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1. PLANEJAMENTO URBANO NO BRASIL, EM BELO HORIZONTE E A CIDADE ILEGAL O processo de produção capitalista, em que foram inseridas as cidades brasileiras, gerou grandes desigualdades socioespaciais. O planejamento urbano no Brasil, muitas vezes, fez acentuar essas características, contribuindo para o desenvolvimento de espaços urbanos segregados, fragmentados, com grande número de pessoas excluídas do direito à cidade. Os conflitos que se verificam, a partir da apropriação do espaço urbano, retratam a atuação dos diferentes atores que interferem na produção desse espaço e representam o jogo de interesses de cada um deles. Desse modo, as desigualdades e a pobreza se acentuam, pois os mais pobres continuam sem o devido acesso à cidade e os mais ricos se tornam cada vez mais detentores de riqueza. A lógica de que o poder está associado ao capital agrava os conflitos na produção do espaço urbano, pois a minoria da sociedade brasileira retém a maioria do capital. Diante dessa desigualdade, algumas conseqüências podem ser apontadas: o aumento dos índices de violência, a segregação, a exclusão socioespacial, o crescimento da cidade ilegal e das periferias, como será abordado em outro momento desta pesquisa. Pode-se dizer que a apropriação desigual do espaço está, em última instância, associada ao valor da terra, ou seja, as áreas que possuem maior valor estão inseridas em locais com condições privilegiadas, possuem maior potencial construtivo e despertam interesses pelo investimento. Elas têm, portanto, maior valorização no mercado

Paradigmas da Estruturação do espaço

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Paradigmas da estrutura~~ao do espaço residencial intra-urbano

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  • 1. PLANEJAMENTO URBANO NO BRASIL, EM BELO HORIZONTE E A CIDADE

    ILEGAL

    O processo de produo capitalista, em que foram inseridas as cidades brasileiras,

    gerou grandes desigualdades socioespaciais. O planejamento urbano no Brasil, muitas

    vezes, fez acentuar essas caractersticas, contribuindo para o desenvolvimento de espaos

    urbanos segregados, fragmentados, com grande nmero de pessoas excludas do direito

    cidade.

    Os conflitos que se verificam, a partir da apropriao do espao urbano, retratam

    a atuao dos diferentes atores que interferem na produo desse espao e representam

    o jogo de interesses de cada um deles.

    Desse modo, as desigualdades e a pobreza se acentuam, pois os mais pobres

    continuam sem o devido acesso cidade e os mais ricos se tornam cada vez mais

    detentores de riqueza. A lgica de que o poder est associado ao capital agrava os

    conflitos na produo do espao urbano, pois a minoria da sociedade brasileira retm a

    maioria do capital. Diante dessa desigualdade, algumas conseqncias podem ser

    apontadas: o aumento dos ndices de violncia, a segregao, a excluso socioespacial, o

    crescimento da cidade ilegal e das periferias, como ser abordado em outro momento

    desta pesquisa.

    Pode-se dizer que a apropriao desigual do espao est, em ltima instncia,

    associada ao valor da terra, ou seja, as reas que possuem maior valor esto inseridas

    em locais com condies privilegiadas, possuem maior potencial construtivo e despertam

    interesses pelo investimento. Elas tm, portanto, maior valorizao no mercado

  • 21

    imobilirio. A manipulao dessa valorizao realizada pelo mercado rentista.8 As

    qualidades de um terreno so tomadas como uma mercadoria, cujo valor auferido pelo

    mercado rentista corresponde s suas caractersticas de localizao na cidade, conferindo-

    lhe um potencial de renda diferencial, decorrente da situao e das condies relativas

    dos terrenos.

    Farret (1985) apresenta trs escolas de pensamento que tm orientado a anlise

    da estruturao do espao residencial intra-urbano no Brasil: a ecolgica, a da economia

    neoclssica e a da economia poltica. A essas trs escolas correspondem tambm,

    basicamente, dois paradigmas: o do equilbrio e o do conflito.

    No paradigma do equilbrio, a estruturao do espao intra-urbano vista como o

    resultado da ao de decises individuais, em que o mercado imobilirio livre, neutro e

    perfeito. Alm disso, para este paradigma, a ao do Estado em relao aos agentes

    envolvidos se d de forma eqidistante.

    No caso do paradigma do conflito, duas vertentes tericas lhe do sustentao: a

    primeira, institucionalista, enfatiza o papel das instituies sociais, atravs de seus

    vnculos e processos de tomada de deciso na determinao dos padres locacionais

    urbanos. Os interesses envolvidos nesses processos, no entanto, no so

    necessariamente antagnicos, observando-se alianas e barganhas como prticas

    normais. A segunda vertente, de cunho marxista, resultou, de um lado, da construo

    emprica do papel determinante do preo dos imveis (principalmente da parte

    correspondente terra) no processo de alocao e locao residencial urbana e, de

    outro, da necessidade de encontrar uma explicao mais convincente para a elaborao

    deste preo.

    8 Considera-se mercado rentista aquele que, de acordo com Martins (2001), oferece a possibilidade de auferir ganhos com a manipulao da renda da terra.

  • 22

    Como as reas perifricas no Brasil so geralmente menos valorizadas, tendo em

    vista a falta de condies de infra-estrutura e sua localizao no contexto da cidade, elas

    apresentam um potencial de renda diferencial baixo. Tanto o solo edificvel como a

    prpria edificao tm um valor e um preo no mercado, em grande parte dependente (e

    a est sua particularidade) da incorporao dos servios e melhorias urbanas existentes

    no setor onde se localizam, bem como dos efeitos do zoneamento (GONZALES, 1985).

    Entretanto, a situao das reas, do ponto de vista da valorizao em funo da

    localizao, pode mudar ao longo da histria da cidade. O seu potencial de renda

    diferencial, conseqentemente, tambm pode mudar, pois algumas reas prximas s

    reas centrais, ou mesmo estas, ao sofrer algum processo de deteriorao, passam a

    apresentar baixo potencial de renda diferencial. Por outro lado, existem reas que se

    localizam a distncias significativas do centro, mas que so dotadas de alto potencial de

    renda diferencial.

    De qualquer forma, a valorizao da terra vem torn-la inacessvel para a

    populao de menor poder aquisitivo o que, em ltima instncia, contribui para dificultar

    o acesso moradia digna e aos servios de infra-estrutura, sade, educao, lazer,

    cultura, dentre outros. Diante do conflito de interesses entre os diferentes agentes

    produtores do espao urbano, o papel do Estado de fundamental importncia, pois,

    dependendo da sua atuao, ele pode acirrar os conflitos existentes ou, utilizando seu

    poder de mediador, interferir no processo de produo do espao, contribuindo para a

    construo de cidades mais igualitrias, em que o acesso aos meios de produo e

    consumo seja mais justo para os diferentes atores da cidade.

    Atravs do planejamento urbano e da gesto da cidade, o Estado atua no espao

    urbano e, nesse contexto, esto retratados os interesses dos agentes da sociedade,

    reflexo dos diferentes interesses sociais, polticos e econmicos. Dado que o Estado est

  • 23

    inserido na lgica capitalista, ele ir conduzir os processos de produo do espao sob

    essa lgica.

    Topalov (1979) considera que o papel do Estado fundamental no processo de

    produo do espao. De acordo com o autor, no final dos anos de 1960, ao iniciar-se a

    nova sociologia urbana francesa, tinha-se a preocupao de, em primeiro lugar,

    considerar a cidade como um produto, como o resultado de um processo de produo,

    em contraposio aos analistas da Escola de Chicago que tentavam compreender a cidade

    como sistemas ecolgicos humanos, semelhana dos sistemas ecolgicos que envolvem

    as interaes do mundo vegetal e animal com o ambiente natural em um processo

    competitivo pela sobrevivncia.

    Em segundo lugar, a outra ruptura epistemolgica da sociologia urbana marxista

    na Frana, segundo o autor, se refere ao papel do Estado, sendo aqui considerado no

    como um conjunto de vontades, mas como um conjunto de aparatos que realizam, de

    acordo com um processo sem sujeito, o interesse da classe dominante. Na Frana, essa

    classe era a oligarquia financeira, frao da classe dominante do capitalismo monopolista

    do Estado.

    Ainda de acordo com Topalov (1979), a cidade o resultado do sistema espacial

    dos processos de produo, de circulao e de consumo processos que contam com

    suportes fsicos incorporados ao solo, como os imobilirios. Se existe a renda do solo

    porque, antes de tudo, existe a diferenciao do espao e a sua valorizao pelo capital,

    ou seja, porque existe o uso capitalista do espao.

    Da mesma forma, Lojkine (1981) tambm analisa as contradies espaciais no

    como um fenmeno autnomo sujeito a leis de desenvolvimento, distintas das leis de

    acumulao capitalista. O autor observa:

  • 24

    Agente principal da distribuio social e espacial dos equipamentos urbanos para as diferentes classes e fraes de classe, o Estado monopolista vai portanto refletir ativamente as contradies e as lutas de classe geradas pela segregao social dos valores de uso urbanos. Longe de unificar o aparelho do Estado, a subordinao de sua poltica frao monopolista do capital vai, agravar as fissuras, as contradies entre segmentos estatais, suportes de funes sociais contraditrias (LOJKINE, 1981, p. 57).

    Ainda segundo Lojkine (1981), a interveno do Estado capitalista permitiu

    impedir, no curto prazo, processos anrquicos que minam o desenvolvimento urbano, nos

    trs pontos de crise da urbanizao capitalista: o financiamento dos equipamentos

    urbanos desvalorizados, a coordenao dos diferentes agentes da urbanizao e,

    finalmente, a contradio entre valor de uso coletivo do solo e sua fragmentao pela

    renda fundiria.

    No Brasil, o trabalho de Oliveira (1982) tambm destaca a importncia da relao

    entre o espao urbano e o papel do Estado. O autor analisa a relao entre as classes

    privilegiadas, chamadas de classes mdias, salientando que a atuao do Estado estava

    pautada pela demanda dessas classes nas cidades brasileiras. Oliveira afirma que o

    Estado no atua como rbitro diante do conflito de interesses, quando observa:

    Por a se pode recuperar a noo de conflito social urbano, sobretudo, em termos atuais, isto , esse novo carter do Estado no capitalismo monopolista torna, em primeiro lugar, o Estado em uma relao de poder, principalmente, e no mais uma relao de arbitragem. Em segundo lugar, ele capaz de nos induzir e de sugerir pistas de investigao que recuperem agora a questo do conflito entre Estado e sociedade civil. Em outras palavras, a noo de que o Estado, tendo se direcionado por esses caminhos, tem contra si, na verdade, o resto da sociedade, que basicamente formada por no proprietrios, incluindo at em alguns sentidos, setores da baixa classe mdia, por via das condies pelas quais se d hoje a relao do Estado com o urbano, tornando-se, de certa forma, antagnicas (OLIVEIRA, 1982, p. 53).

    Se no jogo de interesses capitalista sempre haver maior poder de um agente em

    detrimento de outro na cidade, dever-se-ia esperar que o Estado pudesse intervir no

  • 25

    processo tambm como um agente a favor da maioria da populao, que vive em

    condies precrias de sobrevivncia. Em tese, isso o que se espera das diferentes

    formas de interveno do Estado: atravs da legislao, da proviso dos meios de

    consumo coletivo para a comunidade de baixa renda, do uso de instrumentos urbansticos

    que possibilitem maior incluso social, da parceria entre o pblico e o privado que garanta

    recursos que poderiam ser utilizados para o interesse pblico e da gesto participativa,

    criando-se canais de participao popular.

    Maricato (1997, 2000) e Rolnik (1994) analisam o papel do Estado no Brasil e

    mostram as conseqncias do modelo de planejamento adotado na estrutura urbana das

    cidades brasileiras, especialmente na produo da cidade ilegal. Maricato (1997)

    apresenta um histrico da atuao do Estado no planejamento urbano no Brasil, dos anos

    de 1930 at os anos de 1990, e pergunta: qual dever ser o planejamento urbano para a

    prxima dcada? Ela afirma que podemos estar praticando um urbanismo arcaico sob o

    discurso ps-moderno: as obras so definidas pelas mega-empreiteiras que financiam as

    campanhas eleitorais; o conjunto delas forma um cenrio destinado a firmar uma imagem

    exclusiva em espao segregado; e, alm disso, as leis se aplicam apenas a uma parte,

    freqentemente prioritria da cidade, ou seja, aquelas em que o poder do capital maior.

    O papel do Estado atravs do planejamento e da gesto urbana condiciona o

    espao da cidade. Isto pode ser observado no que se refere, por exemplo, elaborao e

    aplicao da legislao urbanstica, localizao da infra-estrutura urbana e

    valorizao de determinados espaos privilegiados. Nesse processo, a atuao do Estado

    pode continuar refletindo o jogo de interesses de alguns agentes e incorporando

    privilgios, ou pode significar um momento de ruptura e avano na busca de maior justia

    e incluso social. Em outras palavras, a atuao do Estado pode contribuir para o

    processo de excluso ou, pelo oposto, de incluso social.

  • 26

    No processo de excluso social, a atuao do Estado no espao urbano reafirma

    os interesses do mercado imobilirio. Maricato (2000) destaca como o planejamento

    urbano modernista/funcionalista foi um importante instrumento de dominao ideolgica

    e como contribuiu para ocultar a cidade real e para formar um mercado imobilirio restrito

    e especulativo durante o processo de formao das cidades brasileiras. Nesse sentido, ela

    afirma que houve um deslocamento entre as matrizes que fundamentaram o

    planejamento, a legislao urbana e a realidade socioambiental das cidades brasileiras,

    em especial, o crescimento da ocupao ilegal e das favelas. Segundo a autora, trata-se

    de idias fora do lugar porque, pretensamente, a ordem se refere a todos os indivduos,

    de acordo com os princpios do modernismo ou da realidade burguesa. Entretanto,

    tambm, pode-se afirmar que, por isso mesmo, as idias no esto no lugar, porque se

    aplicam a apenas uma parcela da sociedade, reafirmando e reproduzindo desigualdades e

    privilgios. Para a cidade ilegal no h planos nem ordem trata-se de um lugar fora das

    idias.

    Esse trabalho de Maricato (2000) enfatiza a necessidade de os espaos ilegais

    serem primeiramente conhecidos. Para isso, seria necessrio que fossem realizados

    estudos considerando a realidade prpria do lugar. Caso isso no seja feito, as leis

    estaro descoladas da realidade do lugar e, conseqentemente, para aquele determinado

    lugar desconhecido tambm no haver idias, ou seja, no haver estudos e normas

    especficas. O que se verifica na maioria das cidades brasileiras o desconhecimento da

    cidade ilegal e, conseqentemente, a falta de diretrizes e estudos, inclusive de legislao

    especfica para ela.

    O trabalho de Rolnik (1994) mostra as conseqncias da base da concepo do

    planejamento urbano no Brasil, que alia a tradio do urbanismo higienista, em sua

    verso funcionalista ps-Carta de Atenas, a uma Economia Poltica Desenvolvimentista,

  • 27

    tendo o Estado como forte protagonista. Os limites dessa concepo esto claramente

    colocados e se expressam tanto na falncia desse projeto em produzir cidades

    equilibradas com base em normas mais da metade de nossas cidades irregular ou

    clandestina como na impossibilidade de sua sustentao diante das transformaes

    econmicas e polticas no cenrio mundial.

    Segundo Rolnik (1994), a instaurao de um capitalismo mundial integrado, ou

    mundializao que tem como caractersticas a automao, a flexibilidade e a

    terceirizao dos processos de trabalho , trouxe como conseqncias, do ponto de vista

    social, a excluso de trabalhadores das garantias trabalhistas, aumentando a

    informalidade e configurando um exrcito que no mais de reserva, mas de excludos

    da ordem. Do ponto de vista espacial, as cidades tendem a passar de centros industriais

    para centros de comrcio, de servios e sedes de gesto do capital financeiro, resultando

    em uma nova configurao espacial, o que acarretaria mudanas no mercado imobilirio.

    Observa-se que essa cidade, ainda segundo a autora, cada vez mais segregada,

    tomada pelos circuitos criminais e aparatos policiais, enquanto se espalha uma arquitetura

    / fortaleza dos condomnios e espaos semipblicos privados. Do ponto de vista poltico,

    assiste-se a uma redefinio do papel do Estado no sentido de delegar mais competncia

    aos governos locais. Constata-se ainda a dificuldade de se avanar em direo a uma

    reforma urbana, devido ao poder de interesses econmicos e da cultura de polticos e

    tcnicos que no conseguem ver o processo de produo dos assentamentos precrios,

    irregulares e ilegais como uma forma especfica e particular de urbanizao.

    A autora prope que se estabelea um pacto territorial local, ou pacto poltico

    local, com a estratgia concentrada no futuro da cidade, a partir da prpria fora e

    dinmica do mercado. Segundo Rolnik (1994), isto implica em desregulamentao sim, e

    ao mesmo tempo, a reinveno dos instrumentos de interveno.

  • 28

    As reflexes acerca dos instrumentos de poltica urbana, hoje, j esto mais

    avanadas, inclusive com a aprovao do Estatuto da Cidade. Entretanto, entende-se que

    a lgica conceitual de um pacto, a partir da prpria fora e dinmica do mercado,

    somente possvel se consolidar com o conhecimento dessa lgica e do processo que a

    estabelece, uma vez que ela produz espaos distintos e especficos em cada lugar.

    Outro trabalho fundamental para este estudo o de Rolnik (1997). Ao realizar

    uma relao entre mercados, legislao urbana e valorizao imobiliria e, ainda, entre

    legislao urbana e cidadania na anlise do processo de urbanizao da cidade de So

    Paulo, a autora afirma que as normas que regulam a construo e o loteamento tiveram

    interferncia direta na estruturao dos mercados imobilirios, alm de estabelecerem

    fronteiras, demarcando e dissolvendo territrios. Tais normas, associadas aos

    investimentos em infra-estrutura, configuraram eixos de valorizao do solo,

    hierarquizando e indexando mercados. Esse processo sintetiza o movimento de um

    mercado em que a rentabilidade e o ritmo de valorizao so definidos por uma dupla

    lgica. Por um lado, so mais valorizadas as localizaes capazes de gerar as maiores

    densidades e intensidades de ocupao; por outro, valorizam-se, tambm, os espaos

    altamente diferenciados e exclusivos. Essa dupla lgica destacada pela autora esteve

    sempre presente na produo da cidade de Belo Horizonte.

    Bonduki (1998) analisa a questo da clandestinidade, do ponto de vista da

    interferncia do Estado e do mercado imobilirio na formao das periferias,

    especificamente em So Paulo. O autor mostra que desde a dcada de 1940, em

    conseqncia da crise habitacional, da desestruturao do mercado rentista e da

    incapacidade do Estado em financiar ou promover a produo de moradia em larga

    escala, consolidou-se uma srie de expedientes de construo de casas margem do

    mercado formal e do Estado. Trata-se do que o autor denomina auto-empreendimento da

  • 29

    moradia popular, baseado no trinmio loteamento perifrico, casa prpria e auto-

    construo, a forma mais comum de moradia dos setores populares na cidade de So

    Paulo. Esse processo informal de viabilizar a moradia popular sem ampliar investimento

    pblico teve uma impressionante expanso. O modelo difundiu a pequena propriedade

    urbana para a ampla camada de trabalhadores de renda baixa e mdia, propiciando-lhes

    uma ascenso social sem que houvesse redistribuio de renda, elevao dos salrios ou

    comprometimento da acumulao. A omisso do poder pblico na expanso dos

    loteamentos irregulares fazia parte de uma estratgia para facilitar a construo da casa

    pelo prprio morador que, embora no tivesse sido planejada, foi se definindo, na prtica,

    como um modo de viabilizar uma soluo habitacional: popular, barata, segregada,

    compatvel com a baixa remunerao dos trabalhadores e que, ainda, lhes concedia a

    sensao falsa ou verdadeira de realizar o sonho de se tornarem proprietrios.

    O trabalho desenvolvido por Costa (1994) analisa a produo da periferia na

    Regio Metropolitana de Belo Horizonte, a partir da ocupao do seu territrio por meio

    dos loteamentos populares. A autora destaca que, a partir de meados da dcada de 1970,

    diante do intenso processo de expanso metropolitana, observa-se a produo em massa

    da periferia, atravs do chamado loteamento popular. Afirma que ao contrrio das favelas

    e invases uma estratgia de soluo da questo habitacional, atravs da ocupao

    intensiva de espaos que, de certa forma, foi preterida em algum momento do processo

    de expanso da cidade , as chamadas periferias so fruto de uma ao claramente

    orquestrada por parte do capital imobilirio, que, num determinado momento, vislumbra

    as condies favorveis para um produto especfico: o lote popular. Ela ainda ressalta que

    esse processo se deu com a omisso do Estado.

  • 30

    No trabalho de Mendona (2003) tambm se discute o papel do Estado e dos

    diferentes agentes sociais no processo de produo da segregao socioespacial da

    Regio Metropolitana de Belo Horizonte:

    Na medida em que os agentes sociais so dotados de oportunidades diferentes de apropriao dos bens e servios gerados pela urbanizao, a sua localizao no espao fsico ser resultado de lutas, que podem ocorrer de forma individual ou coletiva. Os ganhos decorrentes das disputas pelo espao lugares do espao social reificado e pelos benefcios que ele proporciona so de natureza distinta, ora relacionados renda auferida pela propriedade do solo, ora relacionados posio (ganhos simblicos de distino) ou ainda quilo que Bourdieu denominou ganhos de ocupao, ou seja, a posse de um espao fsico podendo manter a distncia ou excluir a intruso indesejvel [...]. O espao hierarquizado , portanto, o espao da segregao, entendido como materializao da hierarquia social espao social reificado e produto das lutas dos grupos sociais pela apropriao dos recursos urbanos (MENDONA, 2003, p. 129).

    A cidade ilegal e a cidade legal foram produzidas pela mesma lgica capitalista de

    mercado. Entretanto, a cidade ilegal fica excluda de direitos e, nesse processo, o Estado,

    alm de contribuir para isso por exemplo, na elaborao de leis inaplicveis , ainda

    distribui os investimentos e benefcios urbanos de forma diferenciada, privilegiando os

    setores de maior renda da sociedade.

    Martins (1999), em sua tese de doutorado, destaca que a oposio entre uma

    cidade legal e outra ilegal apenas formal, visto que a cidade legal se nutre da ilegal,

    fazendo-se s suas expensas:

    No final das contas, ambas (cidade legal e ilegal, para usar os termos dualistas) manifestam igualmente as condies econmicas e polticas que tm funcionado como fundamentos distintivos da urbanizao nesse capitalismo de tipo especial, e que at hoje se mantm fusionadas e mutuamente implicadas entre ns: o rentismo, isto , a permanncia da renda fundiria enquanto possibilidade para obteno de rendimentos que no necessariamente envolve a produo social de riquezas, mas evidentemente dela depende, pois aparece pressuposta na distribuio do valor enquanto atributo da coisa (ao mesmo tempo em que configura uma irracionalidade econmica reproduo capitalista da riqueza social em funo da imobilizao de capital requerida para a aquisio de terras), e um autoritarismo tambm fundante da secular

  • 31

    frmula ordinria atravs da qual o poder tem sido pensado e exercido sob a forma da tutela e do favor visando o estabelecimento de uma relao de dbito entre os que so mantidos como sua clientela, como cidados passivos dependentes e leais aos que concedem direitos, previamente definidos como favores (MARTINS, 1999, p. 73).

    Apesar da renda fundiria para obteno de rendimentos ter acontecido em

    ambas, como observa Martins (1999), percebe-se que no caso da cidade ilegal isto se deu

    em condies extremamente perversas e desumanas, pois os ganhos auferidos a partir da

    terra ficam nas mos de poucos, restando o nus da pobreza para a maioria da

    comunidade que vive em assentamentos ilegais.

    Em Belo Horizonte, a cidade ilegal est sendo produzida desde a poca da sua

    fundao. Como ser abordado nos captulos que se seguem, o planejamento da cidade

    definiu uma zona urbana, uma suburbana e uma rural, com a primeira localizada nos

    limites da Avenida do Contorno, caracterizando a atual zona central da cidade, um espao

    que foi sempre o mais privilegiado de Belo Horizonte. O que se observa uma grande

    diferenciao entre essa rea e as reas perifricas da cidade, em termos de

    acessibilidade, infra-estrutura, equipamentos de sade, educao, laser, dentre outros.

    Pretende-se compreender o processo de ocupao da cidade ilegal em Belo

    Horizonte, atravs da ao do Estado, pois se entende que ele contribuiu efetivamente

    para o processo de estruturao urbana da cidade. Para isso, so utilizadas anlise da

    legislao urbanstica que trata de aprovao e regularizao fundiria de parcelamento

    do solo e informaes obtidas nas iniciativas de regularizao de loteamentos, assim

    como outras iniciativas na gesto urbana.

    Os estudos sobre regularizao fundiria de loteamentos so ainda recentes no

    Brasil, especialmente no que diz respeito a seus resultados. Alfonsin conceitua

    regularizao fundiria como:

  • 32

    O processo de interveno pblica, sob os aspectos jurdico, fsico e sociais, que objetiva legalizar a permanncia de populaes moradoras de reas urbanas ocupadas em desconformidade com a lei para fins de habitao, implicando acessoriamente melhorias no ambiente urbano do assentamento, no resgate da cidadania e da qualidade de vida da populao beneficiria (ALFONSIN, 1997, p. 24).

    Segundo a autora, se alguma destas dimenses esquecida ou negligenciada, no

    se atingem plenamente os objetivos do processo. H uma implicao tica ao se garantir

    apenas a titulao de um lote, pois, muitas vezes, a forma como a rea foi ocupada

    consagra injustias. Contudo, por outro lado, o Poder Pblico tem de acautelar-se ao

    dotar assentamentos de infra-estrutura, sem garantir a titulao dos lotes em nome dos

    moradores, pois a falta de regularizao jurdica pode gerar futuros despejos e/ou

    desperdcio de dinheiro pblico. Salvo melhor juzo, as intervenes de regularizao

    fundiria exigem uma preocupao mais abrangente.

    Fernandes (2004)9 destaca a necessidade de se implementar polticas de

    regularizao fundiria no Brasil. Para ele, a regularizao s faz sentido se for concebida

    num contexto mais amplo de poltica urbana e habitacional que interfira diretamente na

    produo do espao urbano, especialmente no mercado de terras e na oferta de lotes

    urbanizados baratos para uma populao de zero a trs salrios-mnimos. Destaca, ainda,

    que o registro de fundamental importncia para o acesso ao crdito, o reconhecimento

    social e todo tipo de segurana jurdica que ele proporciona. Fernandes defende a idia

    de uma lei nacional de regularizao fundiria em que as diversas formas de produo

    informal da ilegalidade das cidades sejam atacadas do ponto de vista urbanstico, pois

    algumas leis, como a Lei Federal n 6.766/79, o Cdigo Florestal, a legislao ambiental,

    dentre outras, podem constituir entraves no processo de regularizao.

    9 Entrevista concedida TV Justia. Disponvel em: . Acesso em: 25/03/2004.

  • 33

    O Estatuto da Cidade, aprovado em 10 de julho de 2001, por outro lado, oferece

    aos municpios uma srie de instrumentos de interveno no mercado de terras e no

    processo de excluso social, garantindo o direito regularizao fundiria, o cumprimento

    da funo social da cidade e da propriedade urbana. Entende-se que, dessa forma, a

    regularizao fundiria deve ser tratada como um direito bsico, tendo em vista que o

    custo da produo da cidade legal passou sempre pela explorao e subjugo da

    populao de baixa renda que, na sua maioria, habita a cidade ilegal.

    Fernandes (2001) destaca que as formas de regularizao devem levar em

    considerao a complexidade das variveis envolvidas para que no acirrem o processo

    de segregao e excluso social. Assim, pode-se afirmar:

    [...] a verdade que, como j foi provado por diversos estudos, inclusive no Brasil, a mera atribuio de ttulo (individuais) de propriedade no garante, por si s, a realizao do principal objetivo dos programas de regularizao qual seja, a integrao das reas ilegais e de seus ocupantes na estrutura e sociedade urbanas mais amplas. Em outras palavras, a segurana da posse e da moradia h de ser alcanada de vrias formas, e no apenas, e/ou necessariamente, atravs do reconhecimento de direitos de propriedade individual. Por outro lado, vrios estudos tambm demonstraram que a mera urbanizao dos assentamentos ilegais no se traduz necessariamente na diminuio da pobreza urbana. Pelo contrrio, se no forem acompanhadas de mecanismos polticos, sociais, legais e financeiros adequados, incluindo dentre outros fatores uma dimenso de gnero, tais polticas acabam por provocar distores profundas no tenso mercado imobilirio e se tornam em mais um fator de acirramento da segregao territorial e da excluso social (FERNANDES, 2001, p. 33 e 34).

    O trabalho de Smolka (2003) prope uma discusso sobre os resultados perversos

    e no previstos de algumas modalidades de programas de regularizao e tipos de

    intervenes pblicas dirigidas facilitao de acesso ao solo urbanizado para a

    populao de baixa renda. Mostra como tais polticas de carter curativo mopes, por

    abordar o problema apenas parcialmente podem estar promovendo um efeito inverso

    ao desejvel sobre o conjunto do mercado. Os argumentos so desenvolvidos em duas

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    partes: na primeira desenvolve-se a proposio de que preos da terra elevados

    alimentam a pobreza atravs, entre outros fatores, da irregularidade. Assim, loteadores

    oferecem lotes com metragem menor do que a estabelecida pelas normas, a um preo

    total inferior ao de um lote formal/legal, porm ainda superior ao preo por m ao lote

    formal/legal. O mero fracionamento de uma gleba efetivamente uma atividade bastante

    rentvel. Na segunda, questiona-se a eficcia dos argumentos que justificam os

    programas de regularizao e mostra como, atravs de uma percepo mais completa e

    estrutural do mercado de terras, tais programas, na verdade, podem efetivamente

    inflacionar os preos dos terrenos e, indiretamente, retroalimentar a irregularidade.

    Smolka destaca ainda que o desafio que se apresenta o de como regularizar,

    sem alimentar o crculo da irregularidade, assegurando um contedo preventivo a tais

    polticas e programas.

    Em Belo Horizonte, a Prefeitura Municipal inicia o processo de regularizao a

    partir da implantao crescente de loteamentos clandestinos e irregulares desde a poca

    da fundao da cidade. Resultados positivos tm sido observados uma vez que j logrou

    regularizar 141.600 lotes, correspondendo a 42% do total de lotes existentes no

    municpio.

    Entretanto, ao mesmo tempo em que o poder pblico regulariza loteamentos

    clandestinos, por outro lado, e paralelamente a esse processo, continua-se produzindo

    uma cidade ilegal, processo que tem incio na poca da fundao da cidade, conforme

    dito anteriormente. Esse processo modificou-se ao longo da histria da cidade, mas

    sempre existiu.

    Entende-se que dbio o papel do Estado no processo da ilegalidade, quando a

    minimiza ou quando a acentua, ou quando cria a ilegalidade. O papel da legislao pode

    ser de fundamental importncia nesse processo, pois atravs dela que o Estado

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    estabelece os limites da atuao de cada agente ou ator no processo a que ela se refere.

    O que foge lei a ilegalidade. Portanto, pergunta-se: o que fazer diante do que escapa

    lei, quando isso representa a maioria? Esse fato relevante move os questionamentos

    deste trabalho. Entende-se que a forma de se identificar o problema, os acertos e os

    avanos pode se dar atravs do estudo dos processos que fogem lei. Essa a anlise

    que se procura realizar a seguir.