu acho, sim, que as pessoas tem bastante preconceito. Porque, para elas, na

arte, vem primeiro a pintura. Pintura é pintura, depois vem as outras...

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APÊNDICE 12

ENTREVISTA: TINA ZAPPOLI (1955)

Galerista – Galeria Tina Zappoli

Entrevista concedida pela galerista em 13 de novembro de 2014.

Atualmente tem algum trabalho de papel machê na galeria?

TINA – Dos nossos artistas, quem trabalhava muito com o papel machê era a Magliani (Maria

Lídia Magliani / 1946-2012). Tem o que sobrou na galeria, são duas máscaras e um busto. A

galeria divulgou bastante o trabalho dela. Em 1990, a exposição “Em Gerais”, apresentou

pinturas, gravuras e esculturas em papel machê. Toda a parte escultórica da Magliani é com

papel machê. Em alguns trabalhos ela usou madeira junto com papel machê.

Como foi a experiência com o papel machê como material escultórico?

TINA – Foi muito pela Magliani. Houve uma época que ela morou em Minas Gerais, onde

trabalhou muito com o papel machê porque tinha espaço. Ela morava em uma casa, tinha

pátio, onde era mais fácil trabalhar com o papel machê, podia secar melhor as peças e pela

sujeira que acabava fazendo. Vendemos muitas peças dela. O público que gostava das

pinturas da Magliani gostava também das esculturas, que eram uma extensão do trabalho dela.

O papel machê era um material que ela sempre trabalhava?

TINA – Depois que ela se mudou para o Rio de Janeiro, deixou de fazer as esculturas em

papel machê, pois ela não tinha o mesmo espaço para trabalhar como teve em Minas. Então

ela se voltou mais para o desenho e a gravura. A parte escultórica ficou para trás. É uma pena

porque o trabalho dela em papel machê era muito bom e bonito.

Como era o trabalho escultórico da Magliani?

TINA – O trabalho da Magliani é figurativo. Na escultura também. Suas peças são pesadas,

tem uma mistura de terra nas esculturas de papel machê. Terra vermelha lá de Tiradentes,

Minas Gerais. O Estúdio Dezenove, desde 2013, está catalogando o trabalho da Maria

Magliani, resgatando suas obras, criando um trabalho de institucionalização da obra da

Magliani.

Existe algum tipo de preconceito em relação ao papel machê?

TINA – O trabalho da artista, no caso, a Magliani, estava acima do material que ela usava, o

papel machê. Nunca senti nenhum tipo de preconceito em relação a isso. Acho que depende

muito do trabalho do artista.

Por quê não tem trabalhos de papel machê nas galerias?

TINA – Talvez não tenham artistas importantes que estejam se manifestando com o papel

machê. Assim, por exemplo, como o trabalho da Magliani. Um trabalho forte, importante, que

todo mundo reconhece. Acredito que se o artista é importante e se meter a fazer papel machê,

ele se coloca nas galerias. Eu acho que não existe mais esse preconceito com a técnica, com a

mídia. É uma questão de trabalho, de linguagem. Talvez seja porque não tenha um artista

contemporâneo de alto nível fazendo papel machê. Às vezes tem os modismos né?

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APÊNDICE 13

ENTREVISTA: NIVES CICIN-SAIN (1961)

Nives Cicin-Sain mora em Split, na Croácia, onde se formou na Escola de Arte em 1979.

Tornou-se membro da Associação Croata de artistas independentes em 1989.

Nives realizou 20 exposições individuais na Croácia e no exterior e participou em mais de 50

exposições coletivas por todo o mundo. Em sua expressão artística, utiliza a técnica do papier-

mâché; aperfeiçoou sua técnica criando a sua própria mistura. A artista realiza várias oficinas

no ateliê, em Split, também realizou várias outras no Japão, Alemanha, EUA e Israel. Até 1999

ela participou de inúmeros projetos de teatro, modelagem de adereços, máscaras de arte e

jóias.

Entrevista concedida pela artista, após contato, por e-mail, em 2014.

Nives,

I’m very glad that you accepted to participate of my work.

Certainly it’ll have a differential for being from another culture, it’ll enrich the analysis

and reflections about the paper mache. There’s no need for hurry, we have quite a long time.

Feel free to not answer a question if you don’t want to. In advance, thank you very much.

So, here are the questions:

How and why did you start working with paper machê?

NIVES CICIN-SAIN – When I was 16 years old, I learned a simple recipe from a german

newspaper and started working and experimenting alone at home.

What is the kind of work you like mostly to do? Why?

NIVES CICIN-SAIN – I like human and animals faces the most because they can express a lot

of emotions.

What is essential for your work?

NIVES CICIN-SAIN – Introspection: just being inside by myself and relaxed makes ideas flow

free and materialize through my hands.

Is there any real life situation that inspired you?

NIVES CICIN-SAIN – My art is reflections and answers of every experience from my daily life.

Do you think that the life of an artist is lonely?

NIVES CICIN-SAIN – I am okay with being alone, that doesn’t mean I’m lonely. Often, it’s more

interesting and crowded on my mind than in the real life.

Do you prefer to create or to make/produce a piece?

NIVES CICIN-SAIN – Creation starts on my mind and heart, I’m not in peace until I finish it. It

doesn’t work separately and I enjoy doing both.

What do you like about the art world?

NIVES CICIN-SAIN – There’re endless possibilities of creating, living and giving beauties to the

world by doing art.

What thinkers inspire you?

NIVES CICIN-SAIN – Spiritual masters, poetry and mysticism inspire me the most, like

Rabindranath Tagore and Mawlana Jalaluddin Rumi.

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Do you remember your art classes at school? Were they good and inspiring?

NIVES CICIN-SAIN – I finished art school and the focus was photography. I learned a lot about

lighting and composition, I’m really grateful for that experience of how to watch.

What do you like about your work?

NIVES CICIN-SAIN – Absolutely everything!

In europe, is there any kind of preconception for paper mache by the galleries and arts circuit?

Does the public adopt it well?

NIVES CICIN-SAIN – I'm a professional artist and technic is the only way for me of expressing

my inner world. It's like writing poetry: first, you learn writing and if it is good, it doens't matter if

it's in english, french or german.

Can you talk a bit about your exibitions in Europe and other places?

NIVES CICIN-SAIN – After giving a start to my work, it's important to let all of it out, not to keep

it inside. I love to see and hear what people feel about it, they almost say the same things in

Japan, Croatia and Germany.

What do people look up and like to make in their workshops?

NIVES CICIN-SAIN – My basic workshops are for masks, people come with differents ideas of

what to do, but nearly always they portray themselves. It's fun for me.

Your masks are gorgeous, they have your essence on it, very genuine, and wonderful details.

Do you have many orders by theaters?

NIVES CICIN-SAIN – For 20 years I worked for the theater and learned a lot with that, but after

some time, I wanted to do art without comissions and borders. It was a great experience, but it's

in the past now.

Does your work and the paper mache have any relation with your childhood?

NIVES CICIN-SAIN – Yes, we used to have the holy family and little sheeps under the

Christmas tree, it was all made of paper mache. I adored it, and it was one of my biggest

compositions of my twenties, the Betlehem.

Nives Cicin-Sain, 2014, Croatia.