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ALÉM DA TROPICALIZAÇÃO: UMA TIPOLOGIA SOBRE COMPETÊNCIAS EM DESENVOLVIMENTO DE PRODUTOS NAS MONTADORAS DE AUTOMÓVEIS NO BRASIL
1.Introdução
A indústria automobilística tem sido, de longa data, objeto de inúmeros estudos realizados no
Brasil. Aspectos como reestruturação produtiva, organização do trabalho, sindicalismo,
interação com fornecedores, entre outros, são alguns dos temas que por décadas têm estado na
pauta dessas pesquisas. Entretanto, o interesse acerca da contribuição dessa indústria para a
ampliação das atividades de P&D (pesquisa e desenvolvimento) no país apenas recentemente
passou a ser investigada com maior interesse pela literatura. A esse respeito, merecem
destaques os trabalhos realizados por Quadros et al (2000); Salerno et al (2002); Consoni e
Quadros (2002); Dias (2003); Consoni (2004). Da perspectiva das montadoras de automóveis
instaladas no Brasil, essa literatura converge ao afirmar que essas empresas, todas elas
subsidiárias de corporações multinacionais, tendem a realizar no país essencialmente
atividades voltadas ao desenvolvimento de produtos (DP) e processos, ainda que com
diferentes graus de complexidade entre elas, havendo pouca ou quase nenhuma inclinação ao
desenvolvimento da pesquisa tecnológica.
A pesquisa tecnológica, aqui referida, envolve a realização de atividades mais sofisticadas que
incorporam maior conhecimento técnico-científico, demandam tempo maior de
desenvolvimento (vários anos de pesquisa) e dão sustentação às atividades de engenharia de
forma geral. Em relação a esse tipo de atividade, as matrizes e/ou os centros externos de P&D
continuam a ser a fonte de informação e de conhecimentos tecnológicos mais complexos para
as montadoras instaladas no Brasil. Entretanto, tal limitação não implica necessariamente um
cenário negativo para o país se considerarmos que a competitividade no setor automotivo
mundial tem se pautado muito mais na capacidade de desenvolver produtos de forma rápida e
eficiente, objetivando aperfeiçoar tecnologias já existentes nos veículos gerando inovações
incrementais, em conformidade com as demandas do mercado, e menos em promover e gerar
1
inovações realmente revolucionárias e na fronteira do conhecimento. A esse respeito, Miller
(1994), Chanaron (1998) e Calabrese (2001) têm mostrado que as montadoras, representadas
por um oligopólio de grandes corporações multinacionais, estão inclinadas a centralizar suas
pesquisas tecnológicas em poucas regiões, normalmente países desenvolvidos e de mesma
origem do capital da empresa. A descentralização da P&D, quando ocorre, tende a englobar
estágios do processo de desenvolvimento de produtos. Como resultado, diferentes estratégias
e orientações podem ser identificadas entre as montadoras que operam em diferentes países.
Em termos de Brasil, temos observado que investimentos em pesquisa tecnológica apenas são
efetivados na medida em que há demandas vindas da produção e/ou do mercado local. Nesse
caso, deve-se considerar que há muitas peculiaridades no território brasileiro (condições
adversas de rodagem, combustível alternativo, condições da renda local, políticas tributárias
de incentivo ao consumo de carros populares, etc) que acabam gerando um efeito positivo em
termos das orientações relativas ao desenvolvimento da P&D. Isso porque tais
particularidades acabam demandando soluções locais, que freqüentemente não são prioridades
para a matriz, por diversas razões: por não terem aplicação externa; por não terem linhas de
pesquisa nessas áreas (ex. caso do combustível a álcool); ou simplesmente por não
entenderem todas as dimensões do problema. O que significa que a necessidade local tem de
certa forma orientado o tipo de pesquisa tecnológica feita no Brasil, direcionada a nichos de
mercado, já visualizando uma aplicação específica e local (produto ou componente), de fácil
apropriabilidade e que compreende curto prazo de maturação, em média entre 2 a 3 anos.
Partindo dessa constatação, de que as montadoras de automóveis realizam essencialmente
atividades de DP no Brasil, torna-se imperativo compreender o que de fato significa e qual a
extensão dessas atividades no país. Mesmo por que o cenário não é nada homogêneo entre as
montadoras de automóveis, sendo que algumas têm evoluído para um patamar mais
complexo, de forma a reforçar e ampliar as atividades da engenharia brasileira, caracterizando
2
um maior envolvimento com a condução das atividades de DP. Ou seja, têm avançado para
além das atividades corriqueiras de adaptação dos veículos às condições locais
(tropicalização), passando a projetar no Brasil veículos derivativos para o mercado local:
algumas o fazem em conjunto com suas matrizes, outras de forma independente, executando o
projeto autonomamente. Vale acrescentar que em algumas dessas montadoras, as atividades
realizadas localmente têm evoluído para um patamar ainda mais complexo, com
responsabilidades que incluem a venda de serviços de engenharia em DP para outras
montadoras da corporação. Como conseqüência, tais empresas têm alcançado um novo
posicionamento junto à matriz, atuando cada vez mais como parceiras no desenvolvimento de
veículos para outros mercados, além do brasileiro.
Com base nesses questionamentos, há várias questões que se mantém em aberto: qual a
complexidade envolvida nessas atividades de DP conduzidas no Brasil em termos do
conhecimento necessário, recursos humanos qualificados envolvidos e infra-estrutura
tecnológica interna? Qual o domínio que as subsidiárias das montadoras localizadas no Brasil
têm sobre o processo de inovação e de produção de automóveis?
Nesses termos, o objetivo desse artigo se propõe a fazer uma análise sobre as atividades de
DP conduzidas pelas subsidiárias das montadoras de automóveis instaladas no Brasil,
particularmente focando a aquisição de competências tecnológicas locais. Busca-se, com essa
iniciativa, identificar os estágios mais avançados em DP já alcançados pela engenharia
brasileira. Para tanto, o estudo está baseado em entrevistas realizadas entre os anos de 2002 a
2004 com profissionais (gerentes e diretores) responsáveis pelas áreas de DP em todas as
nove montadoras de automóveis instaladas no país (GM, Ford, VW, Fiat, Renault, PSA,
Mercedes-Benz, Toyota e Honda).
Além dessa introdução, o artigo encontra-se dividido em mais 5 seções. A seção 2 apresenta o
referencial teórico que utilizamos para examinar, identificar e classificar os níveis de
3
competência tecnológica em DP entre as montadoras de automóveis instaladas no Brasil. A
discussão sobre a evolução dessas competências em DP vis-à-vis o grau de complexidade
envolvido será objeto da seção 3. A proposta é chamar a atenção para as fases que são
significativas em relação à atuação local dessas empresas, as quais tiveram importância
decisiva no processo de acumulação de competências locais e que são fundamentais para a
compreensão da dinâmica atual que se constitui neste segmento. A seção 4 acentua a
diferença entre as estratégias de DP evidenciadas entre as montadoras e argumenta que tal
heterogeneidade tende a ser maior em se tratando da comparação entre empresas que operam
no país há mais tempo, doravante referidas como “veteranas” (Ford, GM, VW, Fiat), e
aquelas que iniciaram suas atividades no país após a segunda metade da década de 90, a quem
denominamos “entrantes” (Renault, PSA, Mercedes-Benz, Toyota e Honda). Com base nas
diferentes estratégias adotadas pelas montadoras de automóveis, a seção 5 propõe uma
tipologia sobre competências em DP especificamente elaborada em função do que se observa
no caso brasileiro. A seção 6 conclui essa discussão a partir de uma síntese dos principais
achados da pesquisa.
2. REFERENCIAL TEÓRICO SOBRE NÍVEIS DE COMPETÊNCIAS TECNOLÓGICAS
Essa seção apresenta o referencial teórico adotado para investigar os níveis de competências
tecnológicas em DP entre as subsidiárias das montadoras de automóveis localizadas no Brasil.
Birkinshaw (1996) discute que o acúmulo de capacidades tecnológicas, sobretudo as
“capacidades distintas”, tem se comportado como o motor de crescimento das subsidiárias,
sendo passíveis de abrir novas oportunidades de mandatos globais e atribuição de maiores
responsabilidades no âmbito da corporação. Outros autores (Reddy, 1997; Amsden et al,
2001) observam que as competências tecnológicas possuem forte influência na atração e
avanço das atividades inovativas desenvolvidas pelas subsidiárias das multinacionais.
4
As competências ou capacidades tecnológicas, definidas nesse artigo como compreendendo o
estoque de recursos tais como qualificação, conhecimento e experiência incorporado nos
trabalhadores e no sistema organizacional da empresa, serão analisadas como uma das
condições necessárias para que a empresa possa promover a mudança técnica e inovações, em
vários níveis de complexidade, ao longo do tempo (Bell e Pavitt, 1995; Figueiredo, 2001;
Costa e Queiroz, 2002). Segundo Lall (1992), o conceito de capacidade tecnológica mantém
um caráter cumulativo. As empresas tendem a acumular experiências, aptidões e
conhecimentos no tempo a partir de um processo de aprendizagem que influencia sua
trajetória futura, levando-as a evoluir de mera usuária de tecnologia (isto é, tecnologia
imitativa, desenvolvida por agentes externos à ela) passando pela promoção e melhoramentos
dessa tecnologia até acumularem competências para elas próprias gerarem novas tecnologias.
Mas, embora o tempo seja um elemento fundamental nesse processo, o acúmulo de
competências não ocorre de maneira automática. Ao contrário, o acúmulo de competências
tecnológicas, em indivíduos e organizações, depende de esforços sistemáticos e explícitos,
que demandam vários mecanismos de aprendizagem, a serem empreendidos a partir de
processos consistentes e de longo prazo. Além dos mecanismos de aprendizagem, tal acúmulo
mantém-se atrelado às estratégias determinadas pela empresa sendo que, no caso das
subsidiárias de empresas multinacionais, dependerá das determinações traçadas no âmbito das
corporações assim como do padrão de relacionamento mantido com a matriz.
Conforme observamos, os achados desse estudo apresentam evidências de uma relativa
heterogeneidade na trajetória das montadoras no Brasil, que perpassam tanto as competências
tecnológicas quanto o padrão de relacionamento com as matrizes. O desafio que se apresenta
nesse artigo é, portanto, elaborar uma classificação que considere esses condicionantes e
organize as diferentes competências em DP de acordo com os níveis de complexidade
tecnológica.
5
Face a esse objetivo, e com o apoio da literatura sobre competências tecnológicas, esse artigo
se baseia no modelo classificatório de Lall (1992), segundo o qual o acumulo de capacidades
tecnológicas implica várias etapas a serem seguidas, dos modelos mais simples (capacidades
básicas) para os mais complexos (capacidades intermediárias), até que a empresa atinja a
maturidade tecnológica e alcance estágios avançados de mudança técnica (capacidades
avançadas). Pesquisa posterior conduzida por Bell e Pavitt (1995) parte dessa nessa mesma
matriz elaborada por Lall (1992), porém apresenta uma mais fina desagregação a fim de
capturar os vários níveis e tipos de capacidades segundo sua complexidade; outros autores
adaptaram empiricamente o modelo de Lall (1992) segundo as especificidades das empresas e
setores em questão (Ariffin e Bell, 1999; Ariffin e Figueiredo, 2004).
Face aos objetivos desse artigo, vale a pena destacar a distinção que Bell e Pavitt (1995)
fazem entre dois tipos de capacidade tecnológica: a capacidade operacional rotineira,
acumulada a partir da aprendizagem prática, sendo necessária para operar o sistema de
produção existente; e a capacidade tecnológica inovadora, necessária para gerar e gerenciar
a mudança técnica e que requer maior estoque de conhecimento e experiência incorporados na
empresa e na organização, o que pressupõe maior acúmulo de aprendizagem tecnológica
conseguido a partir de esforços deliberados nesse sentido.
Para fins da tipologia que apresentamos para o caso das montadoras no Brasil, a
distinção que a literatura apresenta sobre os diferentes níveis e tipos de capacidade segundo
sua complexidade passa a ser de grande contribuição e se traduz como o referencial analítico a
ser seguido. Conforme postulamos, um dado nível de acumulação de competências é
identificado quando a empresa consegue realizar determinada atividade que antes não era
capaz de fazer. Entretanto, é válido destacar que esse referencial, que suporta a desagregação
de competências tecnológicas segundo o grau de complexidade, somente deve ser apropriado
6
para se pensar a realidade de setores industriais depois de uma ampla análise, empírica e em
profundidade, acerca das particularidades das suas capacidades.
3. Evolução e acumulação das competências em dp nas montadoras de automóveis
As competências tecnológicas acumuladas pelas montadoras de automóveis no Brasil podem
ser interpretadas como o resultado de um longo processo de consolidação das operações
locais, que esteve associado à necessidade de formulação de respostas às demandas
particulares do mercado brasileiro. Essa afirmação implica dizer que as capacidades
acumuladas pela engenharia automotiva brasileira têm sido o resultado de um longo processo
de aprendizagem e de experiências passadas em adaptar veículos às condições locais.
Entretanto, entender tal afirmação implica considerar a trajetória da indústria automotiva no
Brasil segundo duas etapas distintas: aquela que começa nos anos 50, caracterizada pelo início
da montagem de automóveis, e o período posterior a 1990, marcado pela abertura do mercado
à concorrência internacional e pela instalação de novas montadoras no mercado brasileiro.
Nessa primeira fase, a indústria automotiva brasileira desenvolveu-se exclusivamente
orientada para o mercado interno, beneficiando-se da forte proteção da economia. Até os anos
90, o parque automotivo foi composto por quatro montadoras estrangeiras, Ford, General
Motors (GM), Volkswagen (VW) e Fiat, além de quatro montadoras de ônibus, caminhão e
veículos comerciais, Volvo, Scania, Daimler Benz e Toyota. Protegidas da competição
estrangeira e praticamente isoladas das influências das tendências externas, tais montadoras
costumavam lançar no Brasil veículos que haviam sido projetados e introduzidos em outros
países anos antes do seu lançamento local. Além disso, tais produtos tinham longos ciclos de
vida, quinze anos em média, recebendo alguns face-lift1 durante esse período.
Todas as montadoras mantinham equipes de engenharia interna no Brasil a fim de adaptar os
automóveis às condições e especificidades locais, porém continuavam largamente
dependentes das suas matrizes em termos da origem dos projetos a serem manufaturados
7
localmente. Com a exceção de alguns projetos da VW cujo desenvolvimento (concepção e
design) contou com uma participação importante da equipe de engenharia brasileira, tais
como a Brasília (1973) e a Família BX (1980), que deu origem à plataforma Gol e seus
derivativos picape Saveiro, station wagon Parati e sedan Voyage, em geral os veículos
lançados no Brasil eram adaptações de veículos projetados e desenvolvidos nos centros do
exterior, especificamente Europa e EUA. Vale destacar que a estratégia predominante visava
manufaturar carros exclusivamente para o mercado local; exportações a partir do Brasil eram
bem menos freqüentes e importantes do que são hoje.
De certa forma, o aprendizado que essas montadoras acumularam em atividades de
manufatura e adaptação de automóveis, dos anos 60 aos anos 80, foi um aspecto importante e
que explica muito acerca do comportamento e das estratégias de atuação local que
identificamos em relação a tais empresas (particularmente Ford, GMB, VW e Fiat) no período
pós anos 90, de abertura do mercado, e que marca uma série de mudanças e uma nova fase no
desenvolvimento dessa indústria no país. Tais mudanças implicaram uma significativa
redefinição das estratégias tecnológicas e de atuação local das montadoras de automóveis que
operam no Brasil. Dois elementos tiveram grande influência nesse processo: liberalização da
economia e políticas governamentais específicas para o setor automotivo.
O processo de liberalização da economia, que teve início em 1990, revelou que as montadoras
de automóveis no Brasil não estavam preparadas para a competição internacional. A súbita
explosão de veículos importados, face à abertura do mercado, intensificou a competição
interna e tornou evidente a necessidade de melhorias na qualidade dos produtos locais,
incluindo manufatura e projeto, e nas taxas de produtividade. Como resposta, os
investimentos feitos por tais empresas ampliaram de US$ 5.4 bilhões na década de 80 para
US$ 16.6 bilhões nos anos de 1990, segundo dados da ANFAVEA. O maior percentual dos
investimentos foi feito pelas montadoras localizadas no Brasil, tanto na construção de novas
8
unidades produtivas como na modernização e melhoria dos produtos, considerados obsoletos
frente aos padrões internacionais. Novas montadoras, que optaram por implantar unidades de
produção no mercado brasileiro, responderam pela outra parte desses investimentos. Toyota,
Honda, Renault, PSA Peugeot-Citroën, VW Audi e Daimler Benz (divisão Mercedez Bens
automóveis), juntamente com montadoras de ônibus, caminhões e comerciais leves,
inauguraram plantas produtivas no Brasil entre 1997 e 2002.
Embora o tamanho do mercado brasileiro tenha sido um dos principais fatores por trás da
onda de investimentos ao Brasil, a importância das políticas governamentais com foco nesse
setor, tais como o Regime Automotivo, não devem ser ignoradas como incentivo adicional no
processo de atração de novos investimentos. Tal regime político, implementado entre 1996 e
2000, introduziu uma série de incentivos para a exportação e construção de novas plantas no
país. Na verdade, as estratégias de DP, especialmente entre as veteranas (VW, GM, Ford e
Fiat) têm sido largamente influenciadas por essa nova fase do mercado automotivo doméstico
caracterizado tanto pela intensificação da competição interna quanto pelo aprofundamento do
processo de reestruturação produtiva.
Como ilustração, o número de plataformas de veículos manufaturadas e lançadas no Brasil
nos anos de 1990 (22 no total) foi três vezes maior do que o número observado na década de
1980. Além disso, parte dessas novas plataformas foi lançada no Brasil simultaneamente e,
em alguns casos, até mesmo antes do seu lançamento em outros países. Essa prática tem
contribuído para manter atualizado o portfólio dos produtos no Brasil, reduzindo o gap entre
os portfólios de produtos local e global. O mesmo se aplica às inovações no processo de
manufatura e nas técnicas organizacionais. De forma geral, as novas estratégias de produto
têm substituído o lançamento de veículos derivados ou baseados em plataformas obsoletas,
prática que até então prevalecera por décadas.
9
4. Engenharia automotiva brasileira: heterogeneidade nas competências em DP
Uma constatação em relação ao caso brasileiro é que não há um universo homogêneo no que
diz respeito às estratégias de DP das montadoras de automóveis. Ao contrário, é possível
identificar uma pluralidade de ações e orientações em como promover e incentivar a P&D por
parte das montadoras, assim como há diferenças na forma como os recursos locais da
engenharia foram e continuam sendo incorporados por elas. Essa observação é sobremaneira
importante considerando que a promoção dos esforços tecnológicos empreendidos, assim
como a intensificação das atividades de engenharia (produto e processo), e posterior acúmulo
de competências, têm variado em grau e complexidade entre estas empresas.
Tal afirmação nos remete a uma importante constatação: de que investir na ampliação da
engenharia automotiva local não tem sido uma opção estratégica para todas estas montadoras.
O que significa que algumas empresas tendem a contribuir muito mais do que outras para a
promoção do desenvolvimento tecnológico do país e com o aprendizado local, ampliando a
capacidade técnica da engenharia, o volume de pessoal em DP e a infra-estrutura tecnológica
interna (laboratórios e equipamentos) que é mantida no Brasil. Entretanto, tais diferenças se
tornam mais significativas caso a análise vise diferenciar os grupos das montadoras
anteriormente referidos: veteranas (Ford, GM, VW e Fiat) e entrantes ((Renault, PSA,
Mercedes-Benz, Toyota e Honda). A esse respeito, cabem algumas considerações.
Em relação às estratégias das entrantes, duas considerações devem ser pontuadas. Primeiro, há
diferenças marcantes entre esse grupo de empresas no que diz respeito ao montante do
investimento realizado no Brasil que engloba infra-estrutura, instalação de fábrica de motores,
contratação de pessoal técnico, portfólio de produtos, etc. Segundo, mais recentemente
algumas montadoras, sendo que o caso da Renault é o mais ilustrativo, têm revelado
propensão à investir e reforçar as atividades de engenharia conduzidas no Brasil. Não obstante
tais diferenças, é possível identificar pontos em comum quanto às estratégias de produto que
10
vêm sendo adotadas por essas montadoras após instalação no país. Em geral, as entrantes têm
produzido e lançado no Brasil produtos tecnologicamente modernos e atuais, com vários itens
de conforto e segurança incorporados e que apresentam pouca defasagem em relação às
versões desses modelos comercializadas nos mercados externos. Entretanto, sem exceção,
todas essas entrantes têm lançado localmente veículos que foram e que continuam a ser
concebidos, projetados e desenvolvidos no exterior, recebendo apenas alterações locais (parte
das quais também conduzidas no exterior) para se adequarem às condições específicas do
país. Como conseqüência, o acompanhamento dessas atividades pela da matriz é constante, a
qual se mantém como principal fonte de apoio e suporte técnico a estas empresas. Há, nesse
sentido, pelo menos três categorias em que se inserem as atividades conduzidas pelas
entrantes no Brasil que, embora alcancem graus distintos de complexidade entre si, envolvem:
- Nacionalização de componentes, o que compreende envolvimento com toda a cadeia
automotiva no Brasil, de forma a equacionar os custos da produção nessa região;
- Contatos técnicos com os fornecedores locais. Ações tomadas nesse sentido têm
objetivado a melhora do sistema de fornecimento de peças, de forma a promover e ampliar
a integração entre os fornecedores no Brasil;
- Engenharia de ligação, que consiste em manter engenheiros no Brasil de forma a
viabilizar a troca de informações técnicas e o fluxo de conhecimento com o exterior,
normalmente com a matriz, especificamente no que diz respeito à adequação dos veículos
às condições locais, abordando aspectos da tropicalização.
Uma das razões que explica essa extrema centralização das atividades de engenharia no
exterior tem sido a baixa escala de operações locais. Tais empresas se instalaram no Brasil há
menos de uma década, têm baixo volume de vendas internas (que se agrava na comparação
com as veteranas) e convivem com alta capacidade ociosa de produção. Em 2004, a produção
das montadoras entrantes representou cerca de 12% do total produzido pela indústria
11
automotiva no Brasil, sendo que suas vendas locais, incluindo produção local e veículos
importados de mesma marca, responderam por 15% de participação (ANFAVEA). A
exportação de veículos, a partir do Brasil, também tem revelado pouco avanço face às
freqüentes oscilações cambiais. Dado esses fatores, as operações brasileiras dessas empresas
simplesmente não conseguem, nem amortizar os elevados gastos, nem compensar os riscos
associados à realização de atividades mais complexas de DP no país.
O que se nota, até o momento, é que as ações e estratégias dessas empresas têm se orientado
pela necessidade de consolidar presença no país e reforçar a imagem da marca no mercado
doméstico. Na ausência do Estado como um agente que orientasse os investimentos dessas
montadoras em atividades de P&D, as ações empreendidas por elas na condução de atividades
com conteúdo técnico mais elevado, infra-estrutura tecnológica e emprego de pessoal nas
áreas da engenharia do produto têm apresentado uma evolução bastante lenta e gradual2.
Como resultado, temos identificado uma forte dependência com a matriz e centros externos de
P&D, que são a base dos projetos de veículos produzidos no Brasil, como também são a fonte
de acesso a informações técnicas relativas a esses desenvolvimentos. As poucas iniciativas em
conduzir atividades de engenharia no Brasil foram resultados mais de uma necessidade de
atuação local do que necessariamente de uma estratégia orientada para esse fim, que
implicaria fazer do Brasil uma base para DP local ou regional, a exemplo do que ocorre com
algumas montadoras veteranas. É, desse modo, legítimo afirmar que houve uma integração e
atuação bastante limitadas por parte da engenharia automotiva brasileira nesse processo.
Em oposição às estratégias de DP que vêm sendo adotadas pelas entrantes no Brasil, no caso
das veteranas (GM, Fiat, VW e Ford) as opções acerca dos investimentos em P&D têm sido
bem menos centralizadas no exterior. Uma posição que tem sido consensual entre essas
empresas é a importância e necessidade de se manter unidades de engenharia no Brasil
minimamente capazes de oferecer respostas ao consumidor local. Além disso, outro aspecto
12
comum é que essas empresas acumulam décadas de investimentos realizados no país, não
somente na manufatura local, mas também em infra-estrutura tecnológica e na formação e
capacitação do pessoal empregado em áreas ligadas à engenharia.
Entretanto, ainda que reconhecendo esta posição convergente, prevalecem diferenças
marcantes entre essas montadoras, que dizem respeito ao acúmulo e evolução das
competências tecnológicas em DP, que têm ocorrido em ritmos desiguais no Brasil. Sendo
que essas diferenças são em parte explicadas pelas experiências e aprendizados passados.
Além disso, há diferenças com relação à implementação e abrangência da infra-estrutura
tecnológica interna, ao volume de recursos humanos em atividades técnicas e aos
investimentos aplicados na promoção e ampliação da engenharia local.
Assim, se por um lado as estratégias que sustentaram os investimentos das veteranas foram
distintas no tempo, e tendiam mesmo a seguir rumos opostos no mercado brasileiro, segundo
demonstraram Consoni e Quadros (2002), é possível identificar uma recente convergência nas
estratégias seguidas por elas, sobretudo no período mais recente. Essa convergência,
inclusive, tem revelado alguns pontos em comum nas suas estratégias de DP, sendo que:
- essas quatro montadoras têm centralizado no Brasil o desenvolvimento de veículos de
baixo custo, normalmente compacto e no segmento de entrada, objetivando ampliar a
vantagem competitiva nos mercados emergentes. O reflexo dessa especialização é o fato
de todas manterem, há pelo menos uma década, automóveis com até 1.000cc no seu
portfólio de produtos;
- tais políticas de produtos têm sido conduzidas em paralelo à ampliação dos investimentos
em DP e em infra-estrutura tecnológica;
- há um desejo geral em ampliar as capacidades técnicas em todos os estágios do ciclo de
DP; algumas montadoras inclusive já alcançaram esse estágio (casos da VW e GMB),
enquanto outras sinalizam fortemente nessa direção (caso da Fiat, com a criação do Pólo
13
de Desenvolvimento Giovanni Agneli, e mais recentemente da Ford, com a retomada dos
investimentos na área de DP para automóveis, em Camaçari, BA);
- mesmo considerando que as perspectiva de descentralização e atribuição de mandatos
globais pelas subsidiárias no Brasil sejam maiores no caso das plataformas de veículos de
entrada (compactos e de baixo custo), vislumbra-se a possibilidade de que essas empresas
venham a atuar no desenvolvimento e projeto de plataformas e produtos mais sofisticados.
Ainda com relação às semelhanças, não obstante as orientações particulares quanto ao
organograma, estruturação das atividades e organização departamental, é possível identificar
uma estrutura comum entre as montadoras veteranas em relação às áreas que dão suporte ao
DP no Brasil. De forma ampla e genérica, há nessas unidades sediadas no Brasil: Centro de
Estilo (Design); Equipes de Gerenciamento de Programas (plataformas); Engenharia e
Experimentação de Veículos; Engenharia de Chassis; Engenharia de Carroceria (Interior e
Exterior); Engenharia Elétrica e Eletrônica; Engenharia Avançada; Prototipagem, Testes e
Validação; Engenharia da Qualidade; Homologação e Certificação; Desenvolvimento de
Motores e Transmissões. E, embora estas áreas sejam comuns entre as veteranas, o que
caracteriza a diferença entre elas têm sido:
- volume de pessoas alocadas no departamento de DP e de suporte. Algumas montadoras
chegam a alocar mais de 500 engenheiros nessa área; em outras, esse número se mantém
abaixo de 300 engenheiros. Da mesma forma, encontramos montadoras com cerca de 70
pessoas alocadas no Centro de Estilo; em outras, esse número foi de 7 pessoas.
- investimentos direcionados à consolidação da infra-estrutura tecnológica. Incluem:
equipamentos; maquinarias; ferramentas; laboratórios; softwares específicos em
engenharia, projetos, estilo e simulação; área de construção e de testes em protótipos;
campo de provas versus pista de testes; etc.
14
5. Tipologia sobre as competências tecnológicas em DP
As abordagens individualizadas sobre as trajetórias e estratégias de produto adotadas pelas
montadoras de automóveis revelam que as competências em DP acumuladas por essas
empresas estão distantes de se manterem estáticas ao longo do tempo. Ao contrário, ainda que
algumas empresas tenham apresentado avanços e retrocessos em relação ao papel da
engenharia do produto no Brasil, conforme demonstra Consoni e Quadros (2002), é possível
identificar, no conjunto das empresas, uma evolução nos conhecimentos internos. Isso se
revela quando se observa que as capacidades técnicas dessas montadoras, sobretudo entre as
veteranas, têm evoluído das simples operações de produção e atividades voltadas à
nacionalização, para a concepção e coordenação de projetos mais sofisticados e complexos
em DP, com sede no Brasil, os quais têm sido exportados para outros mercados, inclusive o
europeu. Algumas dessas empresas também têm avançado na venda de serviços de engenharia
ligadas ao DP, para unidades da corporação localizadas no exterior.
Mas tal constatação não implica afirmar que todas as montadoras tendam a acumular
conhecimentos que lhes possibilitem avançar em uma mesma direção, no sentido de um
padrão linear e determinista de evolução e ampliação das competências em DP. As diferenças
entre essas empresas são expressivas, e se tornam ainda mais marcantes caso a análise faça
distinção entre veteranas e entrantes, ou ainda que considere certos indicadores de capacitação
tecnológica (por exemplo, infra-estrutura tecnológica e volume de engenheiros em áreas
técnicas).
Foi exatamente em decorrência de análises desse tipo, que consistiram em interpretar os
níveis de complexidade das atividades tecnológicas realizadas pelas montadoras, que
apresentamos uma tipologia específica sobre as competências em DP acumuladas no Brasil. O
interesse maior foi, ao observar a totalidade das atividades conduzidas no país, interpretar em
15
ordem crescente de complexidade como tem se dado a evolução dessas capacidades entre as
subsidiárias das montadoras de automóveis aqui instaladas.
Dessa forma, baseando-se no referencial analítico discutido na seção 2, que apresenta uma
taxonomia para examinar os tipos e níveis de competências tecnológicas, nossa análise
empírica sugere duas conclusões. Primeira, as competências em DP identificadas entre as
montadoras de automóveis no Brasil podem ser organizadas em cinco estágios, com
crescentes níveis de complexidade. Ou seja, a partir das experiências de atuação local, as
empresas foram aprendendo a interpretar as demandas do mercado local e as suas
especificidades, avançando no processo de acumulação de capacidades. O que significa que a
mudança entre um estágio e outro dessa tipologia ocorre somente quando a empresa consegue
acumular determinado conhecimento e realizar determinada tarefa, no país, que antes não
conseguia. Da nacionalização dos componentes (Estágio Um), passando pela adaptação local
(Estágio Dois) - que alcança um leque amplo de atividades - até o desenho de veículos
derivativos, simples em primeira instância, focado nas demandas do mercado local (Estágio
Três); e posteriormente incorporando maior complexidade, de forma a atender às demandas
de países desenvolvidos (Estágio Quatro). Esses quatro estágios ilustram todos os tipos de
competências em DP identificados entre as montadoras de automóveis no Brasil, conforme
ilustra a Figura 5.1. Esta figura também sinaliza para um quinto estágio, no topo deste cone,
que compreende o desenvolvimento completo de uma plataforma, porém ainda não alcançado
pela engenharia automotiva local.
Segunda conclusão: as montadoras têm alcançado distintos níveis de complexidade, das
rotineiras às competências mais inovativas. Ou seja, os cinco estágios de competências em DP
listados nessa tipologia (Nacionalização, Tropicalização, Derivativo Parcial, Derivativo
Completo e Plataforma) podem ser agrupados em três tipos de capacidade tecnológica
(Básica, Incremental e Inovativa).
16
Vale considerar que, embora contando com o suporte da literatura, o caráter empírico se
mantém presente nessa abordagem uma vez que o estudo consistiu em organizar resultados da
pesquisa entre as montadoras, considerando as políticas de produto que têm sido seguidas por
elas. De forma que o critério adotado nessa tipologia para classificar as diferentes capacidades
considerou exclusivamente o tipo de mudança verificada no produto. Inclui, assim, somente
as competências em DP, e não as competências tecnológicas como um todo, o que incluiriam
aquelas associadas ao processo da manufatura, organizacionais e ligadas à pesquisa
tecnológica.
Figura 5.1 Tipologia das Competências Tecnológicas em DP das montadoras de automóveis
FONTE: Entrevistas e visitas às empresas.
O estágio que está na base desse cone, de Competência em Nacionalização, corresponde às
Capacidades Básicas necessárias para operar no país, as quais são acumuladas a partir de
mecanismos learning by doing, segundo a definição de Bell (1984). Assim, o estágio mostra
que ter habilidades em promover a nacionalização do produto (componentes e sistemas) é a
primeira iniciativa para que a montadora possa consolidar presença no mercado, reforçando a
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interação com a cadeia de valor local. Este estágio foi percebido como uma preocupação
bastante evidente entre as montadoras entrantes, de forma a reduzir a dependência em relação
aos fornecedores externos e, por extensão, dos custos em importação de peças, calculados em
moeda estrangeira, além da dependência em relação ao sistema de alfândega e logística. A
iniciativa em promover maior nacionalização de componentes e sistemas tem forçado as
montadoras a manterem nas unidades no Brasil uma equipe mínima de engenharia de
produtos, que possa servir como elo de ligação entre fornecedores e matriz e que faça o
acompanhamento das atividades locais; daí atribuirmos o nome de “engenharia de ligação”.
Portanto, trata-se de um estágio inicial e bastante incipiente de consolidação da engenharia de
produto no Brasil, com contribuições bastante limitadas em relação às capacidades locais em
DP. Isto é, não há capacidade inovativa nesse estágio, o que reforça a necessidade de se
analisar as mudanças e possíveis evoluções ao longo do tempo.
O segundo tipo envolve a Capacidade Inovativa Incremental, necessária para melhorar,
mudar ou criar produtos. Três estágios de competências em DP, quais sejam, Tropicalização,
Derivativo Parcial e Derivativo Completo, se inserem nesse nível, caracterizado pela
necessidade de aplicação de um conhecimento tecnológico mais complexo, dinâmico e
cumulativo.
A Competência em Tropicalização abarca todas as adaptações realizadas nos veículos.
Portanto, refere-se a um conceito bastante amplo e que envolve uma diversidade de atividades
e complexidade de conhecimentos necessários, não somente em relação ao produto em si, mas
também em relação aos componentes e sistemas. Um aspecto relevante é que a tropicalização
muitas vezes se traduz como uma necessidade, por se referir a uma adaptação que deve ser
feita no automóvel. O que significa que, teoricamente, a tropicalização teria um grande
potencial em atrair mais atividades de engenharia para o Brasil, de maneira a consolidar
capacidades técnicas locais. Mas, na prática, essa necessidade não implica a ocorrência direta
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desse processo, pois a matriz ou os centros externos podem se encarregar dessas atividades,
dispensando a atuação da engenharia local. Em outros casos, as montadoras podem
simplesmente realizar parte das atividades de tropicalização nas suas instalações no Brasil,
enquanto a matriz se encarrega de outras funções, também inerentes à tropicalização, porém
no exterior. Essa situação parece definir melhor o que ocorre com a maior parte das
montadoras entrantes que operam no Brasil.
Portanto, há um certo grau de flexibilidade presente nesse conceito. Mas, para fins desta
tipologia, consideramos que uma empresa somente acumula competências em tropicalização
caso essas atividades (ou parte significativa delas) sejam conduzidas pela engenharia local de
forma auto-suficiente. Nessa perspectiva é que, promover a tropicalização dos produtos, a
partir da engenharia local, não deve ser interpretada como uma capacidade pouco expressiva.
Ao contrário, requer conhecimentos que guardam certo diferencial competitivo, uma vez que
possibilita à montadora agregar alterações no produto de forma a interpretar e oferecer
respostas às demandas locais com relativa independência da matriz. A esse respeito, temos
observado que a consolidação de uma forte competência nesse estágio tem dado às
montadoras veteranas uma razoável vantagem competitiva frente às montadoras entrantes. Por
exemplo, elas foram as primeiras a disponibilizar no mercado a opção de compra de veículos
com combustível flexível, uma vez que já acumulavam competência no desenvolvimento de
veículos à álcool.
Sobre a abrangência do conceito tropicalização, e das várias atividades que ele abarca, o
estudo conduzido por Humphrey e Salerno (2000) é bastante representativo. A partir de uma
pesquisa que comparou Brasil e Índia, foram identificadas algumas das principais categorias
que, segundo os autores, abarcam os vários tipos de tropicalização (adaptações) realizados nos
veículos, e que ocorrem em função:
- das mudanças relacionadas às preferências e costumes dos consumidores locais;
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- das condições específicas de rodagem e de uso local, em que se destacam o reforço em
suspensão e a adequação ao uso de combustíveis de qualidade e composição diferenciada;
- das adaptações de projeto devido às diferenças em termos de materiais e menor escala de
produção;
- das mudanças para reduzir a sofisticação dos veículos (overdesign) que, uma vez
projetados para os países desenvolvidos, resultam em produtos com preços de mercado
que superam condições de renda da população dos países em desenvolvimento (implica,
por exemplo, eliminar sistemas mais sofisticados de segurança como freios ABS ou air
bags); a redução dos custos de projetos também envolve adaptações que visam adequar os
veículos aos critérios menos rigorosos ligados aos itens de segurança e de emissão de
poluentes, considerando que a legislação dos países em desenvolvimento é menos
exigente à esse respeito.
A construção de modelos derivativos que, como meta, busca satisfazer as preferências dos
consumidores locais, também se traduz como um dos tipos de tropicalização, na relação
elaborada por Humphrey e Salerno (2000). A esse respeito, ao contrário do que colocam esses
autores, na tipologia que apresentamos sobre as capacidades em DP, a construção de
derivativos é classificada como um estágio superior à tropicalização, uma vez que envolve
mudanças muito mais complexas no projeto dos veículos, que superam a adaptação desses às
necessidades do mercado. Além disso, o projeto e desenvolvimento de veículos derivativos
requerem uma maior infra-estrutura tecnológica no país, a qual, entre outras funções, passa
pela existência de uma equipe de estilo, que possa atuar na definição do aspecto exterior do
veículo, e de construção e montagem de protótipos, incluindo novos testes de validação, uma
vez que a dinâmica estrutural do veículo é alterada.
Desta forma, a Competência no Desenvolvimento de Derivativos Parciais caracteriza um
terceiro estágio desta tipologia. Em geral, a criação de um projeto de veículo derivativo
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parcial envolve a atuação da engenharia do produto, sobretudo nas fases finais do ciclo de DP
(engenharia do produto e do processo), e menos em conceito ou planejamento, seguindo
classificação de Clark e Fujimoto (1991). Isso ocorre uma vez que a plataforma básica já está
pronta e a mesma se mantém praticamente inalterada. Há alterações no projeto, porém trata–
se muito mais de mudanças pontuais, na parte externa do veículo, no acabamento e nos
acessórios, e que visam atender especificamente às demandas do mercado local.
As versões mais comuns de projetos derivativos conduzidos pela engenharia automotiva
brasileira envolveram a criação de modelos sedan, station wagon e picapes leves,
desenvolvidos a partir de uma versão de veículo hatch. Ocorre, nesses projetos, toda uma
nova caracterização da carroceria do veículo, com novo design, o que vai demandar uma série
de trabalho adicional para validar o veículo, incluindo a realização de novos testes. No
entanto, a sinergia com a plataforma original, componentes, ferramental e mesmo em termos
de validação do veículo, se mantém elevada. O índice de comunização em componentes, por
exemplo, fica ao redor de 70% ou mais; a comunicação em valores também é alta, o que
justifica e legitima essas atividades. Como exemplos recentes, temos os casos das versões
picape Montana e Corsa Sedan, desenvolvidos pela GMB a partir da plataforma do Corsa, e
do Pólo Sedan, derivado da plataforma Pólo, pela VW. Ainda que contando com a supervisão
e a parceria técnica das suas matrizes, a Fiat tem feito algo similar com a plataforma do Palio
(Siena, Weekend e Strada) e a Ford com a plataforma Fiesta (Fiesta Sedan e EcoSport).
Entretanto, tanto a Fiat quanto a Ford não têm avançado além desse nível de competência em
DP no Brasil, embora ambas tenham feito importantes avanços nessa área.
Uma das diferenças entre os derivativos parciais e completos é que nesse último caso, ainda
que também sejam desenvolvidos a partir de uma plataforma base, há uma atuação maior da
engenharia brasileira, a qual não se restringe somente aos estágios finais do ciclo de DP. Ao
contrário, abrange atividades em todo o ciclo do DP, envolvendo: definição do conceito,
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planejamento, engenharia do produto e engenharia do processo. E, mesmo considerando a
sinergia com outra plataforma, realizar atividades de desenvolvimento de derivativos
completos potencializa alterar aspectos da plataforma original de forma a atender às
demandas de vários mercados, não somente aquelas dos países emergentes. De certa forma, o
conceito de derivativo completo supera a concepção corrente, de que a diferenciação em
relação à plataforma original ocorre somente nas partes externas dos veículos e nos
acessórios. Essa definição, embora até se aplique ao caso dos derivativos parciais, alcança
uma complexidade maior em se tratando dos derivativos completos, em que ocorre uma
evolução em relação à estrutura básica do veículo; as vezes, essas atividades podem
compreender até mesmo uma reengenharia de todas as dimensões da plataforma original
Por conta desse maior envolvimento e integração da engenharia brasileira no DP, a
Competência no Desenvolvimento de Derivativos Completos caracteriza o quarto estágio
desta tipologia. Ademais, ele representa o estágio mais avançado já alcançado pelas
montadoras de automóveis em relação às atividades em DP até então conduzidas no Brasil.
Com o apoio das entrevistas realizadas com essas montadoras, identificamos pelo menos dois
projetos com potencial para se inserir nessa definição de Derivativos Completos. O Projeto
Tupi (Projeto 249), que deu origem ao veículo Fox, da VW; e o projeto que deu origem ao
veículo Meriva, da GMB, e melhor detalhado por Consoni (2004). Ambos os veículos foram
derivados de projetos liderados pela equipe de engenharia brasileira, tendo incorporado, no
próprio projeto, requisitos que lhe permitem atender tanto as demandas dos mercados
emergentes quanto europeus, além de terem envolvido substancial alteração nas dimensões da
plataforma original. No caso do Meriva, houve uma comunização entre as plataformas Astra e
Corsa Geração III; no caso do Fox, houve uma reengenharia sobre a plataforma Polo.
Importante reforçar que embora as competências em DP pareçam oscilar entre atividades mais
elementares para as mais complexas, essa tipologia não segue uma seqüência linear e
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determinista, isenta de dificuldades e retrocessos, a partir da qual todas as montadoras vão
alcançar o estágio mais avançado e promover a mudança técnica e a inovação na sua
totalidade. O que se observou foi que o papel atribuído às subsidiárias brasileiras face às
estratégias da corporação global tem importantes impactos sobre os níveis de competência
acumulados localmente e sobre a aquisição de novos mandados de produtos globais. E é
exatamente devido à restrição na atribuição de mandamos globais relativos ao DP às
montadoras localizadas no Brasil que o terceiro nível de capacidade tecnológica -
Capacidades Inovativas Avançadas – não foi verificado (ainda) no caso brasileiro. Tal
capacidade inclui o quinto estágio, sinalizado no topo da Figura 5.1, e envolve a
responsabilidade pelo desenvolvimento completo de uma Nova Plataforma e os seus
derivativos. A esse respeito, deve-se considerar que não se desenvolvem plataformas no
Brasil a partir do simples planejamento e projeto. Ao contrário, há sempre uma base (uma
plataforma) a partir da qual são estruturadas as atividades locais. O que de certa forma
demonstra um certo limite para o avanço das competências em DP no Brasil; a superação
dependerá, além das capacidades já acumuladas, de definições que são traçadas a partir da
corporação.
6. Conclusões
A análise focada nas atividades de DP que as montadoras de automóveis realizam no Brasil
conduziu à identificação de importantes e variadas competências tecnológicas, as quais têm
avançado no sentido de delimitar e estabelecer a diferença entre o que a matriz oferece (para a
subsidiária local) e o que o cliente brasileiro, de fato, deseja ou está apto para adquirir. O que
significa que a demanda local, de certa forma, determina e orienta a direção, acúmulo e
evolução dessas capacidades, de acordo com o país e suas peculiaridades.
Entretanto, observamos que o tipo e o nível de complexidade envolvido nas competências em
DP não são comuns a todas as montadoras instaladas no Brasil; há graus distintos de
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conhecimento, sendo distintas também as opções entre centralizar ou não as atividades do DP
no Brasil. Essa diferença justifica a proposição de uma tipologia própria sobre tais
competências. Nesse sentido, o primeiro estágio ilustrado na base dessa tipologia
(nacionalização) corresponde às competências operacionais de rotina, envolvendo atividades
necessárias para conduzir e expandir as operações de manufatura no país. Contrapõem-se,
dessa forma, aos estágios superiores (tropicalização, derivativos parciais e completos), os
quais compreendem competências mais complexas em DP e conhecimentos mais sofisticados
em engenharia que as habilitem a melhorar, mudar ou criar novos produtos. O último estágio
desta tipologia, que abrange as capacidades inovativas avançadas, com competências para
projetar e gerenciar uma plataforma e seus derivativos, não foi identificado nessa pesquisa.
Entretanto, a razão se deve muito mais a questões ligadas às estratégias globais das matrizes
destas montadoras do que à ausência de competências tecnológicas em projetos de produtos
completamente novos pela engenharia automotiva brasileira.
Mesmo considerando essa limitação, identificamos algumas possibilidades que sinalizam para
um cenário mais complexo no futuro. Uma delas consiste na venda de serviços tecnológicos
em DP a partir das unidades localizadas no Brasil, que já é uma realidade, por exemplo, na
GMB. Outra possibilidade inclui a responsabilidade global pelo desenvolvimento e
gerenciamento de plataformas no país. Nesse caso, as plataformas compactas e de baixo
custo, que se inserem no segmento de veículos de entrada, é uma forte aposta entre algumas
das montadoras veteranas. Há vários indícios que apontam nessa direção, porém, ainda falta
uma definição clara nesse sentido. Vale considerar que um elemento favorável a elas têm sido
as competências que essas subsidiárias têm acumulado e que se traduzem no saber fazer e
propor soluções de baixo custo, sem necessariamente tornar o automóvel desprovido de
características de qualidade, eficiência, conforto e segurança. Esse diferencial é uma
característica importante, sobretudo no segmento de veículos de entrada e compactos, em que
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o preço é um importante fator quando se trata de determinar a competitividade do produto. Da
mesma forma, o peso e importância das operações dessas subsidiárias, em produção e vendas,
no contexto da corporação, favorecem essa opção.
Considerando que o quinto estágio venha a ser alcançado pelas montadoras instaladas no
Brasil, a tendência é que haja um adensamento dos esforços em engenharia empreendidos
localmente por tais empresas, o qual tende a se estender para toda a cadeia de fornecimento
local, imprimindo maior importância estratégica também a essas operações. Sobre esse
aspecto, vale considerar que as empresas de autopeças possuem uma estratégia de DP que é
altamente dependente das ações de inovação de produto definidas pelas montadoras, podendo
haver sinergias positivas ao longo de toda a cadeia automotiva brasileira.
NOTAS:1. A expressão face-lift, traduzida como cirurgia plástica, define um redesenho parcial ou superficial de um veículo ou de partes dele (frente e traseira), incluindo paralama, lanterna, faróis. O objetivo é alterar o visual do veículo de forma a torná-lo mais atualizado. O face-lift também é conhecido pela expressão “modificação meramente cosmética” ou maquiagem, visto que somente a parte visual do automóvel sofre alterações.
2. A esse respeito, deve-se fazer menção à ausência de protocolos específicos, no âmbito do Regime Automotivo, que poderiam ter se configurado como mecanismos de política pública no sentido de direcionar os investimentos dessas empresas para a criação e fortalecimento da engenharia local, em paralelo à manufatura, conforme discutido por Consoni (2004).
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