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A REFORMA UNIVERSITÁRIA “EM CONSTRUÇÃO”: AS PROPOSTAS DE REESTRURAÇÃO DA UFRGS DURANTE O GOVERNO GOULART (1961-1964) CUNHA, Janaína Dias – UNISINOS – [email protected] EIXO: HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO/ N. 12 Agência Financiadora: CNPq “A Universidade deve iniciar, em seu próprio plano, a democratização que queremos estender a todos os setores da vida social. E se pretendemos, sinceramente, a democratização da vida econômica, da vida política, da vida social, então, Senhores universitários, comecemos desfraldando a democratização da cultura.” Ernani Maria Fiori (Aspectos da Reforma Universitária, 1962) Introdução O golpe de 31 de março de 1964 não significou apenas a destituição do governo de João Goulart e a interrupção do regime democrático no país. O golpe de 1964 representou também o fim de um projeto de reforma universitária que estava sendo construído entre os estudantes e os professores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), desde o final da década de 1950 e que passou a ser determinado pela política educacional adotada pelos governos autoritários a partir de 1964. O objetivo deste artigo é analisar as propostas de reforma universitária que estavam sendo debatidas no meio universitário da UFRGS, pelos diversos atores envolvidos, durante o período do governo de João Goulart (1961-1964). Este trabalho integra uma pesquisa que está sendo desenvolvida no curso de mestrado em Educação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS, e que tem por objetivo investigar, através de uma perspectiva histórica, o impacto da política educacional adotada durante a ditadura civil-militar brasileira no processo de reestruturação da UFRGS, entre os anos 1964 e 1972, considerando o contexto de ruptura política e de regime autoritário característico do período.

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Page 1: Paper de janaína dias na anpedsul

A REFORMA UNIVERSITÁRIA “EM CONSTRUÇÃO”: AS PROPOSTAS

DE REESTRURAÇÃO DA UFRGS DURANTE O GOVERNO GOULART

(1961-1964)

CUNHA , Janaína Dias – UNISINOS – [email protected]

EIXO: HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO/ N. 12

Agência Financiadora: CNPq

“A Universidade deve iniciar, em seu próprio

plano, a democratização que queremos estender a

todos os setores da vida social. E se pretendemos,

sinceramente, a democratização da vida

econômica, da vida política, da vida social, então,

Senhores universitários, comecemos desfraldando

a democratização da cultura.”

Ernani Maria Fiori

(Aspectos da Reforma Universitária, 1962)

Introdução

O golpe de 31 de março de 1964 não significou apenas a destituição do governo

de João Goulart e a interrupção do regime democrático no país. O golpe de 1964

representou também o fim de um projeto de reforma universitária que estava sendo

construído entre os estudantes e os professores da Universidade Federal do Rio Grande

do Sul (UFRGS), desde o final da década de 1950 e que passou a ser determinado pela

política educacional adotada pelos governos autoritários a partir de 1964.

O objetivo deste artigo é analisar as propostas de reforma universitária que

estavam sendo debatidas no meio universitário da UFRGS, pelos diversos atores

envolvidos, durante o período do governo de João Goulart (1961-1964). Este trabalho

integra uma pesquisa que está sendo desenvolvida no curso de mestrado em Educação

da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS, e que tem por objetivo

investigar, através de uma perspectiva histórica, o impacto da política educacional

adotada durante a ditadura civil-militar brasileira no processo de reestruturação da

UFRGS, entre os anos 1964 e 1972, considerando o contexto de ruptura política e de

regime autoritário característico do período.

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O ensino superior brasileiro no início da década de 1960

O debate sobre a reforma universitária foi recorrente durante toda a década de

1960. Durante aproximadamente dez anos, entre 1958 e 1968, o tema da reformulação

do sistema de ensino superior público nacional tornou-se central nos meios acadêmico,

político, universitário e civil. A urgência da questão universitária era decorrente das

transformações econômicas e sociais ocorridas no Brasil, nas décadas anteriores, e do

aumento da demanda por educação. O processo de industrialização e urbanização,

intensificados nas décadas de 1940 e 1950, através do modelo que se convencionou

chamar de “substituição de importações”, provocou um deslocamento nos canais de

ascensão das camadas médias urbanas. Com o estreitamento do capital empresarial,

através dos monopólios, e com a impossibilidade de reproduzir o pequeno capital em

negócios próprios, também devido ao monopólio das grandes empresas, as classes

médias passaram a definir o topo das burocracias públicas e privadas como alvo da

ascensão. Como essas burocracias eram organizadas de forma hierárquica, utilizando os

graus escolares como requisitos de admissão e promoção, houve uma demanda de

escolarização em todos os níveis (Cunha, 1982: 41-61). Contudo, como a estrutura

tradicional das universidades públicas, na época, não conseguiam atender a demanda

por vagas, tal situação provocou uma crise nesse sistema de ensino e uma pressão por

parte desses setores médios urbanos pela ampliação e reformulação do sistema

universitário.

No Rio Grande do Sul, a realidade do meio universitário assemelhava-se

bastante com a realidade nacional. Em 1960, a UFRGS1 continha cerca de cinco mil

alunos matriculados, de um total de aproximadamente dez mil estudantes universitários

em todo o Estado do Rio Grande do Sul. O número de alunos matriculados no ensino

secundário ficava em torno de vinte e cinco mil pessoas por ano (UFRGS, 1977: 11-19).

A capacidade de absorção desse contingente de concluintes era, portanto, deficitária. O

número de pessoas aptas a ingressar nas universidades do Estado correspondia ao dobro

da capacidade do número de vagas oferecido anualmente pelas instituições. Dessa

forma, no início da década de 1960, a UFRGS podia absorver apenas 25% dos alunos

concluintes do ensino secundário estadual.

1 Integravam a UFRGS, em 1961, além das Faculdades e Escolas localizadas em Porto Alegre, também os cursos de Direito e Odontologia de Pelotas, que, posteriormente, deram origem à UFPel, em 1969.

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Comparando esses dados aos da população total do Rio Grande do Sul no

mesmo período, o percentual fica ainda mais reduzido. A população total do Estado era

estimada em aproximadamente cinco milhões e meio de habitantes, ou seja, mil vezes

mais do que o número de alunos matriculados na UFRGS. Proporcionalmente, portanto,

o número de pessoas que conseguiam ingressar na universidade pública federal no

Estado correspondia a 0,1% da população total do Rio Grande do Sul.

Para colaborar com essa conjuntura, o sistema de ingresso à universidade

também contribuía para o agravamento da crise universitária. O exame vestibular ainda

não era unificado. Cada Escola ou Faculdade executava o seu exame de seleção

correspondente ao curso de ingresso. Eram considerados aprovados todos os candidatos

que atingiam a média mínima requisitada no exame. O número de vagas, contudo, nem

sempre era suficiente para abrigar todos os candidatos considerados aprovados na

seleção. Essa situação gerava a figura do “excedente”, ou seja, os candidatos que eram

aprovados nos exames de seleção, mas que não podiam ingressar nas universidades por

falta de vagas. Embora, comparativamente, o número de excedentes tenha sido menor

no Rio Grande do Sul do que em outros estados da federação, como a Guanabara ou São

Paulo, não se pode negar que tal condição contribuía para o descontentamento relativo a

essa modalidade de seleção e ingresso e aumentava a pressão pela reformulação do

sistema de ensino superior no país.

O debate sobre a reforma universitária no meio estudantil

É nesse contexto que surgem as mobilizações estudantis em favor de uma

reformulação da universidade pública brasileira. Em maio de 1961, tendo como objetivo

promover o debate entre os estudantes sobre o tema da reforma universitária, a União

Nacional dos Estudantes (UNE) organizou em Salvador, o I Seminário Nacional de

Reforma Universitária.2 O evento que teve duração de uma semana, contou com o apoio

da União dos Estudantes da Bahia (UEB) e com a participação de palestrantes como

Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso, Darcy Ribeiro, Celso Furtado,

Otávio Ianni (UNE, 1961: 4).

2 Antes desse I Seminário Nacional de Reforma Universitária, a UNE já havia organizado o I Seminário Nacional de Reforma do Ensino, no Rio de Janeiro, em 1957, quando o problema da reforma universitária já era apontado. Ver: Fávero (1995: 25-27).

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Além dos professores convidados, também participaram do Seminário várias

delegações enviadas por entidades de representação discente, como as Uniões Estaduais

dos Estudantes, respectivas de cada Estado, e as Federações de Estudantes de diversas

universidades. Cada delegação ficava responsável pela elaboração de um documento de

síntese, contendo suas propostas, para ser apresentado para deliberação nas plenárias,

durante o evento. A Federação dos Estudantes da Universidade do Rio Grande do Sul

(FEURGS), principal órgão de representação estudantil da UFRGS, naquele período,

encaminhou o documento Reforma Universitária: democratização do ensino (FEURGS,

1961-A).

Uma das reivindicações centrais da tese apresentada pela delegação da FEURGS

era a democratização do ensino. Segundo os estudantes, a democratização da

Universidade era requisito para a democratização da sociedade. A Universidade apenas

conseguiria cumprir sua função social se, além de contribuir para o desenvolvimento

econômico do país, também operasse na diminuição das desigualdades sociais e

buscasse “o equilíbrio social indispensável para a caracterização da verdadeira

Democracia” (FEURGS, 1961-A: 3).

Como medidas para democratizar o ensino os estudantes da FEURGS defendiam

que a democratização deveria iniciar pela democratização do ensino pré-universitário,

através da valorização do ensino secundário, também a democratização do ingresso à

Universidade, e, como forma de garantir a permanência dos estudantes na Universidade,

a gratuidade absoluta do ensino superior e a manutenção e ampliação da assistência

universitária (FEURGS, 1961-A: 4-6). Além disso, propunham a participação ampla dos

estudantes no governo universitário, a publicidade dos atos universitários, a extinção da

cátedra e a organização da carreira do professo, a reforma dos currículos e dos regimes

didáticos desatualizados, a aplicação adequada das dotações orçamentárias das

Universidades, incluindo a modificação da política financeira federal, com maior

atenção ao setor da educação, em detrimento das pastas militares (FEURGS, 1961-A:

12-13).

Ao final do encontro, os estudantes elaboraram um documento de síntese,

contendo as resoluções debatidas durante o Seminário, que ficou conhecido como

Declaração da Bahia (UNE, 1961-B). O documento, dividido em três partes,

apresentava as considerações dos estudantes a respeito da realidade brasileira, do

sistema de ensino superior no país e as propostas para a reforma universitária. Uma das

críticas apresentadas no manifesto referia-se à “estrutura oligárquica, antidemocrática e

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conservadora da ideologia do status quo”, características da universidade brasileira do

período, e que refletia a estrutura social do país.

Para a UNE, era necessário lutar pela democratização do ensino, dando a todos

condição de acesso à educação. Também era preciso, na avaliação dos estudantes,

colocar a universidade a serviço das classes desvalidas, com a criação de escritórios de

assistência jurídica, médica e técnica; e fazer da universidade um veículo de

representação das reivindicações populares, através da atuação política da classe

universitária junto aos poderes públicos.

O documento, contudo, não ficava restrito ao problema universitário. Abordava

também questões da realidade sócio-econômica brasileira, como as desigualdades

regionais, o problema do latifúndio e da concentração de renda. Para os estudantes

representados pela UNE, a reforma universitária não deveria ser realizada de forma

isolada, mas deveria estar inserida em um programa mais amplo de reforma social.3

Em agosto de 1961, apenas três meses após a realização do Seminário

promovido pela UNE, a FEURGS organizou, em Tramandaí, o I Seminário de Reforma

da URGS.4 O objetivo do encontro era trazer o tema da reforma universitária para o

âmbito local e promover o debate entre os estudantes da UFRGS.

As resoluções do I Seminário de Reforma da URGS se assemelhavam bastante

ao documento elaborado em maio pelos estudantes da UNE. O documento da FEURGS,

mais elaborado do que a primeira tese apresentada no Seminário da UNE, questionava o

caráter elitista e conservador da universidade. A estrutura social da universidade

espelhava, segundo o manifesto, a estratificação da sociedade brasileira. Da mesma

forma, a estrutura pedagógica constituía o “reflexo da mentalidade que possui a camada

social que a compõe” (FEURGS, 1961-B: 19).

Os estudantes da FEURGS continuavam questionando a forma de ingresso à

universidade. Relatavam que a universidade era antidemocrática tanto na forma de

acesso, quanto na forma administrativa que adotava. Para solucionar essas questões, a

entidade defendia novamente a reforma no sistema de ingresso, a assistência social ao

estudante universitário (para lhe garantir a possibilidade de permanência durante o 3 Outros dois Seminários Nacionais de Reforma Universitária foram promovidos pela entidade estudantil nos anos seguintes, em 1962 e 1963, em Curitiba e Belo Horizonte, respectivamente. As resoluções desses encontros, Carta do Paraná (1962) e UNE A luta atual pela reforma universitária (1963), respectivamente, apresentavam o mesmo teor do documento do I Seminário. Os estudantes adotavam uma perspectiva crítica da realidade brasileira, ao mesmo tempo em que propunham medidas de reformulação do ensino superior do país (Fávero, 1995). 4 Apesar de ter sido federalizada em 1950, a grafia URGS continuou sendo utilizada nos documentos oficiais até meados da década de 1960, quando a sigla UFRGS tornou-se predominante.

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curso) e maior participação do estudante na administração universitária (FEURGS,

1961-B: 23). Nesse ponto, sugeriam a “distribuição eqüitativa nos Conselhos e

Congregações de docentes e discentes” e propunham a instituição do “co-governo” nas

bases recomendadas pela Declaração da Bahia: participação de professores (40%),

estudantes (40%) e egressos (20%), esses formados ou não pela URGS (FEURGS,

1961-B: 31-32).

Outros pontos defendidos pelos estudantes da FEURGS diziam respeito à

reforma dos métodos de ensino universitário, “reformulação dos programas, revisão dos

currículos e reestruturação dos cursos” (FEURGS, 1961-B: 44). Defendiam também a

criação do sistema departamental, a associação do ensino à pesquisa e a construção

imediata da Cidade Universitária, incluindo a “revisão do plano existente para adaptá-lo

de acordo com o espírito da reforma” (FEURGS, 1961-B: 51). Propunham ainda a

extensão da universidade ao povo, “seja através da eliminação das barreiras econômicas

que lhe impedem o acesso, seja estendendo os conhecimentos que recebe às diferentes

camadas populares, seja apoiando a luta pela melhoria de vida da população”

(FEURGS, 1961-B: 53).

Da mesma forma que para a UNE, também para os estudantes da FEURGS a

reforma universitária deveria integrar um projeto mais amplo de reforma social:

Para que nossos ideais sejam atingidos plenamente, é necessário desenvolver ao mesmo tempo em que se reconstrua a Universidade brasileira um intenso processo de evolução sócio-econômica do país. Reforma Agrária, Reforma Urbana, socialização dos meios de produção, maiores liberdades democráticas, reforma eleitoral, industrialização, tudo que permita de fato a ascensão do proletariado e dê a todo o povo as condições mínimas de vida compatíveis com a dignidade humana, são parte de um programa integral que atinge todos os setores da Nação. Cada reforma em especial e a Universitária em particular, é uma peça fundamental no conjunto da Revolução Brasileira, ora em processo (FEURGS, 1961-B: 61).

A associação da reforma universitária a um projeto mais amplo de reforma

social, como defendiam os estudantes da UNE e da FEURGS, é uma qualidade do início

da década de 1960. O período imediatamente anterior ao golpe de 1964 é um momento

de intensa mobilização da sociedade e de acirramento das lutas políticas e sociais no

país. O Governo Goulart (1961-1964) ficou caracterizado por essa agitação social, que

transcendia o ambiente universitário. A politização das organizações dos trabalhadores,

no campo e na cidade, exigia a ampliação da cidadania para essas classes, apoiando

reivindicações políticas que visavam o alargamento da democracia liberal vigente, como

o direito de voto aos analfabetos e o direito das classes subalternas das forças armadas

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de postulares cargos eletivos. O sindicalismo, através do Comando Geral dos

Trabalhadores (CGT) e demais organizações sindicais, alcançou intensa atividade

durante esse período, realizando greves e paralisações por todo o país. No campo, as

Ligas Camponesas tiveram importante participação nas lutas de resistência de pequenos

agricultores e não-proprietários contra a tentativa de expulsão das terras onde

trabalhavam, e passaram a concentrar as lutas da classe trabalhadora rural pela

realização da reforma agrária. (Toledo, 2004: 68-72).

Nesse contexto, o movimento estudantil também teve importante atuação nas

agitações políticas e debates culturais. A mobilização dos estudantes não dizia respeito

apenas à reivindicação da reforma universitária. Associado a outras organizações sociais

e políticas, o movimento estudantil apoiou as campanhas de alfabetização de adultos,

organizou os centros populares de cultura, e através de caravanas, percorriam o país,

promovendo debates a respeito das reformas de base, do imperialismo, da reforma

universitária e do subdesenvolvimento. Vinculavam a reforma universitária às demais

demandas da sociedade naquele momento. Dessa forma, propunham a integração da

reforma universitária em um projeto mais amplo de reforma social. E, para a realização

e implantação de tais reformas, defendiam o fortalecimento da aliança operário-

estudantil.

Dando seguimento aos encontros sobre o tema da reforma universitária, em

janeiro e fevereiro de 1962, os estudantes da FEURGS organizaram, em Porto Alegre, o

1º Encontro Universitário de Reforma de Currículo. O objetivo do encontro era

promover entre o corpo discente o debate sobre a reforma dos currículos dos cursos da

UFRGS. Participaram do encontro os estudantes que integravam os centros acadêmicos

das faculdades e escolas da universidade.5

O documento final do Encontro manteve o formato de organização do evento,

apresentando as resoluções separadas, formuladas pelas delegações dos estudantes de

cada um dos cursos da UFRGS que participaram do evento (FEURGS, 1962). As

resoluções apresentadas respeitavam as diretrizes gerais estabelecidas no evento

realizado no ano anterior, vinculando a reforma universitária às demais reformas sociais

reivindicadas por uma parcela da população no período. Mas o documento apresentava

5 Além da FEURGS, participaram do Seminário como órgãos de representação estudantil os seguintes centros acadêmicos, respectivos a cada unidade universitária (Faculdade ou Escola): o Centro Acadêmico Franklin Delano Roosevelt (Faculdade de Filosofia), o Centro Acadêmico Christiano Fischer (Faculdade de Farmácia), o Centro Acadêmico da Escola de Enfermagem, o Centro de Estudantes Universitários de Engenharia, o Centro Acadêmico dos Estudantes de Geologia, o Centro dos Estudantes Universitários de Ciências Econômicas e o Centro Acadêmico André da Rocha (Faculdade de Direito) (FEURGS, 1962).

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também uma contribuição sobre a opinião dos estudantes em relação ao formato

curricular de cada curso da universidade, apresentando as considerações e sugestões

para reformulação. Avançando, nesse sentido, em comparação com as resoluções e

medidas propostas nos documentos anteriores, uma vez que apresentavam propostas de

soluções para os problemas da realidade interna da universidade.

Além dos estudantes, o encontro contou também com a participação de alguns

docentes da instituição, que contribuíam com palestras e debates. Um desses

professores, o prof. Luiz Pilla, posteriormente chegou a integrar a Comissão de

Planejamento do Conselho Universitário da UFRGS.

A participação de professores nos seminários e encontros sobre a reforma

universitária promovidos pelos estudantes tornou-se recorrente no período pré-1964. Em

um outro evento, o Seminário de Reforma Universitária, promovido pela União

Estadual dos Estudantes do Rio Grande do Sul (UEE), em Porto Alegre, em junho de

1962, foi convidado para participar como palestrante o prof. Ernani Maria Fiori, diretor

da Faculdade de Filosofia da UFRGS, no período.

A palestra, que tinha como tema central a reforma universitária, foi publicada no

mesmo ano pela UEE, nos Cadernos da Reforma Universitária. Em sua fala transcrita,

o prof. Fiori buscava dialogar com os estudantes universitários, comentando os pontos

principais de reivindicações dos discentes. Dessa forma, temas como democratização do

ensino, greve de estudantes, a função da universidade, o sistema catedrático e a

representação estudantil foram novamente analisados e comentados, dessa vez pela

ótica do professor. Adotando uma perspectiva crítica a respeito da estrutura universitária

tradicional no país, sem, contudo, criticar a própria instituição, a UFRGS, o prof. Fiori

mostrou-se favorável a várias das propostas apresentadas pelos estudantes, inclusive

aquelas relativas à democratização da universidade e ao aumento da proporção de

representatividade discente. Outra vez em consonância com a fala dos estudantes, o

prof. Fiori também associava a reforma universitária à reforma social. Afirmava que as

duas reformas não “se desligavam”, pois reformando a universidade, os estudantes

estariam trabalhando para reformar a sociedade, e, forçando a reforma social, estariam

também reformando a universidade (Fiori, 1992: 43).

Evidentemente, nem todos os professores participavam dos seminários de

reforma universitária organizados pelos estudantes, e um número ainda menor de

professores adotavam posturas como a do prof. Fiori, apoiando a causa estudantil e

parte das reivindicações estudantis. A participação desses professores, contudo, era um

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indício de que, apesar de os estudantes não contarem com o percentual representativo

por eles desejados nos órgãos deliberativos da instituição, havia uma sinalização de

diálogo e cooperação entre o corpo docente e discente da universidade no que dizia

respeito ao tema da reforma universitária e curricular.

As primeiras medidas para a reestruturação da UFRGS

A questão da reforma universitária não ficou restrita às discussões e debates nos

seminários estudantis. Com o objetivo de iniciar o processo de reforma da instituição, é

criada em junho de 1963 a Comissão de Planejamento. Tal comissão, formada por três

professores integrantes do Conselho Universitário (Consun), tinha a finalidade de

elaborar um plano para ampliação e reformulação estrutural da UFRGS. Apesar das

reivindicações dos estudantes, a comissão não possuía representação discente.

O primeiro trabalho elaborado pela Comissão de Planejamento, Diretrizes sobre

o tema da reforma universitária, foi encaminhado ao Conselho Universitário para ser

submetido à apreciação em março de 1964. O documento descrevia as intenções e as

considerações preliminares para o trabalho que seria desenvolvido pela Comissão. Os

professores que integravam a Comissão adotavam como diretrizes gerais para o estudo

da reformulação da instituição os seguintes princípios: a unificação da base cultural da

Universidade e a defesa da educação liberal diversificada e flexível. E defendiam como

primeiras medidas a serem tomadas: “a substituição do sistema centralizado e compacto

da Faculdade para um sistema de Departamentos” e “a reunião dos Departamentos afins

em Institutos Centrais” (UFRGS, 1964: 5).

Além das considerações preliminares para o trabalho a ser desenvolvido pela

Comissão, o documento também apresentava outros trabalhos, desenvolvidos por

especialistas externos à universidade.6 O objetivo de apresentar os estudos elaborados

por técnicos de outras instituições era oferecer subsídios sobre o tema da reforma

universitária e apresentar alternativas já em fase de aplicação em outras universidades,

cujos planos de reestruturação a UFRGS poderia tomar como exemplo. Diferentemente

das propostas apresentadas pelos estudantes nos seminários de reforma universitária, o

6 Os documentos que integravam o trabalho da Comissão de Planejamento eram: “Elementos da organização universitária”, apresentado no III Fórum Universitário, organizado pela Diretoria de Ensino Superior (DESu) do MEC, em Brasília, em 1961; “Diretrizes para a reforma da Universidade do Brasil”; e “Princípios da reforma universitária”, de Rudolph Atcon, sobre a Universidade Nacional Autônoma de Honduras (UFRGS, 1964).

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documento da Comissão de Planejamento defendia medidas mais pragmáticas e

próximas do que já havia sido realizado em outras instituições.

Apoiando-se nas alternativas aplicadas em outras universidades, a Comissão de

Planejamento definia um roteiro de trabalho para a elaboração de um plano de

reestruturação. O roteiro preliminar apresentava medidas como: a atualização das

estruturas administrativas visando adaptá-las às tarefas concretas estabelecidas por um

sistema de planejamento; o levantamento de dados sobre a situação da Universidade,

nos seus vários setores de ensino e pesquisa; o arrolamento de toda a documentação

referente à Universidade, como estatutos, regimentos e convênios; a promoção de

reuniões informais com professores e diretores de Faculdades e Institutos para a

identificação dos principais problemas ligados à implantação da reforma universitária; e

a colaboração dos professores e organizações estudantis sobre os temas das

transformações das universidades em fundações e autarquias, da estrutura e

funcionamento dos institutos e departamentos, da extensão dos serviços culturais da

Universidade à comunidade e da integração da Universidade com a vida regional

(UFRGS, 1964: 10).

Denota-se, a partir da leitura do documento, que, mesmo sendo uma Comissão

institucional, existia, entre os membros que a compunham, uma predisposição manifesta

ao diálogo e a ouvir os sujeitos envolvidos no processo de reestruturação. A elaboração

do plano de reestruturação seria, ao menos em tese, realizada, internamente na

instituição, de forma dialogada com as partes interessadas. Ainda que os estudantes não

integrassem a Comissão de Planejamento, eles também seriam ouvidos por essa quando

da elaboração do projeto de reformulação.

Com o golpe civil-militar de 1964, essa situação foi modificada. Como nas

demais universidades federais, a UFRGS sofreu as práticas repressivas pelos agentes do

regime autoritário logo nas primeiras semanas após o golpe. O então reitor, prof. Elyseu

Paglioli, foi afastado, sendo substituído pelo prof. Luiz Leseigneur de faria, em caráter

interino, e, posteriormente, pelo prof. José Carlos da Fonseca Milano, que permaneceu

no cargo até 1968.

Como em outras universidades federais, foi instalada uma Comissão Especial de

Investigação Sumária (CEIS), atrelada à Comissão Geral de Investigações, responsável

pela averiguação de “atos de subversão” no interior das faculdades. A CEIS era

composta por professores das diversas unidades universitárias e por um representante do

III Exército, o Gen. Jorge Cesar Garrastazu Teixeira. O conceito vago de “atos de

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subversão” permitia enquadrar qualquer indivíduo como “perigoso” ou “subversivo”.

Uma das conseqüências da instalação e atuação da CEIS, ainda em 1964, foi o

afastamento de vários professores e alguns estudantes da universidade, inclusive o prof.

Fiori (ADUFRGS, 1979: 53).

As práticas repressivas não ficavam restritas à investigação da atuação dos

professores da universidade. Também a FEURGS sofreu intervenção direta de um

representante do III Exército, o Ten. Cel. Antonio Mendes Ribeiro, por um período de

dois meses, logo após o golpe. Mesmo após o término da intervenção, a entidade teve

sua atuação restringida e foi oficialmente extinta no final de 1964, com a promulgação

da Lei Suplicy (Lei nº 4.464/64).

Diante desta conjuntura autoritária, a realização de seminários e encontros de

reforma universitária da forma como eram organizados pelos estudantes antes do golpe,

tornaram-se cada vez mais escassos. Grandes encontros tornaram-se praticamente

inviáveis, pois o caráter dúbio e demasiado abrangente da legislação repressiva

estudantil poderia facilmente enquadrar, como “subversivos”, os estudantes envolvidos.

A limitação da atuação dos estudantes, contudo, não significou o abandono do

espírito político e engajado por parte de alguns grupos estudantis. Esses passaram a

buscar alternativas e outras formas de atuação e reivindicação, como os protestos, as

passeatas e algumas ocupações de prédios e faculdades.

Também a pauta de reivindicações estudantis teve que ser adequada ao contexto

autoritário. Ao discurso em favor das reformas (universitária, agrária, urbana...) somou-

se o discurso contra a ditadura, contra os acordos MEC-USAID, contra a repressão e a

censura e contra a reforma universitária da forma como estava sendo imposta às

universidades.

A despeito das manifestações, greves e ocupações contra a reforma, a

reestruturação da UFRGS continuou a ser elaborada pelos professores que integravam o

Conselho Universitário. A participação dos estudantes se resumiu à representação no

alto colegiado da instituição. Uma representação muito restrita e quase sem direito à

voz. As medidas reformadoras impostas pelo governo autoritário para modificar o

sistema público de ensino universitário no país foram sendo aplicadas pelos professores

da instituição, e a reestruturação da UFRGS foi, aos poucos, adquirindo as formas

delineadas pelos técnicos da ditadura.

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Considerações finais

Este artigo buscou analisar as propostas de reforma universitária e reestruturação

da UFRGS, apresentadas durante o período de governo de João Goulart. Considerar que

a política educacional adotada a partir de 1964 foi determinante para o processo de

reestruturação da UFRGS é ignorar todo o processo interno que estava acontecendo na

universidade no período imediatamente anterior ao golpe. Os debates acerca do tema da

reforma universitária na instituição já estavam acontecendo antes da intervenção

autoritária e eram realizados tanto pelos estudantes como também pelo corpo docente da

instituição.

Contudo, é inegável que a política educacional adotada pelos governos

ditatoriais foram determinantes para a forma como ocorreu a reestruturação da UFRGS.

Se antes do golpe, havia uma possibilidade de diálogo entre o corpo docente e discente

da instituição, após 1964 esse diálogo ficou restrito ao Conselho Universitário. A

reforma universitária na instituição passou a ser definida por meio de medidas impostas

pelo Ministério da Educação e Cultura (MEC) e pelo Conselho Federal de Educação

(CFE), através de decretos-leis, pareceres e resolução.

Também a concepção de reforma universitária e de universidade foi alterada a

partir de 1964. Se antes do golpe, era reivindicada a democratização do ensino e a

reforma universitária era associada à reforma da sociedade, a partir da intervenção

autoritária a questão da reforma universitária foi modificada conforme os preceitos

ideológicos do novo regime. Os projetos de democratização e reforma social vinculados

à reforma universitária do pré-1964 foram abandonados.

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