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SUPLEMENTO ESPECIAL O BRASIL RESGATA A SUA HISTÓRIA Parceiros do Futuro Os novos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão-CEPIDs devem transformar . - a organ1zaçao da pesquisa em São Paulo

Parceiros do Futuro

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Pesquisa FAPESP - Ed. 57

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Page 1: Parceiros do Futuro

SUPLEMENTO ESPECIAL

O BRASIL RESGATA A SUA HISTÓRIA

Parceiros do

Futuro Os novos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão-CEPIDs devem transformar . -a organ1zaçao da pesquisa em São Paulo

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8 Governador anuncia os dez centros de pesquisa paulista que receberão, por onze anos, recursos da FAPESP, no âmbito do Programa Cepid

20 Pesquisadores do InstitutoNacional do Câncer dos Estados Unidos vão trabalhar em cooperação com os pesquisadores do Genoma Câncer

30 Uma coleção de amostras de fungos, vírus, bactérias, nematóides e protozoários está ajudando os agricultores a combater as pragas do campo

Capa: Hélio de Almeida,

sobre fotos de Delfim Martins/Pulsar

e Miguel Boyayan

24 Descobertas recentes mostram

que as dunas do rio São Francisco são um surpreendente reduto ecológico

e uma das áreas brasileiras com maior ocorrência de espécies exclusivas

EDITORIAL

MEMORIAS

OPINIÃO

POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLOGICA

CIÊNCIA

TECNOLOGIA

HUMANIDADES

LIVRO

LANÇAMENTOS

ARTE FINAL

5 6 7

8

24

42

50 56 57 58

38 Estudo da Faculdade de Medicina da USP comprova que o uso do álcool e drogas está associado a acidentes e violência

46 A empresa Asga Microeletrônica desenvolve, no âmbito do PIPE, um equipamento que transforma sinais elétricos em sinais luminosos utilizados nas transmissões telefônicas via fibra óptica

52 O historiador francês Michel Vovelle fala sobre Jacobinos e facobinismo, seu livro mais recente, e sobre as perspectivas atuais da pesquisa histórica

PESQUISA FAPESP · SETEMBRO DE 2000 • 3

Page 4: Parceiros do Futuro

PESQUISA FAPESP É UMA PUBLICAÇÃO MENSAL

DA FUNDAÇÃO DE AMPARO À PESQUISA DO ESTADO DE SÃO PAULO

PROF. DR. PAULO EDUARDO DE ABREU MACHADO VICE-PRESIDENTE

PRESIDENTE EM EXERCÍCIO

CONSELHO SUPERIOR ADILSON AVANSI DE ABREU ALAIN FLORENT STEMPFER

CARLOS HENRIQUE DE BRITO CRUZ FERNANDO VASCO LEÇA DO NASCIMENTO

FLÁVIO FAVA DE MORAES JOSÉ JOBSON DE ANDRADE ARRUDA MAURÍCIO PRATES DE CAMPOS FILHO

MOHAMED KHEDER ZEYN NILSON DIAS VIEIRA JUNIOR

PAULO EDUARDO DE ABREU MACHADO RICARDO RENZO BRENTANI

VAHAN AGOPYAN

CONSELHO TÉCNICO-ADMINISTRATIVO PROF. DR FRANCISCO ROMEU LANDI

DIRETOR PRESIDENTE

PROF. DR. JOAQUIM J. DE C AMARGO ENG LER DIRETOR ADMINISTRATIVO

PROF. DR. JOSÉ FERNANDO PEREZ DIRETOR CIENTÍFICO

EQUIPE RESPONSÁVEL

CONSELHO EDITORIAL PROF. DR. FRANCISCO ROMEU LANDI

PROF. DR. JOAQUIM J. DE CAMARGO ENGLER PROF. DR. JOSÉ FERNANDO PEREZ

EDITORA CHEFE· MARILUCE MOURA

EDITORA ADJUNTA MARIA DA GRAÇA MASCARENHAS

EDITOR DE ARTE HÉLIO DE ALMEIDA

EDITORES CARLOS FIORAVANTI (CI~NCIA)

MARCOS DE OLIVEIRA (TECNOLOGIA) MÁRIO LEITE FERNANDES (ENCARTES)

DIAGRAMAÇÃO E PRODUÇÃO GRÃFICA T ÀNIA MARIA DOS SANTOS

COLABORADORES ADILSON AUGUSTO ANA MARIA FlORI CLAUDIA IZIQUE

CLÁUDIO EUGÊNIO EDUARDO STOPATO LUCAS ECHIMENCO OTIO FILGUEIRAS

RITA NARDY SHEILA GRECO

WILSON MARINI

SUPLEMENTO ESPECIAL O BRASIL RESGATA A SUA HISTÓRIA

FOTOLITOS E IMPRESSÃO GRAPHBOX-CARAN

TIRAGEM: 26.000 EXEMPLARES

FAPESP RUA PIO XI, No I SOO, CEP 05466-90 I ALTO DA LAPA - SÃO PAULO - SP

TEL (O - I I) 3838-4000 - FAX: (O - I I) 383B-4117

ESTE INFORMATIVO EST À DISPONÍVEL NA HOME-PAGE DA FAPESP:

http://www.fapesp.br e-mail: [email protected]

SECRETARIA DA CIÊNCIA TECNOLOGIA E DESENVOLVIMENTO

ECONÔMICO

GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO

4 · SETEMBRO DE 1000 • PESQUISA FAPESP

Jornalismo científico

Li e adorei a reportagem "A impren­sa entre a ciência e a ética", publicada na edição de maio. Apenas para não come­ter injustiças, agradecemos o apoio da FAPESP e informamos que o VI Con­gresso Brasileiro de Jornalismo Científi­co, realizado com grande esforço e su­cesso em Florianópolis, de 2 a 5 de maio, foi viabilizado pela Associação Brasileira de Jornalismo Científico (ABJC) e pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), especialmente pela sua Agência de Comunicação (Agecom).

MOACIR LoTH

Presidente da Comissão Organizadora Nacional do VI Congresso Brasileiro

de Jornalismo Científico e diretor da ABJC

Genética da surdez

Ainda que tarde, gostaria de agrade­cer à revista Pesquisa FAPESPpela repor­tagem "Genética da Surdez", publicada na edição de no 50. Foi muito boa a divul­gação e repercutiu consideravelmente na mídia. Inclusive, já existe um projeto de lei pedindo a obrigatoriedade do teste, como o teste do pezinho para fenilcetonúria. A partir da matéria da revista, fomos con­tactados por mais de 15 meios de comu­nicação. Médicos do Brasil inteiro têm nos procurado para ajudar nos diagnósti­cos de casos de surdez inconclusivos, as­sim como estamos realizando um trabalho conjunto com grupos de pesquisadores para a avaliação da prevalência da muta­ção mais comum, detectada pelo teste, em todo o país. Agradeço em meu nome e de todo o meu grupo de pesquisa.

Revista

PROFA. DRA. EDI LúCIA SARTORATO

Centro de Biologia Molecular e Engenharia Genética, Unicamp

Campinas, SP

Sou doutoranda da Faculdade de Educação da Unicamp e docente da Fa­culdade de Biblioteconomia da PUC­Campinas e gostaria de receber a revista Pesquisa FAPESP. Vi dois exemplares da

publicação e parabenizo todos os seus responsáveis pela alta qualidade.

M ARIANGELA PISON I ZANAGA

Campinas, SP

Estou no último ano da faculdade de jornalismo na Uniso, em Sorocaba, inte­rior de São Paulo. Gostaria de receber a revista Pesquisa FAPESP, pois é de extre­ma importância para o meu trabalho de conclusão de curso, cujo tema é Biotecno­logia, incluindo genoma, alimentos trans­gênicos, etc. As matérias da revista vêm ao encontro do que eu estou procurando.

APARECIDA MONTESINO

Votorantim, SP

Consultei na home page da FAPESP a revista Notícias FAPESP e pude apreciar o vasto leque de assuntos e áreas do conhe­cimento que ela abrange, sem cair na su­perficialidade. Notei também que ela é im­pressa e eu gostaria de assiná-la, já que meu acesso à Internet é restrito aos computa­dores da Unicamp, onde curso História.

AND~IA ). BARBIERI

Piracicaba, SP

A partir da edição no 47, de outubro de 1999Notícias FAPESP transformou-se na revista Pesquisa FAPESP

A revista Pesquisa FAPESP é um óti­mo exemplo para quem busca o conhe­cimento. Ela é saborosa de ler, qualifica as discussões com o seu rigor científico e não se limita a apresentar fatos, mas aprofunda-os. Além de sua excelente dia­gramação, é uma referência de consulta e fonte de subsídios. Parabéns à FAPESP, que não cansa de produzir e é sinônimo do que há de melhor em São Paulo.

Arnaldo jardim, Deputado Estadual

Relator Geral do Fórum São Paulo Século 21

Gostaria de externar minha satisfação quanto à qualidade e variedade dos temas abordados pela revista Pesquisa FAPESP, todos muitos atuais e de importante re­percussão.

SONIA P URIN

Faculdade Regional de Blumenau, SC

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EDITORIAL

O olhar para o futuro e a reavaliação do passado

Os Cepids visam a mudar a realidade, o Projeto Resgate, compreendê-la

Num clima de justificado orgulho e entusi­asmo, com o governador Mário Covas presidindo o evento que superlotou o au­

ditório da FAPESP, e três secretários de Estado abrindo a lista das demais autoridades presentes à solenidade, esta Fundação lançou na manhã de 14 de setembro seu mais novo programa, o dos Cen­tros de Pesquisa, Inovação e Difusão, Cepids. O peso político conferido ao evento se explica: aquilo a que a FAPESP se propõe com sua nova iniciativa é nada menos que "explo-rar um novo paradigma para a or-

rência de conhecimentos, para o governo ( dese­nho e implementação de políticas públicas) ou para a iniciativa privada (desenvolvimento de no­vas tecnologias de valor comercial e criação de em­presas) e ainda, difundir o conhecimento gerado, via atividades de caráter educacional, envolvendo alunos do ensino médio ao pós-doutoramento e até de educação continuada. Vale a pena ler a repor­tagem que começa na página oito para conhecer

os primeiros Cepids em detalhes. Sabidamente rica, a biodiversi-

dade brasileira por vezes parece ter ganização da pesquisa científica e tecnológica" em São Paulo, como explicou o diretor científico da ins­tituição, José Fernando Perez, no ar­tigo Pesquisa e Ousadia publicado no mesmo dia 14, na seção Tendências e Debates da Folha de São Paulo.

"o que se propõe é a exploração

uma capacidade inesgotável para surpreender. E é essa sensação, no mínimo, que transmite a reporta­gem sobre uma pesquisa de novas espécies da caatinga, desenvolvida na região das dunas do São Fran­cisco, um valioso reduto biológico. Até agora, os biólogos responsáveis

de um novo paradigma para a o rganização

Em outras palavras, o programa dos Cepids, tema de capa desta edi-

da pesquisa,

ção de Pesquisa FAPESP, apresenta um modelo novo e alternativo à or-ganização departamental da pesqui-sa, prevê uma estrutura para respon-der exclusivamente às necessidades do projeto de cada centro e propõe o envolvimento de pesquisadores de mais de uma instituição, criando, à imagem do Pro­grama Genoma, eficientes redes de cooperação.

Ousado, baseado em experiências similares que vêm sendo testadas com êxito em países mais desenvolvidos, o programa se afirmou, de saída, como o mais competitivo na história da pesquisa no país: 112 grupos de excelência apresentaram pré-projetas em atendimento ao primeiro edital, lançado em outubro de 1998, mesmo sendo de conhecimento geral que a FAPESP apoiaria ape­nas uma meia dúzia de centros. Terminou se deci­dindo por apoiar 10, depois de um dificílimo pro­cesso de seleção, que envolveu mais de 120 cientistas em todo o mundo. Todos esses centros, independentemente da área de conhecimento em que atuam, terão que gerar conhecimento por meio de pesquisa multidisciplinar na fronteira do conhecimento; fazer inovação associada à transfe-

pelo projeto já identificaram mais de 20 espécies, principalmente de lagartos, e quatro gêneros que cons­tituem novidade para a ciência. Mu­itas das espécies são endêmicas, ou

· seja, exclusivas daquela área de so­los arenosos e água escassa.

Vale destacar também, nesta edição, o suplemento especial sobre o projeto de resgate dos documentos históricos relativos ao Brasil Colônia, integrantes do acervo do Arquivo Ultramarino de Lisboa. De capital importância para a pesquisa histórica, em nível nacional o pro­jeto foi patrocinado pelo Ministério da Cultura, en­quanto o resgate da documentação referente à Ca­pitania de São Paulo foi financiado pela FAPESP. O resultado material mais visível desse belo traba­lho são preciosos catálogos com as fichas dos mi­lhares de documentos que foram microfilmados em Portugal, e CDs que, além das fichas, reprodu­zem os próprios documentos relativos à vida, aos negócios e à administração das capitanias doBra­sil colonial. Quanto aos impactos desse material na produção de novos conhecimentos históricos, eles são discutidos nas entrevistas dos especialistas reunidas no suplemento.

PESQUISA FAPESP • SETEMBRO DE 2000 • 5

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Os livros de D. João, aqui há 190 anos

Sexta do mundo, a Biblioteca Nacional

. . amversana em outubro e relança a sua Revista do Livro

A família real portuguesa já estava aqui quando foram desembarcados no Rio, em 1810, os muitos caixotes do acervo de 60 mil peças - livros, manuscritos, estampas, mapas, moedas e medalhas -que formava a Real Biblioteca. Em 1822, o Brasil comprou tudo e mudou o nome para Biblioteca Imperial e Pública da Corte, que na República seria chamada Biblioteca Nacional. A sede monumental na Cinelândia, projeto de Francisco Marcelino de Sousa Aguiar que mistura os estilos néo-clássico e art-nouveau, foi inaugurada no seu centenário, a 29 de outubro de 1910. Os 190 anos da Biblioteca, que é uma fundação ligada ao Instituto Nacional do Livro do Ministério da Cultura, serão marcados em outubro pelo relançamento de sua publicação trimestral, a Revista do Livro, interrompida em 1970 pelo governo militar. Enriquecida constantemente por aquisições, doações

6 • SETEMBRO DE 2000 • PESQUISA FAPESP

A Biblioteca Nacional é hoje a sexta maior do mundo

O carimbo da Real Biblioteca:

o começo em 1810

1/lAC.W P !V' :or,Go,

ESt\DO DE SA1J B\CLO I

I ~--

v s LV S IADAS

de Luis dcCa· moés.

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I'I.E A L.

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J.mdJ lti-IUifÍi•ío, 011iOrJm;.. ri ~ tm Cll}•' dt .dntomo

Gi:)o~l~~tzlmpr1Jflr.

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Edição de I 572 da obra de Camões, uma das raridades

_y_---Mapa estilizado com plano rodoviário paulista: anos 30

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I

No seu acervo estão relíquias e novos lançamentos

e propinas (entrega obrigatória de um exemplar de toda publicação editada no país), é hoje a sexta maior biblioteca do mundo, reunindo livros, periódicos, desenhos, mapas e fotografias. Tem relíquias como dois exemplares da Bíblia de Mogúncia (1462) e a primeira edição de Os Lusíadas (1572). Acompanhando o avanço tecnológico, também passou a abrigar os novos formatos digitais. Quanto a isso, diz o presidente da fundação, Eduardo Portella: "Ainda sou do bunker gutenberguiano. Os virtuais nos chamam de excessivamente virtuosos, mas eu penso que é no livro que mora a complexidade, que será deixada de lado se o livro for renegado".

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OPINIÃO

LEWIS ]OEL GREENE -------------------- ---------------------------------~

Mais visibilidade para a ciência brasileira Biblioteca eletrônica já reúne mais de 50 revistas científicas

SciELO, Scientific Library Online, é uma bi­blioteca eletrônica virtual que abrange uma coleção selecionada de revistas acadêmicas

brasileiras. A biblioteca é parte integrante de um pro­jeto que está sendo desenvolvido pela FAPESP­Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (www.fapesp.br), em colaboração com a Bireme- o Centro Latino-Americano e Cari­benho de Informação sobre as Ciências da Saú­de (www.bireme.br).

Iniciado em março de 1997, o SciELO (www.scielo.br) já atingiu

do gratuitamente artigos completos à disposição dos leitores.

O modelo SciELO consiste em três componen­tes: o desenvolvimento de metodologia para editar, armazenar, criar Internet hyperlinks, publicar, divul­gar e avaliar revistas científicas. O segundo compo­nente é a aplicação da metodologia para operacio­nalizar os SciELO sites, que são coleções de revistas eletrônicas. O terceiro componente é o desenvolvi-

mento da rede de SciELO sites através da promoção de parcerias e comuni­cações científicas- autores, editores

a marca de aproximadamente 6.500 artigos publicados em mais de 50 títulos de revistas brasileiras.

"A maioria das revistas brasileiras

científicos e técnicos, instituições, agências financiadoras, com conse­qüente melhoramento da comunica-

A interface do SciELO fornece acesso direto e gratuito a todos os artigos em HTML e, em alguns ca­sos, em PDF, através de navega­ções por meio dos números indi­viduais das revistas, assim como de pesquisa e índices por autores, as­suntos, palavras chaves e revistas.

não está incluída em bases de dados

ção científica nos países em desen­volvimento. O modelo SciELO está funcionando não apenas no Brasil, mas também no Chile ( www.scie­lo.cl), Costa Rica (www.scielo.cr) e Cuba (www.sld.cu/scielo).

internacionais estabelecidas,

O critério mais importante para o controle de qualidade das revistas in-

O SciELO foi desenvolvido em resposta às tendências atuais à pu­blicação eletrônica global e ao problema da "Ciência Perdida no Terceiro Mundo" (Lost Science in the Third World, W Wayt Gibbs, Scientific Ameri­can 273, 76-83, 1995). Muitas revistas brasileiras enfrentavam o problema da falta de visibilidade e de acessibilidade (devido à sua distribuição li­mitada). Embora algumas sejam indexadas pelo ISI, Medline, etc., a maioria das revistas brasilei­ras não está incluída em bases de dados inter­nacionais estabelecidas. Até mesmo aquelas que estão incluídas em bancos de dados têm enfren­tado sérios problemas na distribuição de resu­mos e separatas em nível mundial. É dentro des­te contexto que podemos apreciar a revolução causada pelo SciELO para nossas revistas aca­dêmicas ao providenciar, enquanto índice, uma solução integrada dos problemas de visibilidade das revistas e ao permitir acessibilidade, colocan-

. cluídas na biblioteca virtual SciELO é o número de citações de seus tra­balhos por ela mesma e por outras revistas. Este critério, juntamente com a prontidão na publicação e

com algumas considerações técnicas formais, de­terminará se uma revista permanecerá no SciELO.

Internet hypertext links são uma via de acesso importante ao sistema SciELO. Hoje é possível entrar no SciELO ao nível de um trabalho através da citação do mesmo em Medline (Pubmed) ou Li­lacs. Espera-se que, num futuro próximo, o SciELO será conectado, através de hypertext links, a um número maior de banco de dados e serviços de informação. Esta é a contribuição importante do SciELO para o aumento da visibilidade e acessibi­lidade de revistas brasileiras de qualidade.

LEWIS ]OEL GREENE é químico, professor da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, da USP

PESQUISA FAPESP · IETEMBRO DE 1000 • 7

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CAPA

CEPID Centros de Pesquisa, Inovação

Um novo paradigma eDifusãoterãoamissão para a de aproximar a ciência da sociedade

organização da pesquisa CLÁUDIA IZIQUE

APESP anunciou, no a 14 de setembro, os

dez projetas classifica­dos para integrar o Programa Centros

de Pesquisa, Inovação e Difusão ( Ce­pids). Os novos centros contarão com recursos da ordem de R$ 15 milhões anuais para desenvolver pesquisas multidisciplinares na fronteira do co­nhecimento. Essas pesquisas devem ter caráter inovador e gerar um conhe­cimento que possa ser transferido para os diversos níveis de governo, de forma a subsidiar políticas públicas, e para o setor privado, contribuindo para o desenvolvimento de novas tecno­logias e para a criação de novas empre­sas. Os Cepids terão ainda a missão de promover atividades educacionais.

A cerimônia contou com a pre­sença do governador Mário Covas e dos secretários de Estado da Saúde, José da Silva Guedes, das Relações do Trabalho, Walter Barelli, e da Ciência, Tecnologia e Desenvolvimento Econô­mico, José Aníbal, e do presidente em exercício da FAPESP, Paulo Eduardo de Abreu Machado. Reitores, conselhei­ros e diretores da FAPESP, representan­tes das universidades e dos institutos de pesquisa e os coordenadores e as equipes de pesquisadores dos dez Ce­pids lotaram o auditório da Funda­ção. Em seu discurso, Mário Covas qualificou os pesquisadores de "ban­deirantes do conhecimento" e, "em nome do povo de São Paulo", agrade­ceu-lhes por seu trabalho. "Hoje, o desenvolvimento econômico e social só será possível com base na ciência e tecnologia", afirmou.

8 • SETEMBRO DE 2000 • PESQUISA FAPESP

Covas, Guedes, Machado e Perez: desenvolvimento com base na ciência

O Programa Cepid, inspirado no modelo norte-americano adotado em 20 Centros de Ciência e Tecnolo­gia da National Science Foundation, estabelece um novo paradigma para a pesquisa científica, de acordo com José Fernando Perez, diretor científi­co da FAPESP. "O maior desafio da política científica e tecnológica, que é o desafio dos Centros, é propor uma visão integrada da atividade de pes­quisa com a transferência de conheci­mento para o setor público e privado e a educação':

Os dez Cepids, que abrangem di­versas áreas de pesquisa, têm a tarefa de viabilizar parcerias com organiza­ções responsáveis pela implementação de políticas públicas e com indústrias, além de estimular a formação de pe­quenas empresas que mcorporem os resultados das pesquisas. "Todos os centros constituídos ou já têm uma rela­ção com a indústria ou um potencial

claro para isso. A indústria é uma par­ceira necessária, mas não tem tradição de investir em pesquisa", disse Perez.

Além dos programas clássicos de graduação e pós-graduação, os centros terão ainda a responsabilidade de de­senvolver atividades na área da educa­ção básica, como cursos e treinamento para alunos e professores de segundo grau. "Em todos os centros a educa­ção já tem um caráter inovador."

Os Cepids, afirmou Perez, conso­lidam as três principais diretrizes de atuação da FAPESP: a pesquisa mul­tidisciplinar, representada pelos pro­jetas temáticos- com 2 70 em vigência; a transferência de conhecimento, que se faz por meio do programa de Po­líticas Públicas, com 60 projetas em andamento, e dois de inovação tec­nológica- o de Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas, com 120 pro­jetas, e o Parceria para Inovação Tec­nológica com 50 projetas. Por fim os

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programas de educação, o de Ensino Público e o Pró-Ciências.

Financiamento - A FAPESP vai apoiar as atividades dos centros por um pe­ríodo de, no máximo, 11 anos. "Tra­ta-se da primeira linha de financia­mento de pesquisa de longo prazo", sublinha Perez. Os contratos poderão ser renovados no quinto e no oitavo

dos pesquisadores e pessoal de apoio, cederá as instalações, os equipamen­tos e a infra-estrutura para o desen ­volvimento das pesquisas.

Disputa acirrada - O edital para a se­leção dos Cepids foi lançado em 1998 e acabou por se tornar um desafio para a comunidade científica de São Paulo. A disputa foi acirrada: insere-

Aud itório da FAPESP recebeu mais de SOO pesquisadores e convidados

ano de funcionamento, sempre por um período de mais três anos. "Depois dis­so, ou os centros terão cumprido sua missão ou já terão condições de andar sozinhos", afirma, citando o exemplo do Centro de Biotecnologia, que aca­bou por se tornar um departamento da Universidade de Washington,

veram-se 112 pré-projetos, que foram avaliados a partir dos três paradig­mas do programa: pesquisa, inovação e difusão "Foi o programa mais com­petitivo da história da ciência no país", garante Perez. Do conjunto de propostas, foram selecionados 30

em Seattle, nos Estados Unidos. As atividades dos centros

serão acompanhadas por um comitê externo permanente que deverá ser consultado sobre qualquer decisão da equipe. As avaliações serão anuais, sendo que no final do terceiro e do sexto ano terão caráter abran­gente e decisivo para a conti­nuidade do financiamento.

Todos os centros estão vin­culados a uma instituição de pesquisa que, em caráter de contrapartida, assumirá a res­ponsabilidade pelos salários

Os dez aprovados

• Centro de Estudos do Sono

• Centro de Biologia Molecular Estrutural

• Centro de Toxinologia Aplicada

• Centro Multidisciplinar para o Desenvolvimento de Cerâmica de Materiais

• Centro de Estudos Metropolitanos

• Centro de Estudos da Violência

• Centro de Pesquisa em Óptica e Fotônica

• Centro Antônio Prudente de Pesquisa e Tratamento do Câncer

• Centro de Pesquisa de Terapia Celular

• Centro de Estudos do Genoma Humano

projetos semifinalistas. Todos foram submetidos a uma banca de 150 con­sultores internacionais, especialistas nas diversas áreas de pesquisa, até chegar à classificação dos dez projetos fina­listas. Estes últimos passaram ainda por uma análise mais detalhada que incluiu desde a avaliação da capaci­dade de liderança dos coordenadores dos projetos até visitas in loco. "Imagi­návamos classificar cinco ou seis pro­postas, mas devido à excelência dos projetos e ao entusiasmo dos avalia­dores, tivemos que ampliar", revela Perez. Os 20 projetos não classificados respondiam, de alguma forma, ao de­safio proposto. "Tanto que a FAPESP está oferecendo a possibilidade de eles serem reapresentados na forma de pro­jetos temáticos, com a vantagem de já contar com o aval de especialistas."

"Os Cepids são a prova do grau de excelência da universidade públi­ca", afirmou Jacques Markovitch, reitor da Universidade de São Paulo e presidente do Conselho de Reito­res do Estado de São Paulo. "A pes­quisa e os recursos humanos são a base para qualquer esforço governa­mental para o progresso da ciência", completou

Pesquisa e mercado- Em seu discur­so, o secretário José Aníbal destacou a importância da integração entre a pesquisa científica e a inovação tec­nológica para o desenvolvimento econômico. "Na nova economia, pro-

dutos que não têm inovação não disputam mercado", disse. Ele adiantou que o governo do Estado, em parceria com o Se­brae, está constituindo um fundo de aval para apoiar seto­res produtivos, entre eles os que investirem na inovação tec­nológica. "O fundo vai garantir até 80% do crédito que as em­presas tomarem no sistema bancário. Os recursos virão do Banco Nacional de Desenvol­vimento Econômico e Social (BNDES) e serão operados pela Nossa Caixa Nosso Banco': afirmou.

PESQUISA FAPESP · IETEMBRO DE 2000 • 9

Page 10: Parceiros do Futuro

Um mercado diversificado e bastante promissor Centro de Materiais Cerâmicos investirá na formação de profissionais

O Centro Multidisci­plinar para o De­senvolvimento de Materiais Cerâmi­cos é formado por

pesquisadores de cinco instituições distintas: a Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), a Universida­de Estadual Paulista (Unesp/Arara-

Tecnologia, no âmbito do Programa Pronex/Finep.

No Centro, a equipe estará divi­dida para cumprir duas tarefas: de­senvolver pesquisa básica e buscar interação com a indústria. "Temos uma abertura razoável em relação ao setor produtivo. Atuamos na área de cerâmica elétrica com, por exem-

Elson Longo: objetivos são desenvolver pesquisa básica e integrar-se com a indústria

quara), a Universidade de São Paulo (USP/São Carlos), o Centro Brasilei­ro de Pesquisas Físicas (CBPF/CNPq) e o Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen/São Paulo). A equi­pe, que tem como quartel-general o Laboratório Interdisciplinar de Ele­troquímica e Cerâmica da UFSCar, já participa de projetos conjuntos há alguns anos, tendo sido a ela atri­buída a condição de Grupo de Exce­lência pelo Ministério da Ciência e

I O · SETEMBRO DE 2000 • PESQUISA FAPESP

plo, capacitares cerâmicos, cerâmica refratária, pisos e azulejos, além de desenvolver pesquisas com partícu­las e filmes finos", explica Elson Lon­go da Silva, diretor.

O Centro terá forte atuação na área de formação de profissionais do setor, como, por exemplo, daqueles responsáveis pela aplicação e colo­cação de pisos e azulejos. "O proble­ma, na maioria das vezes, não é a qualidade do piso, mas a colocação

que não leva em conta o espaço para a dilatação", justifica Longo. O pro­grama será desenvolvido em parce­ria com o Senai. "Pretendemos usar a Internet, manter uma home page e utilizar o Centro de Ciências da Unesp e de outras universidades para melhorar a produção cerâmica no país", diz Longo.

Com o apoio da FAPESP, além de ampliar a atuação no estado, o grupo pretende estender seu traba­lho também às maiores regiões pro­dutoras de cerâmica do país. "Meta­de da produção brasileira está em São Paulo, mas os exportadores es­tão no Sul", justifica. Já estão sendo firmados convênios para a realiza­

ção de cursos de mes­trado e doutorado em Cerâmica e Metalurgia no Maranhão. "Tam­bém vamos estreitar re­lações com a Paraíba e o Rio Grande do Nor­te com a mesma finali­dade", adianta Longo. O Nordeste, ele expli­ca, tem fontes de argi­la de alta qualidade, principalmente para a cerâmica artística, uma matéria-prima prati­camente esgotada em São Paulo. Está previs­ta, ainda, a implemen­tação de um Centro Ce­râmico no Brasil, em parceria com as indús­trias de piso e azulejo.

De acordo com pa­recer de um dos espe­cialistas responsáveis

pela proposta, o Centro representará um grande passo à frente. "As áreas de trabalho definidas pelo grupo são vitais para o progresso e a ampliação da atividade da indústria no Brasil. O financiamento a este Centro per­mitirá que os pesquisadores avancem na consolidação de uma atividade de nível internacional. Ele deverá sig­nificar um impulso para a ciência ce­râmica e a engenharia no país. Tra­ta-se de um proposta notável."

Page 11: Parceiros do Futuro

Em foco, os proble·mas urbanos de São Paulo Centro de Estudos da Metrópole quer investigar e propor soluções para a região metropolitana

Regina Meyer: centro quer ser multiplicador de novas pesquisas

Ata do Centro de Estu­

os da Metrópole é onjugar um conjunto de pesquisas que te­rão como objeto a

Região Metropolitana de São Paulo, que reúne 39 municípios. A propos­ta de estudo se apóia nos resultados e nas experiências de pesquisas rea­lizadas pela Faculdade de Arquitetu­ra e Urbanismo da Universidade de São Paulo (USP) e pelo Centro Bra­sileiro de Análise e Planejamento ( Cebrap). "Os temas das pesquisas são aqueles relevantes para o estudo de grandes cidades: urbanismo, cul­tura, demografia, meio ambiente e a estrutura social", afirma Regina Ma­ria Prosperi Meyer, diretora.

A idéia é dar continuidade a dois estudos sobre a região realiza­dos pelo Cebrap: São Paulo: Cresci­mento e Pobreza (1974) e São Paulo: Trabalhar e Viver (1983). No atual

projeto, sociólogos, economistas, antropólogos e cientistas políticos, sob a coordenação do Centro, terão como foco de pesquisa o estudo dos problemas urbanos decorrentes do processo de transformação da cida­de e de seu papel no cenário nacio­nal. "Este é um momento de trans­formação tão violento quanto foi no início do século, quando a cida­de cresceu a taxas nunca registra­das, e nos anos 50, quando a região mudou o seu perfil e a indústria se instalou no Grande ABC", comenta Regina Meyer. Hoje, as indústrias migraram para o interior do estado e outras regiões, mas São Paulo ga­nhou importância do ponto de vis­ta dos serviços. "Diante dessa nova vocação, uma série de questões pre­cisa ser levantada: como a cidade emprega? como as pessoas vivem? qual é o cotidiano das famílias?", ela indaga.

O Centro pretende buscar novas dimensões da vida urbana. "A im­portância da pesquisa vem do fato de o Brasil ser hoje um país urbano. Pretendemos irradiar formas de li­dar com o urbano a partir desse projeto", explica. Para compor esse quadro, além das pesquisas realiza­das pelo Centro, também serão uti­lizados dados coletados pela Funda­ção Seade. "Teremos também a parceria do Serviço Social do Co­mércio (Sesc), que, por sua capilari­dade, permitirá o contato dos pes­quisadores com uma população bastante diversificada."

A relevância do Centro, no atual panorama de globalização econô­mica, parece indiscutível. Os dados divulgados em 1995 pela ONU atra­vés da Agenda 21, mostram que das 20 maiores metrópoles do mundo, dezoito estão localizadas em países em desenvolvimento. Tal constata­ção aponta para questões associadas à dimensão das concentrações urba­nas e do perfil econômico e social de seus habitantes. A Agenda 21 mostra ainda que o desequilíbrio entre o crescimento demográfico e o cresci­mento econômico da maior parte dessas 20 metrópoles aponta para "grandes cidades de pobres".

O projeto de difusão ganhou aplausos dos avaliadores internacio­nais. "Trata-se de uma forma inova­dora de abordar as políticas públi­cas, não as deixando confinadas aos gabinetes de especialistas, mas envolvendo a população, o setor pri­vado, o governo, assim como as or­ganizações não-governamentais."

O Centro pretende ser um "mul­tiplicador" de novas pesquisas, ofe­recer cursos para as organizações responsáveis pela implementação de políticas públicas, uma fonte de in­formações permanente para todos que têm uma relação direta com a cidade. "Teremos capacidade de res­ponder às questões mais essenciais como, por exemplo, onde investir para resolver a violência ou o me­lhor investimento para o transporte urbano de massa."

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Fármacos a partir do veneno de serpentes Centro de Toxinologia Aplicada investigará a utilização farmacêutica da toxina de animais

à pesquisa de banca­da, sem investir na aplicação desse co­nhecimento. Mas o Butantan se moder­nizou, integrando aos seus quadros jo­vens doutores, for­mando uma equipe multidisciplinar que contribuiu para que se avançasse na dire­ção da utilização prá­tica desse conheci­mento. Os trabalhos de pesquisa serão feitos em parceria com a Universidade de São Paulo, com a Universidade Esta­dual Paulista (Unesp) e com a Universidade Federal de São Paulo (Unifesp ), antiga Es­cola Paulista de Me­dicina.

Antonio Carlos de Camargo: tendência internacional O uso de toxinas naturais na fabrica-

Aização de toxinas ani­ais e de microrga­ismos na elaboração de drogas de uso far­macêutica será o fo-

co das pesquisas do Centro de Toxi­nologia Aplicada. "Certamente nas toxinas encontraremos moléculas que servirão de padrão para o desen­volvimento de novos fármacos': pre­vê Antonio Carlos Martins de Ca­margo, diretor.

O Centro está vinculado ao Insti­tuto Butantan, cuja tradição de pes­quisa remonta ao princípio do sé­culo. Carmargo lembra que, até recentemente, o Instituto se dedicava

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ção de novas drogas é uma tendência internacional que pode ser observada no alto número de aplicações de veneno de vários or­ganismos, como cobras, escorpiões e aranhas, registradas no Escritório de Marcas e Patentes dos Estados Uni­dos (US Patent & Trademark Office - USPTO). Os pesquisadores do Centro já iniciaram, em parceria com pesquisadores da Universidade de Liverpool, na Inglaterra, e com o Health Science Center, da Universi­dade de Virgínia, nos Estados Unidos, estudos de uma toxina da serpente brasileira que previne a adesão celu­lar e tem grande potencial de utiliza­ção no tratamento de metástase.

O estudo das toxinas abre várias frentes de pesquisa. Além de impe­dir o crescimento de tumores, o ve­neno das serpentes brasileiras é um coquetel de proteínas que desorga­niza o sistema vascular e tem enorme aplicação farmacêutica em distúr­bios cardiocirculatórios. O veneno de outros insetos, como a aranha, por exemplo, produz toxinas que podem ser utilizadas no tratamento de pro­cessos inflamatórios.

O estudo das toxinas permitirá tam­bém desvendar mecanismos fisiopa­tólogicos ainda desconhecidos. "No veneno da serpente foi identificada uma toxina que tem alta homologia com hormônios que atuam no equi­líbrio iônico renal, secreção de hor­mônios, etc.", exemplifica Camargo.

Para realizar a transição entre a pesquisa e sua aplicação comercial, o Centro pretende criar um progra­ma de parceria com indústrias, que permitirá o acesso dos interessados aos projetos de pesquisa desenvolvi­dos pelos grupos das três universi­dades. Se houver interesse mútuo em determinada pesquisa, um acor­do será estabelecido para o desen­volvimento de nova droga. "Não há dúvida de que a indústria e outras organizações terão grande interesse no trabalho deste Centro interinsti­tucional", comentou um dos avalia­dores responsáveis pela classificação da proposta.

O Instituto Butantan já desenvol­ve programas que atendem ao inte­resse da comunidade em relação a

o • o •

amma1s e mKrorgamsmos veneno-sos, além de desenvolver cursos sobre veneno animal e primeiros socorros para as Forças Armadas, polícia e empresas privadas. Com o apoio da FAPESP, o Centro pretende ampliar essas atividades, de forma a incluir cursos sobre prevenção de doenças transmitidas por microrganismos e sobre a conservação da biodiversida­de. O Centro iniciará também cursos sobre biotecnologia médica e de qua­lificação de profissionais para o de­senvolvimento de novos fármacos e processos de biotecnologia.

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Investigando a desordem genética Centro de Estudos do Genoma Humano vai investigar doenças genéticas e ampliar atendimento a famílias

O Centro de Estudos do Genoma Huma­no formou-se a par­tir da experiência de um grupo de pes-

quisadores do Instituto de Biociên­cias da Universidade de São Paulo (USP) que, há 30 anos, se dedica ao estudo de doenças genéticas e ao

ção genótipo-fenótipo, ampliando o diagnóstico de certeza de muitas do­enças e reforçando o atendimento à população. "Sempre fizemos a inte­gração entre a pesquisa e o aconse­lhamento genético", sublinha Maya­na Zatz, diretora.

Com o apoio da FAPESP, o Cen­tro de Estudos do Genoma Humano

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Mayana: programa de difusão das pesquisas será feito por meio de vídeos e softwares

aconselhamento de famílias. Desde os anos 70, ainda sem os recursos da moderna tecnologia, o grupo ga­nhou respeito internacional ao de­tectar alterações de cromossomas na síndrome de Down e as mudan­ças bioquímicas na distrofia de Du­chenne. Essa posição de destaque na comunidade científica foi reforçada na década de 80, quando, já com o apoio da biologia molecular, o gru­po desenvolveu estudos de correia-

vai ampliar as pesquisas sobre a de­sordem genética, por meio de mapea­mento, clonagem e identificação de proteínas responsáveis por doenças, e reforçar o acompanhamento de fa­mílias pela identificação de situa­ções de risco, aconselhamento gené­tico e diagnóstico pré-natal. "Numa mesma família, pessoas com a mes­ma mutação patogênica num gene, o que altera a proteína, podem ter quadros clínicos completamente di-

ferentes, por conta dos genes mo­dificadores, que precisam ser iden­tificados", exemplifica a diretora do Centro.

Os pesquisadores do Centro rea­lizarão, ainda, investigações na linha da antropologia humana, com o ob­jetivo de conhecer as variações das bases genéticas em diferentes grupos étnicos que formam a população brasileira. Os estudos incluem desde a genética comparativa, já realizada em pequena escala no Instituto de Biociências, até análises evolutivas, como a identificação de semelhan­ças entre genes humano e animal, explica Mayana Zatz.

O Centro de Estudos do Geno­ma Humano está instalado num prédio recém-inaugu­rado, construído com finan­ciamento federal do Pronex, que reúne laboratórios de pesquisas e salas de atendi­mento ligados em rede a um anfiteatro, onde serão reali­zados cursos, em diversos níveis, para alunos da área de ciências médicas, médi­cos, profissionais da área de saúde, professores e estu­dantes de segundo grau, as­sim como para jornalistas especializados.

O programa de difusão das pesquisas em genética humana inclui, ainda, a pro­dução de vídeos e softwares, assim como um jornal com informações científicas e um sumário das atividades educacionais desenvolvidas pelo Centro.

Os avaliadores internacionais res­ponsáveis pela classificação da pro­posta consideraram o plano de tra­balho "ambicioso", mas importante para o desenvolvimento da pesqui­sa genética no País. O programa de educação e difusão foi considerado um dos principais desafios do proje­to. "O plano de difusão é importan­te, pode ser factível e está perfeita­mente conectado à pesquisa básica", afirmou um dos especialistas.

PESQUISA FAPESP • SETEMBRO DE 1000 • 13

Page 14: Parceiros do Futuro

A chave para novos medicamentos Centro de Biologia Molecular Estrutural vai criar demandas por P&D na indústria farmacêutica

Anfor~ações geradas

m prOJetas como, por xemplo, o Genoma Humano, serão uti­lizadas pelo Centro

de Biologia Molecular Estrutural, pa­ra aprofundar o conhecimento sobre os sistemas biológicos e buscar apli­cações práticas em saúde humana,

rios de Síntese e Produtos Naturais da Universidade Federal da São Car­los (UFSCar); e do Centro de Bio­logia Estrutural do Laboratório Nacional Luz Síncrotron (LNLS), em Campinas, que é coordenado por Rogério Meneghini. "A longo prazo, poderemos agregar novos laborató­rios e pesquisadores, já que hoje é

Glaucius Oliva: o Centro reúne pesquisadores da UFSCar, USP e do LNLS

agropecuária e agronegócios. "O nos­so objetivo é estudar como a proteí­na funciona, elucidar a sua estrutu­ra, utilizando para isso ferramentas da física, química e biologia", explica Glaucius Oliva, diretor.

Uma das marcas fortes do pro­jeto é a multidisciplinariedade. O Centro reúne pesquisadores dos la­boratórios de Cristalografia de Pro­teínas e Biofísica Molecular do Insti­tuto de Física da Universidade de São Paulo em São Carlos; do Depar­tamento de Química e do Laborató-

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sabido que é possível fazer ciência não pela especialidade, mas pelo foco, por um projeto comum", afir­ma Oliva.

Já existem nove projetas de pes­quisa em andamento envolvendo aplicações diferentes, sempre asso­ciando genes a doenças. "Temos vários enzimas de Tripanossomas, da Leish­mania, vários Xistossomas mansonis, esquistossomose, malária, temos proteínas do vírus da febre amarela e do papiloma humano, que causa o câncer de útero", detalha. "O apoio

da FAPESP vai fortalecer essa inicia­tiva." O Centro tem como meta aproximar-se do setor produtivo e criar demanda por P&D na indús­tria farmacêutica nacional. O mer­cado farmacêutico brasileiro movi­menta, anualmente, US$ 10 bilhões, e as empresas de capital nacional re­presentam entre 35% e 40% desse mercado, marca conquistada antes mesmo da Lei de Patentes. Mas, Oli­va ressalva, enquanto as multinacio­nais investem 20% do faturamento em P&D, às empresas nacionais res­ta trabalhar com genéricos, um pro­duto com pouco valor agregado, ou licenciar segundas marcas, pagando royalties. "A alternativa é investir em pesquisa. Temos que continuar com os projetas criados in house, mas tam­bém criar demandas e identificar no­vos projetas de interesse da indús­tria", afirma Oliva.

Avaliadores da proposta conside­raram o projeto fundamental para o futuro das pesquisas em novos me­dicamentos no país. "Não há dúvi­das de que a ciência e a indústria no Brasil dependerão da capacidade de trabalhar com a cristalografia de proteínas, especificamente na pes­quisa e no desenvolvimento de dro­gas e em genômica estrutural. Sem essa capacidade, a pesquisa brasi­leira básica perderá contato com os parceiros internacionais e a indús­tria farmacêutica brasileira não será capaz de explorar o desenho de dro­gas avançadas, sobretudo aquelas re­levantes para o mercado sul-ameri­cano", afirmou um dos especialistas que avaliaram o projeto.

O Centro manterá, em todas as instituições envolvidas, programas de treinamento para estudantes e pesquisadores na área de biologia es­trutural. Também estabelecerá estrei­to relacionamento com o Centro de Difusão Científica e Cultural, da USP de São Carlos, para divulgar noções e a importância da biologia molecular, engenharia genética e biotecnologia nas escolas de segundo grau e por meio de ensino a distância, via Inter­net, vídeos, conferências, entre outros.

Page 15: Parceiros do Futuro

Cerco integrado a um inimigo poderoso Centro de Pesquisa e Tratamento do Câncer vai utilizar informações geradas no Projeto Genoma Câncer

D ois institutos com lon­ga tradição de pes­quisa e tratamento do câncer, o Hospi­tal do Câncer A. C.

Camargo e o Instituto Ludwig de Pesquisa sobre o Câncer, constituiram o Centro Antonio Prudente de Pes­quisa e Tratamento do Câncer. "Com o apoio da FAPESP, o Centro vai utilizar as infor­mações geradas pelo Projeto Genoma Câncer para avan­çar na identificação de novos genes, buscar novas formas de diagnóstico e tratamento e desenvolver novas drogas", explica Ricardo Renzo Bren­tani, diretor.

As mudanças que vêm ocorrendo na disÚibuição demográfica no Estado de São Paulo e o limitado avan­ço em relação à prevenção e terapia de tumores malignos indicam que, nas próximas décadas, o câncer será fator de grande impacto na saúde pública. Para enfrentar essa situação, a idéia dos pesqui­

seguirmos tratar pacientes com doen­ça primária", diz Brentani.

Outro foco de trabalho do Cen-tro será a prevenção da doença. Se­gundo Brentani, pelo menos 75% dos tumores têm causas conhecidas: 35% decorrem do consumo de ci-garros, 15% do uso de álcool, 10%

doença. Agora será possível infor­mar a população de que não adianta fugir do diagnóstico. Isso só reduz suas chances de cura, que são gran­des com a identificação precoce do

' )) cancer. O Centro pretende ainda intensi­

ficar a atuação da rede feminina de voluntárias, responsáveis por cursos dirigidos à comunidade leiga, e am­pliar os cursos de pós-graduação, doutorado e de especialização no diagnóstico e tratamento da doença. "Nas 90 escolas médicas existentes no País, não mais que 20 ensinam cancerologia na graduação. A falta de informação aumenta a mortali-

sadores do Centro é desen- Brentani: a falta de informação aumenta a mortalidade e os custos para o Estado volver formas de combater o câncer segundo uma aborda-gem multidisciplinar e integrada, onde a pesquisa é a principal com­ponente. A prevenção, o diagnósti­co e o tratamento serão focos para as três principais áreas de atuação: a pesquisa, a educação e a transferên­cia do conhecimento científico.

O hospital já tem uma marca de cura de 66%. "E só não é maior por­que o paciente procura o tratamento quando a doença já está bastante de­senvolvida. Só avançaremos com os benefícios da pesquisa básica se con-

são causados por vírus, como a he­patite ou o papiloma vírus, e 15% são hereditários. E, neste último ca­so, já existem metodologias de labo­ratório para avaliar os riscos de he­reditariedade. A idéia é realizar uma ampla campanha com a população, por meio de vídeos e CDs, para in­formar sobre as situações de risco. "Já fizemos experiências isoladas, promovendo cursos para professo­res da rede pública com a intenção de massificar as informações sobre a

dade e os custos para o Estado", re­vela Brentani.

De acordo com especialistas in­ternacionais responsáveis pela ava­liação da proposta, os resultados das pesquisas terão repercussão na im­plementação de políticas públicas. "Não há dúvidas de que as informa­ções que serão obtidas com a análise do genoma humano vão suscitar uma série de questões que devem ter respostas em políticas públicas adequadas."

PESQUISA FAPESP · SETEMBRO DE 2000 • IS

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Concentração de renda e violação dos direitos civis Centro de Estudos da Violência analisará a relação entre violência e pobreza e a impunidade

O Centro de Estudos da Violência da Uni­versidade de São Paulo (USP) vaiam­pliar o trabalho de

pesquisa desenvolvido, há 12 anos, pelo Núcleo de Estudos da Violên­cia. Nesse período, o Núcleo ganhou projeção nacional e internacional pe­los estudos sobre os Direitos Huma-

de avaliar o que é feito em relação à pobreza e ao desemprego. Uma socie­dade com formidável concentração de renda, a realização dos direitos ci­vis e políticos é precária", argumenta Paulo Sérgio Pinheiro, diretor.

A segunda tarefa da equipe será analisar as bases da política de segu­rança pública em São Paulo, desde o século 19 até os nossos dias. "O nos-

Pinheiro: pelo menos metade dos homicídios é de auto ria desconhecida

nos no país, por sua participação ati­va na formulação do Programa Nacio­nal de Direitos Humanos e por denún­cias sobre a violação desses direitos junto a organismos internacionais.

O primeiro desafio a que se pro­põem os 25 pesquisadores que inte­gram o Centro é cruzar as informa­ções sobre a violação dos direitos civis e políticos em São Paulo, desde a transição democrática, com os in­dicadores de direitos econômicos e sociais. "Hoje está claro que temos

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so objetivo é entender as políticas relativas a penitenciárias e prisões, o que vai requerer exame da legislação e da sua tradução em práticas con­cretas", afirma Pinheiro.

A terceira linha de pesquisa será a análise do processo de construção da impunidade no país. "No Brasil, pelo menos metade dos homicídios é de autoria desconhecida, em fun­ção do processo de investigação po­licial e da forma como esses proces­sos tramitam no Judiciário", revela.

O quarto objetivo é realizar ex­perimentos concretos de interven­ção em algumas comunidades, utili­zando como modelo os contratos de segurança, em parceria com o go­verno e a sociedade civil. Em área a ser selecionada, serão identificados os agentes da comunidade que pos­sam atuar como mediadores de con­flitos, buscando soluções pacíficas, e melhorar a relação entre polícia e comunidade. "A maior parte dos ho­micídios ocorre por motivos fúteis, como briga de bar ou de rua. Não podemos esperar que a situação so­cial melhore para pacificar esses am­bientes", explica. Essa proposta se desdobra no projeto Observatório de Direitos Humanos/Radares de

Desenvolvimento Huma­no, um conjunto de relató­rios sobre cidadania que te­rá como objetivo manter a sociedade informada das violações de seus direitos. "Colocaremos à disposição da comunidade estatísti­cas produzidas por vários órgãos com a finalidade de fortalecer a participação", diz Pinheiro.

Finalmente, o Centro pretende produzir uma teo­ria integrada dos Direitos Humanos, por meio de se­minários e conferências, mantendo a sua linha de cursos de formação de alunos na universidade e a relação estreita que desen-volveu nestes anos com a sociedade civil.

De acordo com um dos avaliado­res internacionais, responsáveis pela classificação da propostas, "a ma­neira como as pessoas no Brasil, e em particular aquelas dos estratos sociais mais baixos, são precaria­mente atendidas pelo sistema legal precisa ser estudada, divulgada e re­sultar na abertura de canais para pro­gramas de legislação e reformas. Os conceitos de Direitos Humanos e re­gras da lei fornecem uma boa estru­tura para este trabalho".

Page 17: Parceiros do Futuro

O uso das células no tratamento de doenças Centro de Pesquisa de Terapia Celular terá estreito relacionamento com o setor público

Zago: meta também é desenvolver métodos de laboratório para diagnósticos

E specialistas de três áreas distintas- biologia mo­lecular, hematologia e química de proteínas-, tendo como base a Fa-

culdade de Medicina de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo (USP), estão reunidos no Centro de Pesquisa de Terapia Celular, num projeto comum. O foco das pesqui­sas será o tratamento de doenças. O modelo mais simples de terapia ce­lular é a transfusão de sangue. Pode­se, ainda, transfundir células, como é o caso do transplante de medula óssea. Também é possível modificar as células antes de transplantá-las, fazendo a inserção de um gene dife­rente da célula primitiva, ou, ainda, coletar e expandir uma determinada coleção de célula, fazendo com que ela prolifere. "Existem abordagens que precisam ser mais bem exploradas, como, por exemplo, 'vacinar' uma cé-

lula para fazer com que ela reconhe­ça a célula cancerosa como anormal e reaja contra ela", explica Marco An-tonio Zaga, diretor. '

Estão envolvidos nesse projeto o grupo de pesquisadores do Hemo­centro e do Laboratório de Biologia Molecular, que participam dos pro­jetas Genoma Xylella e Genoma Câncer; os pesquisadores do Centro de Hematologia, que estudam neo­plasias do sangue; a Unidade de Transplante de Medula Ossea do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto; e o Centro de Química de Proteínas, que estuda a estrutura da proteína e sua purificação.

O Centro surge já com estreito relacionamento com o setor público de saúde. "O Hemocentro atende a 212 municípios no Estado de São Paulo, com uma população de 4 mi­lhões de pessoas, e já é um foco ge-

radar de políticas públicas na área de saúde", afirma Zaga. Há dois anos, com o apoio da Financiadora de Es­tudos e Projetas (Finep), o Hemo­centro desenvolveu um programa de controle de qualidade em todas as suas áreas de atuação, o que lhe va­leu a certificação ISO 9002, conferi­da pela Fundação Paulo Vanzolini. A meta, agora, é aproximar suas ativi­dades do setor produtivo. "Preten­demos atuar na área de desenvolvi­mento de produção de métodos de laboratório para diagnóstico", ante­cipa Zaga. "Já temos relação com uma indústria farmacêutica de Ribeirão Preto que quer desenvolver produ­tos na área de terapia celular."

De acordo com parecer de avalia­dores internacionais, responsáveis pela inclusão do grupo no Cepid, "a proposta de trabalho do Centro de Pesquisa de Terapia Celular é altamen­te inovadora e muito provavelmente vai prover de novas e importantes informações não apenas os pesqui­sadores brasileiros, mas a comuni­dade científica de todo o mundo".

O projeto prevê a continuidade dos cursos de formação de especia­listas em biologia celular, em nível de mestrado e doutorado, e o desenvol­vimento de um programa que terá a participação de alunos e professores da escola secundária. "O nosso obje­tivo é proporcionar um conta to dire­to dessa comunidade com pesquisado­res das áreas de genética, imunologia, câncer e educação em saúde", deta­lha Zaga. A idéia é desenvolver, por exemplo, estimular e orientar alunos e professores a realizar trabalhos em uma dessas áreas. Faremos um con­gresso para selecionar o melhor es­tudo e o aluno selecionado iniciará um trabalho de educação científica em nossos laboratórios", diz.

Está prevista, ainda, a realização de cursos de verão para alunos de graduação nas áreas de ciências bio­lógicas, com programas de experi­mento prático em laboratório. "Já fi­zemos o primeiro, com o nome de Viagem através do Genoma, e deu muito certo."

PESQUISA FAPESP · SETEMBRO DE 2000 • 17

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Mais luz para diversas áreas do conhecimento Centro de Pesquisa em Óptica e Fotônica desenvolverá projetas com tecnologia de ponta

Bagnato: Centro estudará diversas aplicações da óptica

O Centro de Pesquisa em Optica e Fotôni­ca reúne pesquisa­dores do Instituto de Física da Univer-

sidade Estadual de Campinas (Uni­camp ), do Instituto de Física da Uni­versidade de São Paulo (USP), em São Carlos, e do Instituto de Pesqui­sas Energéticas e Nucleares (Ipen).

cidade de transmissão de dados pela Internet, o que só será possível se os sistemas eletrônicos forem substituí­dos por sistemas ópticos. Isso requer o estudo de vários fenômenos funda­mentais da Física dos Materiais e dos Estados Sólidos. Um dos grandes objetivos da fotônica é a substituição

z do transistor eletrônico por um tran-~ sistor óptico. Será preciso, ainda, in­lil ül vestigar como os pulsos de luz se :J

~ comportam ao se propagarem por diferentes materiais que serão utiliza­dos nessa engenharia. "É a óptica não linear de materiais", ressalva Brito.

O Instituto de Física da USP de São Carlos e o da Unicamp têm larga experiência de difusão de conhecimen­to para pequenas, médias e grandes empresas para o desenvolvimento de tecnologias baseadas em óptica e fo­tônica. A Optoeletrônica São Carlos, por exemplo, a principal empresa bra­sileira produtora de lentes, compo­nentes ópticos e instrumentos de me-

trologia, nasceu do grupo de Optica do Instituto de Física da USP de São Carlos. O Insti­tuto de Física de Campinas ge­rou e transferiu a tecnologia de fibras ópticas para a Telebrás, no que foi um dos mais bem sucedidos programas de trans­ferência de tecnologia no Bra­sil. Hoje colabora com empresas como a KomLux, fabricante de fibras ópticas, a Corning Inc., e a Ericsson Telecomunicações.

Os dois institutos somarão, ainda, bem-sucedidas experiên­cias em educação desenvolvidas por meio de programas de reci­clagem de professores e de cur­sos para alunos de segundo grau, além do projeto Ciência na Es-

"Eram duas propostas distintas, a de um Centro de Optica e a de um de Fotônica, que a FAPESP, depois da análise, recomendou que fossem unificadas, já que tinham forte na­tureza complementar nas áreas de pesquisa", explica Carlos Henrique de Brito Cruz, diretor do Instituto de Física da Unicamp. "As investiga­ções vão convergir para os estudos de fenômenos da óptica e suas aplica­ções nas áreas de telecomunicações, biologia, medicina e física atômica, entre outros", completa Vanderlei Bagnato, do Instituto de Física da USP-São Carlos.

Brito: na óptica não linear cola, apoiado pela FAPESP no dos materiais, tudo se conjuga Programa Ensino Público. Tam­

bém estão previstos investimen-

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A integração das duas áreas de co­nhecimento será fundamental, por exemplo, para as pesquisas das apli­cações da luz nas telecomunicações. Um dos projetas do Centro será en­contrar forma de multiplicar a velo-

tos na ampliação dos programas de divulgação de pesquisa e cursos básicos de ciências que, atualmente, são transmitidos pela TV Educativa e Rádio Universitária de São Carlos. Com apoio da FAPESP, os programas de educação chegarão à Internet.

Page 19: Parceiros do Futuro

Por uma melhor qualidade do sono Centro de Estudos do Sono investirá no desenvolvimento de novas tecnologias

Sérgio Tufik: interação com a iniciativa privada tende a se consolidar

N a década de 70, por iniciativa de um grupo de pesquisa­dores do Departa­mento de Psicobio-

logia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), tiveram início os estudos sobre o distúrbio do sono no Brasil, antes mesmo da primeira clas­sificação internacional da doença. Esses estudos fizeram parte da pri­meira leva de projetos temáticos aprovados pela FAPESP. Atualmente, a equipe multidisciplinar, composta por 12 doutores, conta com dois la­boratórios para o desenvolvimento de pesquisas básicas nas áreas de pe­diatria, neuropsiquiatria e doenças respiratórias, 26 apartamentos para exames clínicos, além de desenvolver programas de formação profissional.

Com o apoio da FAPESP, o Cen­tro de Estudos do Sono pretende am-

pliar as suas atividades e investir no desenvolvimento de tecnologia para produzir, em parceria com a iniciáti­va privada, aparelhos como o CPAP, que injeta ar com pressão contínua nas narinas, produzido no Canadá. Sér­gio Tufik, diretor do Centro, quer de­senvolvê-lo aqui, em parceria com os canadenses. Outro equipamento é um aparelho oral para o desloca­mento da mandíbula. Ambos são uti­lizados no tratamento da apnéia. Na avaliação de especialista que compôs a banca julgadora do projeto, "a ex­periência do grupo na interação com a indústria privada é razoável e tende a se consolidar. O grupo tem a nítida percepção do mercado que é emer­gente, neste caso':

Os distúrbios do sono têm um custo social alto. "Somos campeões em acidentes de tráfego, cujas maio­res causas são o álcool e o sono. E a

maior parte dos acidentes de ôni­bus ocorre porque o motorista dor­miu na direção", revela Sergio Tufik. Com o apoio da FAPESP, o Centro vai realizar polissonografias em 300 motoristas de uma empresa de ônibus. A polissonografia avalia as condições respiratórias, cardiológicas e neuro­lógicas do paciente durante o sono. "Se ele tiver apnéia, que é a parada respiratória noturna, terá sonolência durante o dia. Tem que se tratar."

A apnéia e o ronco são distúrbios que atingem pelo menos 40% da população masculina. "As pesquisas revelam que as pessoas que roncam morrem entre 60 e 70 anos porque têm oximetria menor e baixo nível de saturação, o que sobrecarrega o coração", afirma Tufik. Essa dificul­dade respiratória pode, muitas ve­zes, produzir arritmia cardíaca. "Tem muita gente com marcapasso que poderia ter o seu problema re­solvido com CPAP." Entre as mulhe­res, o distúrbio mais freqüente é a insônia, que acaba por resultar no uso, e abuso, de benzodiazepínicos, que causam dependência. "De cada três medicamentos vendidos no Brasil, um é psicotrópico e, entre es­ses, o segundo mais vendido são os benzodiazepínicos. Existem outros métodos, como a medicina compor­tamental ou o bio feedback, que aju­dam a resolver o problema", diz Tu­fik. Com o objetivo de esclarecer a população sobre os distúrbios mais freqüentes do sono, o Centro preten­de realizar uma ampla campanha com informações sobre os efeitos da do­ença e dos tratamentos adequados.

Além da pesquisa básica, do de­senvolvimento de tecnologia nacional e de campanhas populares, o Centro vai investir na formação de especia­listas em distúrbios do sono. "Há mais de 130 laboratórios de sono no Bra­sil, mas as faculdades não estão pre­paradas para ensinar. Só a Unifesp, antiga Escola Paulista de Medicina, tem curso de especialização, além de mestrado e doutorado nessa maté­ria. Estamos preparando professores para formar profissionais." •

PESQUISA FAPESP · SETEMBRO DE 1000 19

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POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA

GENOMA CÂNCER

Avança • parceria

Brasil-EUA Trabalho conjunto com americanos entra numa fase mais ambiciosa

D epois de um ano e m eio de trabalho com resultados ex­

pressivos, entra em nova fase o Proje­to Genoma Humano do Câncer, reali­zado por um consórcio da rede Onsa, financiado pela FAPESP e o Instituto Ludwig de Pesquisas sobre o Câncer. Uma reunião a ser realizada em ou­tubro, em Genebra (Suíça), deverá consolidar a parceria do grupo com o Instituto Nacional do Câncer (NCI) dos Estados Unidos e marcar a ado­ção de metas mais ambiciosas. De agora em diante, com as informações já obtidas, os dois grupos passam a

Metas ampliadas

Robert Strausberg, assistente de direção do NCI, Victor Junheneel, coordenador de bioinformática do Instituto Ludwig em Lausanne (Su­íça), e Andrew Simpson, coordena­dor do Projeto Genoma Humano do Câncer, comentam a seguir as perspectivas do trabalho conjunto entre pesquisadores brasileiros e nor­te-americanos no seqüenciamento do genoma humano.

• Vocês só trabalham com tecidos de câncer? STRAUSBERG: Nossa aproximação com o Brasil foi para estudar tecidos

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seqüenciar não apenas fragmentos de genes, como vinha sendo feito, mas também genes inteiros.

Além disso, mudam-se as estraté­gias e amplia-se a meta: o que se pre­tende agora não é apenas trabalhar com os genes expressos em células cancerosas, mas com todo o genoma humano. Robert Strausberg, coorde­nador da pesquisa do NCI, e Andrew Simpson, coordenador do Projeto Genoma Humano do Câncer, estão convictos que os dois grupos serão os

cancerosos, mas a cooperação cres­ceu. Agora, coletivamente, falamos que vamos estudar todos os tecidos.

• Não vão mais se limitar a estudar células cancerosas? SIMPSON: É isso mesmo. Houve uma globalização do projeto. Os dois projetos cresceram e estamos assu­mindo o espaço que existe no mun­do para definir todos os genes hu­manos. Crescemos e temos uma ambição muito maior. No mundo todo há muita gente tentando fazer o que fazemos, recorrendo aos ban­cos de dados. Mas só nós usamos computação de alta qualidade no projeto. Tudo indica que podemos liderar essa tecnologia no mundo.

maiores responsáveis pelo seqüencia­mento do genoma humano no mun­do (ver quadro) .

O trabalho brasileiro ajuda no pro­jeto conjunto por causa de uma tecno­logia criada aqui: a estratégia Orestes, que permite seqüenciar o centro do gene, no qual se concentram as infor­mações mais relevantes para os genes desempenharem suas funções. É uma técnica complementar à pesquisa nor­te-americana, que se dedica ao se­qüenciamento das pontas dos genes.

• O Brasil estaria na liderança da bioinformática? SIMPSON: Não somos o máximo, mas somos respeitados entre os gru­pos acadêmicos do mundo. JONGENEEL: Os pesquisadores brasi­leiros têm uma especialização subs­tancial em bioinformática e um dos projetos mais importantes do mun­do na área. Pode-se contar nos dedos esses grupos existentes no mundo. SIMPSON: Há muitos grupos teóri­cos, mas poucos com experiência de executar e gerenciar projetos. Os pes­quisadores do NCI têm e nós também. Poucos têm a experiência de quem executou um projeto de seqüencia­mento do porte do da Xylella fastidi­osa. Temos a capacidade de mesclar

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Acordos como esse são sempre pro­dutivos, "desde que sejam realmente uma colaboração e que todas as partes envolvidas saiam ganhando", observa Maria Aparecida Nagai, coordenadora de um dos centros de seqüenciamento do Projeto Genoma Humano do Cân­cer, na Faculdade de Medicina da USP.

O anúncio da nova fase do proje­to foi feito em seminário realizado em 29 de agosto na FAPESP, com a presença de Strausberg, de Simpson, de Victor Jongeneel, coordenador de

bioinformática com biologia expe­rimental, e isso é muito custoso.

• Parece que os dois projetas, ameri­cano e brasileiro, serão responsáveis pelo maior parte do desvendamento de todo o genoma humano. SIMPSON: Essa impressão é correta. Quase todos os genes já identifica­dos, cerca de 10 mil, têm seqüências dos dois projetos.

• Quais as diferenças entre os progra­mas de câncer do NCI e do Brasil? STRAUSBERG: 0 objetivo é O mes­mo, as estratégias é que são diferen­tes. Mas são abordagens científicas complementares. SIMPSON: Não ficamos muito presos

Jongeneel (esquerda), Strausberg, Simpson e Buetow: abordagens complementares

bioinformática do Instituto Ludwig em Lausanne (Suíça), e de Keneth Buetow, chefe do Laboratório de Ge­nética Populacional do NCI.

Strausberg se declarou "orgulhoso da parceria com os cientistas brasilei­ros" e relatou a pesquisa que coorde­na no NCI, onde está disponibilizado o banco de dados que ajuda a mape­ar as variações genéticas sistemáticas relacionadas ao câncer. Segundo ele, o objetivo desse trabalho é intervir em funções moleculares de células cance­rosas: "É um banco de dados sobre ex­pressão genética destinado à farmaco­logia molecular do câncer. É uma nova era para o tratamento do câncer':

Novo patamar- Strausberg e Simpson revelaram que o trabalho conjunto chega a um novo patamar depois de os americanos terem feito 1 milhão de seqüenciamentos e os brasileiros, 500 mil. Com os avanços obtidos, foi ne­cessário adotar novos procedimentos, já que o rendimento das técnicas até então usadas tendia a diminuir.

Do lado brasileiro, por exemplo, o uso da estratégia Orestes deve esgotar-

a planos e metas, porque uma carac­terística dos dois programas, que de­fine sua afinidade, é a flexibilidade. Chegaremos a novas tecnologias que ainda nem foram inventadas. Porque nós somos visionários. Achamos que a maior parte dos genes que falta identificar será feita por nós.

O que vocês têm que os outros não têm? SIMPSON: Temos visão. STRAUSBERG: Temos recursos e es­pecialização. Já somos os maiores produtores de seqüências de genes humanos expressos no mundo. SIMPSON: Entendemos que esse tra­balho, que é muito árduo e comple­xo, vale a pena. Outros grupos têm

se até o fim do ano. Simpson revela que a partir daí passará a trabalhar com o seqüenciamento completo de genes indicados a partir do banco de dados dos Estados Unidos. Os pes­quisadores do NCI também passarão a trabalhar no seqüenciamento com­pleto e, além disso, vão produzir fisi­camente uma cópia dos genes.

"Esse trabalho tem um enorme valor para a comunidade mundial", diz Simpson, "porque a partir do gene transcrito completo pode-se produzir proteínas e anticorpos". Se­gundo ele, não se trata de clonagem, mas de "construir o gene a partir da informação computacional". Dos dois lados, enfim- aqui se trabalhan­do com o gene virtual e lá fora tam­bém com o gene físico- trata-se de preencher as lacunas deixadas pela fase inicial das pesquisas.

Strausberg e Simpson salientam: a colaboração é mútua e aberta a outros grupos, o que é coerente com a meta de construir a mais abrangente base de dados possível. Depois, caberá a cada país participante utilizar as informações sobre o genoma depositadas no Gene­Bank para produzir medicamentos ou testes diagnósticos. "Cabe ao Brasil não parar o incentivo aos laboratórios': lembra Maria Aparecida, da USP. •

interesse num gene só. Clonam o gene e o estudam dentro de um contexto biológico. Nossa visão é di­ferente: temos uma visão global de que é essencial ter a totalidade dos genes humanos definida. Baseados nisso, e não somente no gene do câncer, é que vamos entender o cân­cer. Temos em comum a visão de que o mais importante é a definição do conjunto do genoma humano. JONGENEEL: Há outros projetos no mundo, mas acho que fazemos melhor. SIMPSON: Outros que comparti­lhem nossa visão e queiram se agru­par a nossa iniciativa serão bem­vindos. Temos um objetivo pelo bem da humanidade.

PESQUISA FAPESP · SETEMBRO DE 2000 • 21

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Xylella: brasileiro considera exceção

Em carta à Nature de 24/8 (pág. 826), um pesquisador brasileiro que trabalha nos Estados Unidos discorda da afirmação feita na revista de que o seqüenciamento da bactéria Xylella fastidiosa (da praga do amarelinho que atinge os laranjais) seria "um sinal aos jovens cientistas brasileiros de que eles não precisam deixar o país para engajar-se na ciência de nível internacional". "A maior parte da produção científica brasileira", diz ele, "vem de São Paulo, o Estado mais rico da nação, que sustentou o consórcio seqüenciador da X. fastidiosa. A disparidade entre o fomento à pesquisa em São Paulo e nos outros estados brasileiros é enorme: esse esforço de pesquisa de modo algum representa o estado geral da ciência brasileira. ( ... ) Para a maioria dos cientistas brasileiros com posições acadêmicas nos Estados Unidos ou na Europa, voltar para casa continua perto de um suicídio acadêmico. Reverter essa situação, pode ser muitíssimo mais difícil do que seqüenciar e juntar

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POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA

ESTRATÉGIAS

genomas inteiros". O signatário é Tomás A. Prolla, do Departamento de Genética da Universidade de Wisconsin em Madison.

EUA pesquisam dioxina com Vietnã

Uma oportunidade única para estudar os efeitos da exposição humana à dioxina. Foi o que pesquisadores americanos vislumbraram ao decidir entrar em parceria com colegas vietnamitas num projeto que está em fase de planejamento. Um tipo altamente tóxico de dioxina (chamado TCD D) estava presente no chamado Agente Laranja, o desfolhante altamente empregado pelas tropas dos Estados Unidos durante a Guerra do Vietnã para produzir clareiras na floresta e expor instalações militares vietnamitas. "Talvez nunca mais tenhamos uma popu­lação exposta nesse nível", explica o toxicologista Michael DeVi to, da Agência de Proteção Ambiental americana. O projeto, tocado com fundos aprovados pelo Congresso dos Estados Unidos, inclui a pesquisa dos efeitos carcinogênicos da dioxina,

das doenças neurológicas e de crescimento em crianças expostas ao produto e da contaminação residual. Em contrapartida, o Vietnã poderá receber assistência no combate à poluição ambiental.

~esquisa sobre Etica na Science

Quais as questões éticas que preocupam os pesquisadores científicos de hoje? Uma pesquisa feita através do site www.nextwave.org, da revista Science, procura as respostas. A sondagem é promovida pela Comissão de Ética da Unesco e a Associação Americana para o Avanço da Ciência (AAAS). Uma das perguntas é: "Se o ensino da ética fosse incluído no currículo da sua disciplina, que temas seria necessário cobrir?" A idéia surgiu na conferência mundial da Unesco de 1999 em Budapest, Hungria, cuja declaração recomenda: "Todos os cientistas devem se comprometer a respeitar elevados padrões éticos e um código de ética - baseado em normas relevantes espelhadas em instrumentos internacionais de direitos humanos - estabelecido por profissionais da ciência".

Europa contra a clonagem humana

Contrariando as posições britânica e americana, o Parlamento Europeu (órgão da União Européia) aprovou em Estrasburgo no início de setembro uma resolução em favor da proibição da clonagem de embriões humanos. Um comitê médico ligado ao governo britânico havia recomendado em agosto a clonagem de embriões para a extração de células. Os Estados Unidos também anunciaram na ocasião que financiariam pesquisas com células-tronco embrionárias (que podem originar qualquer tipo de tecido). Opondo-se a isso, a resolução dos parlamentares europeus afirma que a clonagem "atravessa uma fronteira irreversível nas normas da pesquisa". Sua liberação para fins terapêuticos - como a cura de doenças neurológicas e a produção de órgãos para transplante - poderia ser o primeiro passo para objetivos como

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a "criação de crianças sob medida". Reafirmando o que já se pratica na Europa, a resolução proíbe o uso de dinheiro público no financiamento de pesquisas com células-tronco. Também pede que a União Européia, com apoio da ONU, busque a extensão da proibição a todo o mundo. A resolução foi aprovada por 237 votos contra 230 e 43 abstenções.

FAPESP: prazos de inscrição

Os interessados em três programas espeCiais da FAPESP devem providenciar logo as suas inscrições. O Programa Pró-Ciências, de apoio ao aperfeiçoamento de professores de ensino médio em matemática, física, química e biologia, recebe até o próximo dia 31 de outubro as propostas para financiamento de equipamentos necessários a atividades de capacitação. O Programa de Pesquisas em Políticas Públicas, que financia projetes desenvolvidos em parceria com organizações (governamentais ou não) responsáveis pela implementação de políticas públicas de importância social, recebe pré-projetes até 30 de novembro. Essa é também a data-limite para as solicitações ao Programa de Apoio à Infra-estrutura de Centros Depositários de Informações e Documentos (museus, arquivos, bibliotecas e sedes de bancos de dados). Maiores informações no link Programas Especiais do site da FAPESP (www.fapesp.br).

Em foco, a paixão de Oswaldo Cruz

O CNPq e a Fiocruz lançaram em 30 de agosto a Biblioteca Virtual Oswaldo Cruz ( www. prossiga.br/oswaldocruz),

professores Arlindo Philippi Jr (FSP) e Marcelo de Andrade Romério (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP). Será ministrado às segundas, quartas e quintas-feiras à noite, entre 5 de fevereiro

Fiiiiiiiiiiiiiiiiiillll=:;;il~ilil!~iillii!li!IIIJ!!!íi~liiil N e 20 de dezembro 5 de 200 l. Mais

"para resgatar a paixão com que ele conduziu sua carreira científica". O site contém dados sobre vida, produção intelectual, correspondência trocada com personalidades, textos de historiadores, reportagens, fotos e charges. Há também um link especial sobre a cidade do Rio de Janeiro na época do cientista, quando se fizeram a reforma urbana e as campanhas sanitárias por ele conduzidas.

Curso formará gestor ambiental

Estão abertas até 16 de outubro as inscrições para o Curso de Especialização em Gestão Ambiental, na Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP. Destinado a profissionais de nível superior com atuação e interesse em meio ambiente, o curso é coordenado pelos

o "' informações podem

ser obtidas no site www.fsp.usp.br.

Comunicação em saúde na Unifesp A Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) promoverá seu II Workshop de Comunicação em Saúde nas manhãs dos dias 9 e lO de outubro. O objetivo é mostrar como

ocorre a divulgação científica,como os meios de comunicação recebem e tratam as informações e como o trabalho dos cientistas é avaliado. O evento é gratuito e as vagas limitadas. Inscrições pelo e-mail [email protected]. br.

Capes e Texas fazem cooperação

A Capes, do Ministério da Educação, firmou acordo com a Universidade do Texas (Estados Unidos) para cooperação no âmbito do ensino superior, voltada para as áreas de ciências sociais, ambientais e tecnologia. O acordo incentivará o intercâmbio e projetes conjuntos entre docentes, pesquisadores e estudantes brasileiros e daquela universidade.

Bolsas no exterior na mira do CNPq

O CNPq iniciou um levantamento para avaliar a eficácia do investimento que faz em bolsas de pós-graduação no exterior, em forma de retorno dado às universidades brasileiras. Quer saber, por exemplo, quanto tempo os pesquisadores ficam no país depois de concluir suas bolsas no exterior com financiamento público. Há bolsistas que alegam voltar ao país onde estudaram por não encontrar emprego aqui mas, nesses casos, o CNPq pode exigir a devolução do dinheiro gasto com as bolsas. A fiscalização mais efetiva das bolsas é pedida desde 1997 pelo Tribunal de Contas da União. Na FAPESP, o programa de bolsas de doutoramento no exterior foi praticamente desativado há já alguns anos. A FAPESP entende que, até passado recente, a ida de brasileiros para programas de doutorado em centros de excelência no exterior foi fundamental para a formação de recursos humanos e a implantação de um sistema de ciência e tecnologia no país. Hoje, entretanto, o sistema de pesquisa do estado já oferece programas de pós-graduação de excelente nível, na maioria das áreas do conhecimento. Assim, bolsas para doutoramento no exterior são concedidas apenas em caráter extraordinário, quando não há programa de pós-graduação de bom nível no país, na área do projeto ou em área afim. Nos últimos dois anos, nenhuma nova bolsa foi concedida.

PESQUISA FAPESP · IETEMBRO OE 1000 • 23

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CIÊNCIA

ECOLOGIA

Um tesouro

à beirado

VelhoChico Descobertas recentes firmam as dunas do rio São Francisco como um espaço único para o estudo da formação de novas espécies no Brasil

CARLOS FIORAVANTI

As paisagens se juntam. tamos no alto da Serra

do Assuruá, a 680 me­tros de altitude, no po­voado de Santo Iná-

cio, norte da Bahia. De um cenário pedregoso, rico em cactos e bromélias, avista-se o vale do São Francisco, que começa a correr para leste, rumo ao mar. Vemos primeiro a lagoa Itapari­ca - um desvio do rio que se fechou - ao lado de outras menores. Mais à frente, nas duas margens, formando morros de até 150 m, alargam-se as dunas do São Francisco.

Reduto ecológico surpreendente, essa é uma das áreas do Brasil com maior endemismo - ocorrência de es­pécies exclusivas, que não vivem em nenhum outro lugar e se adaptaram ao solo arenoso e à escassez de água. De lagartos, por exemplo, há uma di­versidade que supera a dos desertos norte-americanos e africanos. Das 44 espécies de lagartos da Caatinga, 40 ocorrem ali e 20 são endêmicas das du­nas - área de pouco mais de 5 mil quilômetros quadrados que é apenas

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0,6% da Caatinga e se estende por 120 km ao longo do rio, entre as cida­des de Barra e Sobradinho.

Uma surpresa: nas dunas de cada lado do rio naquele trecho, de 200 a 300 metros de largura, há animais mui­to parecidos com os do outro lado, mas de espécies diversas. São as espé­cies-irmãs, com pequenas diferenças de aparência ou constituição genéti­ca, resultantes de uma história evolu­tiva própria. Por isso, essas dunas são um espaço único para estudo da for­mação de espécies - comparável ao

Tropidurus divaricatus: só à esquerda do rio

arquipélago de Ga­lá pagos, no Pací­fico, em cuja fau­na Charles Darwin

(1809-1882) se baseou para elaborar a teoria da Evolução.

Os bichos das dunas são tão típicos que vivem isolados: as adaptações para a vida na areia são tão elaboradas que os impedem de entrar na Caatinga cir­cundante. E espécies típicas da Caa­tinga, como o preá ( Cavia aperea), nunca foram vistos nessas dunas.

"Era tudo novo" - Ali, em meio à ve­getação esparsa e à areia fina, cuja temperatura ao meio-dia pode chegar a 60 graus Celsius, as descobertas não

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as dunas do São Francisco: refúgio biológico de espécies únicas

param. Miguel Trefaut Rodrigues, do Instituto de Biociências (IB) e diretor do Museu de Zoologia da Universi­dade de São Paulo (USP), percorreu os arredores do povoado de Santo Inácio (200 habitantes) pela primeira vez em 1980, com uma expedição de botânicos. "Era tudo novo': diz. Vol­tou com uma espécie de lagarto de cerca de 30 centímetros exclusiva da­li, o Tropidurus amathites.

Quatro anos depois, Rodrigues desceu a serra que delimita a Chapa­da Diamantina e achou - nas areias da margem oposta - exemplares de um Tropidurus parecido e ainda não descrito, que chamou de Tropidurus divaricatus. Depois, não parou de

achar novidades: até agora, são mais de 20 espécies e quatro gêneros.

Da viagem mais recente, em junho, trouxe dois bichos inéditos: um lagar­to (Ameiva sp) e uma cobra de duas cabeças (Amphisbaena sp) com 50 cen­tímetros. Um mês antes, sua ex-aluna Flora Acunã Juncá, professora da Universidade Estadual de Feira de San­tana (UEFS), Bahia, coletara nas dunas da margem esquerda uma cobra sub­terrânea de 40 a 50 centímetros cuja espécie-irmã, da margem direita, Ro­drigues descrevera como Typhlops yo-

exclus ivo da margem direita

nenagae. A nova Typhlops completa­va o quinto par de espécies vicariantes

prmumas filogeneticamente, mas separadas geograficamente. "Estou cer­to de que há mais espécies endêmicas e outros pares de vicariantes': afirma Rodrigues, que coordena o projeto Es­tudos sobre a Ecologia e Diferenciação da Fauna de Répteis das Dunas do Médio Rio São Francisco (Lepidosau­romorpha, Squamata), iniciado em 1997 e financiado pela FAPESP.

Realmente, o labirinto de ilhas des­se trecho do rio é pouco explorado. Foi na ilha do Gado Bravo, a maior do São Francisco, na altura de Xique-

PESQUISA FAPESP · SETEMBRO DE 1000 • 25

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Xique, que Rodri­gues descobriu em junho um novo lagarto do gênero Ameiva. A espécie mais próxima, o calango Ameiva ameiva, é um dos colonizadores mais agressivos de paisagens abertas ou mo­dificadas pelo homem. Por espalhar­se rapidamente, suas populações não mostram diferenças apreciáveis -exceto nas dunas. O fato de uma espé­cie nova de Ameiva, de colorido mui­to diferenciado, viver na ilha do Gado Bravo indica um isolamento efetivo, já que nas margens adjacentes se vê o Ameiva ameiva com o padrão de cor que o caracteriza em todo o Brasil.

Outro caso de adaptação é odora­bo-de-facho (Proechimys yonenagae), rato de 20 centímetros que tem um tu­fo de pêlos na ponta da cauda e orelhas grandes, mora em tocas profundas e anda aos saltos, apoiado sobretudo nas patas traseiras. Só há similares nos de­sertos dos Estados Unidos e da África. Esse rato foi descoberto por Pedro Luís Rocha, ex-aluno de Rodrigues

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que leciona na Universidade Federal da Bahia (UFBA), em Salvador. Sá ali vive também o bacurau Nyctriprogne vielliard~ ave de hábitos noturnos com cerca de 20 centímetros de altura.

Refúgios - Um levantamento recente indicou áreas da Caatinga com ende­mismo acentuado ou que deveriam ser mais estudadas (ver box). É o caso das serras Negra e dos Cavalos (PE), de Baturité (CE) e da Chapada do Arari­pe, na fronteira entre Pernambuco, Piauí e Ceará. São áreas tomadas por matas densas - os refúgios - e riquís­simas em vida: a fauna e a flora dessas "ilhas" acumulam diferenças em relação às mesmas espécies da Mata Atlântica e da Amazônia, às quais se ligaram um dia, antes de a Caatinga se formar.

Esses refúgios biológicos foram identificados nos anos 70 pelo zoólogo

As dunas separadas pelo rio: espécies têm histórias evolutivas próprias. Lagarto Calyptommatus /eiolepis: exemplo de adaptação à vida na areia

Paulo Emílio Vanzolini e pelo geógra­fo Aziz Ab'Saber, ambos da USP. Ab'Sa­ber foi um dos primeiros cientistas a classificar as dunas como paleodeserto, no que teve o respaldo do geomorfo­logista Jean Tricart, da Universidade Louis Pasteur, de Estrasburgo (França).

As dunas também têm uma flo­ra especial. Há touceiras de quipá ( Opuntia inamoena) e macambira (J?romelia laciniosa), entremeadas por arbustos geralmente isolados. Nos lugares baixos e úmidos, são co­muns a carnaúba ( Copernicia cerifera) e o arbusto Poligonacea ruprechtia, que tem a proteção de formigas no caule: "Quando se corta um galho, as formigas atacam", conta Luciano Pa­ganucci, professor da Uefs que vai às dunas todo ano. Ele identificou ali a leguminosa endêmica Pterocarpus monophyllus, árvore de cerca de 4 me­tros com madeira muito dura, fru­tos adaptados à dispersão pela água e, algo raro, folhas não divididas.

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As plantas são geralmente baixas e tem folhas decíduas (caem na estação seca) muito pequenas. Mas o maior si­nal de adaptação ao ambiente não é vi­sível. São as raízes: profundas e bem espalhadas, aproveitam ao máximo os nutrientes disponíveis no solo seco.

História das dunas - O passado das dunas explica sua biodiversidade. A geóloga Alcina Magnólia Franca Bar­reto, da Universidade Federal de Per­nambuco (UFPE), estudou as trans­formações da área em seu doutorado, feito no Instituto de Geociências da USP com financiamento da FAPESP (projeto Morfologias e prováveis idades do sistema de dunas fósseis do Médio Rio São Franscisco, BA). "Nos últimos 11 mil anos': diz ela, "as dunas já exis­tiam, embora um pouco diferentes"

Ao estudar sedimentos com restos vegetais (turfeiras) colhidos às mar­gens do Icatu, afluente do São Fran­cisco, Alcina deduziu as mudanças. Ali já houve, por exemplo, florestas. Os exames de datação de material or­gânico e areias indicam que houve fa­ses com temperatura e umidade di­versas. Antes de 11 mil anos, o clima era árido ou semi-árido, mas com

temperaturas mais baixas. Depois, foi sucessivamente muito úmido e frio, úmido e quente, seco e quente, úmi­do e quente e, afinal, de novo seco e quente- o atual semi-árido. "Há cer­ca de 4.000 anos a vegetação e as con­dições de clima e temperatura são bastante semelhantes às atuais", diz.

As dunas do São Francisco

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Dunas de Casa Nova

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O, Área inundada pela , Represa de Sobradinho I

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Escala

25 50 km

Rodrigues com duas espécies de lagarto a serem descritas: um Cnemidophorus (acima) e um Ameiva (abaixo)

A origem do campo de dunas é in­certa, pois as areias são profundas (até 150 metros) e Alcina só coletou amos­tras das últimas camadas. Mas há duas hipóteses. A primeira supõe um lago formado pelas águas do atual São Franscisco, antes que ganhassem vo­lume a ponto de abrir caminho até o mar. A segunda: o rio pode ter tido outro sistema de drenagem- seguindo para oeste em vez de leste. O certo é que com o tempo ele mudou de cur­so e volume de água. Nas fases mais se­cas, pode ter havido mais espaço para os animais conviverem e partilharem uma história evolutiva. Nos períodos mais úmidos, as passagens se fecha­riam e o rio serviria de barreira natu­raÍ entre áreas antes unidas.

DNA em estudo -Até meados dos anos 70, as dunas ficaram intactas. Em 1975, houve alterações profundas, devido à barragem de Sobradinho, que inundou áreas extensas. Mas sobreviveram nas duas margens as espécies vicariantes, como o lagarto Tropidurus amathites, só na margem direita, e sua espécie-irmã Tropidurus divaricatus, só na esquerda.

O isolamento levou a distinções. ''As taxas de evolução não são as mes­mas para espécies que se separaram",

PESQUISA FAPESP · SETEMBRO DE 1000 • 2 7

Page 28: Parceiros do Futuro

explica Rodrigues. Supõe-se que o ritmo de evolução não tenha sido li­near. É preciso saber se houve saltos ou mudanças rápidas, como as suge­ridas pelo estudo comparativo das espécies de Calyptommatus e Notho­bachia, que divergiram há dois ou três milhões de anos, no máximo.

E por que, em alguns casos, é a mesma espécie que ocorre nos dois lados do rio? É possível que, nesses casos, a espécie tenha capacidade de dispersão tão grande aponto de ter rompido as barreiras do isolamento. É também provável que ainda não te­nha tido tempo de se diferenciar, ou tenha ficado igual dos dois lados por alguma razão histórica ignorada.

A investigação das diferenças ge­néticas entre espécies vicariantes da área e espécies aparentadas é feita por Maria Lúcia Benozzati, do Instituto de Biociências da USP, com base no estudo do DNA (ácido desoxirribo­nucléico) das mitocôndrias celulares. O seqüenciamento que ela fez de frag­mentos do DNA mitocondrial tem confirmado análises morfológicas de Rodrigues: à medida que se passa dos gêneros mais primitivos de um grupo de lagartos para as espécies típicas das dunas, nota-se a redução dos mem­bros e o alongamento do corpo. Notho­bachia e Calyptommatus, os gêneros mais recentes do grupo e mais adap­tados à vida nas dunas, por exemplo, têm membros anteriores tão discretos ou ausentes que parecem uma cobra, a ponto de rastejarem sinuosamente cobertos por fina camada de areia.

Até julho de 2001, quando deverá finalizar o projeto, Rodrigues espera ter conclusões mais claras sobre o que de­termina a diferenciação dessas espé­cies. Além disso, acha necessário dar atenção urgente a algo que está por ser feito: a catalogação e informatização das coleções zoológicas armazenadas nos centros de pesquisa e museus do Brasil. Para ele, bastaria isso para se dar um salto no conhecimento da biodi­versidade brasileira, indicar áreas que merecem estudos mais intensivos e des­cobrir outros tesouros de espécies ra­ras, como as dunas do São Francisco.

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A surpreendente diversidade da Caatinga

tes para conservação, pela alta diver­sidade e endemismo de espécies, e o outro, as áreas pouco conhecidas, para estudos prioritários. Parte da equipe tratou de políticas que viabilizem a recuperação ou a preservação: cada prefeitura, por exemplo, poderia

Adiversidade da Caatinga adotar como símbolo uma espécie único ecossistema exclu- local, cuidando dela e de seu hábitat. ivamente brasileiro, que O estudo, assinado pela UFPE, a cobre quase todo o Nor- Conservation International do Brasil, deste mais o norte de a Fundação Biodiversitas e a Embra-

Minas Gerais- está surpreendendo. pa Semi-Árido, inclui um tema polê-Um estudo que reuniu cerca de 150 mico: transposição das águas do rio pesquisadores mostrou que no ecos- São Francisco para irrigação. Sugere sistema de ocupação mais antiga do que, antes de tudo, se priorize a cap-Brasil há 327 espécies animais endê- tação de água de chuva ou subterrâ-micas (exclusivas dali), quase o dobro nea. Só depois é que se examinaria a das 183 conhecidas. .---~~---1111111!!!111 z transposição, em de-São típicas da área, por ~ bates com especialistas

l ~ exemp o, 13 espécies de e estudos de impacto :>

mamíferos, 23 de lagar- ~ ambiental. tos, 20 de peixes e 15 de A bióloga Ana Ma-aves. De plantas, há 323 ria Giulietti, da Uni-espécies endêmicas, mas versidade Estadual de só estavam listadas ao Feira de Santana (BA), redor de 190. cuidou do inventário

Reunidos em Petro- vegetal. De imediato, lina (PE) no Workshop notou a riqueza da Biodiversidade da Caa- Caatinga em paisagens tinga, os cientistas estu- de exceção, ou encra-daram outros fatores ves, que vão de mata naturais (solo, clima, relevo e hidrologia) e Silva:"A falta d'água pode as condições de vida ser resultado do mau (educação, saúde, ren- uso dos recursos naturais"

da e índice de desen-

fechada aos areais, com flora e fauna pró­prias. Descobriu uma leguminosa que em sua homenagem foi

volvimento humano) das comunidades locais. Mais surpresas: cerca de meta­de da paisagem foi degradada pela ação do homem e de 15% a 20% está em alto grau de degradação (com ris­co de desertificação).

"A região perdeu suas riquezas naturais sem gerar riqueza para a po­pulação local, ainda uma das mais pobres do país", diz o biólogo José Maria Cardoso da Silva, da Universi­dade Federal de Pernambuco (UFPE), que coordenou o workshop. "A falta d'água hoje talvez seja conseqüência do mau uso dos recursos biológicos da Caatinga no passado."

Dois mapas mostram o que pode ser feito: um delimita áreas importan-

chamada Anamaria heterophila: é uma erva que chega a 30 centímetros e dura no máximo dois meses, pois depende do nível da água das lagoas que se formam na época de chuvas. Os 20 gêneros vegetais endêmicos lis­tados são o dobro do que se conhe­cia. "Quando há um gênero endêmi­co, a necessidade de conservação é muito maior', diz ela.

Formigas alertam - Carlos Brandão, da USP, coordenou o estudo dos in­vertebrados da Caatinga, ainda pou­co conhecidos, como desdobramento de seu projeto Insetos Sociais nas For­mações do Nordeste Brasileiro: Levan­tamentos Faunísticos e Ecologia Com-

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As prioridades do Nordeste Pesquisadores do Brasil inteiro delimitaram as áreas a serem conservadas

(em vermelho, laranja e amarelo) ou estudadas de modo mais intenso (em verde).

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o

portamental, concluído em 1991 com financiamento da FAPESP. Além de registrar áreas com espécies endêmi­cas, ele confirmou a possibilidade do uso de formigas como indicadores ecológicos: podem indicar o estado de conservação dos espaços naturais mais precisamente que outros animais. Uma área de caatinga mais conserva­da pode abrigar ao redor de 200 es­pécies de formigas, enquanto nas mais degradadas, há de 30 a 40.

O estudo da Caatinga encerra o ciclo de seminários sobre prioridades para conservação dos ecossistemas bra­sileiros. O primeiro, do Cerrado e do Pantanal, foi em março de 1998. Segui­ram-se em 1999 os encontros sobre

.)8"

Importância Biológica

• Extrema Alta Muito alta

Áreas com informação insuficiente

- lO

·12

Umite do Bioma Caatinga .

Fonte: Fundaçõo 8iodiversitos

Mata Atlântica e Campos Sulinos em agosto, Amazônia em setembro e Zo­na Costeira e Marinha em outubro.

O relatório de Cerrado e Panta­nal, em novembro de 1999, indicou 70 áreas prioritárias para conserva­ção e 21 para pesquisa. Constatou-se ainda que 67% do ambiente do Cen­tro-Oeste está alterado. "Não imagi­návamos esse resultado': diz o biólo­go mineiro Luiz Paulo de Souza Pinto, coordenador de projetos da Conservation. O levantamento indi­cou que ali vivem 6.387 espécies de árvores (40% endêmicas), 837 de aves (3% exclusivas) e 809 de abelhas (51% de endemismo). Com base nis­so, o Cerrado foi incluído entre os

25 hotspots (áreas críticas) do mun­do. "O mesmo pode acontecer com a Caatinga", diz.

Há bons argumentos. Vive na Caatinga a ave com maior risco de extinção no Brasil, a ararinha azul (Anodorhynchus spix), da qual só se encontrou um único macho. Também é dali a segunda mais ameaçada do país, a arara-azul-de-lear (Anodor­hynchus leari): nos arredores de Ca­nudos (BA), há menos de 150 exem­plares, um décimo da população ideal nesses casos de aves que demo­ram para reproduzir. •

PERFIS:

• MIGUEL TREFAUT URBANO RODRI­GUES, 47 anos, formou-se em Biolo­gia pela Université de Paris VII, França, em 1978. Na USP, douto­rou-se em 1984 no Instituto de Bi­ociências, onde leciona desde 1986, e é diretor do Museu de Zoologia. Projeto: Estudos sobre a Ecologia e Diferenciação da Fauna de Répteis das Dunas do Médio Rio São Francisco (Lepidosauromorpha, Squamata) Investimento: R$ 76.700 e US$ 115.307,01 • ALCINA MAGNOLICA FRANCA BAR­RETO, 42 anos, formou-se em Geo­logia pela UFPE e fez mestrado e doutorado no Instituto de Geoci­ências da USP. É professora do De­partamento de Geologia da UFPE desde 1997. Projeto: Morfologias e Prováveis Idades do Sistema de Dunas Fósseis -do Médio Rio São Franscisco, BA Investimento: R$ 21.229,79 • CARLOS ROBERTO FERREIRA BRAN­DÃO, 47 anos, fez graduação, mestra­do, e doutorado no Departamento de Zoologia do Instituto de Biociên­cias da USP. Trabalha desde 1991 no Museu de Zoologia da USP, onde é professor titular e diretor técnico da Divisão Científica desde 1997 Projeto: Insetos Sociais nas Forma­ções do Nordeste brasileiro: Levanta­mentos Faunísticos e Ecologia Com­portamental Investimento: R$ 105.344,55

PESQUISA FAPESP • SETEMBRO DE 2000 • 29

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CIÊNCIA

CONTROLE BIOLÓGICO

Banco de inseticidas naturais Acervo de fungos, vírus e bactérias ajuda a combater as pragas do campo

U ma coleção de vidros com amostras de fungos, vírus, bac­

térias, nematóides e protozoários está mudando a forma de combater as pra­gas que devastam a agricultura brasi­leira. Vindos continuamente de todo o Brasil, esses seres formam o acervo do Banco de Microrganismos, implan­tado no Laboratório de Con­trole Biológico do Centro Experimental do Instituto Biológico, em Campinas. E com eles são feitos bioinse­ticidas que podem substituir os agrotóxicos na luta contra algumas pragas de alcance nacional, como a cigarri­nha-de-pastagem, o perce­vejo-de-renda da seringuei­ra, o moleque-da-bananeira e a broca-dos-citrus. Com uma vantagem: são atóxi­cos. "Não há nenhum relato de plantas, animais e homens que tenham sido atacados

lógico de pragas na agricultura, em andamento em centros de pesquisa de São Paulo, Paraná, Bahia e Per­nambuco (ver box). É também com esse material que o Banco de Micror­ganismos Entomopatogênicos Olde­mar Cardim Abreu - assim chamado em homenagem ao pesquisador que iniciou no Biológico, no final dos anos 70, os estudos de produção e ar­mazenamento do fungo Metarhizium anisopliae- produz seis tipos de bioin-

em 1982 pelo engenheiro agrônomo Benedicto Pedro Bastos Cruz, viveu anos de avanços discretos até agosto do ano passado. Foi quando começou a ser reorganizado, com um apoio fi­nanceiro de R$ 44,3 mil da FAPESP, ao longo do projeto Formação de um Banco de Microrganismos Entomopa­togênicos no Laboratório de Controle Biológico do Centro Experimental do Instituto Biológico, sob sua coordena­ção. Com novas salas de criações de

por microrganismos ento- Almeida e Batista: pesquisa, armazenamento cuidadoso e produção intensiva de bioinseticidas

mopatogênicos", diz José Eduardo Marcondes de Al-meida, o curador do banco. Uma razão a mais para comemorar: "Os bioinse­ticidas podem ser usados da mesma forma como os agrotóxicos, sem qualquer equipamento específico."

Os microrganismos entomopato­gênicos- que não fazem mal a plan­tas ou animais, mas causam doenças em insetos - permanecem na sala re­frigerada que lembra os centros de produção de vacinas, tal o controle da assepsia. É dali que sai a matéria­prima para estudos de controle bio-

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seticidas. Não é pouco: no ano passa­do, o banco produziu 1,5 tonelada de bioinseticidas, vendidos aos agricul­tores e empresas agrícolas do país in­teiro, em líquido ou na forma sólida, a um preço próximo ao custo (R$ 20 o litro ou R$ 15 o quilo).

Dinamismo - Na avaliação de Anto­nio Batista Filho, que coordena o banco e dirige o Centro Experimen­tal, esses resultados devem-se a uma guinada na história do banco. Criado

insetos, incubadoras, microscópios e geladeiras para armazenamento dos microrganismos, ocorreu um salto: o acervo passou de 63 para 260 amos­tras isoladas.

Cada tipo de microrganismo rece­be o tratamento que merece. Os fungos são armazenados em tubos de cultura com óleo mineral estéril em geladei­ra ou em eppendorfs (pequenos tubos plásticos com tampa) no freezer. Com a reviravolta iniciada no ano passado, as 63 amostras- antes conservadas pe-

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la técnica antiga, em arroz pré-cozido - foram reisoladas e agora se acomo­dam nos eppendorfs e tubos de cultura.

As bactérias também são manti­das em tubos de cultura na geladeira e os vírus em suspensão e em insetos mortos no freezer. Já os nematóides são conservados em culturas, e os pro­tozoários, em insetos mortos no free­zer. Como a qualquer momento po­dem ser requisitados para novas pesquisas, os microrganismos são mantidos vivos, ainda que eventual­mente em estado de dormência, quase como em ibernação.

Crescimento - Almeida tinha 14 anos e ainda morava com os pais em

Campinas quando decidiu: dali para a frente, queria estudar seriamente os mecanismos que permitissem o controle de pragas na agricultura, sem poluir o ambiente e contaminar plantas, animais e o próprio ho­mem. Uma alternativa, enfim, aos agrotóxicos, que começavam a ser malvistos. A par de sua decisão, é mais fácil entender o mal contido orgulho com que hoje, aos 32 anos, ele exibe o acervo do Banco de Mi­crorganismos.

Almeida realizou o sonho de me­nino, mas como engenheiro agrôno­mo ainda não chegou onde deseja. Para o banco dar suporte aos progra­mas de controle biológico de pragas, diz ele, será preciso obter no mínimo SOO isolados de fungos, 25 de vírus, bactérias e de nematóides das espé­cies mais importantes. É quase o do­bro do acervo. Não se trata de uma meta impossível: a cada semana che­gam em média dez novas amostras de microrganismos.

Até agora, pelo menos 80% dos microrganismos do acervo são fun­gos. Prevalecem em relação aos de­mais porque atuam sobre os insetos por ingestão e contato. São, por isso,

Os fungos mais pesquisados: Metharhizium anisopliae (acima à esquerda), Sporothrix inseaorum (acima) e Beauveria bassiana

mais fáceis de serem manejados du­rante a coleta, identificação, isolamen­to e produção de bioinseticidas. Nem sempre é tão fácil. Ainda são pouco desenvolvidas, por exemplo, as técni­cas de isolamento, conservação e ma­nipulação de vírus, bactérias, nema­tóides e protozoários, que provocam doenças somente quando ingeridos pelos insetos. "Num inseto morto", lembra Almeida, "as bactérias se dete­rioram em dois a três dias, enquanto a deterioração dos vírus dura dez dias':

Para montar o acervo, a equipe (cinco pesquisadores e dois técnicos) percorreu todo o estado em busca de amostras de material. Coletaram em regiões diferentes porque muitas ve­zes os microrganismos de uma mes­ma espécie apresentam peculiaridades genéticas e atacam tipos diferentes de pragas. Ao contar da origem do acer­vo, Almeida não deixa de ressaltar a intensiva troca de materiais com bancos semelhantes da Escola Supe­rior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq) da Universidade de São Pau­lo (USP) e da Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Jaboticabal.

Intercâmbios - O Centro Experi­mental fornece material para bancos em formação- como os da Universi­dade Estadual de Londrina, no Para­ná, e da Universidade Federal de La­vras, em Minas Gerais. E mantém intercâmbios com centros do exte­rior. É o caso da Universidade de Utah, nos Estados Unidos, do Minis­tério da Agricultura e Pecuária, na Costa Rica, e do Instituto de Sanidade Vegetal de Cuba.

Só recebem material as institui­ções públicas que desenvolvem pes­quisas de controle microbiano de in­setos ou melhoramento genético de microrganismos benéficos à agricul­tura. Há um cuidado indispensável: em um documento, o técnico respon­sável pela instituição se compromete a utilizar o material somente em pes­quisas. Para empresas produtoras de bioinseticidas, o material só segue após a assinatura de um convênio pa­ra o recolhimento de royalties.

Atualmente, a pesquisa concen­tra-se em cinco espécies. Três são de fungos: o Metarhizium anisopliae, o Beauveria bassiana e o Sporothrix in­sectorum. Uma é de vírus, o Baculo­vírus. A quinta é de uma bactéria, o Bacilus thuringiensis. Cada uma de­las merece uma rápida apresentação. O Metarhizium ataca o maior número de espécies de insetos e pragas. Dois exemplos: a broca-do-citrus, que pre­judica sensivelmente as laranjeiras e limoeiros, e a cigarrinha-de-pastagens,

PESQUISA FAPESP · IETEHBRO DE 2000 • 31

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que faz o capim amarelar e assim cair a produção de carne e leite.

O Beauveria é outro fungo de ação ampla: infecta a broca-do-café e a broca­da-banana, entre outras. O Sporothrix controla o percevejo-de-renda da se­ringueira e é a principal praga dessa cultura no Estado de São Paulo. O Baculovírus é o vírus de um dos maio­res programas de controle biológico do mundo no combate da lagarta da soja, uma praga que come a folha da planta e faz a produção despencar. Por fim, o Bacilus thuringiensis con­trola diversas espécies de lagartas, entre elas a lagarta da soja e a traça do tomateiro.

Bananeiras - A descoberta de cepas mais virulentas permite a formulação e produção de bioinseticidas específicos. É o caso do CB 66, uma cepa do fun­go Beauveria bassiana, que ata­ca o ácaro vermelho da erva­mate. Também controla a broca ou moleque-da-bananeira, que perfura a raiz e o caule da planta e veicula doenças como o mal-do­panamá, um fungo que ataca a bana­neira e contamina o solo. É um peri­go crescente.

"Em São Paulo, as variedades de banana-maçã e prata estão em extin­ção por causa do mal-do-panamá", informa Batista Filho. O Biológico participa desde 1995 do manejo da broca-da-bananeira com o fungo Beauveria bassiana, desenvolvido para a região do Vale do Ribeira, em São Paulo. O uso do bioinseticida contribui para preservar o ecossiste­ma e assegurar a qualidade de vida dos habitantes da região.

A experiência no Vale do Ribeira atestou a relevância do banco e apontou novas necessidades. Desde o ano passado, os pesquisadores tra­balham na produção intensiva de bioinseticidas à base de fungos vi­vos, que conta com um financia­mento de R$ 50 mil da FAPESP para o projeto Desenvolvimento de Pro­cessos de Produção e Formulação de Beauveria bassiana, Metarhizium

32 • SETEMBRO OE 2000 • PESQUISA FAPESP

Tubos com fungos e bionseticida liofilizado contra a lagarta-da-soja: alternativas aos agrotóxicos

anisopliae e Spo­rothrix insecto­rum. O objetivo:

resolver um proble­ma, a conservação, e fazer com que esses produtos possam ser mantidos em condições naturais, fora da ge­ladeira, nem sempre presente nos sítios Brasil afora. Com essa preocu­pação, a equipe do Biológico formu­lou, já em 1997, um bioinseticida oleoso com o Baculovírus anticarsia, que apresentou uma eficiência supe­rior a 80% no controle da lagarta da soja. E, como se pretendia, pode ser guardado em armários comuns por até dois anos.

Alta produção- Quando se compro­va que uma formulação dá certo, a produção cresce rapidamente. Um exemplo: na última safra, os agricul­tores do Estado de São Paulo, o maior produtor nacional de látex, pulveri­zaram 5 mil hectares de seringueira com 5 mil litros do bioinseticida lí­quido CB 79. Elaborado com uma cepa do fungo Sporothrix insectorum, o CB 79 controla uma das pragas mais indesejadas no cultivo da serin­gueira, o percevejo-de-renda, quere-

duz a produção de fotossíntese da planta e, em conseqüência, a produ­ção de látex, matéria-prima natural para a produção de borracha. Do bioinseticida feito com o fungo Me­tarhizium anisopliae E9, utilizado no combate à broca-do-citrus e à cigar­rinha-das-pastagens, foram aplica­dos mais de 460 quilos, especialmen­te no Vale do Paraíba.

Bioinseticidas para controle bioló­gico de pragas são produzidos tam­bém por empresas, em alguns casos com tecnologias repassadas por insti­tutos de pesquisa como o Biológico.

Boas notícias por todo lado

Encontram-se em andamento . oito projetos com as amostras de microrganismos enviadas pela unidade do Instituto Biológico em Campinas. Em um dos labo­ratório do próprio instituto, em Pindamonhangaba, o pesquisa­dor engenheiro agrônomo Hélio Minoru Takada está testando o controle do gorgulho aquático do arroz Oryzophagus oryzae com o fungo Beauveria bassiana CB 7 4 e comprovou que o isolado causou mortalidade de 70% na popula­ção da praga.

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A broca-dos-citros (Diploschema rotundicolle) é atacada pelo fungo Metarhizium (acima), o percevejo-da-renda (Leptopharsa heveae) pelo Sporothrix ...

As vendas atingem valores significa­tivos. Almeida estima que 20 tonela­das de bioinseticida com Baculovírus sejam aplicadas em mais de 1 milhão de hectares de soja e movimentem cer­ca de US$ 2 milhões por ano. Os pre­parados com o Bacillus thuringiensis­umas das bactérias mais importantes para o controle de diversas espécies de lagarta, que devem movimentar 60% das vendas de bioinseticidas em todo o mundo- aproximam-se no Brasil de 160 toneladas e geram uma receita de US$ 2,5 milhões. A cada ano, a agricultura nacional canso-

Na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp ), outra pes­quisadora do Biológico, a biomédi­ca Leila Barci, seleciona os isolados de dois fungos, o Beauveria bassi­ana e o Metarhizium anisopliae, pa­ra controle de carrapatos bovinos. Esse é o tema de sua tese de douto­ramento.

Na Universidade do Oeste do Paraná, em Cascavel, o biólogo Re­nato Cassol, sob a orientação do professor Luiz Francisco Alves, es­tuda o controle do ácaro rajada do chá-mate, em cujo plantio, a prin­cípio, não poderiam ser usados produtos químicos que pudessem contaminar as plantas, consumidas diretamente.

... e uma cigarrinha pelo Batkoa (acima): alvos específicos

me também cerca de 66 toneladas de bioinseticidas à base de fungos: 55 toneladas de Metarhizium aniso­pliae, 3 de Beauveria bassiana e 8 de Sporothrix insectorum, que equiva­lem a vendas de aproximadamente US$ 1 milhão.

Melhoramento genético - Assim que puder, a equipe do Biológico preten­de iniciar os estudos de caracterização e melhoramento genético dos mi­crorganismos. Outro objetivo: provi­denciar as patentes dos bioinseticidas. Porque está provado: ainda há um

O próprio Almeida coordena um projeto de controle da cigarri­nha da raiz da cana, que causa amarelecimento da cana colhida sem queima no Estado de São Pau­lo e prejuízos de até 30% em tone­ladas por hectare de açúcar. No dou- · torado que faz na Universidade de Utah, nos Estados Unidos, o enge­nheiro agrônomo Luís Garrigós Leite, do Centro Experimental do Instituto Biológico, desenvolve meios de cultura para a produção de três espécies do fungo do grupo Ento­mophthorales, que ele pretende em­pregar no controle de cigarrinhas e ácaros. Leite já conhece o efeito de sais, vitaminas, aminoácidos e açúca­res no crescimento dessas espécies.

espaço imenso pela frente. Segundo Almeida, existem mais de 1 milhão de espécies de insetos conhecidos em todo o mundo que causam pelo menos uma doença.

"No século 21, o controle biológi­co será um dos principais métodos de controle de pragas': diz o pesquisador, que, mesmo empolgado, não tira o pé da realidade. Segundo ele, é im­portante conferir se há impacto am­biental em função da quantidade de microrganismos e da área em que são aplicados. "De antemão': diz ele, "acre­ditamos que o impacto seja muito re­duzido ou praticamente nulo, quan­do comparado com o provocado pelos agrotóxicos." •

PERFIS:

• ANTONIO BATISTA FILHO, paulista­no de 42 anos, formou-se engenhei­ro agrônomo em 1981 e concluiu em 1997 o doutorado em Entomo­logia na Escola Superior de Agri­cultura Luiz de Queiroz (Esalq) da Universidade de São Paulo (USP) . É coordenador do Banco de Mi­crorganismos Entomopatogênicos Oldemar Cardim Abreu e diretor do Centro Experimental do Institu­to Biológico, da Secretaria de Agri­cultura e Abastecimento do Estado de São Paulo, em Campinas, onde é pesquisador desde 1983. • JOSÉ EDUARDO MARCONDES DE AL­MEIDA nasceu em Campinas e tem 32 anos. Formou-se engenheiro agrônomo em 1990 pela Universi­dade Federal de Lavras, em Minas Gerais, e concluiu o doutoramento em Entomologia, há dois anos, pela Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq) da Universidade de São Paulo (USP). É o curador do Banco de Microrganismos e pesqui­sador científico Instituto Biológico desde 1998. Projeto: Formação de um Banco de Microrganismos Entomopatogênicos no Laboratório de Controle Biológico do Centro Experimental do Instituto Biológico Investimento: R$ 44.327,50

PESQUISA FAPESP · SETEMBRO DE 2000 • 33

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Varíola: vírus da vacina reaparece

O exemplo mais recente das chamadas doenças emergen­tes é o vírus Cantagalo: da mesma família do que causa a varíola, ele provoca bolhas e pústulas nas mãos e nos bra­ços. O vírus, que no ano pas­sado infectou pessoas e gado bovino de Cantagalo (RJ) e municípios vizinhos, foi iden­tificado este ano pelos cien­tistas Clarissa Damaso e Nis­sin Moussatche, do Instituto de Biofísica da UFRJ. É pro­vavel que seja produto de mutações do vírus usado na vacinação antivariólica, que pode ter escapado para a na­tureza na época (a vacinação foi encerrada no Brasil no fim dos anos 70). É um vírus bem menos agressivo, mas capaz de estimular o sistema imunológico contra a varíola. Ele entra no organismo huma­no por pequenas lesões da pele e a transmissão se dá por con­tato com lesões infectadas. •

O fluxo de gases da floresta

Durante a fotossíntese e ares­piração, as plantas trocam gás carbônico e oxigênio com a atmosfera. A novidade é que também podem emitir ou­tros gases, como metano e óxido nitroso, além de absor­ver ozônio - gás tóxico que dificulta a abertura dos estô­matos, os poros das folhas que controlam a entrada de água. A conclusão é do Expe­rimento de Grande Escala da Biosfera-Atmosfera na Ama­zônia (LBA), pesquisa inter­nacional liderada pelo Brasil. Outra constatação é que, nas queimadas de Rondônia, as

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CIÊNCIA

Q ueimadas: excesso de ozônio prej udica áreas não desmatadas

altas concentrações de ozô­nio podem danificar a parte não atingida da floresta, pois, ao alterar o fluxo de radiação solar, afetam o metabolismo das plantas. Supõe-se que também possam alterar o mecanismo de formação das nuvens e, a longo prazo, mo­dificar o ecossistema. •

Diários de bordo revelam clima

É uma longa viagem no tem­po: um levantamento nos di­ários de bordo dos veleiros que atravessavam os mares entre 1750 e 1850 vai rastrear passo a passo as situações e

mudanças climáticas da época. Durante três anos, equipes de ingleses, franceses, espanhóis, holandeses e argentinos pes­quisarão milhares desses li­vros. Como os navios eram veleiros, totalmente depen­dentes das condições atmos­féricas, os diários registravam a situação de cada local em cada época, com atualizações feitas até de hora em hora. São informações minuciosas sobre o clima marítimo, ain­da hoje pouco conhecido. O objetivo do proj~to, financia­do pela União Européia, é for­mar um banco de dados que alimentará modelos compu­tadorizados de previsão do

O Reso/ution, do inglês James Cook: estudos meteorológicos

tempo, além de permttlr comparações da situação de hoje com a de uma época pré-industrial. Os dados fica­rão disponíveis na Internet. •

Três países no genoma abacaxi

O mapeamento do genoma do abacaxi (Ananas comosus), que é nativo do sul do país mas encontrou ambiente mais propício na Amazônia, será concluído até o fim do ano que vem. Ele é parte do projeto Avaliação e utilização de recursos genéticos de abaca­xi da Amazônia para obtenção de variedades resistentes, de-

Abacaxi: combate à fulariose

senvolvido em parceria pela Empresa Brasileira de Pesqui­sa Agropecuária (Embrapa), seu congênere francês Cirad e a Universidade do Algarve (Portugal). A Embrapa, dona de uma coleção de 701 varie­dades da espécie, promoveu uma reunião de avaliação com os pesquisadores em sua sede de Cruz das Almas (BA), de 3 a 7 de julho último. O mape­amento é feito na Universida­de do Algarve (o projeto é fi­nanciado pela Comunidade Européia) e abrirá caminho para o desenvolvimento de variedades resistentes a doen­ças como a fusariose, maior problema da cultura. •

Page 35: Parceiros do Futuro

CIÊNCIA

BIOQUÍMICA

Avanço no estudo de peptídios Trabalho de grupo brasileiro é reconhecido internacionalmente

Três pesquisadores brasileiros ganharam destaque mundial

num setor estratégico da bioquímica de hoje: desenvolveram téc-nicas para analisar com mais eficiência a estrutura molecu-lar de proteínas e peptídios (compostos de aminoácidos formados sinteticamente ou por hidrólise de proteínas). Suas descobertas, iniciadas na década de 80, foram rela­tadas na edição de 29 de maio último da prestigia­da revista Chemical & Engi­neering News (páginas 54-59), da American Chemical Society.

O trabalho de Clóvis Na­kaie, chefe do Departamen­to de Biofísica da Universi­dade Federal de São Paulo (Unifesp), Shirley Schreier, do Departamento de Bio­química da Universidade de

tem obter dados sobre a conforma­ção dela e suas interações, por meio da técnica de espectroscopia por ressonância paramagnética eletrô­nica (RPE).

É um estudo difícil, demorado e caro, sobretudo pela complexidade dos peptídios, que são formados por uma cadeia de aminoácidos. Cada aminoácido tem uma cadeia lateral

O Toac faz a diferença

Por meio da espectroscopia por ressonância paramagnética eletrônica (RPE) usando Toac, tornam-se claras as diferenças entre as duas

formas do peptídeo tricogina: a da esquerda é mais desordenada e apresenta mais estruturas em forma

de das cadeias laterais, dificultando a obtenção de dados precisos.

Novo marcador - A grande contri­buição do grupo foi usar um marca­dor de spin que pode ser ligado à ca­deia principal. O marcador é o TOAC (ácido 2,2,6,6-tetrametilpiperidina-1-oxil-4-amino-4-carboxílico), única molécula conhecida que é ao mesmo

tempo um aminoácido e um radical livre bem estável. Como aminoácido, pode ser introduzido em peptídios, proteínas e outras macromo­léculas, e o fato de conter um radical nitróxido permite que funcione como marca­dor de spin.

Sendo um composto pa­ramagnético (por ter um elé­tron desemparelhado), o TOAC permite a espectros­copia de RPE para estudar as propriedades estruturais e dinâmicas do marcador iso­lado e da molécula à qual está acoplado, bem como os efeitos de alterações do meio onde está a molécula.

Com espectros de RPE se pode, por exemplo, observar alterações conformacionais quando um composto se liga

São Paulo (USP), e Antônio Cechelli de Mattos Paiva, professor de Biofísica da Unifesp, facilita o estudo da conformação molecular de

de hélice que a da direita. As moléculas de Toac, usadas -como marcadores, estão em laranja

a uma membrana biológica ou modelo. Assim, a ligação de um marcador de spin per­e o peptídeo em cinza.

proteínas e peptídios, bem como da interação desses

Fonte: Glenn Milhauser e Claudio Toniolo/Chemical & Engineering News n. 78 mite obter dados sobre o grau e a natureza da movi­mentação, da conformação e compostos entre si e com

membranas celulares. Os resultados têm muitas aplicações, entre elas a possível criação de drogas terapêu­ticas.

O objetivo era aperfeiçoar o mé­todo que usa marcadores de spin ( direção do eixo de rotação do elé­tron). Inseridos numa molécula, es­ses marcadores (spin labels) permi-

(r), que fica pendente da cadeia prin­cipal do peptídio.

O método convencional por RPE era ligar numa cadeia r algum marca­dor, para obter um sinal no aparelho. Mas, dessa forma, o marcador ficava longe da cadeia principal, objeto maior do estudo, e as informações eram mascaradas pela alta mobilida-

da estruturação da molécula ou do sistema investigado.

Desafio superado - O TOAC tem a vantagem de ser aminoácido e a des­vantagem de ser radical livre - por­tanto, passível de degradação quími­ca, conforme o meio em que esteja. Esse era o grande desafio quando se

PESQUISA FAPESP • SETEMBRO OE 1000 • 35

Page 36: Parceiros do Futuro

pensou em ligá-lo a cadeias peptídi­cas pela metodologia de síntese e química de peptídios, já dominada pelo grupo.

Paiva, especialista em química de peptídios, e Shirley, em cujo labora­tório se usa muito a técnica RPE, dis­cutiram o problema, com a participa­ção do então pós-graduando Nakaie. Das discussões, e de resultados ini­ciais promissores, surgiu a técnica que permitiu incorporar o TOAC à cadeia peptídica e estudar as proprie­dades conformacionais do peptídio, desenvolvida em 1980 na tese de doutoramento de Nakaie.

O avanço de Nakaie consistiu em encontrar uma seqüência de proce­dimentos (ou protocolos) de pes­quisa química, que permitiu ligar o TOAC à ponta de um peptídio. De­vido à sua estrutura química e à ri­gidez de sua ligação à cadeia peptí­dica, esse marcador fornece dados mais precisos sobre a conformação do peptídio do que os obtidos com os spin labels usados até então, em geral ligados só a cadeias laterais dos aminoácidos.

Molécula especial - Paiva salienta: "Desenvolvemos a síntese e a aplica­ção de uma molécula especial que se incorpora ao peptídio de maneira bem estreita, íntima. Dali para a fren­te, poderíamos lidar com seqüências peptídicas cuja dinâmica estaria sen­do fielmente reportada por um efici­ente marcador".

"Até então", diz a pesquisadora Shirley, "ninguém tinha comprovado a possibilidade de marcação peptídica com um aminoácido paramagnético como o TOAC. Além do mais, mos­tramos também que o espectro de RPE do TOAC ou do TOAC-peptídio era afetado pelo pH (índice de aci­dez), resultante da ionização do gru­pamento amínico desse marcador de spin. Esse resultado deixava em aber­to, portanto, a possibilidade intrigan­te de que esse marcador ou o peptí­dio marcado poderiam funcionar como sensores de pH do local onde se encontrassem."

36 • SETEMBRO DE 2000 • PESQUISA FAPESP

Depois do doutoramento, Nakaie prosseguiu nessa linha e tem sido res­ponsável pelos principais avanços no desenvolvimento de estratégias de síntese, marcação e uso de peptídios marcados com TOAC e derivados nos últimos anos.

Estratégia incomum - "Vencido o primeiro desafio", diz Nakaie, "exis­tia um outro, e mais complexo: sen­do o TOAC um aminoácido, deveria idealmente ser possível sua inserção também em posições internas de se­qüências peptídicas e não só na ponta. Entretanto, por problemas de instabilidade química no protocolo de síntese empregado, isso não foi viável na época. Na estratégia de sín­tese necessária para a introdução do marcador no meio da cadeia ocorria uma decomposição irreversível do grupo nitróxido do TOAC, inviabi­lizando a obtenção dos espectros de RPE."

Só na década seguinte (em 1993), com os avanços na química de pep­tídios, Nakaie e seu estudante de

pós-graduação Reinaldo Marchetto - hoje docente do Instituto de Quí­mica da Universidade Estadual Pau­lista em Araraquara - resolveram o problema: combinaram etapas de dois métodos de síntese peptídica, introduziram um tratamento alcali­

no ao final da síntese e obtiveram assim o pri­meiro peptídio marca­do com TOAC numa posição interna da se­qüência (TOAC7-an­giotensina II).

Estava vencida a úl­tima barreira ao uso de TOAC com um ami­noácido qualquer e abria-se a possibili­dade de colocá-lo em qualquer posição na cadeia, o que ampliava enormemente sua po­tencialidade de uso.

"Então, mandamos o trabalho a uma im­portante revista de Quí­mica (Journal of Ame-

Aparelho de RPE captando os sinais emitidos pelo marcador de spin: molécula desvendada

rican Chemical Society). O artigo foi aceito como uma comunicação para publicação rápida, evidenciando o re­conhecimento de sua importância", comenta Shirley.

Nakaie prosseguiu as pesquisas, corrÍ recursos da FAPESP, para melho­rar a síntese de peptídios em resinas e verificar, com o TOAC, como essas resinas se comportam em diferentes si­tuações. A marcação pelo TOAC per­mite acompanhar bem a síntese, que é um trabalho muito caro. O acompa­nhamento permite, por exemplo, mu­dar o meio solvente, escolhendo fases em que o sinal do marcador indica maior mobilidade (ou solvatação) do composto, o que melhora os resultados.

Nakaie explica: "Há solventes em que o grão da resina fica 'empacota-

Page 37: Parceiros do Futuro

do' e outros em que o grão se 'solta' mais, as cadeias ficam mais livres e a reação vai mais veloz, com mais rendimento". Com a mobilidade maior, a síntese de peptídios fica mais barata. Esses resultados mais recentes foram tema de uma publi­cação em 1999.

Relevância biológica - Proteínas e peptídios têm grande importância fi­siológica. O estudo de suas interaçõ­es com outros peptídios, proteínas, carboidratos, oligonucleotídeos, an­ticorpos e variados componentes da membrana celular pode dar infor­mações essenciais, em nível molecu­lar, para entender como hormônios, enzimas e outros compostos agem. Isso pode permitir a criação de novas drogas terapêuticas.

Shirley Schreier, Antônio Paiva e

Clóvis Nakaie: esforço conjunto de duas décadas ganha destaque

Também se intensificam estudos para relacionar conformação e fun­ção biológica de peptídios biologi­camente ativos, como os hormônios envolvidos em processos de manu­tenção da vida ou que influem na causa de doenças. Shirley salienta: "A função fisiológica de um com­posto é conseqüência de sua estru­tura, por isso é que esses estudos são importantes".

É nesse contexto que se salienta a investigação dos pesquisadores, reco­nhecida no artigo da Chemical & En­gineering News, que os descreve como iniciadores de uma linha de investi­gação também seguida nos últimos 20 anos por outros - em especial os grupos liderados por Claudio Tonio­lo, da Universidade de Roma (Itália),

e por G.L. Millhauser, da Universida­de da Califórnia (EUA).

Repercussão- Além de atrair pesqui­sadores americanos e europeus, o tra­balho do grupo, pioneiro na simplifi­cação e no barateamento da síntese de peptídios, repercutiu no setor pri­vado: a Toronto Research Chemicals, do Canadá, investiu em marcadores de spin e iniciou a produção de TOAC.

Os pesquisadores só lamentam não ter patenteado a técnica em

1993, quando publicaram a desco­berta no fournal of American Chemi­cal Society. "Na época não se falava em patente por aqui. Era uma coisa que nem passava por nossa cabeça", reve­la Nakaie. Nos últimos anos a situa­ção mudou e ele obteve patentes liga­das a etapas recentes do trabalho. •

PERFIS:

• ANTONIO CECHELLI DE MATTOS PAIVA formou-se médico pela Esco­la Paulista de Medicina (1952), onde foi professor titular de Biofísi­ca (1966-1998) . Também foi titular de Bioquímica no Instituto de Quí­mica da USP (1980-1984). Projeto: Relações entre Estrutura e Atividade de Receptores Acoplados

a Proteínas G: Receptores de Peptí­dios Vasoativos Investimento: R$ 331.886,26 e US$ 130.840,00 ·CLOVIS RYUICHI NAKAIE, formou-se em Ciências Farmacêuticas (1974) e fez doutorado em Bioquímica (1980) na Escola Paulista de Me­dicina, atual Universidade Fede­ral de São Paulo (Unifesp). Desde 1978 é professor na Unifesp, onde chefia o Departamento de Biofísica. Projeto: Síntese e Estudos Físico-Quí-

micos de Copolímeros de Estireno co­mo Matrizes de Síntese Peptídica e de Cromatografias Líquidas em Coluna Investimento: R$ 65.858,45 e US$ 107.779,00

. • SHJRLEY SCHREIER graduou-se em Química pela USP (1962), onde tam­bém tornou-se professora (1965), doutora ( 1969) e titular do Departa­mento de Bioquímica do Instituto de Química (1990). Foi pesquisadora vi­sitante em vários centros do exterior, notadamente no National Research Council do Canadá, nos anos 70. Projeto: Anestésicos Locais: Síntese, Propriedades Estruturais e Físico­Químicas e Interação com Membra­nas Modelo e Biológicas Investimento: R$ 206.415,79 e US$ 259.048,91

PESQUISA FAPESP · SETEMBRO DE 1000 • 37

Page 38: Parceiros do Futuro

CIÊNCIA

A médica Jú lia Maria: pesquisa fo rneceu parâmetros confiáveis a campanhas de prevenção como as de acidentes do trânsito

É intensa a presença das drogas em vítimas de traumas atendidas no HC

Sabe-se que álcool e outras dro­gas têm grande relação com trau­

matismos e mortes em acidentes e agressões. Agora, um estudo pioneiro, baseado em atendimentos no Pronto­Socorro do Hospital das Clínicas (HC) da Faculdade de Medicina da Univer­sidade de São Paulo (FMUSP), vem quantificar essa relação causa-efeito: 46% das vítimas de agressão estavam sob efeito de doses excessivas de álcool, assim como 24% das vítimas do trân­sito e 20% das vítimas de quedas. E ainda: 14% dos acidentados ou agre­didos haviam usado maconha, cocaína ou anfetaminas poucas horas antes.

O estudo, Álcool e Drogas em Víti­mas de Causas Externas, foi financiado pela FAPESP e coordenado pela mé­dica especialista em traumatismo ra­quimedular Júlia Maria D'Andréa.

38 • SETEMBRO DE 2000 • PESQUISA FAPESP

Causa externa, ela explica, abrange "acidentes de trânsito, atropelamentos, agressões, quedas e acidentes no tra­balho': No Brasil, são a segunda causa de morte e a primeira entre pessoas de 10 a 49 anos (dados de 1996).

Lícito e barato - Já em 1996, o De­partamento de Traumatologia e Or­topedia do HC- cujo pronto-socorro cirúrgico é o maior centro de atendi­mento de urgência do país- fora con­vidado pelo programa federal de pre­venção de acidentes de trânsito (o PARE) para informar sobre influên­cia do álcool nos acidentes.

Júlia sabia dessa relação, pelos de­poimentos de pacientes do H C. Afinal, como salientou, "o álcool é a droga mais consumida pela nossa população, pois seu uso é lícito, o acesso fácil e o preço baixo': Faltava uma pesquisa que não deixasse dúvidas. Procurou o que havia no país sobre o assunto e não achou uma amostragem precisa. Qualquer programa preventivo, como o PARE, se ressentiria da lacuna: não teria pa­râmetro para avaliar seus resultados.

Em conversas com colegas, Júlia concluiu que um levantamento no pronto-socorro do HC daria a medida da influência do álcool nos acidentes. Ao entrar em cantata com o Instituto Médico Legal (IML) do Estado de São Paulo e com Ovandir Alves da Silva, professor da Faculdade de Farmácia da USP, decidiu ampliar o projeto.

A equipe, que também contou com Naim Sawaia, do Departamento de Medicina Preventiva, Dario Biro­lini e Renato Poggetti, ambos do Departamento de Cirurgia do HC, resolveu em 1998 analisar não só aci­dentes de trânsito, mas todos os eventos de causas externas, e, além do álcool, as drogas ilícitas. Então reque­reu o financiamento da FAPESP.

Primeiro, alunos de Enfermagem e Medicina da USP colheram amos­tras de sangue e urina dos atendidos que consentiram em participar anoni­mamente. Também foram aplicados questionários. Como o álcool é facil­mente metabolizado, a amostra de san­gue era colhida até no máximo seis horas após o acidente, enquanto apre-

Page 39: Parceiros do Futuro

sença de outras drogas era verificada na urina. Seriam O estudo e o álcool

Constatou-se a universa-lidade do uso do álcool, sem

necessários cerca de SOO pacientes para uma amos­tragem adequada, todos com menos de 6 horas des­de a ocorrência do evento. A coleta de dados ocorreu em 71 plantões semanais de 12 horas, entre julho de 1998 e agosto de 1999.

ESCOLARIDADE NÚMERO DE CASOS ALCOOLEMIA(+) distinções de nível cultural. Mesmo entre os que têm mais escolaridade, o núme­ro de vítimas é semelhante (e até um pouco superior) ao dos que têm menos ou nenhuma escolaridade.

Sem escolaridade 161 43 (26.7%) ou I o grau incompleto

I o grau incompleto 114 27 (23,7%) ou 2° grau incompleto

r grau co mpleto 74 18 (24,3%)

Superior 50 16 (32,0%)

Fonte: Júlia Maria D'Andréa Greve- FMU SP

A equipe acompanhou 476 pacientes, fez 469 análises de do­sagem de álcool em sangue e 34 7 de drogas em urina. No IML, Vilma Leyton coordenou a análise das amostras de sangue com um croma­tógrafo, enquanto o Laboratório de Farmacologia da Faculdade de Far­mácia da USP cuidou dos exames de dosagem de cocaína, maconha e an­fetaminas.

1 g/litro). As outras drogas estavam em 14,1% das amostras de urina. Nos casos de internação devido à gravida­de dos traumas, o índice dos que ti­nham álcool no sangue subiu para 41,6%- coerente com levantamentos do IML que relacionam morte vio­lenta e álcool em 40% dos casos.

Uma conclusão, diz Júlia Maria, é que "o álcool não apenas provoca mais acidentes e agressões, como também agrava os riscos de lesões e morte': Mortes no trânsito - Os resultados

são surpreendentes. Em 29% dos ca­sos, havia álcool no sangue (e, entre esses, 84,1% com dosagem acima de

Reforça essa conclusão o alto índice da presença de álcool nas vítimas de agressão atendidas: 46,7%.

Os efeitos do álcool

ALCOOLEMIA (g/L) ESTÁGIO

O. I A 0,5 Sobriedade

0,3 a 1,2 Euforia

0,9 a 2,5 Excitação

1,8 a 3,0 Confusão

2,7 a 4,0 Estupor

3,5 a 5,0 Coma

> 4,5 Morte

Obs.: 0,1 g/L corresponde a um copo de cerveja.

SINAIS CLÍNICOS E SINTOMAS

Nenhuma influê ncia aparente; testes especiais revelam pequenos transtornos cl ínicos.

Suave euforia; sociabilidade; decréscimo das inibições; diminuição da atenção, julgamento e controle; perda da eficiência em testes especiais.

Instabilidade emocional; decréscimo da inibição; perda do julgamento crítico; enfraquecimento da memória e da compreensão; decréscimo da resposta sensitiva; alguma incoordenação muscu lar.

Desorientação; confusão mental e vertigens; estado emocional exagerado (medo, aborrecimentos, aflição); distúrbio da sensação e da percepção às cores, formas, movimentos e dimensões; debilidade no equilíbrio; incoordenação muscular; vacilação no modo de andar e dificuldade na fa la.

Apatia; inércia geral; diminuição marcada das respostas aos estímulos; marcada incoordenação muscu lar com instabilidade para suportar o andar; vômitos; incontinência de urina e fezes; debilidade da consciência.

Completa inconsciência; coma; anestesia; debilidade e abolição dos refl exos; incontinência de uri na e fezes; dificul dades circulatórias e respiratórias; morte possível.

Parada respiratória

Fonte: Dubowski KM.Akohol determination in clinicolloboratory. American Journal Clinkal Pathology, 1980; 74:747-50.

Sexo e idade, contudo, pesaram. O álcool foi detec­tado em 34% dos homens

e apenas 14,8% das mulheres. Estava mais presente nas pessoas solteiras (33,2% delas) e separadas (26,7%) do que nas casadas (17,6%), além de os dois primeiros grupos serem usuá­rios mais freqüentes. O grupo mais po­sitivo para o álcool foi o dos homens entre 20 e 40 anos. O uso abusivo foi mais evidente nos homens solteiros entre 18 e 44 anos. A equipe acha que a dosagem de alcoolemia deveria ser rotina nos atendimentos de urgência.

Coquetel de drogas - Embora a pre­sença de drogas seja menor do que a de álcool, eles consideraram alar­mante a porcentagem de 14%. A mais utilizada é a maconha ( 6,3% dos analisados), seguida de perto pela cocaína (5,7%) e, surpreenden­temente, por um explosivo coquetel de drogas (5,9% tinham álcool, ma­conha e cocaína misturados).

Se os dados obtidos no HC pau­listano forem complementados por pesquisas em outros locais e em esca­la nacional, teremos uma dimensão m~is geral do problema. •

PERFIL:

• JúLIA MARIA D'ANDRÉA GREVE, 49 anos, paulista de Limeira, formada em Medicina (1975) pela Faculda­de de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, com mestrado (1989) e doutorado (1995) em Reumatologia pela FMUSP. É mé­dica fisiatra do Departamento de Traumatologia e Ortopedia do HC da FMUSP desde 1992. Projeto: Álcool e Drogas em Vítimas

de Causas Externas

PESQUISA FAPESP · SETEMBRO DE 2000 • 39

Page 40: Parceiros do Futuro

CIÊNCIA

BIOELETRÔNICA

Pigmento da pele em baterias Composto com melanina aumenta a vida útil de dispositivos eletrônicos

M elanina (do grego mélanos, "escuro"), o pigmento respon­

sável pela coloração da pele, é normal­mente associado à proteção solar: ao absorver luz, protege o organismo dos raios solares. É também um material semicondutor - e essa característica amplia sua importância. Por essa ra­zão, Carlos Graeff, professor associa­do do Departamento de Física e Ma­temática da Universidade de São Paulo (USP) em Ribeirão Preto, mer­gulhou no estudo da melanina para ir além de sua função natural e avaliar a possibilidade de novas aplicações.

A melanina é um material bioló­gico diferente, devido à sua natureza semicondutora. Semicondutores são os componentes básicos de disposi­tivos eletrônicos como os circuitos integrados. O domínio da prepara­ção e da análise dos semicondutores com o objetivo de produzir tais dis­positivos é atualmente crucial para o desenvolvimento científico e tecno­lógico. O projeto pelo qual Graeff es­tudou a produção e as características da melanina é Propriedades Optoele­trônicas de Polímeros Condutores e Bio­polímeros, desenvolvido entre 1997 e 1999 com financiamento da FAPESP.

Pele, penas e lulas - Na verdade, há várias melaninas, classificadas em grupos segundo a origem. Existem, por exemplo, as feomelaninas, res­ponsáveis pela cor avermelhada do cabelo, e as alomelaninas, encontra­das em plantas.

40 • SETEMBRO DE 1000 • PESQUISA FAPESP

Carlos Graeff: buscando unir vantagens de

sistemas biológicos ao mundo da eletrônica

O grupo mais freqüente e estu­dado, porém, é o das eumelaninas, que elimina radicais livres e age como antioxidante. Esse tipo de me­lanina é encontrado em muitos sis­temas naturais, desde plantas como a bananeira até fungos. Sua presença na pele e nos cabelos protege contra lesões produzidas pela luz solar e por poluentes. É o pigmento responsável pela cor da pele, dos cabelos, das pe­nas, dos pêlos - e até mesmo da tinta da lula e do polvo, segundo trabalho dos pesquisadores americanos Miles Chedekel e Lisa Zeise na publicação Cosmetics & Toiletries. A eumelanina também é comestível: a tinta da lula é usada para colorir, aromatizar e dar textura aos molhos.

Entre os que estudam a melanina no Brasil está o professor Amando Ito, do Instituto de Física da USP em São Paulo. Ele chamou a atenção de Graeff para as propriedades da me­lanina como semicondutor amorfo (não cristalino). Entre as vantagens dos semicondutores amorfos sobre os cristalinos estão a possibilidade de produção a custo menor e a de cobrir áreas maiores (como em uma célula de painel solar, por exemplo). Outros pesquisadores, como Dou­glas Gaivão, da Universidade Esta­dual de Campinas (Unicamp ), e

Marília Caldas, da USP, deram con­

tribuições importan­tes ao estudo, especialmente sobre a estrutura eletrônica da melanina.

Propriedades eletrônicas - É inco­mum que um material de origem biológica tenha a propriedade de ser um semicondutor, daí o interesse de Graeff. Uma das prioridades do es­tudo sobre semicondutores amorfos desenvolvido pelo aluno de mestra­do Pablo José Gonçalves, sob a coor­denação de Graeff, foi investigar a interação de moléculas de água com melanina.

Esse estudo foi feito com a melani­na sintética chamada DOPA-melani­na. Graeff explica que a DOPA-mela­nina em sua fase sólida é composta por 20% de água, mas pouco se sabia do papel que a água desempenha em sua estrutura. Para estudar essa inte­ração, o grupo usou a técnica deres­sonância paramagnética eletrônica (RPE): "Pudemos tirar informações indiretas sobre a ligação da água e seu papel na estrutura física e eletrônica da melanina", informa o físico.

A água tem uma importância até então não avaliada na condutividade elétrica da melanina: quando se alte­ra a proporção de água, por exemplo,

Page 41: Parceiros do Futuro

Síntese da melanina: líquido escurece no processo, que demora cinco dias

a condutividade pode ser reduzida em até 1.000 vezes, segundo medições e ex­perimentos realizados em laboratório.

Já na fase final de desenvolvimen­to do projeto, Graeff soube que na Universidade de Houston (EUA) o professor Melvin Eisner conduzia pesquisas na mesma linha. Ambos fi­zeram um trabalho conjunto sobre o assunto. O projeto também despertou o interesse do químico Sérgio Galem­beck, que realiza cálculos para des­crever a interação água-melanina em nível molecular.

Baterias melhores - Outro estudo, dentro do projeto patrocinado pela FAPESP, é feito em colaboração com o professor Herenilton Oliveira, do De­partamento de Química da USP em Ribeirão Preto: o objetivo é avaliar a intercalação da DOPA-melanina com o pentóxido de vanádio.

As pesquisas já desenvolvidas in­dicam que, ao se combinar melanina e pentóxido de vanádio, forma-se um novo composto: é um híbrido de con-

Ferramenta de estudo: diafômetro de raios-X mostra arranjos atômicos

dutividade significati­vamente superior à do pentóxido de vanádio puro, que pode ser usa­do em baterias de lí­tio. O estudo da síntese, da caracterização e das propriedades desse no­vo material teve os re­sultados publicados no

]o urna[ of Material Chemistry dos Es­tados Unidos e recebidos com interes­se num encontro realizado em 1999 em São Francisco (EUA), onde Oli­veira fez uma preleção.

"A melanina melhora a estabilida­de do material no processo de carga· e descarga de íons de lítio", afirma Graeff, com base nos primeiros expe­rimentos. A conseqüência importan­te disso: aumenta o tempo de vida útil das baterias baseadas nesse mate­rial híbrido e diminui o tempo neces­sário para a carga e a recarga.

Bioeletrônica - Além da melanina, Graeff se interessa por outros mate­riais e dispositivos potencialmente úteis na chamada bioeletrônica. A bioeletrônica tem como objetivo aco­plar unidades de funções biomolecu­lares, como moléculas ou proteínas, com dispositivos eletrônicos. Um exemplo são os sensores capazes de me­dir e estimular impulsos neuronais, que podem ser usados para entender fun­ções ou corrigir disfunções cerebrais.

"Consideremos o cérebro huma­no em comparação com os computa­dores", diz ele. "Fica claro que um grande desafio será unir em disposi­tivos futuros as vantagens de sistemas biológicos ao mundo da eletrônica atual à base de semicondutores inor­gânicos." A melanina, por ser um ma­terial de origem biológica, é natural­mente biocompatível, portanto pode ser útil no desenvolvimento dessa nova tecnologia que acopla a eletrô­nica aos seres vivos.

Para tanto, Graeff acredita que materiais híbridos orgânicos e inor­gânicos, como o pentóxido de va­nádio intercalado com a melanina, têm grande potencial de uso em di­versas áreas, como na indústria de baterias para telefones celulares. Um exemplo clássico de utilização de ma­teriais híbridos orgânicos e inorgâ­nicos são os chamados biossensores (ver Notícias FAPESP n° 46). Tudo, por enquanto, está no campo das possibilidades. Graeff e sua equipe prosseguem nos estudos com mate­riais de interesse para a bioeletrô­nica, em busca de novas tecnologias de baixo custo. •

PERFIL:

• CARLOS FREDERICO DE OLIVEIRA GRAEFF, 32 anos, paulista de Ribei­rão Preto, formou-se em Física (1989) na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp ), onde fez mestrado (1991) e doutorado (1994) em Física Aplicada. Fez pós­doutorado em Ressonância Mag­nética Eletrônica, Semicondutores e Dispositivos Eletrônicos no Wal­ter Schottky Institut de Munique (Alemanha). Professor associado do Departamento de Física e Mate­mática da USP em Ribeirão Preto desde 1999, é vice-coordenador de pós-graduação em Física Aplicada à Medicina e à Biologia. Projeto: Propriedades Optoeletrôni­cas de Polímeros Condutores e Biopo­límeros Investimento: R$ 16.489,99 e US$ 33.293,50

PESQUISA FAPESP · SETEMBRO OE 1000 • 41

Page 42: Parceiros do Futuro

TECNOLOGIA

QUÍMICA

Mistura fina, sensível e seletiva Pesquisa produz filtros com a junção de óxidos de metais e celulose

U ma nova família de filtros químicos com potencial para

uso em laboratórios e indústrias foi elaborada por pesquisadores do Ins­tituto de Química da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). São filmes finos e microscópicos, compostos de fibras ou membranas de celulose com uma cobertura de óxidos metálicos, numa junção cha­mada de compósito. Esses filtros têm características seletivas e, de acordo com a sua formulação, conseguem identificar em meio a inúmeras subs­tâncias, durante uma análise quími­ca, apenas aquela em que os pesqui­sadores estão interessados.

Um exemplo é a identificação do crômio 6, um elemento de alto po­tencial tóxico tanto para o homem como para o ambiente, que ocorre em rejeitas industriais, principal­mente em efluentes de curtumes. Em geral, essa substância está acompa­nhada do crômio 3 (pouco tóxico), dificultando a sua localização. Com o desenvolvimento de um compósi­to de óxido de titânio e celulose, que funciona como um filtro, é possível detectar níveis ínfimos de crômio 6.

A pesquisa foi coordenada pelo professor Yoshitaka Gushikem, do Departamento de Química Inorgâni­ca do Instituto de Química da Uni­camp. O projeto Propriedade de Com­pósitos de Óxidos Metálicos/Celulose: Desenvolvimento de Novas Membra­nas e Fibras Quimicamente Modifi­cadas foi financiado pela FAPESP por meio do programa de Auxílio à Pesquisa. O trabalho, executado en­tre 1997 e 1999, garantiu um pedido

42 • SETEMBRO DE 1000 • PESQUISA FAPESP

de patente e a publicação do capítu­lo "Preparation ofOxide-Coated Cel­lulose Fiber", no livro Polymer Inter­faces and Emulsions, editado nos Estados Unidos pelo professor Ku­nio Esumi, da Science University of Tokyo, do Japão.

Embora os compósitos celulose/ óxidos metálicos ainda estejam restri­tos à universidade, suas aplicações po­tenciais na indústria são grandes. Eles poderão, por exemplo, retirar todos os metais pesados presentes no etanol usado como combustível. Outra aplicação desse filtro seria a retirada de cobre da cachaça, garan­tindo uma bebida mais pura. Pequenas quanti­dades desse metal são encontradas na cachaça porque a destilação aconte­ce em alambiques com esse material.

Ligado ao oxigênio - Para a fabricação dos compósitos são utilizadas substâncias que reagem de acordo com o que se quh detectar, filtrar ou imobilizar. A va­riação ocorre com a escolha do me­tal. Eles são ligados ao oxigênio, por isso são chamados de óxidos metáli­cos. De acordo com Gushikem, seria difícil utilizar outras substâncias no lugar de óxidos metálicos. Ácidos e bases, na maioria das vezes, não têm metal na composição e não ficam depositados sobre a celulose. Além disso, os óxidos metálicos permane­cem insolúveis no meio líquido em que acontecem as reações químicas. O aspecto de um óxido metálico, composto de partículas microscópi­cas, é de um pó fino muito disperso como um talco finíssimo.

A celulose foi escolhida por ser estável tanto no aspecto mecânico como químico. Os pesquisadores es-

tavam acostumados a fazer camadas finíssimas de óxidos metálicos sobre outras superfícies como a sílica. Com o know-how de anos de pes­quisa, ficou mais fácil desenvolver os filtros substituindo sílica e outros

uso do filtro na indústria e no laboratório

substratos por celulose. Quando aquecida, manipulada ou inserida em meio a outras substâncias quí­micas, ela não se quebra, não se es­farela e não é destruída facilmente. Para formar o filtro é pre!=iso reco­bri-la com películas extremamente finas, constituídas de óxidos metáli­cos de titânio, zircônio, antimônio, alumínio ou nióbio.

Caráter renovável - Essa fibra ou membrana de celulose recoberta por uma película de óxido metálico re­cebe o nome de compósito de óxido metálico/ celulose porque não há uma nova formulação química após a reação. Entre as vantagens do uso da celulose na construção dos filtros

Page 43: Parceiros do Futuro

estão a facilidade em moldá-la na forma de fibras ou membranas e seu caráter renovável, já que é um bio­polímero, ou seja, um polímero en­contrado na natureza. Os polímeros são agregados de moléculas simples, que se repetem inúmeras vezes, numa estrutura tridimensional. As molé­culas se unem tanto no sentido hori­zontal, umas do lado das outras, quan­to no vertical, umas acima e abaixo das outras. No caso da celulose, cada

muito pouco reativa sozinha. "Quan­do filmes finos de óxidos metálicos são colocados sobre sua superfície, eles funcionam como uma interface de ligação entre a celulose e outras substâncias químicas, ou seja, a ce­lulose se torna mais reativa", explica.

A patente originada no projeto e requerida ao Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI) pela Unicamp refere-se ao processo de preparação de um polieletrólito so­

~ lúvel em água - que foi ~ imobilizado sobre celu­z ~ lose modificada com u

~ óxido de alumínio. Os o o inventores são o profes­re i? sor Gushikem e os alu-;::

~ nos de pós-graduação Reni Ventura da Silva Al­faya e Antônio Alberto da Silva Alfaya.

Microscopia: celulose coberta com óxido de antimônio

Íon gigante - O poliele-" ~ trólito, tema da patente, ~ é um tipo de íon gigante, i positivamente carrega­o do, que em contato com f2 i? o compósito celulose/ t;; .: óxido de alumínio forma

filmes finos sobre o óxi­do de alumínio, deixando essa superfície positiva-

Pontos brancos indicam a posição do metal na fibra mente carregada.

molécula é constituída por duas unidades derivadas da glicose e uni­das por um átomo de oxigênio. Essa molécula pode se repetir por 1 mil, 10 mil ou 100 mil vezes.

As fibras são retiradas de um teci­do vegetal, de uma planta, do jeitinho que estão nesse vegetal, por meio de processamentos químicos. Elas po­dem ser posteriormente transforma­das em membranas por processo me­cânico, como um esmagamento sob pressão. Nesse caso, em vez da fibra que se assemelha a um fio, se obtém a membrana, com uma superfície for­mada pelas fibras pressionadas.

Gushikem diz que o grande segre­do do projeto foi vencer a relativa inércia química da celulose, que é

Por enquanto, o póli­eletrólito está em uso

apenas no laboratório, mas o poten­cial de aplicação é bastante amplo. Gushikem explica que polieletróli­tos são trocadores aniônicos, ou seja, substituem íons negativos por outros íons negativos. Nas indústri­as, esses trocadores são utilizados em conjunto com os catiônicos ( substituidores de íons positivos) em processos de dessalinização de água industrial. Exemplos desse uso são as caldeiras, que precisam de água muito pura para seu funciona­mento, e os reatores nucleares insta­lados em prédios com grandes pisci­nas de água dessalinizada.

O professor Gushikem diz que outra aplicação importante do poli­eletrólito será a subsituição de fosfa-

to ou nitrato da água do mar por um tipo de cloreto. Essas duas substân­cias, mesmo em níveis relativamente baixos, trazem problemas sérios de poluição para o ambiente marinho. A troca de íons com o polieletrólito, nesse caso, é uma alternativa para despoluir a água.

Balanço acadêmico - Todo o projeto consumiu R$ 39 mil, valor utilizado em equipamentos e reagentes. O pro­jeto teve também a colaboração da professora Sandra de Castro, do Ins­tituto de Física da Unicamp, e gerou três teses de doutorado e outras duas que ainda estão em andamento. Tam­bém foram publicados 20 trabalhos, um no Brasil e os outros 19 em revis­tas científicas americanas e européias. Entre os pesquisadores envolvidos, merecem destaque Eduardo Apare­cido Toledo, da Universidade Esta­dual de Maringá, que se doutorou em 1999 e foi co-autor do capítulo pu­blicado no livro Polymer Interfaces and Emulsions, e o professor Ubiraja­ra Pereira Rodrigues, do Instituto de Química da USP, de São Carlos, que se doutorou em 1996, e foi o pioneiro no grupo nesse tipo de trabalho. Todos contribuíram para o conjunto dessas pesquisas sobre esses novos compos­tos e estabeleceram uma tecnologia inédita para a indústria química. •

PERFIL:

• YOSHITAKA GUSHIKEM, 58 anos, formou-se no Instituto de Química da USP e fez doutorado na mesma universidade. Concluiu o pós-dou­torado no Japão, na área físico-quí­mica. É professor do Departamento de Química Inorgânica do Instituto de Química da Unicamp, onde le­ciona desde 1971. Gushikem rece­beu duas vezes o prêmio Zeferino Vaz, da Unicamp, de reconheci­mento acadêmico, em 1997 e 1999. Projeto: Propriedade de Compósitos de Óxidos Metálicos/Celulose: Desen­volvimento de Novas Membranas e Fibras Quimicamente Modificadas Investimento: R$ 39.000,00

PESQUISA FAPESP · SETEMBRO DE 1000 • 43

Page 44: Parceiros do Futuro

TECNOLOGIA

ENGENHARIA ELETRÔNICA

Sob o domínio do barulho fabril Empresa desenvolve sensores que controlam máquinas industriais

Quem entra no setor de usina­gero de uma indústria depara

com diversas máquinas multiformes em operações barulhentas. Algumas são chamadas de robôs e todas ganharam

O problema do BM12 é sua limi­tação analógica, ou seja, ele funciona sem nenhum aparato digital, e assim é incapaz de se comunicar com as novas máquinas geradas ou melho­radas pelo processo de informatiza­ção. "Nosso desafio foi descobrir o que precisava ser feito para o BM12 incorporar as funções digitais, resul­tando num processo de usinagem mais confiável e de melhor qualida­de': explica o coordenador do proje-

Cerca de 30 protótipos da nova gera­ção ganharam vida em máquinas instaladas no chão de fábrica de várias empresas, como a Norton, nos Estados Unidos, e a Zema Szelics, no Brasil. A norte-americana é líder mundial na fabricação de rebolos- discos abrasi­vos que cortam metais- para máqui­nas retificadoras e pertence ao grupo Saint-Gobain. A Zema fabrica aqui máquinas que utilizam o rebolo.

"Eu uso o produto da Sensis com sucesso. Estou até juntan­do dados que mostram sua importância para o nosso negócio': relatou o pesquisador Chris Arco­na, da empresa Saint-Go­bain Abrasives, o homem que gerencia o processo de adaptação do DM42 nas máquinas da Norton.

Anéis de cerâmica - A chave do sucesso do apa­relho são os sensores. Eles são montados em seis formatos, todos levando em suas entranhas pe­quenos anéis de cerâmica

recentemente um novo ti­po de controle, por meio de sensores que detectam se há algo errado de acor­do com o som emitido pelo equipamento. Esse sistema de controle avan­çado é o tema do traba­lho da Sensis, empresa de São Carlos que está pres­tes a terminar a segunda fase do projeto Pesquisa e Desenvolvimento de Siste­mas Microcontrolados para Monitoramento de Opera­ções de Usinagem de Com­ponentes de Precisão Uti­lizando Emissão Acústica, do Programa de Inova­ção Tecnológica em Pe­quenas Empresas (PIPE)

Para aperfeiçoar o aparelho foi necessário criar um software próprio

da FAPESP. Com ele, a empresa Sen­sis conclui as pesquisas para a elabo­ração de um novo modelo de sensor.

O novo sistema é um avanço em re­lação aos produtos existentes no mer­cado que fazem medição de ruídos para checagem de processos de pro­dução. Na usinagem, esses aparelhos fazem o controle, por meio de senso­res, em funções como fresamento, fu­ração, retificação e torneamento. A própria Sensis fabrica um modelo de sensor, o BM12, capaz de fornecer da­dos confiáveis. Mais de 60 unidades desse equipamento foram vendidas a fábricas de autopeças do Brasil.

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to e sócio da Sensis, Luiz André Me­lara de Campos Bicudo.

Entre as buscas para aperfeiçoar o aparelho, os cinco sócios da Sensis vasculharam o mundo dos softwares para encontrar um sistema de moni­toramento eficaz e confiável. "Tivemos de desenvolver tudo. Não encontramos nada que nos interessasse", reforça Bi­cudo. Assim, ao mesmo tempo em que avançavam nos modelos de sensores, desenvolviam um software próprio.

Depois de receber todas as inova­ções e ser batizado com um novo no­me, DM42, o modelo foi exaustiva­mente testado nos últimos meses.

piezoelétrica, matéria-prima escolhi­da pela sua enorme capacidade de funcionar como captador de som. De acordo com as operações a serem executadas (fresamento, torneamen­to, etc.), os modelos foram sendo de­senhados.

Uma das versões é fixada na base de trabalho das máquinas por ímãs, para que a instalação e o funciona­mento não dependam de parafusos. Um segundo modelo (sensor fluídi­co) requereu ainda mais ajustes por­que capta o som da interação das fer­ramentas com as peças a partir do óleo de lubrificação da própria má-

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quina. O tempo de resposta do siste­ma é da ordem de 7 a 8 milissegundos.

Em outra versão do DM42, foram acrescidos instrumentos de temporiza­ção e lógica, dispositivos que contro­lam os ciclos de interação das peças com as máquinas, além de definir a nature­za dos sinais registrados. No conjunto, mais de 20 parâmetros são definidos, tais como o nível do som que vem do sensor para ser amplificado e em se­guida comparado no computador.

Monitorar uma peça fundida em processo de retificação é apenas uma das missões do DM42. "É perfeitamen­te possível analisar o grau de desgaste do rebolo e assim aferir maior quali­dade ao processo final", explica Juarez Felipe Júnior, sócio da Sensis. Devi­damente alimentado por parâmetros de sons, o DM42 é capaz de detectar a posição real do rebolo e as caracte­rísticas de sua superfície.

Ao fazer isso evita problemas. Pelas características da imagem mostrada numa tela de compu­tador o operador de uma má­quina retificadora pode acionar uma etapa de correção do rebo­lo, conhecida como dressagem, que consiste no reavivamento dos milimétricos grãos do rebolo com o uso de um diamante afiado.

Sem colisões - Por eliminar eta­pas lentas, como a vagarosa a pro-

ximação dos rebolos, e também por ser capaz de detectar colisões com peças colocadas acidentalmente, o DM42 torna o processo de usinagem mais rápido e seguro. Ao simples contato da ferramenta com um obje­to que não deveria estar no campo operacional da máquina, o dispositi­vo interrompe automaticamente o funcionamento do conjunto de rebo­los. "Numa fábrica que ganhe um minuto por peça fabricada, a conta no fim do mês pode ser impressio­nante", lembra Bicudo.

O nascimento da Sensis ocorreu no Núcleo de Manufatura Avançada

(Numa) da Escola de Engenharia o DM42 para os fabricantes de má-Mecânica da Universidade de São quinas industriais. Assim, como nas Paulo (USP), câmpus de São Carlos. linhas de montagem da indústria Ali, o atual coordenador João Gomes automobilística, o DM42 deverá ser de Oliveira abriu uma linha de pes- um dispositivo montado no painel quisa, em 1993, depois de ter retorna- de comando de retificadoras, tornos do dos Estados Unidos onde fez seu furadeiras etc. pós-doutorado. Nos laboratórios da Com a inovação proporcionada Área de Fabricação Mecânica da Uni- pelo DM42, os processos na área de versidade da Califórnia, Gomes tra- usinagem continuarão barulhentos e balhou como assistente do pesquisa- até inóspitos, mas ficarão mais sofis-dor David Dornfeld, um visionário ticados, precisos e econômicos. • que no início da déca- z .----------------,

da de 90 fazia um estu- ~ ~ do de caráter acadêmi-" co sobre processos de ~

emissão acústica.

DM42: será acoplado ao painel de várias

Juarez e Luiz: pesquisa de ponta

na USP e na empresa

Início da criação- A Sensis foi funda­da, por alunos de Gomes, em 1995 como uma empresa incubada na Fundação ParqTec. O primeiro dos cinco sócios que começou a pensar na criação de uma empresa foi Luiz André Bicudo. Em 1993, ele iniciou os estudos que o levaram ao desen­volvimento do primeiro torno di­dático, o Didat. Esse equipamento acabou sendo comercializado pela Sensis, principalmente para escolas técnicas.

No momento, a Sensis concentra seus esforços em entrar firme no mercado de implementos, vendendo

PERFIL:

• Luiz ANo~ MELARA DE CAMPOS

BICUDO, formado em Ciência da Computação pela Universidade Fe­deral de São Carlos (UFSCar). Fez mestrado e doutorado na Escola de Engenharia de São Carlos da Uni­versidade de São Paulo (USP). Projeto: Pesquisa e Desenvolvimento de Sistemas Microcontrolados para Monitoramento de Operações de Usi­nagem de Componentes de Precisão Utilizando Emissão Acústica Investimento: R$ 135.505,00 e US$ 29.229,00

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Ripper e Scarabucci: investimento na pesqu isa para desenvolver novas tecnologias e novos aparelhos salvou a Asga da fa lência

Apolítica de abertura do merca­do brasileiro ao exterior, no

início da década de 90, levou empre­sas de diversos setores a fechar as portas. A indústria de componentes para telecomunicações praticamente desapareceu. A solução que algumas empresas encontraram para perma­necer no mercado foi mudar ou am­pliar o ramo de atuação - caso da Asga Microeletrônica, que produz equipamentos para rede de acesso em telefonia e foi uma das primeiras participantes do Programa de Inova­ção Tecnológica em Pequenas Em­presas (PIPE) lançado em 1997 pela FAPESP. O projeto, que está prestes a ser finalizado, recebeu o nome de De­senvolvimento de Multiplexador/Mo­dem Óptico 16xE1 com Inovações Tec­nológicas.

Sediada em Paulínia, a 118 km da capital paulista, a Asga conseguiu su­perar anos de prejuízo e tornar-se uma referência para o mercado de telecomunicações. Foi a primeira empresa nacional a desenvolver e produzir um multiplexador óptico, o

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MM016xE1, equipamento que trans­forma sinais elétricos em sinais lumi­nosos utilizados nas transmissões te­lefônicas via fibra óptica. Segundo estimativa formulada pela Asga, esse mercado deve movimentar no Brasil cerca de US$ 25 milhões este ano e US$ 80 milhões até 2004.

Exportação em pacote - Com 90 funcionários e faturamento de cerca

O bom momento da telefonia

O Brasil é considerado um dos mercados mais cobiçados em todo o mundo na área de telefonia. O país vive um momento de grande expansão e até 2003 estima-se que os investimentos no setor cheguem a US$ 80 bilhões, ou 12% do merca­do mundial, avaliado em US$ 626,5 bilhões. Desse total, US$ 119,7 bi­lhões são para a área de equipamen-

de R$ 25 milhões previsto para este ano, a Asga já responde por 60% do total de multiplexadores ópticos comer­cializados no país. Entre os seus clien­tes estão operadoras como Telefônica, Telemar, Telecentrosul e empresas­espelho. Além disso, o MM016xE1 começou a ser exportado recente­mente dentro de um pacote de solu­ções completas comercializado por uma multinacional.

tos e o restante, US$ 506,8 bilhões, para serviços.

Hoje, o molde da atual realidade brasileira no setor, que continuará a valer por muitos anos, baseia-se na construção de infra-estrutura e na instalação de equipamentos, um nicho a ser explorado por grandes e pequenas empresas que tenham produtos com tecnologia agregada. Até o próximo ano, as operadoras que assumiram o comando das 12 empresas do Sistema Telebrás terão de entregar mais de 15 milhões de

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~-----=~------------------------~~ z A Asga não esconde o segre­

do que a fez atingir sua invejável posição: investimentos em pes­quisa. Nos últimos dez anos, in­vestiu cerca de R$ 25 milhões, boa parte gasta com pesquisa e desenvolvimento de novas tec­nologias e novos produtos.

Fundada em 1989 por um grupo de ex-professores do de­partamento de física da Univer­sidade Estadual de Campinas (Unicamp ), a empresa começou fabricando componentes optoe­letrônicos para equipamentos de telefonia como o multiplexador. Com a abertura às importações e a chegada de concorrentes in­ternacionais, ela teve de diversi­ficar as atividades e investiu na área de equipamentos completos de rede de acesso para centrais te­lefônicas, inclusive para aparelhos de PABX de grandes empresas.

Nos anos de 1992 a 1994 a

.,~iêii;i;!~ ~ mado de modem óptico, nome ~ :il

que mais tarde foi difundido na ::>

~ área de telecomunicações. Em 1996, a empresa conseguiu um grande contrato de fornecimen­to do modem óptico para várias operadoras de telefonia, então estatais, como Telegoiás e Teleba­hia, e introduziu vários aperfei­çoamentos em seus produtos.

empresa teve quedas de até 70% Linha de produção: aparelho para exportação

A função do multiplexador modem óptico MM16xE1 é re­colher os sinais elétricos que chegam a uma central telefônica, transformá-los num feixe de luz e transmitir para outra central por meio de fibra óptica. "É como se fosse um transporte coletivo, que nesse caso leva ao mesmo tempo diversos sinais elétricos num único feixe de luz': explica Rege Romeu Scarabucci, diretor de pesquisa e desenvolvimento da Asga e coordenador do projeto. Quando chegam à outra central, os sinais são novamente trans­formados em pulsos elétricos e seguem para novos caminhos.

no faturamento, mas investiu cer­ca de R$ 2,5 milhões em projetos. Finalmente, em 1995, veio o primei­ro resultado positivo da década. Nos quatro anos seguintes, a empresa apresentou um crescimento de 30%.

"Migramos do mercado de com­ponentes para o de equipamentos e conseguimos superar a crise com in­vestimentos em tecnologia': diz o dire­tor-presidente, José Ellis Ripper Filho. Carioca de 61 anos, Ripper formou-

telefones fixos, totalizando 33 mi­lhões de terminais.

Em 2003, a estimativa é que serão mais de 40 milhões de terminais, o que significa um crescimento de mercado de 20% ao ano. A Associação Brasilei­ra da Indústria de Eletro-Eletrônicos (Abinee) calcula que até lá haverá in­vestimentos de R$ 67 bilhões para a compra de novos equipamentos. Co­mo comparativo, em 1999, segundo o anuário Telecom 2000, o faturamen­to de produtos de telecomunicações no Brasil chegou a US$ 11 bilhões.

se engenheiro elétrico, tem paixão pe­la Física e morou nove anos nos EUA, onde fez doutorado no Massachu­setts Institute of Technology (MIT).

Transporte coletivo - Na nova fase da Asga, o primeiro equipamento d~­senvolvido foi um conversor eletro­óptico de sinais elétricos padrão G703 para fibra óptica, conhecido como elo-2 (ou elinho) e depois cha-

Na área de telefonia celular os números também são grandiosos. As empresas registram o crescimen­to anual de 40% na adesão de assi­nantes a esse tipo de serviço. Só a abertura da nova Banda C, no pró­ximos meses, vai movimentar cerca de R$ 7 bilhões. Além do mercado de telefonia, o País tem grande po­tencial para uma série de serviços com grande demanda reprimida, como comunicação de dados, tex­to e vídeo e serviço troncalizado ( truncking).

"O equipamento consegue trans­mitir uma grande quantidade de si­nais com ótima qualidade': afirma Scarabucci. O MM016xE1, chamado naAsga de 16E1, pode transportar ao mesmo tempo 480 linhas num só fei­xe de luz, a uma velocidade de 34 Mb/s (megabites por segundo) . Essas linhas podem transportar voz, da­dos e imagens.

O potencial do mercado brasilei­ro de telefonia atrai grandes fabrican­tes internacionais de equipamentos de telecomunicações, como Moto­rola, Nortel, Siemens e Ericsson (veja a seção Linha de Produção na página 49). Essas empresas estão montando suas plantas no País ou expandindo investimentos já existentes para apro­veitar o bom momento pelo qual pas­sa o Brasil. A maioria dessas empresas está instalada, principalmente, na Grande São Paulo e nas regiões de Campinas e São José dos Campos.

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Scarabucci diz que as principais inovações introduzidas no projeto são a medida de desempenho em tempo real e a função cross conect. Enquanto a medida de desempenho mede a qualidade do sinal durante todo o tempo, a função cross conect permite inserir ou retirar canais ao longo de uma rota, além de garantir o funcionamento do sistema caso haja rompimento de qualquer fibra óptica. Além disso, o 16E1 permite medir a potência óptica de transmis­são, de recepção e a taxa dos erros que possam existir no sistema.

me dos pequenos empresários. "A ini­ciativa do programa para pequenas em­presas da FAPESP foi excelente, mas eu acredito que é hora de rever alguns pontos': diz. Para ele, as mudanças no setor de telecomunicações são muito rápidas e o atual modelo do PIPE não acompanha as necessidades do desen­volvimento industrial. "Acredito que o projeto possa obter melhores resulta­dos com algumas mudanças conceituais, como ser avaliado numa única fase, com liberação do dinheiro em etapas."

. ~ .. -

te, com a realização de um estudo de viabilidade, alguns testes dos circui­tos principais e levantamento das ne­cessidades de controle e de gerência do equipamento.

A segunda fase ocorre junto com o processo de industrialização dos equipamentos de acesso dotados de tecnologia SDH, para serem utiliza­dos principalmente em estações te­lefônicas. Também está sendo de­senvolvido um novo modem, com a mesma tecnologia, para ser utiliza-

do em sistemas de dis-z ~ tribuição de serviços de iil voz, dados e internet. A 'õ ~ Asga espera colocar o

novo STM-1 no merca­do no primeiro semestre do próximo ano.

A primeira fase do projeto foi encerrada e a segunda deve terminar em novembro. Para a conclu­são, falta juntar ao 16E1 um software de gerência de sistema SNMP ( Simple Network Management Protocol), aberto a outros sistemas e de amplitude internacional, destinado à gerência de equipamen­tos de telecomunicações e a provedores de Internet.

O multiplexador 16xE I é ulitizado nas transmissões via fibra óptica

O gerente industrial, Laércio Bonon, é um exemplo do entusiasmo existente na empresa. "Eu me sinto muito or­gulhoso de fazer parte de um time que desen­volve e produz equipa­mentos de alta tecnolo-

"O projeto do 16E1 foi muito traba­lhoso, pois tivemos várias dificulda­des. Por exemplo: aprender a projetar equipamentos com chips de última geração, além de utilizá-los de forma a obter o melhor desempenho do sis­tema", conta Scarabucci.

Carro chefe - Em 1998, o produto chegou ao mercado e a empresa atingiu a vendagem média de 200 unidades por mês. Em dois anos, a produção aumentou 100% e o equi­pamento passou a ser o carro-chefe da empresa. Atualmente, são vendidos cerca de 400 multiplexadores por mês, responsáveis por 60% do faturamen­to da Asga, que foi de cerca de R$ 15,5 milhões em 1999. O crescimen­to de até 50%, esperado para este ano, deve-se ao aquecimento do mercado de telefonia celular, que requer a ex­pansão da infra-estrutura do setor.

Ripper participou do lançamento do PIPE em 1997 e discursou em no-

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Mais velocidade - A Asga tem outro projeto em andamento no Progra­ma de Inovação Tecnológica em Pe­quenas Empresas. Ela desenvolve um multiplexador bem mais velt>z, o STM-1, com capacidade de trans­portar 1.890 canais num só feixe de luz à velocidade de 155 Mb/s. O STM -1 é voltado para o mesmo segmento de mercado do 16E1 e usa a tecnologia SDH (Synchronous Digital Hierarchy) . "O STM-1 é im­portante, pois irá consolidar a Asga no ramo de transporte de serviços de comunicação da área de acesso para a rede pública", afirma Scara­bucci. Poderá ser usado dentro de centrais telefônicas, em estações de telefonia celular e em provedores de internet.

"É um produto bastante sofistica­do, cuja tecnologia é dominada por um número pequeno de empresas estrangeiras", explica. A primeira fase do projeto foi concluída recentemen-

gia, ainda mais em um país onde esse setor quase não tem apoio", conclui. •

PERFIL:

• REGE ROMEU SCARA BUCCI, 62 anos, é formado e pós-graduado em Engenharia Elétrica pelo Insti­tuto Tecnológico da Aeronáutica (ITA). Fez doutorado em Teleco­municações na Universidade de Stanford (EUA). Em 1999, recebeu o Prêmio Santista de Cientista do Ano na área de telecomunicações pelo desenvolvimento de tecnolo­gias e equipamentos. Projeto 1: Desenvolvimento de Mul­tiplexador/Modem Óptico 16xE1 com Inovações Tecnológicas. Investimento: R$ 46.000,00 e US$ 180.770,00. Projeto 2: Desenvolvimento de Mul­tiplexador STM-1 para Rede Óptica de Acesso. Investimento: R$ 226.300,00.

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TECNOLOGIA

\ .. -: .. LINHA DE PRODUÇÃO

Cycab: serviu de inspiração para pesquisa entre a UnB e a Fiat

Estacionar o carro ficará mais fácil

mática e Automação (Inria) da França e que também teve participação do Graco, inclu­sive com a vinda do carro para o Brasil. O CyCab é um veícu­lo elétrico movido a bateria com capacidade de estacio­nar sozinho. "O mais difícil é transferir esse conhecimento para um carro a gasolina'; afirma o professor Sadek Absi Alfaro, coordenador do Gra­co. "Queremos transformar esse sistema baseado em sen­sores de ultra-som em algo popular e mais barato que um equipamento de ar-condicio­nado automotivo." A equipe já tem a tecnologia para fazer o carro ir para a frente e para

~ trás. "O problema são os de­clives e as ondulações na pista que agem como forças físicas no carro", explica Alfaro. •

Cooperação busca novas tecnologias

Um amplificador óptico e fi­bras de vidro enriquecidas com terra rara são dois produtos que servem para aumentar a capacidade de transmissão de dados na área de telecomuni­cações. Eles estão sendo de­senvolvidos com tecnologia de ponta no Brasil. O primeiro no Grupo de Optica do De­partamento de Física da Uni­versidade Federal da Universi­dade de Pernambuco (UFPE) e o segundo no Departamento de Eletrônica Quântica do Instituto de Física da Univer­sidade Estadual de Campinas (Unicamp). Esses dois proje­tos de pesquisa fazem parte de um conjunto de sete con­vênios de cooperação técni­co-científica firmados entre a Ericsson e mais cinco univer­sidades e institntos, além da Unicamp e da UFPE. São a Universidade de São Paulo (USP), Universidade Fede­ral do Rio Grande do Sul (UFRGS), Pontifícia Univer-

Estacionar o carro em uma pequena vaga é sempre uma situação incômoda, mesmo para quem gosta de dirigir. Se a direção hidráulica minimi­za o esforço, um outro dispo­sitivo deverá eliminar de vez o desconforto de manobrar em pequenos espaços. É um sistema dotado de sensores eletrônicos que estaciona au­tomaticamente o carro, de­pois que o motorista deixa o veículo e aperta um botão no chaveiro. A novidade, que de­ve ser apresentada a custos bai­xos - algumas montadoras já formularam protótipos ainda caros e não totalmente confiá­veis-, está sendo desenvolvida por pesquisadores do Grupo de Automação e Controle ( Gra­co) do Departamento de En­genharia Mecânica da Uni­versidade de Brasília (UnB). A pesquisa é realizada em con­junto com a Fiat brasileira, que fornece carros dos modelos Palio e Marea para o experi­mento. O estudo tem como base o carro-conceito CyCab desenvolvido pelo Instituto Na­cional de Pesquisa em Infor- Robô criado pelo computador é capaz de se locomover sozinho

sidade Católica do Rio de Ja­neiro (PUC-RJ), Universida­de Federal do Ceará (UFC) e o Centro de Pesquisa de Desen­volvimento em Telecomunica­ções (CPqD). A empresa está investindo, neste ano, R$ 10 mi­lhões nesses convênios. Eles são destinados a desenvolver pes­quisas nos segmentos de comu­nicação de dados e de voz. •

Máquina projeta e fabrica máquinas

Inteligência artificial é o as­sunto: uma máquina compu­tadorizada e programada se­gundo leis da seleção natural projeta e fabrica pequenos ro­bôs que se movem sozinhos. A façanha inédita é dos cien­tistas Jordan Pollack e Hod Lipson, da Universidade de Brandeis, em Massachusetts (EUA), que desenvolvem o Projeto Golem ( Genetically Organized Lifelike Electra Me­chanics) . Os robozinhos são feitos de 10 a 20 peças plásti­cas, fios que compõem um "sistema nervoso" rudimentar e motores miniaturizados que lhes permitem arrastar-se por uma superfície horizontal. "É

a primeira vez que robôs são roboticamente projetados e ro­boticamente fabricados", di­zem os pesquisadores. Primei­ro, o programa de computador produz desenhos de robôs ao acaso, depois seleciona os que considera mais capazes de se mover no mundo real e então comanda a máquina que os fa­brica. Os pesquisadores ape­nas obedecem ao computador em pequenas tarefas, como a de conectar os motores. Entre os exemplares mais hábeis es­tão os que foram chan1ados Te­tra (de forma piramidal) , Fle­cha, Cobra e Caranguejo. •

PESQUISA FAPESP · SETEMBRO OE 1000 • 49

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HUMANIDADES

SOCIOLOGIA

O homem é (ainda) quem manda Estudo mostra como o desemprego afeta a estrutura familiar

Ohomem vale mais que a mu­lher. A tese capaz de provocar

a ira de qualquer feminista america­na, à la Lorena Bobbit, é uma cons­tatação do trabalho de Maria da Conceição Quinteiro, do Núcleo de Pesquisas em Relações Internacionais da USP. Em Família, Trabalho e Gê­nero: Uma Análise Comparativa Por­tugal-Brasil, a socióloga afirma que, apesar da surpreendente emancipa­ção feminina neste século, a discri-

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minação no trabalho é forte e o ho­mem é quem manda ainda no sus­tento familiar.

O estudo, que contou com o apoio da FAPESP, em São Paulo, e do Instituto de Cooperação Científica Internacional (ICCI), em Lisboa, in­vestiga o impacto do desemprego na organização da família em Portugal e no Brasil. Apoiada em depoimentos, estatísticas e vasta bibliografia, Ma­ria da Conceição Quinteiro mostra como o desemprego masculino ten­de a causar efeitos mais negativos, uma vez que o trabalho assalariado feminino é visto apenas como uma ajuda complementar ao masculino na família e sociedade. "O homem desempregado vive um verdadeiro

inferno do ponto de vista da auto­estima. Já as mulheres, mesmo so­frendo a queda nos padrões de vida, sabem lidar melhor com isso, ocu­pando esse 'tempo livre' em maior cantata com os filhos e as tarefas do­mésticas", explica.

Trabalho comparativo - Embora os encontros luso-brasileiros nas uni­versidades brasileiras ocorram des­de a década de 60, os trabalhos com­parativos entre Brasil e Portugal são ainda recentes. E o da professora Conceição Quinteiro, como ela mes­ma ressalta, procurou "preencher essa lacuna e ampliar os horizontes". A idéia de aproximar os dois países quanto ao impacto do trabalho na

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estrutura familiar surgiu em 1997 e encontrou várias motivações: o ca­tolicismo, a visão da mulher onipre­sente nas fases essenciais da vida do homem, mais fortemente marcado nessas culturas, e o fato de a popula­ção economicamente ativa apresen­tar graus de escolaridade relativa­mente baixos, sérias dificuldades, portanto, para países que que­rem fazer parte da economia globalizada.

Para compor o trabalho, que levou três anos de dedicação, Conceição Quinteiro serviu-se das fontes oficiais (Seade e IBGE, no caso do Brasil, e INE, em Portu­gal) e do depoimento de pesso­as, os chamados desempregados de longa duração (12 meses sem vínculo empregatício). Foram entrevistados 40 desempregados em São Paulo e Lisboa, perten­centes a dois setores da econo­mia, modelos no atual processo de reestruturação produtiva em tempos de globalização: indús­tria e serviços.

Fator de tensão- Os depoimen­tos mostraram que o fato de o homem não ser mais o provedor

te são as posições desiguais no mer­cado de trabalho, na família, no ca­sal, na política e assim por diante", argumenta.

A pesquisa aponta também como o padrão de consumo e de ex­pectativa social dos desempregados da área de indústria é menor em re­lação aos do setor de serviços. "Um

do sustento é fator de tensão e de­sorganização, mesmo em famíli­ Conceição: desigualdade no trabalho e na família

as nas quais a mulher continua trabalhando- e muitas vezes ga­nhando mais do que o homem. Mais do que os problemas de consumo, conforto e sobrevivência, isso acar­reta danos profundos aos homens no âmbito emocional, já que se sentem subestimados e marginalizados.

As dicotomias que remontam à pólis grega - o homem ligado ao es­paço público, à racionalidade e à cultura, a mulher ao doméstico, à natureza e à passionalidade -já não seriam traços superados? Segundo a pesquisa, não. Se a entrada maciça de mulheres na vida profissional contribuiu para evitar que estives­sem sempre na defensiva, por outro lado não assegurou um equilíbrio. "Os exemplos mais visíveis de que a valoração social diferenciada persis-

empregado da indústria não se en­vergonha em dizer que está desem­pregado. Ele, inclusive, recorre aos amigos e aos sindicatos, faz bicos, vende coxinha. Se é metalúrgico, mas entende de encanamento, vai fazer isso para sobreviver", ressalta. Essa flexibilidade de saber fazer pa­rece ser muito mais freqüente no pessoal da indústria do que no de ser­viços. O desempregado nessa área não é capaz de inventar e de criar experiências para sobreviver a não ser dentro do ramo em que foi cria­do. E mais do que isso, freqüente­mente, não diz que está desempre­gado com medo da repressão social.

Lendo nos entrenúmeros - Embora Maria da Conceição Quinteiro te-

nha se servido de números oficiais para traçar um quadro comparativo da ocupação feminina e masculina nas áreas metropolitanas de Lisboa e São Paulo, ela insiste em dizer que o trabalho é mais qualitativo do que quantitativo. "Os números não dizem muita coisa, não pegam as nuances do processo. Eles precisam ser cap­

turados pela fala das pessoas." O ato de ler nos "entrenúme­

ros" se aplicaria ao relativo êxito feminino no mercado de traba­lho hoje no Brasil. As feministas nacionais argumentariam que há um boom de ofertas de emprego para as mulheres. Segundo in­formam dados do IBGE, entre 1989 e 1999, foram abertos 10,1 milhões de postos de trabalho no Brasil. Quase 7 milhões de va­gas foram ocupadas exclusiva­mente pela mulher, enquanto somente 3,1 milhões de postos de trabalho foram preenchidos pelos homens.

A entrada da mulher no mer­cado de trabalho depende muitas vezes não da capacitação profis­sional e da oferta de empregos, mas da conciliação possível entre suas responsabilidades familiares e profissionais. Nesse sentido, a aprovação da licença-maternida-de, na Constituição de 1988 no Brasil, teria sido dado positivo.

Mesmo assim, a professora alerta que é preciso relativizar esses núme­ros: "Quanto mais alto o cargo, mais s~rá preenchido por homens. Isso não significa que elas sejam incapa­zes ou menos instruídas- a partici­pação crescente das mulheres nos bancos escolares é maior que a dos homens -, mas o salário é inferior, um dado concreto da discriminação salarial."

A pesquisa também constata que Portugal está mais preparado que o Brasil para reintroduzir os profissio­nais no mercado. Lá há inúmeros centros de formação e capacitação e a legislação trabalhista está muito mais flexível - embora ainda não seja completamente para a mulher.

PESQUISA FAPESP · SETEMBRO DE 2000 • 51

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Para a suposta corrosão do cará­ter e perda de valores trazida pela flexibilização e instabilidade do tra­balho hoje, a família aparece como único porto seguro. Apesar do rótu­lo de repressora para as gerações dos anos 60 e 70, a família continua a ser o lócus de segurança emocional. "Na medida em que a solidariedade, so­bretudo nas grandes cidades vai se desfazendo com o narcisimo, só res­ta a família . Ela é vital para a sobre­vivência material e emocional."

O ônus da liberdade - Quanto ao quadro nada róseo para as mulhe­res, a romancista Louise de Vilmo­rin, colecionadora de amantes céle­bres (Malraux e Orson Welles), teria razão ao afirmar que "para uma mu­lher não há nada pior do que ser li­vre"? "A liberdade para as mulheres é recente e relativa, significa ir à luta, trabalhar mais de oito horas por dia, ir para casa trabalhar outras tantas horas, cuidar da família, dos filhos, das tarefas domésticas que continu­am à espera. É um ônus muito gran­de, uma jornada tripla. A liberdade plena só existirá quando houver eqüidade entre direitos e deveres de homens e mulheres", argumenta.

Por enquanto, o mundo do tra­balho remunerado ainda faz parte da identidade masculina, e sobre es­sas injustiças a professora Maria da Conceição Quinteiro espera desen­volver outros projetas - sempre no eixo Brasil-Portugal. •

PERFIL:

• M ARI A DA Co CEIÇÃO Q u iNTEIRO

é graduada em Ciências Sociais pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, onde fez o mestrado e o doutorado em Sociologia e pós-doutorado pela Universidade de Oxford. É pesqui­sadora do Núcleo de Pesquisas em Relações Internacionais da USP. Projeto: Família, Trabalho e Gêne­ro: Uma Análise Comparativa Por­tugal-Brasil Investimento: R$ 12.550,00

52 • SETEMBRO DE 1000 • PESQUISA FAPESP

HUMANIDADES

ENTREVISTA ·

Investidas contra a fragmentação Para Michel Vovelle, é

tempo de reencontrar um sentido para a história

Michel Vovelle foi um dos con­ferencistas do XV Encontro

Regional de História, promovido pelo núcleo paulista da Associação Nacio­nal de História, de 4 a 8 de setembro, no departamento de História da Uni­versidade de São Paulo (USP). O tema do encontro, que recebeu da FAPESP auxílio a organização de reunião cien­tífica, foi História no Ano 2000: Pers­pectivas. O tema da conferência de Vovelle, Jacobinos e Jacobinismo: his­tória de uma prática revolucionária e historiografia de um conceito (sé­culos XIX e XX) -, o mesmo de seu livro mais recente, lançado em 1998 na Itália, em 1999, na França e, agora, no Brasil.

Jacobinos e Jacobinismo, saudado por historiadores um tanto esgotados com as teses de uma nova história que pulveriza seus próprios objetos para chegar, no limi­te, ao próprio fim da história, é um entre cerca de três dezenas de livros de Vovelle. Historiador respeitado, ele é considerado um dos maiores es­pecialistas em Revolução Francesa -o que ajudou a levá-lo à direção do Instituto de História da Revolução Francesa, em sua atuação como ho­mem público. Professor da Sorbonne (Paris 1 ), suas pesquisas, embora con­centradas na história das mentalidades, nunca descartaram o arsenal teórico e metodológico de fundamentação marxista que constituiu a base de sua formação. Em sua passagem por São

Paulo, Vovelle concedeu a Mariluce Moura a seguinte entrevista.

• Na apresentação de seu livro Jacobi­nos e Jacobinismo, o professor José Jobson de Andrade Arruda o classifica como um pioneiro na construção da ponte entre a história de fundamenta­ção marxista e a história das mentalida­des. Em sua própria visão, como se constitui essa ponte em sua obra?

- Eu pertenço a uma geração de historiadores formados no

método da história social dos anos 60, da qual meu mestre, Ernest La­brousse, era o representante. E essa história social quantitativa, que esta­belece medidas e pesos, mantém de bom grado suas referências no mar­xismo. O próprio Labrousse se ins­creveu sem ostentação nessa conti­nuidade. E sob sua direção, eu empreendi estudos de história social, história agrária, de relações no cam­po... A minha geração, em grande parte, conheceu essa tradição e de­pois, talvez, uma mutação da voca­ção. Tomo como exemplo um colega

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e amigo, Maurice Agulhon, mas outros também não foram infiéis à história social de tradição marxista, embora aparentemente tenham abandonado essa perspectiva. Isso ocorre numa crise ideológica e de um contexto político geral, a partir de 1956, e que foi acom­panhada por um esforço avassalador de revisão. Mas de forma mais simples, diria que nesse contexto nos apercebe­mos, eu como Maurice Agulhon, que era preciso ir buscar alhures perspec­tivas mais complexas que os princípi­os de dependência da superestrutura ideológica à infra-estrutura, apreen­didos num processo de tomada de consciência, como então se dizia. E isso para tratar de entender o que se passa na cabeça das pessoas, a histó­ria tal como elas a vivem e contam.

• De certa forma, passar da história social para estudar as mentalidades era então uma necessidade?

''O jacobinismo histórico

é uma experiência

precisamente inscrita

na Revolução Francesa,,

- Para mim, sim. E isso se operou em muitas etapas, desde meus pri­meiros estudos em história social, passando por um tema em que já se encontravam minhas futuras inquie­tações - a contra-revolução no Midi -, até concentrar minhas pesquisas na religião, com toda importância que ela ganhou no conflito entre re­volução e contra-revolução. Assim, entrei no trabalho sobre a descristia­nização brutal do ano II (o ano de 1794, na terminologia da Revolução Francesa), portanto, num domínio de história religiosa que se aproxima-

va finalmente de meu perfil. E em­preendi, entre 1963 e 1971, a pesqui­sa que conduziu à minha tese sobre piedade barroca e descristianização e ao trabalho sobre atitudes coletivas diante da morte na Provença.

• Como o senhor passou da descristia­nização à morte?

- A própria dinâmica da pesquisa nos arrasta a resultados não previstos. Parti para estudar a revolução profana que, na Idade das Luzes, nos fez pas­sar da religiosidade barroca, investida nos gestos, ao que podemos chamar de secularização, revolução profana ou mesmo descristianização. Daí en­contrei outras coisas como a atitude das representações diante da morte.

• Seus estudos sobre a morte, o purga­tório, etc., o levaram a compreender mais a história da França? É possível estabelecer essa relação entre tais estu­dos e a história geral de um país?

- Com certeza. Penso que os estu­dos sobre a sensibilidade, sobre o imaginário coletivo, se integram di­retamente numa história das repre­sentações que é parte integrante, ago­ra, da nossa compreensão da história nacional. Há, se quisermos, uma es­pecificidade francesa nesse compor­tamento. Como por exemplo, a Fran-

ça, que foi chamada de filha dileta da Igreja, tornou-se, entre os séculos 18 e 19, o país do anticlericalismo, o lu­gar onde a liberação do olhar adqui­riu uma importância prioritária em comparação com outros países? Creio que não seria preciso opor uma história oficial clássica, aquela da es­trutura política, a uma outra que se­ria, senão marginal, de tal maneira diferente que não haveria conexão possível entre uma e outra. Para mim, não há duas histórias.

• Para os historiadores na França, a Revolução Francesa é sempre um para­digma. Como o senhor passou a lidar com esse marco essencial quando come­çou a estudar o purgatório, a morte, etc.?

- Há uma historio­grafia de longa duração e, depois, há um acon­tecimento, um corte, um capítulo no qual é pre­ciso contar uma história muito complicada de 10 anos. Então a Revolução pode aparecer como um tipo de fenômeno in­congruente, porque é a revanche do aconteci­mento, a revanche da história que se deve contar e analisar. Mas é isto que me apaixona: a dialética entre o tempo curto e a longa duração. Tenho um trabalho so­bre a festa- felizmente,

não trabalhei apenas sobre a morte-, A metamorfose da festa no campo, entre 1750 e 1850, em que me interroguei sobre o encontro entre a festa proven­çal na longa duração, já folclorizada às vésperas da Revolução, e a festa cí­vica. E esta, de fato, ligava-se à festa provençal, abrandada com um mo­delo nacional de celebração. É uma questão talvez inocente, mas, em todo caso, fundamental para mim: como se deu esse encontro? E com formas, digamos, de contaminação: a árvore da liberdade retomada de uma heran­ça de maio, as árvores que plantamos

PESQUISA FAPESP · SETEMBRO DE 1000 • 53

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em maio na porta das jovens que vão casar, ou retomada do cortejo carna­valesco, da herança do Charivarie, isso que chamamos a Asinade, isto é, o passeio de uma pessoa, que repre­senta o marido enganado, sobre um asno, tendo a cabeça voltada para o rabo. É a Charivarie à antiga, que é reinscrita no saturnal, no espetáculo derrisório da festa de descristi­anização do Ano II.

• Seus estudos sobre a visão do purgatório estão também no qua­dro dos estudos dos afetos, não?

-Sim, porque há alguma coi­sa na morte que a partir do sé­culo 18 atinge diretamente a história dos afetos. A relação do mundo dos vivos com o mundo dos mortos foi regula­da, na longa duração, de ma­neira diferente, sempre como forma de compromisso que constitui o trabalho de luto.

• E nesse quadro, o purgatório aparece como uma região necessária entre os dois mundos?

-Sim. A cristianização propôs pri­meiro o modelo da coabitação dos vivos e dos mortos, o modelo da res­surreição e depois o modelo do fim dos tempos, com o céu de um lado e, do outro, o inferno. E, então, há a in­venção do purgatório, que Jacques le Goff situou em algum momento pró­ximo de 1150. É uma invenção que não está de forma alguma no discurso original da Igreja cristã, uma invenção da religião popular, uma coisa formi­dável, porque trata-se de um terceiro lugar, reservado, como dizia Santo Agostinho, àqueles que não são nem inteiramente bons nem inteiramente maus. O purgatório caminhou entre 300 imagens até o século 14, quando começa a encontrar uma imagem que alça vôo e busca sua expressão figura­da: será que é um lago, um fogo, uma prisão? Tem-se necessidade de uma imagem. E, finalmente, depois de uma peripécia penosa da alma humana, a

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época barroca, depois do Concílio de Trento, dá sua consistência de longa duração ao purgatório, isto é, um tipo de pseudo inferno de duração deter­minada. O que é maravilhoso é que se pode fazer preces pelos que estão no purgatório, pode-se intervir por sua salvação, e assim se supera de uma maneira elegante o trabalho do luto.

''Há uma historiografia

delonga duração e depois, um corte.

E apaixonante é a dialética entre eles''

• Quando o senhor passa a estudar o jacobinismo está, em certa medida, si­nalizando uma crise na historiografia hegemônica na França?

- Sim, uma crise no interior da his­toriografia francesa, mas, de forina mais ampla, na historiografia em ge­ral, no mundo. Os grandes sistemas e as histórias globalizantes, totalizantes se adaptam mal às escolas que se ex­pressaram de forma hegemônica nas últimas décadas. Temos vivido o que François Dosse chama a história em migalhas, que é uma fragmentação expressiva de campos: há a história dos afetos, a história dos odores, há um monte de histórias que, creio, é necessário reunir numa cadeia. Por­que na pulverização renuncia-se a dar um sentido à história.

• É o fim da história ...

- Sim, é o fim do movimento da história, a locomotiva da história foi para a garagem. O perigo dessa pul-

verização é essa grande crise da histo­riografia, que se inscreve num quadro maior, na crise das ideologias que vi­vemos hoje. Nesse sentido, o capítulo conclusivo sobre o legado da Revo­lução, trabalho dirigido por François Furet, é brilhante: ele explica que só haveria agora uma revolução tecno­lógica, da comunicação. Portanto, de

uma certa maneira, no quadro do pensamento neo liberal hoje, o fim da história aparece como essa estabilização.

• O senhor situa essa crise das ideologias em que década?

- Penso que começou nos anos 50 de forma bastante visí­vel. Na guerra fria. Com uma interrogação coletiva sobre as aventuras do socialismo real, que gerou a crise de consciên­cia que evoquei ao falar no naufrágio dos historiadores de minha geração. E depois se acentuou na última década.

• Dá para resumir seu conceito de ja­cobinismo?

-Não a tese, mas a idéia mestra que desenvolvi é a da dualidade, de uma ambigüidade do conceito. Isto é, há de um lado o jacobinismo histórico, uma experiência precisamente inscrita no contexto da Revolução Francesa, e que poderíamos chamar a experiência de uma tomada de consciência, com um elemento de descoberta da política, -no quadro do êxtase de comunicação que forma a opinião pública, a socie­dade pública francesa. Mas há um outro jacobinismo diferente desse. O termo foi retomado numa aventura secular, e tornou-se também, pode­mos dizer, transhistórico - é o termo de Proudhon. Este jacobinismo foi trazido pelas correntes democráticas e liberais do século 19, e foi retoma­do e enriquecido depois de 1830 pela herança neo-babovista de Buonarot­ti, encontrando-se de forma bastante expressiva em 1848, na Comuna de Paris - o jacobinismo republicano e

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democrático encontra-se com o mo­vimento revolucionário depois de um movimento social. Essa história do ja­cobinismo como migração, não apenas de um conceito, mas da prática que o acompanha, vai reconduzi-lo dos radi­cais franceses ao partido de ação ita­liano como um jacobinismo, digamos, pequeno burguês, não suficiente ain­da para fazer triunfar sua hege­monia, o que depende do volun­tarismo, que será expresso por Clemenceau. Progressivamen-te, passa-se a esses radicalismos tão bem quanto mal realizados, isto é, o sufrágio universal, os sistemas representativos, a lai­cidade, a nação, o exército ... A partir de certo momento os ra-dicais perdem sua pugnacidade, o jacobinismo torna-se uma pos-tura, uma atitude, um verbalis-mo certamente. Mas é aí que advém o movimento histórico que lhe dará de uma só vez sua sorte e sua má sorte: sua reto-mada pelo movimento revolu­cionário, socialista. O jacobinis-mo migrou para o coração mesmo da ideologia revolucionária, mesmo se Lênin, como Marx e ainda mais Gramsci desconfiam das analogias. Por isso o emprego do signo jacobino vai durar, bem ou mal, até o colapso do socialismo real.

• E que jacobinismo resistiria hoje?

- O que se expressa, por exemplo, na atitude dos movimentos de cidadãos, de Jean Pierre de Chevenement. Seria mais a herança do jacobinismo radi­cal ou democrático, mas que insiste na defesa de valores como a república, a cidadania, os valores políticos, a laici­dade, a nação, a pátria. São valores hoje muito prejudicados, quando se tem o individualismo como indicação de identidade, o que repõe em ques­tão os aspectos diretivos, de autoridade, de centralidade. Mas há uma outra herança da revolução francesa, aque­la da aspiração a uma democracia di­reta. De qualquer forma, todo senti­do de jacobinismo foi ameaçado pelo

pensamento único do fim da história, do pensamento, digamos, neo liberal.

• Nesse sentido, seu livro é também uma espécie de resposta ideológica?

- Digamos que seja uma resposta que vai direto ao ponto nesse mo­mento que é de interrogação, de in-

''O que sinto é afeição

por um~ herança da Epoca das Luzes

que estipula que o mundo

pode ser mudado,,

quietação. E eu não defendo os jaco­binos com paixão, como os últimos moicanos que mereceriam nossa sim­patia. Há uma reflexão geral que atra­vessa a idéia de cidadania, de repú­blica, por exemplo, e nos interroga de maneira não arcaica, mas muito contemporânea.

• O senhor ainda concede espaço para o conceito de luta de classes hoje?

- Eis uma questão embaraçante. Penso a luta de classe tanto no sentido tradicional do termo, elaborado du­rante a Revolução Industrial, quanto no contexto atual de mudanças sociais profundas que nos afetam na socieda­de liberal, no equilíbrio mundial de ri­cos e pobres. Se observarmos na esca­la do planeta os que possuem e os que não possuem, a luta de classes toma um sentido que não só não é arcaico, como é inteiramente trágico.

• O senhor vislumbra novas tendências de pesquisa em história que articulem

história social, económica e história das mentalidades?

- Pode-se ainda pensar que de uma certa maneira toda história é social, porque toda história se inscreve em uma situação, em um contexto, em relações e na realidade. Mas seria muito simples se refugiar nessa evi-

dência contextua!. Na tendên­cia atual da historiografia há leituras, como por exemplo a de Roger de Chartier, segundo as quais a história das repre­sentações testemunha a preo­cupação ou a necessidade de se reencontrar o ancoradouro da história no imaginário e nas representações, concebidas inclusive como conflito. O an­coradouro dessa história dare­presentação é uma referência para a história social e, se ain­da se desconfia - sem dúvida, com razão - de uma história globalizante como totalizante, pelos mesmo motivos de que se desconfia do totalitário,

creio que se deve guardar essa preo­cupação. Mas para mim é muito im­portante estabelecer correlações, re­descobrir a importância da política, da geopolítica, e ir além de uma lei­tura que estaria fora do todo social ou do todo político e que abandona­ria muito daquilo que faz a riqueza, a complexidade, da história.

• O senhor recupera um lado positivo do jacobinismo. Sua visão sobre o fu­turo é otimista?

- O que você vê como meu jacobi­nismo poderia ser identificado, senão como otimismo, pelo menos como afeição a uma espécie de herança das luzes que estipula que o mundo pode ser mudado. E se, evidentemente, as esperanças podem parecer perigosas em um historiador, porque isso traduz um tipo de finalidade consciente ou in­consciente, não se pode esquecer que os historiadores estão, eles mesmos, inscritos num processo histórico, em uma vida, em um engajamento. •

PESQUISA FAPESP · SETEMBRO OE 1000 55

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SHEILA GRECCO

A privatização do espaço urbano Geografia do apartheid nos centros de São Paulo

São Paulo é, hoje, o "avesso do avesso do aves­so" da própria noção de cidade. Assiste-se a um processo esquizofrênico de privatização

do espaço, com condomínios fechados, convivên­cia dentro de shoppings e praças de complexos empresariais apartados do mundo das ruas. Nessa paulicéia desvairada, haveria ainda um espaço de vida pública que se possa chamar de centro?

Heitor Frúgoli Jr. identifica três espaços hege­mônicos: o centro tradicional e as avenidas Paulis­ta e Luis Carlos Berrini. O livro Cen-tralidade em São Paulo. Trajetórias, conflitos e negociações na metrópole ( Cortez/ Edusp/FAPESP), resulta­do de um doutorado em sociologia na USP, mostra como esses centros en­contraram o apogeu e declínio num único século - doença crônica de cidades de novo mundo, "eternamen­te jovens e nunca totalmente saudá­veis': para Claude Lévi-Strauss. Frú­goli investiga o campo minado de interesses nos projetos de intervenção urbana destinados à valorização des­ses centros (Viva Centro, Paulista Vi­va e o da Bratke-Collet). Os percur­sos históricos são bem-vindos para compreender como uma cidade pro-vinciana, que em 1900 contava com 240 mil habi­tantes, é hoje a segunda maior do mundo com 16,5 milhões, incluindo a área metropolitana.

Os primeiros projetos urbanísticos procuraram reproduzir os modelos europeus até os últimos ti­jolos. Nos anos 30 e 40, fachadas foram uniformi­zadas e bulevares à Paris de Haussmann foram criados. Já nessa época, o centro abrigava um con­tingente de migrantes nordestinos. As atividades informais tornaram-se problemas gritantes. Os projetos de restauração do Anhangabaú, do Tea­tro Municipal e a pedestrianização de ruas foram incapazes de reverter o processo de deterioração.

Os pobres foram cada vez mais confinados em cortiços e hoje em favelas. A deslocação deu -se em

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direção à Paulista. Os casarões cederam à vertica­lização. Com a ação do capital financeiro nos anos 70, a avenida passou a sediar federações de empre­sariado e o Masp. Nos 80, firmou-se como cenário de celebrações políticas e exposições. Mas o "símbo­lo da cidade", segundo polêmica votação do Banco Itaú, sofre com sujeira, congestionamento, falta de segurança e esgotamento do estoque construtivo.

Uma nova Paulista surgiu na Berrini nos anos 80. Trata-se de construção feita com planejamento

para atender à criação de novo pólo terciário e recentemente ao fetiche dos netties. A Berrini possui arqui­tetura magistral e anomalias decida­de modernista tropical: vida dentro da edificação e não fora dela.

Apoiada em vasta bibliografia, a tese dá margem a questionamentos. Frúgoli usa como termo comparati­vo Los Angeles, metrópole da disper­são moderna. A Cidade do México, contudo, parece mais próxima dos paradoxos paulistanos por sua diver­sidade étnica e periferização. Outro ponto discutível é a fixação de três centros, quando outros populosos emergem - Zona Leste e ABC.

Frúgoli contribui decisivamente ao analisar o urbanismo sob viés sociológico e mos­trar como a revitalização é excludente, atendendo a empresários. Veja-se a violência na remoção de camelôs no centro e Paulista ou de favelados no Córrego das Águas Espraiadas. Se o diagnóstico é pessimista, é preciso ser otimista quanto à mobi­lização da sociedade civil. São Paulo não pode continuar a ser "lar e prisão" (segundo o geógrafo Milton Santos), cujo progresso só faz renascer a barbárie. Para ser, de fato, cidade com pretensões globais, o homem deve ser também um projeto.

SHEILA GRECCO -Jornalista, historiadora, mestranda em

Teoria Literária e Literatura Comparada pela USP

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lan Hacking Múltipla Personalidade

Este lançamento da José Olympio (360 págs.), escrito pelo professor da Universidade de Toronto, Ian Hacking, traz um curioso paralelo entre a múltipla personalidade e a constituição da memória, que ele chama de as ciências da memória. Que, segundo o autor,

se transformaram na chave do selfhumano moderno. Partindo da dupla personalidade, em geral associada a abusos infantis, Hacking analisa o clima moral de nossos dias e de como fatos traumáticos (sejam micros ou macros, como o Holocausto) são retrabalhados pela memória.

Os Alimentos Transgênicos

Marcelo Leite, editor de ciência da "Folha de S.Paulo" e membro do Conselho Editorial da série "Folha Explica", analisa o tema mais polêmico e discutido do momento, mesmo entre os leigos. De forma didática e inteligente, o jornalista esclarece uma série de questões sobre o real potencial

dos trangênicos, de como os genes são manipulados até quais são os limites científicos e válidos dessa nova forma de ciência, alertando para os perigos tanto do excesso de entusiasmo até o seu oposto igualmente errôneo, o da condenação imediata sem reflexão.

Complexidade e Caos

Organizado por Moysés Nussenzveig, neste lançamento da Editora UFRJ/COPEA, as conferências do ciclo homônimo foram reunidas trazendo um painel fascinante das maiores questões da ciência, como a origem da vida, o funcionamento do cérebro, a evolução

das espécies, dissecadas por especialistas brasileiros e estrangeiros. Entre eles, Gilberto Velho, Jacob Palis, John Holland, Robert Lent, Sérgio Ferreira. O ciclo ocorreu entre 1995 e 1996, promovido pela Coordenação de Programas de Estudos Avançados (COPEA). É uma boa contribuição para o interesse atual da ciência por seus aspectos mais complexos e caóticos.

REVISTAS

Revista USP

Editada pela Universidade de São Paulo, a revista chega ao seu número 45 trazendo, muito apropriadamente, o dossiê "Durante Cabral: os Portugueses", com textos de João Medina ("Gilberto Freyre

~ :::..7..:-· Contestado"), Luís Adão da Fonseca ("O Sentido de

Novidade na 'Carta' de Pero Vaz de Caminha"), Joaquim Romero Magalhães (''As Descrições Escritas e a Identidade do Brasil"). Há também uma bonita homenagem a Décio de Almeida Prado, celebrado por artigos de João Roberto Faria, Flávio Aguiar, Boris Schnaiderman e, entre outros, Jacob Guinsburg.

Ciência e Ambiente

A revista editada pela Universidade Federal de Santa Maria igualmente concentra-se sobre os SOO anos do Brasil, com o dossiê "Olhares sobre o Brasil", abrindo com um artigo escrito pelo presidente Fernando Henrique Cardoso ("O Brasil e o Desenvolvimento

Sustentável"). Além disso, o número 19 da publicação traz entre outras: "O Olhar do Outro", de Miriam Moreira Leit(:, "Náufragos no Rio Grande", de Jean Marcel Carvalho França, e "Como era Gostoso o meu Brasil", de Sandra Pesavento, analisando o olhar da França sobre o Brasil do século 16.

Revista de Literatura Brasileira - Teresa

Com um bonito nome e uma igualmente bela edição, eis o primeiro número da revista publicada em conjunto pela Editora 34 e pelo Programa de Pós-Graduação de Literatura Brasileira da Universidade

de São Paulo. Só há artigos de "feras" como Gilda de Mello e Souza ("O Mestre de Apipucos e o Turista Aprendiz"), José Miguel Wisnick ("Cultura pela Culatra"), Marco Antonio de Moraes ("Editando um Ensaio de Mário de Andrade"), Arnaldo Antunes ("Abraço"), e Carlos Rennó ("Oswald foi ouvido") entre outros.

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NEGREIROS

58 • SETEMBRO DE 2000 • PESQUISA FAPESP

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Suplemento Especial

o Brasil resgata a sua história

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ESPECIAL

O Brasil resgata a sua história Documentos trazidos de Lisboa falam da vida nas capitanias

Por trás do lon­go título Proje­to Resgate de Documentação Histórica Ba­

rão do Rio Branco, há um trabalho formidável de mais de uma centena de pessoas que a partir de 1996 vasculharam o acer­vo do Arquivo Ultrama­rino de Lisboa, e leram, decifraram, organizaram, microfilmaram e digitali­zaram documentos, para ficar apenas nas tarefas mais evidentes que um empreendimento desse ti­po abarca. Como efeito de um tal esforço há, no en­tanto, um resultado monu- Carta da costa do Brasil, dos padres Diogo Soares e Domingos Capaci: século 18

mental, muito maior, em múltiplos sentidos, que a carga de trabalho investida: são cerca de 250 mil documentos referentes ao Brasil Colô­nia, que trazidos ao país cumprem papel fundamental na preservação da memória do Brasil. Mais: cumprem uma função de democratizar o acesso à informação, na medi­da em que se tornam acessíveis a qualquer interessado.

Os documentos atingem, de certo modo, todos os as­pectos da vida pública nas capitanias e mesmo aspectos da vida pessoal de seus habitantes entre os séculos 17 e 19. E por isso tornam-se uma fonte agora próxima e ines­gotável de pesquisas em história e outras áreas das ciên­cias humanas, que poderão lançar novas luzes sobre o que fomos e o que hoje somos como nação.

Patrocinado pelo Ministério da Cultura, com a partici­pação de dezenas de instituições públicas e privadas de to­do o país- e em São Paulo financiado pela FAPESP- o Pro­jeto Resgate pode ser considerado emblemático dentro das comemorações dos 500 anos do Descobrimento. Seus pro­dutos materiais são os microfilmes guardados na Biblio­teca Nacional, no Museu Histórico Nacional e nos arquivos públicos estaduais, abertos à consulta de todo interessado. São os CD-ROMs que os reproduzem e os catálogos que con­têm os índices desses documentos e que vêm sendo entre-

PESQUISA FAPESP

gues às universidades, entre outras instituições. Mais adian­te, essa documentação deverá se tornar acessível também pela Internet; democratizando ainda mais sua consulta.

Quanto aos produtos mais intangíveis do Projeto, por ora é impossível dimensioná-los. Mas os pesquisa­dores diretamente envolvidos nesse resgate histórico es­tão convencidos de que ele é um marco referencial. Tanto que o evento organizado para seu encerramento em São Paulo, de 25 a 27 de-setembro, com a participação de his­toriadores brasileiros e portugueses, tem por título A História que Nasce do Projeto Resgate. Mais: ele está com­binado com o simpósio Agenda da História para o Milê­nio, cujos debates podem delinear uma nova política de cooperação luso-brasileira para a pesquisa histórica.

Neste suplemento especial de Pesquisa FAPESP, pes­quisadores brasileiros- incluindo o ministro da Cultura, Francisco Weffort - e portugueses expõem em detalhe suas visões sobre o Projeto Resgate, sobre seu significado e prováveis desdobramentos. As entrevistas foram feitas pelos jornalistas Maria da Graça Mascarenhas, Mariluce Moura e Mário Leite Fernandes.

O documento da capa é uma planta da baía de Para­naguá, de 1653, recuperada pelo Projeto Resgate.

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2

Francisco Weffort

O ministro da Cultura do Brasil é professor titular do departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo (USP). Foi eleito chefe desse departamento em 1994. É também presidente do Conselho Superior da F acuidade Latino-Americana de Ciências Sociais. Paulista da cidade de Quatá, no oeste do Estado, tem o título de doutor em Ciência Política pela USP. Já lecionou e pesquisou nos Estados Unidos, Inglaterra, Chile e Argentina. Tem livros publicados no Brasil, Chile e Costa Rica.

Ainda há mais para ser feito Projeto vai continuar em outros arquivos europeus

ministro da Cultura, Francisco Weffort, con­sidera o Projeto Resga­te de Documentação Histórica Barão do Rio

Branco uma obra emblemática do Ministério. Por isso, ele está sob con­trole direto de seu gabinete, em Bra­sília. Weffort pretende agora ampliar a busca e o registro de documentos do Brasil Colônia para outros lugares.

• Como teve início o Projeto Resgate?

-Tomei conhecimento das tentati­vas recentes e dos antigos sonhos re­lativos ao resgate dos documentos do Período Colonial existentes nos arquivos europeus, notadamente em Portugal, logo que assumi o Minis­tério. A ocasião era propícia para uma ação conjunta, de caráter na­cional, diante da proximidade das comemorações dos SOO anos do Des­cobrimento do Brasil. Pedi ao em­baixador Wladimir Murtinho que atuasse para viabilizar o Projeto. Ele, por sua vez, obteve a colaboração

interessavam pelo Projeto. Estabele­cemos diversas parcerias, com insti­tuições privadas e públicas, no âm­bito dos governos federal, estaduais e mumC!pats.

• E os resultados?

- Os resultados já estão aí. Os do­cumentos referentes a 18 capitanias, que correspondem hoje a 22 estados, já foram microfilmados e digitaliza­dos para sua divulgação em CD­ROM. Os catálogos com os verbe­tes-resumo estão sendo publicados. Já se encontram no Brasil mais de 1.500 rolos, com cerca de 200 mil documentos. Eles estão à disposi­ção de todos na Biblioteca Nacional e no Museu Histórico Nacional, ins­tituições vinculadas ao Ministério da Cultura. Os microfilmes vêm sendo entregues aos arquivos públicos es­taduais, e os CDs, às universidades de todos os estados. Os institutos histó­ricos e geográficos estaduais e obra­sileiro têm sido igualmente contem­plados com os CDs, eles que foram

de uma funcionária da Fundação Biblio­teca Nacional, Es­ther Caldas Berto­letti, que desde 1975 atuava como con­sultora na área de documentação e mi­crofilmagem de do­cumentos em todo o Brasil, com o Pla­no Nacional de Mi­crofilmagem de Pe­riódicos Brasileiros. Então, convocamos todos os que, direta ou indiretamente, se

Vila Nova da Fortaleza de Assunção: Ceará, 1730

PESQUISA FAPES P

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os pioneiros, no século 19, da copia­gem dos documentos no exterior.

• Qual o significado e a importância disso para o Ministério?

-O significado e a importância do Projeto Resgate são exatamente o apoio à preservação da memória na­cional e a facilitação do aces­so às fontes, um preceito constitucional que o Minis­tério da Cultura se empenha muito em ver cumprido.

• Quantas pessoas e institui­ções foram envolvidas?

• Qual o volume de recursos liberados?

- O próprio Ministério da Cultura investiu cerca de US$ 1 milhão, em suas três modalidades, orçamentá­ria, fundo de cultura e lei de incenti­vo fiscal. Outros ministérios também contribuíram, como o da Ciência e Tecnologia, por meio do CNPq, e o

nômica Federal, o Banco do Nor­deste e o BEM-Fundação Clemente Mariani; de fundações, como a Vi­tae, a Waldemar Alcântara, a Demó­crito Rocha e a Casa da Memória de Campo Grande; e de empresas, como a Auvepar, Telems, Micro­service, Tap-Air Portugal e Varig. Houve a participação de algumas

instituições portuguesas, públicas e privadas, como a Fundação Calouste Gulbe­kian e a Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugue­ses, além das luso-brasilei­ras, como o Real Gabinete Português de Leitura, a Fundação Cultural Brasil­Portugal e a Federação das Associações Portuguesas e Luso-brasileiras. Como se vê, ocorreu um verdadeiro mutirão em favor da cultura e da memória nacional, onde todos apartaram alguma coisa e todos saíram gratifi­cados, pelo desdobramento positivo e pela conclusão, dia a dia, de diversos proje­tas, cujos benefícios para o Brasil, podemos dizer, serão imensuráveis.

- Enumerar todas as pes­soas e instituições que fo­ram e estão envolvidas com o Projeto Resgate de Docu­mentação Histórica Barão do Rio Branco não é tarefa das mais fáceis. Mas posso dizer, pelos relatórios for­necidos pela coordenação do Projeto, que mais de cem pessoas estiveram até agora diretamente ligadas a ele. Várias atuaram em Lisboa, lendo, decifrando os docu­mentos em leituras paleo­gráficas e organizando-os em caixas após tê-los resumido em verbetes. Outras elabo­raram os índices e organiza­ram a publicação dos catá­logos aqui no Brasil. V árias empresas, em Lisboa e no

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• No âmbito das comemora­ções dos 500 anos do Desco­brimento, como o Ministério situa o Projeto Resgate?

Joaquim José da Silva Xavier pede à rainha licença para viajar

Brasil, nos ajudaram na microfilma­gem e na digitalização. A divisão de microfilmagem da Biblioteca Nacio­nal assumiu a tarefa de preservar os microfilmes e duplicá-los para dis­seminação. Quanto às instituições participantes, tivemos seguramente uma média de cinco por estado, o que nos dá, só para os conjuntos já microfilmados, 11 O instituições. Po­demos somar cerca de 15 para os es­tados que ainda estão sendo organi­zados e verbetados em Lisboa, Pará, Pernambuco e a segunda parte da documentação do Rio de Janeiro.

PESQUISA FAPESP

da Educação, por intermédio de di­versas universidades. Não podemos esquecer os governos dos estados, através de suas secretarias de Estado, principalmente as da Cultura, e suas fundações culturais. Tivemos tam­bém as fundações de amparo à pes­quisa do Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Minas Gerais e São Paulo, e mesmo alguns municípios, como o de Olinda. Isso trouxe mais US$ 1 milhão. O restante dos recursos, mais de US$ 1 milhão, veio da ini­ciativa privada, por meio de bancos, como o Banco Santos, a Caixa Eco-

- No momento mesmo ·em que o presidente da República lançava em Porto Seguro, em 1996, a agenda das comemorações, já se in­cluía o Projeto Resgate como um dos projetos emblemáticos dos SOO anos. A essa altura, estava em desen­volvimento desde 1994, quando re­cebeu os primeiros recursos orça­mentários do Ministério da Cultura e os primeiros aportes da Fundação Vitae e do CNPq. Fomos buscar os professores e pesquisadores que ha­viam sonhado em recomeçar o traba­lho que, por todo o século 19, ocupou ilustres pesquisadores e historiado-

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res, copiando à mão alguns dos mais significativos documentos, para a melhor compreensão da nossa his­tória. Em torno dos trabalhos isola­dos, fomos formando uma cadeia nacional. Conseguimos vencer um desafio: organizar, identificar, ler, decifrar e elaborar verbetes-resu­mo, para depois microfilmar, como forma de preservação e de transferência da informação. Seguimos os moldes preconiza­dos pela Unesco em suas resoluções sobre esse tema e em seu programa Memória do Mundo.

• As novas tecnologias ajudaram?

centram cerca de 80% dos docu­mentos sobre o Brasil existentes no exterior.

• E agora?

-O trabalho do Ministério da Cul­tura não parou no Arquivo Históri­co Ultramarino. No próximo ano,

-Sim. Com o avanço da tecnologia e da in­formática, pudemos pensar em duplicar e disseminar o mais pos­sível o conteúdo infor-

Cidade de Salvador, por Manoel Roiz Ferreira, 1786

macional dos documentos, de forma que ele chegasse a todos os pesqui­sadores, universitários ou não. A transposição para CD-ROMs permi­te o acesso onde houver um compu­tador com drive de CD. Isso signifi­ca que o estudante do interior da Paraíba ou do câmpus avançado da Universidade do Amazonas poderá ler os documentos da mesma forma que o estudante e o interessado em história do Rio de Janeiro ou de São Paulo. Isso significa a verdadeira de­mocratização da informação. E mais. Com a ajuda das secretarias de Cultura dos diversos Estados e de várias universidades, através de suas editoras, pudemos editar os catá­logos, colocando no papel e ao alcance de todos as informações resumidas que remeterão aos docu­mentos em verdadeiros fac-símiles, captados pela microfilmagem e di­gitalização. Até junho do ano 2001, estarão no Brasil todos os docu­mentos do Arquivo Histórico Ul­tramarino de Lisboa, onde se con-

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avançaremos com a documentação de outros arquivos portugueses, como o da Torre do Tombo, e a de arquivos espanhóis, franceses, ho­landeses e italianos. Este ano, esta­mos fazendo um mapeamento nes­ses países, para sabermos o que microfilmar e onde. Até o final de 2000, estaremos com quatro guias publicados. A partir deles, vamos de­finir, juntamente com os pesquisa­dores, o que microfilmar primeiro. Creio que, pela sua importância, já podemos pensar na documenta­ção dos arquivos espanhóis de Si­mancas, Sevilha e Tenerife, referen­tes ao período colonial brasileiro, e nos documentos da Nunciatura em Lisboa no Arquivo Secreto do Vaticano. O Projeto Resgate situa-se na linha dos projetas especiais do Ministério da Cultura, diretamente ligado ao meu gabinete em Brasília. É um projeto emblemático.

• Como o senhor situa o Projeto na importância de preservar e valorizar

melhor a memória brasileira e como uma forma de entender melhor o Brasil atual?

- Como professor universitário e pesquisador de ciência política, pos­so dizer da imensa capacidade que tem o povo brasileiro de encontrar em si mesmo as forças de sua per-

manente renovação. ~ Nada explicaria este g imenso território e es­~ ta força sempre reno-

vada se os brasileiros não tivessem um pas­sado do qual podem orgulhar-se. É exata­mente para relembrar os momentos do pas­sado, para conhecer e melhor interpretar o que somos hoje, que esses documentos nos ajudarão, e muito, a valorizar a memória brasileira, a valorizar cada construção, cada estrada, cada árvore,

cada animal, cada montanha, pois o ambiente que nos cerca é o cenário em que se desenrolou a nossa histó­ria. Se passamos por momentos mais difíceis e até incompreensíveis aos olhos de hoje, podemos sempre melhorar com a compreensão dos erros do passado.

• E como isso pode influenciar a auto­estima brasileira?

· - Conhecer melhor como foi fun­dada a nação brasileira, antes e de­pois da Independência, é talvez a forma de reflexão que levará cada vez mais o povo brasileiro a ser se­nhor do seu destino. O Brasil depen­de de nós. Nós somos o Brasil, como no passado colonial foram os habi­tantes destas terras, índios, negros e brancos amalgamados, que vence­ram as montanhas, cruzaram os rios e levaram as fronteiras do Brasil de hoje aos extremos nunca sonhados pelos que aqui primeiro chegaram às nossas praias.

PESQU ISA FA PESP

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José Jobson de Andrade Arruda

O responsável pela coordenação do Projeto Resgate dos documentos da Capitania de São Paulo formou-se em História pela Universidade de São Paulo (USP) em 1966. Nesta instituição fez mestrado, doutorado e livre docência. É professor titular de História Moderna. Ocupa também o cargo de coordenador da cátedra Jaime Cortesão, do Instituto de Estudos Avançados, e é membro do Conselho Superior da FAPESP. Foi chefe do Departamento de História e diretor do Instituto da Pré-História da USP, além de diretor do Museu de Arqueologia e Etnologia.

PESQUISA FAPESP

Documentos abrem novas oportunidades Material poderá também ser colocado na Internet

Preocupado com a aproxi­mação entre pesquisadores portugueses e brasileiros, o historiador José Jobson cita uma das grandes van­

tagens do Projeto Resgate: qualquer pessoa tem agora à mão o que antes exigia longas temporadas no Arquivo Ultramarino de Lisboa.

• As previsões feitas quando o resgate da documentação paulista começou, em agosto de 1998, eram de que seriam encontrados cerca de 6.500 documen­tos referentes à Capitania de São Paulo, dos quais mais ou menos 1.500 não es­tavam ainda inventariados. Esses nú­meros se confirmaram?

cumentação nova. Os dois primeiros volumes têm cerca de 400 páginas ca­da um. O terceiro, cerca de 200.

• E quanto à documentação referente à parte mais meridional do país, subor­dinada à Capitania de São Paulo? Ne­nhum dos documentos relativos a essa área estava catalogado.

- Este material já está pronto. O trabalho esteve ligado ao projeto de São Paulo, mas foi realizado por pesquisadores de Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Além dos docu­mentos que esperávamos encontrar, foram descobertas mais ou menos 145 latas, com mais de 5 mil docu­mentos, referentes a questões de

- Sim, eles se confirmaram. Tínhamos antes pouco mais de 5.100 documentos, que faziam parte do catálogo or­ganizado pelo historiador Mendes Gouveia, em 1954. Agora, foram encontradas cerca de 30 latas, que conti­nham um pouco mais de 1.500 documentos. Em ter­mos de números, está confir­mado.

IMPRENSA ÜOOALI

• Como os catálogos serão pu­blicados?

- Em dois volumes, mais um de índice. O primeiro volume é o catálogo de Men­des Gouveia, reavaliado, re­condensado e retomado com procedimentos técnicos e políticas atuais. Quem con­duziu esse processo foi a professora Heloísa Bellotto. O segundo volume é o da do-

Documentos d C manuscntos avUlsos

a _,apttanta de 1 Sao Pau

Catálogo 1 r 1644 • 18JOJ

José )obson de Andrade Arruda --

Capitania de São Paulo: 6.500 documentos

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fronteira, à Colônia do Sacramento e a contratos referentes ao sal.

• Essa documentação nova trouxe re­velações também novas?

- Essa é uma preocupação que to­das as pessoas têm. Querem saber o que há de novo. O que nós sabemos é o seguinte: essa documentação é uma documentação ampla. Ela fala da vida dos homens que vive­ram durante esse período aqui na colônia, na Capitania de São Pau-lo. Então, é claro que somente um trabalho em cima dessa docu­mentação poderá dizer se há algo novo.

• E o que virá agora?

- Há o encontro neste mês de setembro: o congresso A História que Nasce do Projeto Resgate e o colóquio Agenda da História para o Milênio. A reunião na FAPESP,

globalização; a história econômica; os movimentos sociais; a população, famí­lia e migrações; e a relacionada com a historiografia e a memória social.

• O que resultará disso?

- Cada bloco será composto por 50% de historiadores portugueses e

tre Brasil e Portugal nos próximos 20 ou 30 anos.

• Qual será, então, o impacto do Pro­jeto Resgate para o estudo da história do Brasil?

-Acho que isso está mais ou menos consignado no título do congresso, A

Planta de ranchos construídos no caminho de São Paulo a Santos: século 18

no dia 25, é apenas a abertura ofi­cial do evento. Para a tarde, no Departamento de História da Universidade de São Paulo, está marcado um encontro do qual participarão cerca de 30 pesquisado­res portugueses e 60 brasileiros. Al­guns dos maiores pesquisadores por­tugueses participarão desse encontro. São dois os objetivos desse encontro: consolidar o Projeto Resgate, no que é, de certa maneira, uma festa de en­cerramento, e pensar na possibilida­de de abrir um Projeto Resgate 2, para obter documentos sobre o Brasil em outros arquivos portugueses e de vários países europeus.

• Mais alguma coisa?

- Sim, vamos aproveitar a oportu­nidade e colocar frente a frente os historiadores brasileiros e portugue­ses. Juntos, eles podem pensar quais serão as diretrizes de nossa cooperação na área da história, em seis áreas prin­cipais. Temos as áreas da cultura e da religiosidade; os trabalhos relaciona­dos com o município, o poder local e a

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50% de brasileiros. Cada pessoa vai elaborar um texto individual e todos, em conjunto, farão um texto síntese. Esses textos serão publicados num li­vro, que deverá estar pronto até o fim do ano. Nele, estará o que cada pes­quisador pensa sobre como deve ser a cooperação.

• Um objetivo amplo, não é?

- Sim, muito amplo. Fazer melhor seria difícil. Pense, não é fácil trazer para um lugar no Brasil e pôr para discutir 30 historiadores portugue­ses de uma vez só. Não são só dois, três, cinco ou dez, são 30. Mais os brasileiros. A lista dessas pessoas mostra o que há de melhor nas his­toriografias brasileira e portuguesa. São essas as pessoas que vão pensar e escolher nossas diretrizes. Esta será uma espécie de política pública para a área de história na cooperação en-

História que Nasce do Projeto Resgate. Creio, verdadeiramente, que há uma história nascendo do Projeto Resgate. Ela vai nascer porque a massa de do­cumentos que está chegando e fican­do à disposição dos pesquisadores é tão grande que, tenho certeza, grande parte da história terá de ser reescrita.

• Haverá uma democratização?

- Sim, acho que sobretudo é isso. Passamos a ter a informação demo­cratizada. Os documentos vão estar reunidos em CDs, que qualquer pes­soa pode comprar. Além disso, pre­tendemos, mais tarde, colocar todo esse material na Internet. Já há um projeto relativo a isso na FAPESP. Aí será a democratização absoluta dessa documentação.

• Há dois anos, quando fizemos uma reportagem sobre o lançamento do

PESQUISA FAPESP

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Projeto Resgate de Documentação Histórica Referente à Capitania de São Paulo, surgiu o dado de que o Ar­quivo Ultramarino era muito mais vi­sitado por pesquisadores brasileiros do que por portugueses. Isso continua a ser verdade?

- Bem, foi feita uma estatística no Arquivo Ultramarino. Num perí­odo de quatro anos, ele foi visita­do por cerca de 2.200 pesquisa­dores. Os brasileiros eram maioria absoluta. Representavam aproxi­madamente 1. 700 do total de 2.200.

• Quem bancava isso?

- Majoritariamente, recursos públicos. Foram bolsas pagas pe­la Capes, pelo CNPq, pela FAPESP e por outras fundações que per­mitiram aos pesquisadores ir ao Arquivo Ultramarino nesse pe­ríodo. É um custo que não te­remos mais. Esse período se esgotou. O Arquivo e os pesqui­sadores portugueses terão como um presente, dado por nós, a do­cumentação toda catalogada e microfilmada. Mas existe um contra-resgate.

começaram o contra-resgate em Per­nambuco, na Bahia, nas outras capita­nias. Ora, nós estamos trazendo de Portugal 250 mil documentos. Tal­vez, no final, o total chegue a 300 mil. Acho que o número de documentos que os pesquisadores portugueses vão microfilmar no Brasil, transfor­mar em CDs e levar para Portugal

ses são muito caros no Brasil. Os bra­sileiros não são distribuídos lá. Além disso, também há um problema de língua. A sintaxe do português falado e escrito no Brasil não é muito agra­dável aos portugueses. A forma como os portugueses escrevem, por outro lado, não é muito agradável para o leitor brasileiro.

~ • Há exceções? r.::: ;~_~,J .\ g ~- ~ - Sim. Como historiador, eu

pertencia à cadeira de História Moderna e Contemporânea, na Universidade de São Paulo. Oca­tedrático era o professor Eduardo de Oliveira França. Ele achava que, para se fazer bem a história do Brasil, era necessário ligá-la, entrelaçá-la, à história de Portu­gal e da Europa. Em sua opinião, era difícil fazer a história do Bra­sil, sobretudo nos tempos coloni­ais, nos séculos iniciais da coloni­zação, sem enlaçar a história do Brasil com a da Europa. Para ele, a idéia de que alguém pudesse fazer só história do Brasil, sem conhe­cer a história de Portugal, era uma idéia estúpida. E efetiva­mente não é?

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• E qual é esse contra-resgate? Planta de fortaleza no litoral de São Paulo

• Houve algum resultado concreto desse trabalho?

-No Brasil, há documentos funda­mentais para a história de Portugal. Eles dizem respeito, principalmente, ao tempo em que a Corte Portuguesa se instalou no Brasil, com dom João VI. Eles ficaram, por exemplo, na Bi­blioteca Nacional do Rio de Janeiro. Os portugueses nem tinham noção de quantos documentos eram, nem de quais os interessavam. Então, ao fazermos o resgate de lá para cá, tam­bém fizemos um resgate da docu­mentação que está no Brasil e que in­teressava aos portugueses. Esses documentos vão permanecer aqui. Os portugueses estão fazendo agora o levantamento no Rio de Janeiro. O total chega a perto de 100 mil docu­mentos. Os portugueses ainda não

PESQUISA FAPESP

será equivalente ao dos que eles nos irão repassar.

• Quais são as perspectivas de um tra­balho conjunto entre historiadores brasileiros e portugueses, inclusive a partir de toda essa documentação que vem sendo resgatada?

-Bem, durante muito tempo houve um distanciamento. Brasileiros e por­tugueses se mostraram arredios, uns com relação aos outros. São poucos os livros de historiadores brasileiros que se encontram em Portugal. De forma semelhante, são poucos os li­vros de historiadores portugueses en­contrados no Brasil. Há problemas editoriais sérios. Os livros portugue-

- O próprio professor França co­meçou a fazer uma tese sobre a mo­narquia portuguesa. Trata-se de um estudo considerado até hoje como

-de alto nível em Portugal. É reco­nhecido, em Portugal, como um ex­celente trabalho sobre o Estado monárquico português e sobre os fundamentos do Estado português. Ele fez outro trabalho, sobre a res­tauração portuguesa, que até hoje é considerado um clássico. Além dis­so, como na época os catedráticos ti­nham muita força, ele empurrava seus assistentes para prepararem te­ses sobre os assuntos nos quais tinha mais interesse.

• Há exemplos?

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- Os professores que fize­ram parte dessa cadeira se­guiam à risca o menu do mestre França. O professor Fernando Antônio Navais, por exemplo, fez um estudo, chamado Portugal e Brasil na Crise do Antigo Sistema Colo­nial, um estudo do sistema colonial e do império portu­guês, sobretudo nas suas re­lações com o Brasil, que é considerado um clássico. Outro historiador conhecido, Carlos Guilherme Mota, tam­bém estudou as relações en­tre Brasil e Portugal, especial­mente pelas atitudes de inovação e as questões relaci­onadas com a Independência e a Revolução Pernambucana de 1817.

• E o senhor?

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- Sim, o pessoal que fez a adaptação é muito compe­tente. O resultado é um texto acessível para um público de estudantes brasileiros. Esse é um caso. Outros certamente virão. Eu mesmo acabo de escrever um livro em conjun­to com o historiador portu­guês José Penha Arriga. Ele se chama Historiografia Luso­Brasileira Contemporânea.

• Na década de 1980, o senhor participou de uma espécie de projeto-piloto do Projeto Res­gate, não foi?

- Bom, também segui esse caminho. Tenho um estudo sobre o império luso-brasi­leiro que é uma quantifica­ção das relações comerciais

Carta sobre venda de negros de navio francês apreendido

- Se formos repassar essa história pregressa, vamos en­contrar muitas pessoas que tiveram consciência da im­portância dessa documenta­ção. Mas o movimento mais sistemático começou há cer­ca de dez anos, quando eu era diretor de Ciências Hu­manas e Sociais Aplicadas do

no contexto do império português. Esse trabalho, efetivamente, me levou a estudar não só Portugal, mas, so­bretudo, a Inglaterra. No contexto da formação da sociedade, do capitalis­mo, as relações envolvendo Brasil, Portugal e Inglaterra se tornaram privilegiadíssimas num momento es­sencial da vida brasileira, aquele que antecede a Independência.

• Isso continuou?

- Não. Depois da aposentadoria do professor França, percebemos que as pessoas estavam gradativamente abandonando esse campo. Era, então, necessário formar uma nova geração de pesquisadores interessados em Por­tugal. Foi assim que tomei uma série de iniciativas junto aos historiadores portugueses. Eles vieram ao Brasil, deram aulas, interessaram os alunos na história de Portugal, e vice-versa. Ultimamente, essa aproximação en-

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tre Portugal e Brasil cresceu muito. Cresceu a tal ponto que agora já é possível trabalharmos em conjunto.

• E as publicações?

- Ultimamente, os livros dos histo­riadores portugueses começaram a ser publicados no Brasil. A Editora da Universidade do Sagrado Coração de Bauru, por exemplo, publicou o livro História de Portugal. Trata-se de uma história de Portugal escrita por vári­os professores. É uma obra coletiva. Os principais historiadores portu­gueses fizeram sínteses de cada peda­ço da história de Portugal, dentro de sua especialidade. O importante é que esses historiadores aceitaram ser "traduzidos" para o português falado no Brasil. Então, o livro foi publicado com grafia usada no Brasil, não na de Portugal.

• O resultado ficou bom?

CNPq. A propósito de come­morar o centenário de acontecimen­tos como a Proclamação da Repúbli­ca e a Abolição da Escravatura, foram organizados vários eventos. Houve congressos, publicações de livros e documentos. Um acontecimento es­pecial, relativo à Inconfidência Mi­neira, foi a publicação da documen­tação do Arquivo Ultramarino relativa a Minas Gerais. Foram aber-

. tas cerca de 190 latas. O CNPq, na oportunidade, mobilizou recursos para que um pesquisador, o professor Caio Boschi, fosse a Portugal.

• E depois?

- Em 1994, o Ministério da Cultura encarregou Esther Bertoletti de fazer o trabalho em escala nacional. A Es­ther assumiu o bastão e distribuiu estí­mulos para que o trabalho fosse reali­zado nacionalmente. Em 1997 e 1998, achei que estava na hora de fazer o trabalho também em São Paulo.

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Joaquim Antero Romero Magalhães

O coordenador das comemorações do Quinto Centenário do Descobrimento do Brasil em Portugal é professor catedrático da F acuidade de Economia da Universidade de Coimbra. Foi deputado à Assembléia Constituinte de 1976, secretário de Estado da Orientação Pedagógica e presidente da Assembléia Municipal de Coimbra. É licenciado pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Obteve o doutorado, em História Econômica e Social, pela mesma universidade. Já lecionou como professor convidado na Universidade de São Paulo (USP).

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A diversidade também é importante Opiniões diferentes ajudam a estudar a história

Um dos principais histo­riadores portugueses, Romero Magalhães defende a diversidade de enfoques, diz que

a contribuição luso-brasileira passa pelas universidades e adverte que o pesquisador não precisa esperar pela documentação para abrir novas li­nhas no estudo da história.

• O que vem marcando, em Portugal, as comemorações dos 500 anos do Des­cobrimento do Brasil?

-Muito tem sido feito em Portu­gal para assinalar a efeméride dos SOO anos da chegada de Pedro Álvares Cabral a ter­ras que v1nam a ser parte do Brasil. Insti­tuições oficiais e uni­versidades muito em especial se preocupa­ram com isso. Mas não apenas. Funda­ções e outras entida­des privadas também procuraram assinalar a passagem desses pri­meiros cinco séculos de um imenso e por­tentoso país que fala português. Não tanto apenas quanto ao que interessa à história, mas também ao que nos pode interessar, como pessoas e como cidadãos.

marina relativos ao período colonial do Brasil se vincula com as comemo­rações do Descobrimento, do ponto de vista de Portugal?

-A Comissão Nacional para asCo­memorações dos Descobrimentos Portugueses, entidade governamen­tal, colaborou ativamente nesse pro­cesso. Foi entendido que o que im­porta é o que fica feito e publicado. Importa tudo o que contribua para o alargamento dos nossos conheci­mentos sobre um passado comum. Isso explica, a aposta feita no pro­jeto, que da parte do Brasil se cha­ma "resgate", e da parte portuguesa, "reencontro".

• Como o trabalho de catalogação e microfil­magem dos documen­tos do Arquivo Ultra-

Homens pardos de confraria requerem licença ao rei

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• Com a catalogação e a microfilma­gem dos documentos, um número maior de historiadores brasileiros terá condições de realizar mais estudos so­bre o período colonial do Brasil. Os historiadores portugueses também se sentiram estimulados com as come­morações do Descobrimento e propu­seram novos trabalhos, tomando por base os documentos do Arquivo Ultramarino?

-O Arquivo Histórico Ultrama­rino é apenas uma parte do que foi o arquivo do Conselho Ultra­marino, entidade que durante os séculos 17 e 18 era a responsável pelo aconselhamento do rei ab­soluto de Portugal em matéria de administração do ultramar. Os investigadores brasileiros e portugueses sabem-no. E não precisaram da microfilmagem para iniciarem a busca de docu­mentação em tal acervo.

• Esse trabalho pode ser ampliado?

- Sim. É bom não esquecer que outros fundos, como os da Torre do Tombo, os dos municípios (como Lisboa, Porto, Viana do Castelo, Braga, ou muitos outros)

pectativa quanto a esses documentos e quais perspectivas eles abrem para a historiografia portuguesa?

- Toda a documentação disponível é bem-vinda para os historiadores. Mas não devem estes esperar por no­vos documentos para se lançarem nas pesquisas que lhes interessam. E,

e misericórdias são indispensá- Animais do Maranhão: no século 17 veis para alargar as nossas fontes de informação. E, como não, os arquivos dos tabeliães. Indispensá­veis. Todos. Veja-se os recentíssimos trabalhos de Ângela Domingues, de André Ferrand de Almeida ou de Má­rio Olímpia Ferreira, que utilizam com apurada minúcia materiais que estavam depositados em arqmvos portugueses e brasileiros.

• Como uma espécie de contrapartida à liberação para a microfilmagem e envio ao Brasil dos documentos do Ar­quivo Ultramarino de Lisboa, os histo­riadores portugueses poderão inventa­riar e microfilmar documentos do período colonial que permanecem em arquivos brasileiros. Só na antiga capi­tania do Rio de Janeiro, existem 100 mil desses documentos. Qual sua ex-

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sobretudo, há que não esquecer o que há muito nos ensinaram Marc Bloch e Lucien Febvre: sem história, não há documentos. O inverso não é ver­dadeiro.

• Qual a visão predominante da histo­riografia portuguesa sobre as navega­ções e o descobrimento do Brasil?

- Em Portugal não há uma visão predominante sobre a historiografia. Há visões, plural mais rico e mais en­riquecedor. As divergências são pos­síveis e desejáveis. Por isso, há quem teime em pensar que a chegada de Pedro Álvares Cabral ao Brasil foi in­tencional e os que persistem em refu­tar essa possibilidade. No que todos

concordam é na necessidade de estu­dar a construção do Brasil, muito mais do que a sua descoberta. Não vale a pena pensar em descobrir do­cumentos sobre o que se terá passado em 1500. Eles até podem vir a apare­cer. Mas não será muito provável que isso aconteça.

• Particularmente, o que o senhor espera quanto ao desenvolvimento de estudos históricos conjuntos de Brasil e Portugal?

- Feliz ou infelizmente, as pes­quisas históricas passam sobre­tudo pelas universidades. Tudo correrá bem se entre as universi­dades portuguesas e as brasileiras se estabelecerem linhas de inves­tigação comuns ou, pelo menos, convergentes. E é bom que assim seja. O contributo do conheci­mento do outro é sempre parte indispensável do nosso próprio conhecimento.

• Em que medida a relação de Por­tugal com o Brasil, sua ex-colônia, continuou a influenciar a história portuguesa depois da Independên­cia, em 1822?

- Até cerca de 1960, o Brasil foi o maior "importador" de emi­grantes portugueses. Alguns mi-

lhões de portugueses e seus descen­dentes continuam a ter importância. Isto diz tudo.

-• Quais as principais tendências hoje da historiografia em Portugal? Há uma relação maior com a história das mentalidades ou são seguidas outras linhas, como, por exemplo, a funda­mentação econômica da história?

- O tempo das tendências de um só sentido já não têm audiência. A his­toriografia portuguesa continua plu­ral, variada nas suas inspirações teó­ricas e interesses empíricos. E, como sempre, há que distinguir entre bons e maus historiadores. Porque em to­das as correntes sempre os há.

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Fernando Antonio Nova is

Um dos mais conhecidos historiadores brasileiros, Novais é pesquisador do Núcleo de Estudos Econômicos do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Foi professor da Universidade de São Paulo (USP), instituição onde se formou em Geografia e História, em 1957, e obteve o doutorado em ciências, em 1973. É autor de diversas obras. É dele a obra Portugal e Brasil na Crise do Antigo Sistema Colonial e a organização do trabalho História da Vida Privada no Brasil, editado em quatro volumes em 1997

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Ter sido colônia é a diferença do Brasil Cada país tem características que o tornam único

Planta da Igreja Matriz de Vila do Desterro: Santa Catarina, 1747

Para Fernando Novais, as descobertas não termi­naram. Milhares de docu­mentos, inclusive os origi­nais de Os Lusíadas, como

foram escritos por Camões antes de serem submetidos à censura, ainda esperam nos arquivos de Lisboa.

• Na sua tese de doutorado, o senhor trabalhou com documentos de entre 1777 e 1808. Foi muito difícil achar es­ses documentos?

- A posição da documentação em meu trabalho não se distingue em nada de outros trabalhos de história. É característica dos trabalhos de his­tória estarem centrados na docu­mentação. Todos os trabalhos são ba­seados em fontes de documentação diretas. Elas não têm, necessariamen­te, de ser inéditas. Mas há uma tradi­ção, sobretudo quando se trata de te-

ses, de que se deve sempre trabalhar com fontes primárias.

• A documentação, então, é central?

- Sim, a documentação sempre ocupa uma posição central nas pesqui­sas de história, mais do que em outras áreas. Em todas as ciências sociais, a

- documentação equivale à pesquisa empírica nas ciências exatas, à expe­rimentação na química. Na história, é ainda mais fundamental do que nas outras ciências sociais. Certamente, a história é menos ciência do que elas. Além de tentar explicar o aconteci­mento, ela procura reconstituir.

• Por que a história é menos ciência do que as outras ciências sociais?

- Porque seu objeto não é perfeita­mente definível. Como dizem os ma­nuais de metodologia científica, duas

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coisas caracterizam qualquer ciência: a delimitação de um objeto e a ade­quação de um método a esse objeto. Qual é o objeto da história? Tudo o que acontece ao ser humano, em qual­quer época e em qualquer lugar. Logo, o que caracteriza esse objeto é ele não ter limites.

• Como era na época o Arqui­vo Ultramarino?

ta do arquivo para o catálogo. Mas, por mais que a catalogação seja bem feita, e considero esta do Resgate muito ampla, ela não destrói de todo a descoberta no Arquivo, pois há coi­sas que ficam fora do lugar. O pesqui­sador, por exemplo, está mexendo na documentação do Ministério do Rei­no e acha uma coisa sobre o Brasil

mães. Ele o enviou para a censura, antes de ser publicado. Na época, a Inquisição arquivava os originais, in­clusive para determinar se não fora feita alguma mudança quando o tex­to era publicado. Os historiadores de Literatura já indicaram vários versos de Os Lusíadas que devem ter sido modificados pela censura. Como?

Porque se trata de um assun­to perigoso e o verso está num patamar de qualidade muito inferior ao de Camões.

• Até hoje, então, não se acha­ram os originais de Camões?

- Não. E ele está lá, no Ar­quivo Nacional de Lisboa, na Torre do Tombo. Só os pro­cessos da Inquisição são de­zenas de milhares, cada um com cerca de 2 mil páginas. Além dos processos, há ou­tros textos relativos à Inquisi­ção. Creio que só 10% dos processos estão catalogados. Imagine o que vai acontecer quando alguém, finalmente, descobrir os originais de Ca­mões. Além do valor de um documento escrito e assina­do pelo próprio Camões, sa­beremos, finalmente, como eram os versos realmente es­critos por ele.

-Não fiz a pesquisa somen­te nesse arquivo. Trabalhei em outros arquivos portu­gueses, em Lisboa e em Évo­ra, e em arquivos brasileiros. Mas, no conjunto, o mais usado foi o Arquivo Ultra­marino. Hoje, ele está muito melhor organizado. Havia na época um índice de códices, preparado por uma historia­dora alemã. Eram mais de 3 mil códices. Não era um ca­tálogo, que descreve o que há em cada códice, era simples­mente um índice. Além desse material, havia a chamada documentação avulsa. Eram maços ou caixas, com indica­ções sumárias, o local e o pe­ríodo. Uma enorme parte da documentação não estava nem em maços. Provavel­mente, estava totalmente iné­dita. Não existe mais isso. Todo o material está pelo menos dividido por área. Mas, na época, boa parte do

O governador das Minas: plano contra extravios de ouro • Dos vários documentos existen­tes no Arquivo Ultramarino, quais o senhor achou mais inte­

que consegui foi fruto de um autên­tico trabalho de garimpo. Um bom, catálogo é muito importante. Facilita muito a pesquisa. Chega-se já saben­do o que se vai pedir, não é mais pre­ciso garimpar. Mas desaparece um certo prazer que o historiador tem, de ficar garimpando coisas num arquivo até achar algo interessante.

• A catalogação, então, diminui o en­tusiasmo do pesquisador?

- Não, de forma alguma. A catalo­gação transfere o prazer da descober-

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que deveria estar no Ministério do Ultramar. Se até hoje as coisas são postas no lugar errado, imagine na­quela época.

• Então sempre poderá haver uma descoberta?

- Sim. Além disso, há arquivos que ainda não estão totalmente cataloga­dos. Imagine que há entre 35 mil e 40 mil processos da Inquisição em Lis­boa. Num desses processos deve estar o original de Os Lusíadas, escrito pela própria mão do poeta Luís de Ca-

. ressantes para sua pesquisa?

- Há vários tipos de documento nesse arquivo. Existem, inclusive, do­cumentos totalmente avulsos, que ninguém sabe como foram parar lá. Só com a garimpagem será possível avaliá-los. Muitos são cartas pessoais. Nesse sentido, a catalogação facilita muito o trabalho.

• Quais são os documentos básicos?

- Creio que são as atas das reuniões do Conselho Ultramarino. Esse con-

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selho era o órgão da administração portuguesa equivalente a um Minis­tério das Colônias. Foi criado pouco depois de 1640, quando houve a res­tauração e Portugal se separou da Es­panha. A restauração ocorreu sem maiores problemas nas colônias. Mesmo assim, o novo governo queria consolidar o poder sobre as colônias. Outros documen­tos importantes são as consultas dos benefícios, as con­sultas do Conse­lho Ultramarino.

• O que são essas consultas?

da colônia, vai para o Conselho. Só chega ao rei pelo do Conselho. Os conselheiros se reúnem, discutem e encaminham o problema para o rei. Muitas vezes, há reclamações que se­guem diretamente para o soberano, pois a gente da alta nobreza podia se dirigir pessoalmente ao rei. Mas o rei encaminhava tudo ao Conselho.

tomar tais e tais providências': O que acontece é o inverso. O rei é quem está consultando. Mas o rei não pode consultar nem pedir o conselho de ninguém. Esses documentos são cha­mados de consultas. Falamos, por exemplo, na "Consulta do Conselho Ultramarino de março de 1749 sobre tal assunto':

• A correspon­dência dos gover­nadares não era dirigida ao rei?

- É um docu­mento de assesso­ria. No regime absolutista, a ter­minologia reflete o conceito do po­der. Por exemplo, a carta régia é um alvará com força de lei. Os docu­mentos legais assi­nados pelo rei ti-

Planta do Forte de Nossa Senhora dos Remédios, Ilha de Fernando de Noronha: 1739

-Sim, mas ia para o Conse­lho. As únicas exceções ocor­nam com pa­rentes do rei ou com pessoas de quem o re1 gos­tava muito. A correspondên­cia também é muito impor­tante porque re­gistrava os pro­blemas que

nham uma introdução informando o assunto sobre o qual tratavam. A pas­sagem da descrição do assunto para a determinação é feita pela expressão "sou servido a': Geralmente, "sou ser­vido a ordenar e como rei o faço': A introdução é uma justificativa por­que o rei é generoso e acede em dar explicações. Mas ele não precisa ex­plicar nada. O motivo pelo qual ele determina é a sua vontade, por isso é servido a dar uma ordem.

• Essas justificativas são longas?

-Às vezes, sim. A introdução é sem­pre muito importante, porque define o problema.

• Como era o processo?

- Toda a correspondência dos go­vernadores de capitanias, governado­res-gerais e vice-reis, no período final

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Como o rei, por definição, sabe tudo, ele é rei por direito divino, é represen­tante de Deus na Terra, não pode ser instruído, nem pode ser assessorado.

• Ele sabe tudo?

- Sim. Mas, na prática, o rei precisa da assessoria do Conselho. Às vezes, ele é um menino, às vezes ele é um débil mental. Mas a terminologia tem de estar de acordo com o conceito. É o rei que é consultado, não o contrá­rio. Digamos que chega ao conheci­mento do rei que jesuítas e colonos estão brigando no Maranhão por causa do preço dos estábulos. O rei, então, envia o problema ao Conselho Ultramarino, com a ordem: "Consul­tem-me sobre esse assunto". Os con­selheiros, então, escrevem longos re­latórios, onde diziam: "De fato constatamos e consultamos Sua Ma­jestade sobre se talvez não se devesse

ocornam nas capitanias. É interessante comparar a correspondência com as leis que eram promulgadas. O Conselho Ul­tramarino também cuidava de leis. Nem toda a legislação do período co­lonial já foi publicada.

• Há mais material?

- O material das instruções é muito interessante. Todos os vice-reis que serviram no Brasil, de 1763 a 1811, receberam instruções e fizeram as re­sidências. As residências são docu­mentos nos quais o vice-rei presta con­tas à Coroa. Quando a residência não era aprovada, ele podia até ser preso.

• Quem aprovava, o rei?

-Era o Conselho Ultramarino, que "consultava" o rei. Localizei todas as instruções no Arquivo Ultramarino. Antes, só duas ou três tinham sido

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publicadas. Algumas estavam catalogas, outras não. Consegui localizar todas e as analisei, uma por uma. Não consegui todas as residências. Mas o que obtive foi suficiente para ter uma visão geral. Além das ins­truções e residências, há os re­latórios. Um dos mais impor­tantes é do vice-rei marquês de Lavradio. Ele foi publicado num dos primeiros números da revista do Instituto Históri­co e Geográfico Brasileiro, em 1841.

• O senhor vê a investigação do período colonial brasileiro como uma necessidade para compreen­der mais profundamente a cons­trução do Brasil?

a da América do Norte. É por isso que o estudo da colônia é fundamental, porque esse estu­do é o estudo da formação do Brasil. Nossa formação é uma formação escravista. É colonial e escravista. Quanto melhor compreendermos isso, melhor compreenderemos o que somos. É a base da nossa sociedade.

• E daí?

- Todo país, toda nação, quando faz sua história, deve procurar aquilo que é específi­co. O específico, no caso do Brasil, é ter sido uma colônia. É isso que diferencia o Brasil de outros países e aproxima o Brasil dos países da América. É

Mato Grosso: proibição para a compra e venda de mulas

- Daí que as pesquisas rela­cionadas com o período colo­nial são absolutamente indis­pensáveis. Qualquer estudo sobre o Brasil contemporâneo, o Brasil nação, tem embutido uma visão da colônia. Não se pode estudar o Brasil atual sem uma visão da colônia, queira ou não queira, seja ela melhor ou pior. A visão do Brasil nos séculos 19 e 20 será melhor ou pior, conforme os estudos dos historiadores sobre a colônia. Sejam estudos de historiadores ou de cientistas sociais.

o que distingue o país, também, dos países da Europa. Se perguntarmos o que é específico de Portugal como nação, é o de ter sido um feudo que se transformou num reino e, mais tarde, num Estado moderno. A Fran­ça, por outro lado, é formada por feudos que se juntaram. Portugal é um feudo que se destacou, a França é um conjunto de feudos que se agre­garam. A Espanha não é uma junção de feudos, mas de reinos. Cada país tem seu processo de formação.

• E o Brasil?

- O específico do Brasil é ter sido uma colônia. Antes de ser Brasil, era uma colônia de Portugal. Se a colônia se chamava Brasil ou não, não im­porta. Não era o Brasil nação, era o Brasil colônia. Aliás, o nome Brasil só foi aplicado a toda a colônia depois de certo tempo. O norte foi chamado várias vezes de Estado do Grão-Pará

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e Maranhão e o nome Brasil só se aplicava ao sul. O Brasil, assim, é uma colônia que se transformou numa nação, algo diferente de um feudp que se transformou em reino. A vin­culação de uma colônia com sua me­trópole não é a mesma de um feudo com seu senhor. A relação do feudo com o senhor é uma relação desuse­rania, a de uma colônia com sua me­trópole uma relação de soberania. Um feudo não se torna independente. Ele se torna autônomo. A colônia, sim, se torna independente. Por isso, o Brasil teve uma independência.

• Isso aproxima o Brasil dos Estados Unidos e da América Espanhola.

- Sim, essa é a formação dos países da América em geral. Mas precisamos ver também que tipo de colônia o Brasil era de Portugal. Isso nos apro­xima mais da colonização espanhola e da encontrada nas Antilhas do que

• E o papel de Portugal?

- O estudo da colonização portu­guesa é fundamental. O Brasil é uma colônia que virou nação. Para estu­dar a colonização, é essencial ter uma documentação, a documentação do Arquivo Ultramarino, do qual se está fazendo o resgate. Mas também é preciso dizer algo que talvez distoe das comemorações. Toda documen­tação é importante. Ela precisa ser conhecida. Mas o conhecimento de­finitivo de uma realidade não se esgo­ta com o estudo da sua documentação. Por quê? Porque estamos falando de história, não de peixes, pedras ou ár­vores. Se fosse assim, quando todos os documentos do Arquivo Ultra­marino estiverem lidos, não haverá mais história da colonização portu­guesa. Não é isso o que vai ocorrer. Os mesmos documentos podem ser lidos de maneira diferente, a qual­quer momento.

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Rui Rasquilho

Professor de História, Rasquilho ocupa, desde 1995, o cargo de conselheiro cultural da embaixada de Portugal em Brasília. Faz parte desde 1994 do corpo especializado do Ministério dos Negócios Estrangeiros. É diretor do Instituto Camões no Brasil e membro do Instituto Histórico e Geográfico do Distrito Federal e da Academia Lusíada de São Paulo. Poeta, publicou seu primeiro livro de poesias, Do Lado Oposto do Tempo, em 1996, quando já estava em Brasília. O mais recente, O Limite do Fogo, saiu em 1998.

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A história é um patrimônio comum Brasileiros e portugueses podem colaborar mais

Historiador português Rui Rasquilho vê no Projeto Resgate um si­nal de aproximação dos pesquisadores dos

dois lados do Atlântico e usa argumen­to de peso para defender os trabalhos conjuntos: só o conhecimento da ver­dade para substituir os equívocos nas re­lações entre brasileiros e portugueses.

• Como as comemorações dos 500 anos da viagem de Pedro Álvares Cabral ao Brasil estão ajudando a desenvolver o conhecimento da história comum de portugueses e brasileiros?

- As comemorações conjuntas dos SOO anos do descobrimento do Bra­sil, unindo portugueses e brasileiros, trouxeram um importante estímulo à investigação histórica. De maneira particular, intensificaram o acesso de equipes brasileiras de pesquisa ao Ar­quivo Histórico Ultramarino de tis­boa. Uma parte substancial deste ar­quivo, importantíssima para a história do Brasil, estava ainda por ser estudada. Nem mesmo estava classi­ficada. Por isso, a S!Ja reorganização, levan­tamento e passagem para microfilme e CD-ROM são im­portantíssimos para futuras pesquisas.

- Cada vez mais, o Brasil e Portugal descobrem um ao outro. Cada vez mais, historiadores de ambos os paí­ses se encontram em congressos. Disso resulta que fazem investigações comuns, escrevem sobre a história dos dois países. A continuação deste trabalho conjunto será, a partir da conclusão do Projeto Resgate, feita a partir dos milhares de documentos agora colocados à disposição dos his­toriadores.

• Então esse projeto pode ser considera­do muito importante para o futuro?

- Desde que em 1943 se criou a Co­missão de Estudos dos Textos de His­tória do Brasil que nada de tão impor­tante havia sido feito nesse campo de estudos como o Projeto Resgate. As notícias de que o trabalho de micro­filmagem será ampliado são muito interessantes. Deve-se assinalar que não é apenas em Portugal que oBra­sil tem uma vasta documentação his­tórica sobre o seu passado. Em ou­tros países da Europa, na Holanda e

• Em que medida este trabalho, o Projeto Res­gate, poderá ser útil também para futuras colaborações entre Por­tugal e Brasil na área da história?

Pará: planta e alçada de um trem de artilharia

IS

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na França, sobretudo, há conjuntos de documentos muito importantes, que terão inegavelmente uma enor­me valia para a compreensão do pas­sado do Brasil.

• O trabalho de microfilmagem tam­bém facilitará o acesso dos historiado­res portugueses aos documentos do Ar­quivo Ultramarino? Podemos esperar novos estudos de histo­riadores portugueses, nos quais o material recolhido pelo Projeto Resgate será aproveitado?

- Não tenho qualquer dúvida de que os historiadores con­temporâneos, dos dois lados do Atlântico, poderão, a partir da microftlmagem sistemática dos documentos da época colonial do Brasil, vir a redesenhar no­vas teorias ou chegar a novas conclusões sobre a história co­mum luso-brasileira. Falo so­bre todos os documentos exis­tentes na Europa, não apenas os que estão no Arquivo Ultra­marino ou mesmo em territó­rio português.

decidida pela verdade. Compartilhar o passado é prestar um serviço ao fu­turo.

• Foi publicado recentemente um livro de um historiador português, Jorge Couto, sobre os primeiros anos do Bra­sil, chamado A Construção do Brasil. Esse livro seria um exemplo do apro-

• Qual é a situação atual do interesse de estudos sobre o Brasil por parte da historiografia portuguesa?

- É cada vez mais evidente o inte­resse dos pesquisadores portugueses sobre o Brasil. Ele aparece em diver­sas áreas do estudo da história. As publicações recentes demonstraram

de maneira muito clara o inte­resse que brasileiros e portu­gueses manifestam, em sucessi­vos colóquios e congressos bilaterais, sobre a divulgação mútua de sua história.

• Na sua opinião, como poderia ser alcançada uma maior arti­culação entre as investigações históricas portuguesas e brasilei­ras? Quais os grandes temas que deveriam ser estudados em pri­meiro lugar num projeto co­mum de pesquisas históricas, envolvendo Brasil e Portugal?

• Numa espécie de contraparti­da à abertura do Arquivo Ultra­marino para os pesquisadores brasileiros, os historiadores por­tugueses terão acesso a docu­mentos, inclusive aos relativos à administração portuguesa que permanecem em arquivos brasi­leiros desde a viagem de dom João

Ofício sobre o padre Nicolau, que exportava ouro em pó

- É inquestionável que du­rante cerca de 300 anos Brasil e Portugal viveram em comum. Melhor dizendo, o Brasil fazia parte do território português. Por isso, os projetas comuns luso-brasileiros são fundamen­tais para que se compreenda o nosso passado comum. Quan­to aos grandes temas, os novos levantamentos feitos por meio do Projeto Resgate vão com cer­teza indicar caminhos para no­vas e interessantes pesquisas.

VI para o Rio de Janeiro. O senhor acre­dita que esses documentos serão úteis para a historiografia portuguesa?

- A filosofia é a mesma. Isto é, só haverá benefícios para Portugal se as fontes e documentários existentes no Brasil forem colocados em Portugal, à disposição dos nossos historiado­res. O princípio do patrimônio co­mum, estabelecido pela Unesco para casos como este, é um modelo muito eficaz para que nos conheçamos me­lhor e acabemos com os equívocos, substituindo-os de maneira firme e

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veitamento de fontes çomuns, em Por­tugal e no Brasil?

-O livro do doutor Jorge Couto, da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, é provavelmente o mais importante estudo contemporâneo sobre a formação do Brasil e sobre a sua construção, antes e depois da che­gada dos portugueses. O doutor Jor­ge Couto trabalhou exaustivamente as fontes disponíveis e o seu texto é um testemunho evidente do trabalho de pesquisa que os historiadores cos­tumam realizar.

• Esses projetas precisariam ter um ca­ráter nacional?

-Não. É certo que muitos dos pro­jetas luso-brasileiros poderão ser es­taduais ou no mínimo regionais, tal a riqueza da documentação escrita le­vantada e tratada nos últimos anos. Também é certo que esse trabalho co­mum entre portugueses e brasileiros é de insuspeitado alcance cultural e histórico. Só não uso a palavra exem­plar porque se trata de um conceito que não é de meu particular agrado.

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Heloísa Liberalli Bellotto

A professora Heloísa chefiou, em Lisboa, a equipe encarregada do resgate dos documentos do Arquivo Ultramarino relativos à Capitania de São Paulo. Ela é professora do curso de pós-graduação do Departamento de História da Universidade de São Paulo (USP) e do curso de especialização em Arquivística do Instituto de Estudos Brasileiros, da mesma universidade. Formou-se e obteve o doutorado em História na USP. Tem ainda o grau de bacharel em Biblioteconomia e fez cursos de especialização em Arquivística na França, Espanha e nos Estados Unidos.

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Um Brasil com contornos mais nítidos Aumenta a consistência do retrato do país

Planta do novo palácio episcopal: São Paulo, 1743

Para a historiadora que chefiou o resgate dos do­cumentos referentes a São Paulo no Arquivo Ultra­marino, não se devem es­

perar informações espetaculares do Projeto. Mas está para vir um quadro muito mais claro ·e consistente do que era a vida e o jogo do poder no Brasil Colônia.

• Qual o ponto de partida para o tra­balho de descrição e microfilmagem dos documentos referentes à capitania de São Paulo existentes no Arquivo Ul­tramarino de Lisboa?

- Os trabalhos de descrição dos documentos referentes à Capitania de São Paulo começaram em 1998. Estavam dentro da seqüência da

programação do Projeto Resgate. Soubemos que teríamos de traba­lhar com duas vertentes. Uma era a revisão de um catálogo preexisten­te, finalizado e publicado em i954, por ocasião do quarto centenário da cidade de São Paulo pelo histo­riador Alfredo Mendes Gouveia. Seria feito o confronto entre o catá­logo e a documentação que ele des­crevia. A segunda parte do trabalho seria a descrição de outros docu­mentos, isto é, a elaboração de ver­betes descritivos do restante dos do­cumentos referentes a São Paulo. Esse material ainda não tinha sido submetido à descrição porque esta­va inserido, quando foi feito o traba­lho de Mendes Gouveia, em outros conjuntos. Estava em outros lugares do arquivo.

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• Havia muito material?

-As peças documentais descritas no catálogo totalizavam 5.113, e as inédi­tas, a serem trabalhadas, 1.383. Pri­meiro, fixamos e redigimos os verbe­tes. Depois, eles foram impressos e recortados. Numa etapa seguinte do trabalho, que já era da alçada dos

• O que é diplomática?

- Trata-se da área das ciências do­cumentárias que se ocupa não só da estrutura formal do documento e da sua natureza jurídica, mas que tam­bém analisa o seu contexto de produ­ção. Seu raio de ação desenvolve-se entre a actio, isto é, a ação, o fato, o

funcionários do Arquivo Ultrama­rino, esses verbe­tes foram presos aos respectivos documentos, pa­ra assim consta­rem na microfil­magem. Isso e a passagem dos fotogramas para CD-ROM foram atividades de gru­pos portugueses e brasileiros alheios à nossa equipe, que era encarre­gada apenas do trabalho científi­co propriamente dito.

@ -'i .

• Esse trabalho de descrição exige co­nhecimentos his-

Planta geral da nova Sé de São Paulo, em 1743

tóricos, mas também preparo em pa­leografia, em muitos momentos. É possível descrever um pouco o processo de um trabalho dessa natureza e as suas diversas etapas?

- A primeira parte é a leitura e análise dos documentos. Depois, vem o trabalho de síntese, aquele que conduz à elaboração de um ver­bete unitário de catálogo. O verbete, por sua natureza, precisa ser conci­so. Mas não pode esconder infor­mações necessárias à compreensão prévia do que a arquivística chama de estrutura e substância do docu­mento. Este trabalho, sim, tem as suas exigências. Além da necessida­de do conhecimento da história, há a necessidade de conhecimentos de diplomática.

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processo/procedimento jurídico-as­ministrativo, e a conscriptio, isto é, a sua concretização, enquanto veículo documental, válido para produzir efeito jurídico. Só fazendo uso desses conhecimentos o documentalista, ao redigir o verbete descritivo, será ca­paz de estabelecer aquele elo sufi­ciente e necessário entre o documen­to e o pesquisador.

• Quantas pessoas se envolveram no trabalho de descrição dos documentos de São Paulo e quanto tempo levou esse trabalho?

-Foram cinco os integrantes do Pro­jeto Resgate a compor a equipe para São Paulo. Dois eram arquivistas do Arquivo do Estado de São Paulo, his­toriadores e bolsistas do Conselho

Nacional de Pesquisas (CNPq), Elia­ne Bisan Alves e José Roberto de Sou­za. Havia também uma historiadora, mestranda em História do Brasil da Universidade Clássica de Lisboa e bolsista da Comissão Nacional dos Descobrimentos Portugueses de Por­tugal, a portuguesa Paula Gonçalves. Tínhamos ainda um historiador que

já atuara em ar­quivos brasileiros e no trabalho do Projeto Resgate pa­ra outras capita­nias, bolsista do CNPq e douto­rando em Paleo­grafia da Univer­sidade Nova de Lisboa, Gilson Sérgio Matos Reis. Finalmente, eu, professora da pós-graduação em História da Faculdade de Fi­losofia, Letras e Ciências Huma­nas da Universi­dade de São Pau­lo (USP) e do curso de Arqui-vística do Insti­tuto de Estudos

Brasileiros da USP e, além disso, bol­sista de pós-doutorado da FAPESP.

• Quanto tempo levou o trabalho?

- O ciclo completo do trato dos do­cumentos foi de 14 meses. Teve lugar de junho de 1998 a agosto de 1999. O cronograma cumprido foi de cerca de três meses para as tarefas iniciais, oito meses para a elaboração dos ver­betes e três meses para a revisão final, que incluía correção de texto, ajustes topográficos, equivalência de nota­ções (chamadas de cotas, na termi­nologia arquivística portuguesa) e a substituição de unidades de arquiva­mento, as capilhas.

• Há fatos e situações novas relatados nesses documentos? É possível descre-

PESQUISA FA PESP

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ver descobertas ou curiosidades neles reveladas?

- O que o Projeto Resgate traz de novo é o que poderíamos chamar de um certo preenchi­menta, uma certa reintegração entre os cheios e os vazios no tecido esgarçado da história. Foi com essa expressão que al­guém já adjetivou aquela cons­trução que o historiador vai elaborando, ao amalgamar os dados obtidos nos documentos com a sua própria percepção e compreensão dos momentos estudados e a partir, mesmo, das outras ferramentas que fa­zem parte da sua formação profissional. No ponto de vista do Projeto Resgate, não interes­sa tanto dizer que ele traz à luz fatos ou situações antes não co­nhecidas, descobertas ou cu­riosidades, e sim afirmar que ele torna a história do Brasil colonial mais consistente, me­nos permeável, mais nítida em seus contornos e mais suscetí-

Consulta ao príncipe sobre terras no sul do Brasil

vel de ser entendida numa macrovi­são de espaço, tempo e circunstân­cias. Isso, a meu ver, é infinitamente mais importante.

• Ainda há espaços não cobertos?

-É preciso ter-se em mente que o Arquivo Histórico Ultramarino cus­todia os documentos produzidos, re­cebidos e acumulados pelo Conselho Ultramarino e pela Secretaria de Es­tado dos Negócios da Marinha e Do­mínios Ultramarinos, no exercício das suas funções, no período em que existiram. Não é um arquivo total da história do Brasil, mesmo porque isto não existe, os arquivos são sem­pre institucionais. Por exemplo, o Conselho Ultramarino só foi forma­do depois da restauração, depois que Portugal recuperou sua independên­cia da Espanha. Além disso, ele não cobria todas as áreas das relações en­tre o Brasil e a administração de Lis­boa. Nesse sentido, ali não estão, por

PESQUISA FAPESP

exemplo, os atas das chancelarias, os atas dispositivos da Coroa, os regis­tras das outras agências governamen­tais do governo central. Também não se encontram os atas da área judiciá­ria, da área financeira e da área mlli­tar, mesmo quando dizem respeito às colônias. Estes documentos, em Por­tugal, acham-se nos arquivos nacio­nais da Torre do Tombo, no arquivo histórico do Tribunal de Contas e em vários outros arquiyos.

• O que há, então, nesse trabalho?

-O que vamos encontrar no Arqui­vo Histórico Ultramarino é o pulsar administrativo, é o dia-a-dia da go­vernação colonial. Isso porque o Conselho Ultramarino, além de estu­dar relatos, requerimentos e petições, faz análises e emite as consultas, que são pareceres elucidativos para as re­soluções a serem baixadas pelo rei. Fazia isso, além de exercer outras fun­ções administrativas que lhe foram

delegadas, relativas ao manejo dos domínios ultramarinos. Percorrer a documentação que foi objeto do Projeto Resgate é flagrar, no seu real tempo e lu­gar, as atitudes e comporta­mentos dos provedores, ouvi­dores, governadores, vice-reis e capitães-generais, sargentos­mores, oficiais das câmaras municipais e, sobretudo, pes­soas, sejam funcionários civis, militares ou eclesiásticos, se­jam povo simplesmente. É acompanhá-los, nos relatórios formais, nas queixas e solicita­ções, nas intrigas e prestação de contas, nas obediências e deso­bediências ao governo metro­politano. Também é possível detectar, de forma inequívoca, as reações desse governo me­tropolitano, em suas mais va­riadas nuances, durante quase 200 anos.

• Como historiadora, como a senhora avalia o Projeto Res­gate e as possibilidades de estu-

do que se abrem para os historiadores brasileiros?

- Como historiadora que, para sua tese de doutoramento, anos atrás, utilizou largamente a documentação do Arquivo Histórico Ultramarino e ainda a vem utilizando, compreendo quanto o Projeto Resgate alarga as possibilidades da pesquisa no mate­rial existente nesse arquivo. Os novos dados agora revelados e a facilidade de acesso representada pelo suporte em microfilme e em CD-ROM com­plementam informações e respon­dem a indagações que, durante anos, haviam ficado sem resposta. Além disso, vai ser possível a pesquisa qua­se que simultânea em documentos das várias antigas capitanias brasilei­ras, o que era bastante complicado de ser feito no recinto do próprio arqui­vo, como é natural. Ora, isto facilita enormemente a confrontação de da­dos, em qualquer momento em que ela se fizer necessária.

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• Como a senhora vê a atual si­tuação da historiografia brasi­leira?

tante ampla a pesquisa sobre a história.

• Como assim? - A historiografia brasileira, durante muito tempo, de certo modo, deixou de lado a histó­ria colonial, isto é, a história luso-brasileira dos séculos 16 ao 19. Não sei se esta mudança ocorreu pela oportunidade de revisitação proporcionada pe­las comemorações dos SOO anos do Descobrimento do Brasil, ou se apareceu, nos últi­mos tempos, um esforço volta­do para aquele período da nos­sa história. Havia um problema a mais. Os estudos de história colonial tinham ficado marca­dos pela sua inserção num tipo de historiografia tradicional, positivista, pouco científica e, num certo período, muito liga­da, em suas publicações e em seus congressos e seminários, ao próprio salazarismo, o go­verno de tipo ditatorial que do­minou Portugal da década de

Carta reclama da falta de trilha para minas de Cuiabá

- No momento em que se torna senhor dos processos ad­ministrativos, que aprende como se originam, atuam e vigoram os atos normativos, comprobatórios e de informa­ção, o historiador pode ilumi­nar sua própria análise e fazer generalizações. Um dos inte­grantes da equipe de São Paulo do Projeto Resgate, Gilson Sér­gio Matos Reis, está preparando seu doutorado, na Universida­de Nova de Lisboa, justamente na área da diplomática, com uma tese sobre o funciona­mento do Conselho Ultrama­rino, nos seus 70 anos iniciais. Ele analisa toda a legislação que comanda a empresa da co­lonização de Portugal, dos meados do século 17 aos iní­cios do 18. A tese vai levantar e

1930 à de 1970. A atual "saúde", se me for permitido usar essa expressão, que encontro na historiografia colo­nial, será sensivelmente beneficiada pelo Projeto Resgate.

• Quais áreas ou temas serão mais be­neficiados?

-Abrem-se na área da história do Brasil possibilidades de pesquisa em campos antes pouco explorados. Posso citar o direito administrativo luso-brasileiro, as relações sociais en­tre os colonos e os funcionários vin­dos do reino, as disputas de jurisdição geopolítica entre sesmarias, comar­cas, distritos, municípios, capitanias e governos gerais. Vamos poder tam­bém estudar melhor as lutas pelo po­der entre as autoridades delegadas, sobretudo entre capitães-generais e ouvidores ou bispos, entre provedo­res e ouvidores, entre estes e os juízes de fora, etc., questões muito freqüen­tes na documentação do Projeto Res-

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gate. E não serão só os historiadores os que vão ganhar mais recursos. Ou­tras áreas do conhecimento também terão suas pesquisas facilitadas.

• Com a colaboração de pesquisadofes dos dois países?

- Tudo isso poderá ser objeto de pesquisas conjuntas. Na área da di­plomática histórica, que tão pouco tem sido alvo de estudos teóricos ou aplicados no Brasil, há todo um campo virgem a explorar. O estudo do funcionamento das instituições, sua base legal, os documentos que são produzidos, recebidos e acu­mulados no seu processo decisório não um exemplo. Os interessados poderiam analisar a estrutura for­mal de cada espécie ou tipo de do­cumento, além de sua tramitação habitual ou homogênea, desde a gê­nese da conscriptio até a consecu­ção final pretendida pela actio. Isso viria a enriquecer de maneira bas-

descrever a trama de docu­mentos entre a colônia e a metrópo­le, os contextos de produção, a tra­mitação e o arquivamento final dos documentos ascendentes (dos súditos para a Coroa) e dos docu­mentos descendentes (da Coroa pa­ra os súditos).

• O que podemos concluir?

- Esses estudos revelarão, mais do que as hipóteses há muito levantadas pelos historiadores, que houve, segu­ramente, nas relações entre o Estado português e a colônia brasileira, uma governação legal, aparente, controla­da e sobreposta. Mas nem por isso ela era mais poderosa do que uma outra, que funcionava nas entrelinhas, nos bastidores. Essa autoridade estava à margem dos textos. Mas podemos detectar sua presença até por esses mesmos textos. Contribuir para des­vendar toda essa trama é o fascinante trabalho que está à espera dos usuá­rios do Projeto Resgate.

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Esther Caldas Guimarães Bertoletti

A coordenadora técnica nacional do Projeto Resgate é formada em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e em Jornalismo pela PUC da mesma cidade. Fez outros cursos em Buenos Aires, Roma e na Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro. Como consultora da Fundação Ford, coordenou e implantou o Plano Nacional de Microfilmagem de Periódicos Brasileiros, trabalho pelo qual recebeu vários prêmios. Foi diretora de vários departamentos da Biblioteca Nacional e diretora substituta do Museu do Índio do Rio de Janeiro.

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Os pesquisadores diante de um desafio Chegou a hora de repensar a história da colônia

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No século 18, o Rio de Janeiro torna-se importante porto e capital da colônia

Coordenadora técnica na­cional do Projeto Resgate acha que a nova facili­dade de acesso aos dow­mentos sobre o período

colonial vai obrigar os historiadores a examinar outra vez fatos e interpre­tações e fazer surgir opiniões diver­gentes sobre o mesmo assunto.

• O trabalho de registro dos documen­tos do Arquivo Histórico Ultramarino só começou agora?

-Não, ele vem de muito longe. Co­meçou no século 19. Mas os pesqui­sadores que iam a Lisboa não tinham uma concepção de arquivista de his­tória, de fazer verbetes, como agora. Eles copiavam ipsis litteris os docu­mentos. Iam ao Arquivo Ultramari­no, passavam os olhos pelo material, achavam um documento curioso ou interessante e então o copiavam inte-

gralmente, sem fazer um resumo. Um desses pesquisadores foi o poeta Gonçalves Dias. Em várias cartas, ele se queixou do trabalho. Escrevia, por exemplo: "Não suporto mais, minha mão está muito cansada':

• Isso continuou por muito tempo?

- No começo do século 20, com­preendeu-se que seria impossível copiar à mão todos os documentos. Por essa altura, nem 5% do que ha­via tinha sido copiado. Só no Arqui­vo Ultramarino, são 3 milhões de pá­ginas manuscritas. Se formos contar os outros arquivos portugueses, mais o que há na Holanda, na Fran­ça, na Itália, o total deve ultrapassar os 5 milhões. Por mais que se man­dasse gente para Lisboa, o trabalho não terminaria.

• O que se fez, então?

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-Passou-se a contratar pesquisado­res portugueses, como Castro de Al­meida e Mendes Gouveia, com ins­truções para que fizessem resumos. Mas, em vez de fazer sumários bre­ves, eles faziam resumos de três ou quatro páginas. Muitas vezes, trans­creviam todo o documento e o junta­vam ao resumo. Veja o exemplo do Rio de Janeiro. Ele tem, no total, 414 caixas. Castro de Almeida conseguiu completar os resu­mos de apenas 88. Todas as outras 326 caixas estão sendo feitas agora.

• Como se trabalha atual­mente?

- Faz-se um resumo breve. Um verbete de São Paulo, por exemplo, diz: "ofício do go­vernador tal ao secretário tal, comentando sobre a epide­mia de bexiga e pedindo a chegada imediata de remé­dios para atender a popula­ção': Agora, basta o resumo, pois temos a íntegra do docu­mento em microfilme.

• Qual é a previsão para o fim dos trabalhos?

me, quando no Arquivo Ultramarino usamos cerca de 3 mil. Também va­mos copiar os documentos da Casa da Suplicação, que recebia todos os processos. Com esses dois conjuntos, o da Inquisição e o da Casa da Supli­cação, pretendemos encerrar a massa documental em Portugal.

• O trabalho estará completo?

Caio ( . Boschi (Cnord.)

do preparado?

- Esperamos terminar até o fim deste ano o Guia de Fontes para a História do Brasil Holandês. Será uma lista dos arquivos holandeses com documentação sobre o Brasil. Logo depois, talvez ainda em 2000, sairão trabalhos semelhantes sobre França, Espanha e Itália. São países que tive­

ram uma aproximação muito grande com o Brasil. Veja, por exemplo, o caso da França Antártica. A partir desses guias, vamos identi­ficar os grandes acervos de documentos, para que eles, também, sejam microfil­mados.

• Este trabalho já está muito adiantado?

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- O Projeto Resgate de Docu­mentação Barão do Rio Bran­co tem duas etapas. A pri-

O trabalho de resgate começou com Minas Gerais

- Sim, algumas partes dos guias já estão até em fase de editoração. Na Espanha, onde a documentação vem sendo trabalhada há mais tempo, já sabemos que os três principais arquivos com material sobre o Brasil são os de Simancas, de Sevi­lha e de Tenerife. Então, já sabemos que vamos micro­filmar esses três arquivos. Na Holanda, os documen­tos estão em língua holan-

meira, a maior, foi o registro dos documentos do Arquivo Histórico Ultramarino. Ele tem 80% da docu­mentação sobre o Brasil no exterior. São 300 mil documentos, cerca de 3 milhões de páginas manuscritas. Até junho do próximo ano, este traba­lho terminará. A última capitania a fechar a microfilmagem será a do Rio de Janeiro.

• E depois?

- Pretendemos fazer um adendo em Portugal, com os documentos da In­quisição que estão na Torre do Tom­bo. Relativamente, é pouco material. Serão cerca de 80 rolos de microfil-

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- Vai faltar um documento aqui, outro ali, mas correr atrás de tudo é impossível. O professor Caio Boschi fez há algumas décadas um guia dos arquivos onde havia coisas de inte­resse para o Brasil em Portugal. Par­tindo desse guia e de outros depoi­mentos, fizemos um levantamento. A conclusão é que praticamente tudo está no Arquivo Ultramarino e na Torre do Tombo. Há outros lugares, como a Cidade do Porto, Évora, a Universidade de Coimbra. Mas são lugares com apenas 30 ou 50 docu­mentos, nada que se compare aos 300 mil do Arquivo Ultramarino.

• Para fora de Portugal, o que está sen-

desa e letras góticas. Mas, mesmo as­sim, vários pesquisadores brasileiros, como João Cabral de Melo Neto e José Antônio Gonçalves de Melo, es­tiveram lá e fizeram livros sobre o as­sunto. Vamos microfilmar esses docu­mentos e trazê-los para cá. Quem quiser lê-los, que aprenda aquela lín­gua, que aprenda a ler aquelas letras.

• Será um trabalho rápido?

-Bem, pretendemos começar a mi­crofilmagem já em 2001. Mas o ma­terial está muito espalhado. Em Por­tugal, foi possível concentrar os esforços no Arquivo Ultramarino. Mas, nos outros países, há grupos de

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1.000 documentos aqui, SOO ali. Se ti­vermos condições, vamos também mi­crofilmar documentos sobre o Brasil no Arquivo Secreto do Vaticano.

• Arquivo secreto?

- Sim, o nome é este mesmo. Os preparativos foram feitos em parce­ria com Portugal. Durante muito

será feita no próprio arquivo. Não será preciso transportar o material.

,. E para trabalhar com o arquivo da Inquisição, em Portugal, houve algum problema?

-Não. Está todo à nossa disposição. O material está na Torre do Tombo. Quando houve a separação entre a

A documentação recolhida pelo Projeto Resgate estará disponível também em CD-ROM

tempo, esse arquivo era inacessível. Mas, nos últimos anos, o Vaticano fez uma ligeira abertura. Portugal, no fim do ano passado e no começo des­te, colocou pesquisadores lá. Eles es­tão fazendo os verbetes, documento por documento. Estamos em nego­ciação com o arquivo e já consegui­mos o dinheiro para o trabalho.

• Em que pé estão as negociações?

- Já estive no Vaticano e conversei com o diretor do Arquivo Secreto. Em tese, ele já liberou a microfilma­gem. Estamos esperando que os pes­quisadores portugueses completem os verbetes, para selecionar o que queremos, calcular a verba necessária e passar a conta para o Ministério da Cultura bancar. Deve ficar em cerca de US$ 20 mil. São pouco mais de 3 mil documentos, a metade da docu­mentação de São Paulo no Arquivo Ultramarino. Com algumas bulas e outro material agregado, o total pode chegar a 4 mil documentos e as des­pesas a US$ 25 mil. A microfilmagem

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Igreja e o Estado, o governo portu­guês assumiu toda a documentação eclesiástica. Os documentos da Igreja passaram a fazer parte da documen­tação oficial do governo.

• Mas, mesmo antes do Projeto, já eram feitos microfilmes.

- Sim, mas antes eram microfilma­dos dois processos, cinco processos. O que estamos fazendo agora é uma microfumagem sistemática, de ponta a ponta. Sem nenhuma exceção. Tau­nay, por exemplo, trabalhou com do­cumentação da Espanha. Publicou alguns verbetes e alguns textos inte­grais na revista do Museu Paulista. Mas ele pegava um documento, va­mos dizer, sobre Palmares, achava in­teressante, mandava transcrever e pu­blicava. Era um documento no meio de cem. Hoje, a historiografia diz que um documento não fala sozinho. Ele está dentro de um contexto e fala junto com outros documentos.

• Os documentos sobre o Brasil da épo-

ca em que Portugal ficou unido à Co­roa espanhola estão na Espanha?

-Os arquivos sobre o período filipi­no estão na Espanha, na parte do Conselho de Portugal nos arqmvos de Simancas e de Sevilha.

• Como aproveitar esse material?

- Pense uma coisa. Antigamente, um pesquisador brasileiro ia para a Europa e trabalhava na Espanha, na Holanda ou em Portugal. Não em to­dos esses países simultaneamente. Mas, com a microfilmagem de todo esse material, o pesquisador vai po­der acessar ao mesmo tempo a versão holandesa, a versão italiana, a versão espanhola. A versão francesa é impor­tante. A França estava continuamen­te tentando invadir o Brasil. Então, o pesquisador vai poder trabalhar pela primeira vez todo um período histó­rico em conjunto. Antes, não havia tempo, dinheiro ou fôlego para que um pesquisador mergulhasse de qua­tro a seis anos em vários arquivos eu­ropeus para preparar uma tese.

• E agora?

- Os verbetes facilitam tudo. Se o pesquisador está preparando uma tese sobre a colaboração entre os ín­dios e os invasores no período colo­nial, pode ir aos verbetes e escolher os documentos dos quais vai preci-

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sar. Ou passar o rolo de microfilme por uma máquina e fazer a mesma coisa. O sonho do Ministério da Cul­tura é conseguir, daqui a dois ou três anos, consolidar uma grande base de dados, colocar num mesmo lugar to­dos os verbetes de todas as capita­nias. Aí, você vai querer, por exem­plo, fazer um estudo sobre a questão de salários durante o período co­lonial e reunir de uma vez mate­rial de todas as capitanias. Atual­mente, para fazer isso, é preciso pesquisar capitania por capitania. Esse é o desenrolar normal do trabalho. Veja o exemplo do catá­logo do Espírito Santo. Fizemos uma edição de SOO exemplares. Esgotou-se rapidamente. Agora, estamos tentando fazer outra edi­ção. Daqui a 20 anos, será dificíli­mo encontrar esse catálogo. Tal­vez só em grandes bibliotecas. Mas hoje, com a Internet, uma grande base de dados pode subs­tituir a ida à biblioteca.

• Inclusive, com acesso de qualquer parte do mundo.

- Sim, e isso é muito importan-te. A Unesco, numa certa altura,

joanino está sendo agora microfil­mada por pesquisadores portugue­ses. É o chamado Projeto Reencontro, coordenado no Brasil também pelo Ministério da Cultura. Há muitas coisas também na Bahia e em Belém do Pará. No Instituto de Estudos Bra­sileiros da USP, há a coleção Lamego, que deixou pesquisadores portugue-

se viu enfrentando o problema dos países africanos que adqui­riam a independência e queriam

Ata de reunião do Vise. de Barbacena em Vila Rica

os documentos sobre seu passado que estavam nas metrópoles. Mas não era possível chegar num país eu­ropeu, abrir um armário, reunir os documentos e levá-los para Angola ou Argélia. A Unesco determinou en­tão que, em países de passado co­mum, o arquivo passa a ser um patri­mônio comum. É o caso dos documentos relativos ao Brasil que estão em Portugal.

• E vice-versa?

- Sim, os documentos que estão no Brasil também pertencem a Portugal. Como o Brasil foi governado a partir de Lisboa, Dom João VI governou Portugal a partir do Rio de Janeiro. Toda essa documentação do período

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ses encantados. Lamego era um pes­quisador do fim do século passado que comprou, em Portugal e outros países da Europa, muitos documen­tos sobre o Brasil e Portugal. Ao vol­tar para o Brasil, levou a coleção para Campos, no Estado do Rio, onde morava. Publicou três ou quatro li­vros e deixou a coleção lá. Foi com­prada pelo escritor Mário de Andra­de e hoje está no IEB. As coisas vão mudar, e muito. Antigamente, um pesquisador fazia um livro de histó­ria e todos aceitavam o que ele dizia, pois ele pesquisara os documentos, ele fora lá. Hoje, com o acesso mais fácil aos originais, o que um pesqui­sador disser poderá ser rebatido por outros dez. Pois o documento precisa

ser interpretado e confrontado com outros documentos. Hoje o fato já passou, não existe mais a história oral. Trabalha-se com os documen­tos. Um pesquisador vai ver coisas nas entrelinhas de um documento, conforme a sua formação, e apresen­tar novas idéias.

• Haverá conflitos?

-Num julgamento, os advoga­dos interpretam uma peça do processo de maneira diferente. Um documento histórico tam­bém pode servir de base a pelo menos duas interpretações. Com isso, muitas coisas serão repensa­das, vários fatos ou interpretações serão confirmados ou desmenti­dos. Antigamente, havia quatro ou cinco professores que eram donos do Brasil holandês. Só eles eram autoridade sobre o assunto. Com os documentos na mão, provavelmente não haverá mais isso. Hoje, aprender uma língua não é tão difícil. Há até fitas cas­sete ensinando holandês. Além disso, boa parte do material ho­landês está em latim, uma língua básica, também, para o material italiano. Conheço vários ex-pa­dres que estão ganhando a vida dando aulas de latim para profes­sores de história.

• E para as pessoas?

-Não sou historiadora, sou coorde­nadora do Projeto. Minha função é organizar esse material e jogá-lo nas mãos dos pesquisadores. É a eles que cabe o desafio. Na realidade, os pes­quisadores estão hoje diante do desa­fio de reconfirmar ou reescrever a história do Brasil. A história do ín­dio, por exemplo, ainda está toda para ser feita. Quando o projeto co­meçou, o professor Darcy Ribeiro fez uma carta muito bonita, na qual di­zia: "Finalmente, vamos poder conhe­cer coisas': Hoje, ninguém podemais ficar de 30 a 50 anos trabalhando num só projeto.

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ESTE SUPLEMENTO ESPECIAL É PARTE INTEGRANTE DA REVISTA PESQUISA FAPESP W 57, DE SETEMBRO DE 2000 - CAPA HÉLIO DE ALMEIDA - DOCUMENTOS PROJETO RESGATE