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REGIME JURDICO DA PETROBRAS, DELEGAO LEGISLATIVA E PODER REGULAMENTAR: VALIDADE CONSTITUCIONAL DO

PROCEDIMENTO LICITATRIO SIMPLIFICADO INSTITUDO PELO DECRETO N 2.74598

I. CONSULTA E HIPTESE II. REGIME JURDICO DA PETROBRAS III. CONSTITUCIONALIDADE DO ART. 67 DA LEI N 9.47897 IV. VALIDADE DO PROCEDIMENTO LICITATRIO INSTITUDO PELO DECRETO N 2.74598 V. CONCLUSES

Lus Roberto Barroso

I. CONSULTA E HIPTESE

1.

Trata-se de consulta formulada pela Petrleo Brasileiro S.A.

PETROBRAS, tendo por objeto alguns aspectos do regime de licitao aplicvel empresa. Indaga a consulente, em carter geral, acerca da validade do art. 67 da Lei n 9.478/97, bem como do Decreto n 2.745/98, editado com base em tal dispositivo legal. Indaga, ainda, de maneira particular, acerca da legitimidade dos critrios estabelecidos pelo Decreto para a escolha da modalidade de licitao a ser adotada, inclusive e especialmente quando se trate de convite. As principais questes de fato e de direito envolvidas na matria vo identificadas a seguir.

2.

A Lei do Petrleo (Lei n 9.478, de 6.08.98) previu, no seu

art. 67, a definio, mediante decreto do Presidente da Repblica, de procedimento licitatrio simplificado, aplicvel aos contratos celebrados pela Petrobras para aquisio de bens e servios1. Com base nesse dispositivo legal, foi editado o Decreto n 2.47598, que aprovou o Regulamento do Procedimento Licitatrio Simplificado da Petrobras. Ao instituir os critrios para a escolha da modalidade de licitao a ser levada a efeito em cada caso, o Decreto deixou de reproduzir o padro adotado pela Lei de Licitaes e Contratos Administrativos (Lei n 8.666, de 21.06.93), criando parmetros prprios.

3.

A consulente informa que o Decreto tem sido objeto de

impugnaes quanto sua validade. Os argumentos invocados pelos que se1

Lei n 9.478/97: Art. 67. Os contratos celebrados pela PETROBRAS, para aquisio de bens e servios, sero precedidos de procedimento licitatrio simplificado, a ser definido em decreto do Presidente da Repblica.

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opem a ele podem ser agrupados em trs grandes categorias, a saber: (i) o art. 67 da Lei n 9.478/97 no poderia delegar Administrao a definio de um procedimento licitatrio simplificado, pois apenas lei formal poderia tratar do tema; (ii) ainda que a delegao fosse possvel em tese, afirmam alguns, ela seria invlida no caso, pois teria sido feita sem parmetros, isto , em branco; e (iii) o Decreto no poderia afastar a incidncia da Lei n 8.666/93 na matria, pois ato de hierarquia inferior.

4.

Especificamente no que diz respeito definio da

modalidade de licitao a ser adotada, o Decreto utiliza um conjunto de critrios a serem aferidos in concreto pelo administrador, em lugar de se valer de uma tabela de valores objetivos, como faz a Lei n 8.666932. Por conta da maior subjetividade que tais critrios poderiam ensejar, h quem sustente que, alm de ilegal, por vulnerar o que dispe a Lei n 8.666/93, o Decreto violaria nesse ponto os princpios constitucionais da Administrao Pblica, em particular a impessoalidade e a moralidade.

5.

O presente estudo pretende demonstrar a validade do decreto

e da utilizao de carta-convite para contratos que ultrapassem os valores

Confiram-se os artigos pertinentes da Lei n 8.666/93: Art. 22. So modalidades de licitao: (...) III convite; (...) Art. 23. As modalidades de licitao a que se referem os incisos I a III do artigo anterior sero determinadas em funo dos seguintes limites, tendo em vista o valor estimado da contratao: I para obras e servios de engenharia: a) convite - at R$ 150.000,00 (cento e cinqenta mil reais); (...) II - para compras e servios no referidos no inciso anterior: a) convite - at R$ 80.000,00 (oitenta mil reais); (...) 5o vedada a utilizao da modalidade "convite" ou "tomada de preos", conforme o caso, para parcelas de uma mesma obra ou servio, ou ainda para obras e servios da mesma natureza e no mesmo local que possam ser realizadas conjunta e concomitantemente, sempre que o somatrio de seus valores caracterizar o caso de "tomada de preos" ou "concorrncia", respectivamente, nos termos deste artigo, exceto para as parcelas de natureza especfica que possam ser executadas por pessoas ou empresas de especialidade diversa daquela do executor da obra ou servio. (...) 8o No caso de consrcios pblicos, aplicar-se- o dobro dos valores mencionados no caput deste artigo quando formado por at 3 (trs) entes da Federao, e o triplo, quando formado por maior nmero.

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previstos na Lei n 8.66693, uma vez observados, naturalmente, os critrios estabelecidos no prprio Decreto. Embora as questes versadas no envolvam maior complexidade doutrinria e possam ser equacionadas dentro do quadro do conhecimento convencional, procura-se enfrentar, com seriedade cientfica, cada uma das objees apresentadas contra o Decreto n 2.74598. Com tal propsito, o itinerrio lgico traado compreende breve investigao terica acerca do regime jurdico diferenciado da Petrobras, assim como acerca do estado da arte em matria de delegao legislativa e poder regulamentar.

II. REGIME JURDICO DA PETROBRAS

6.

A Petrobras S.A., ora consulente, foi criada pela Lei n 2.004,

de 03.10.1953, sob a forma de sociedade de economia mista3, tendo como objeto a explorao de um conjunto de atividades econmicas, a saber: a pesquisa, a lavra, a refinao, o comrcio e o transporte do petrleo proveniente de poo ou de xisto de seus derivados bem como de quaisquer atividades correlatas ou afins (art. 6).

7.

As sociedades de economia mista, como corrente, so

pessoas jurdicas de direito privado, com participao do Poder Pblico e de capitais privados, utilizadas pelo Estado, em geral, para a explorao de atividades

3

Confiram-se os arts. 5 e 10 da Lei n 2.004/53: Art. 5. Fica a Unio autorizada a constituir, na forma desta lei, uma sociedade por aes, que se denominar Petrleo Brasileiro S. A. e usar a sigla ou abreviatura de Petrobras. (...) Art. 10. A Unio subscrever a totalidade do capital inicial da Sociedade, que ser expresso em aes ordinrias e, para sua integralizao, dispor de bens e direitos que possui, relacionados com o petrleo, inclusive a permisso para utilizar jazidas de petrleo, rochas betuminosas e pirobetuminosas e de gases naturais; tambm subscrever, em todo aumento de capital, aes ordinrias que lhe assegurem pelo menos 51 % (cinqenta e um por cento) do capital votante.

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econmicas4. Elas so institudas mediante prvia autorizao legislativa, revestem a forma de sociedades annimas, admitem o lucro e sujeitam-se s normas prprias das sociedades mercantis, com eventuais derrogaes estabelecidas pelo direito pblico5. Sua disciplina jurdica traada por diversas disposies constitucionais e legais.

8.

A Constituio Federal prev, no art. 37, XIX, a necessidade

de lei especfica autorizando a criao de sociedades de economia mista, s quais se aplicam, alm dessa, outras disposies constitucionais. Subordinam-se elas, e.g., aos princpios gerais da Administrao Pblica inscritos no caput do art. 37 (v.g., legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficincia), assim como a diversas clusulas do corpo do artigo; submetem-se, ademais, em matria oramentria (art. 165, 5), endividamento (arts. 163, e 52, VII), prestao de contas (art. 71, II) e contratao de pessoal6, dentre outras, a comandos de natureza pblica.

9.

No se deve perder de vista, porm, que foi precisamente o

regime de direito privado que motivou o Poder Pblico a criar um ente dessa natureza7. De fato, para a explorao de atividades econmicas, a sociedade de economia mista no necessita de prerrogativas prprias do Poder Pblico que, em4

As sociedades de economia mista podem ser utilizadas, eventualmente, para a prestao de servios pblicos. A doutrina registra que o regime jurdico das sociedades de economia mista exploradoras de atividade econmica caso da consulente mais prximo do das empresas privadas que o das sociedades de economia mista que prestem servios pblicos. V., sobre o tema, Maria Sylvia Zanella Di Pietro, Direito administrativo, 1996, p. 305. Veja-se, por todos, Hely Lopes Meirelles, Direito administrativo brasileiro, 1993, p. 331. RTDP 7:260, MS 21.322-DF, Rel. Min. Paulo Brossard.

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Hely Lopes Meirelles, Direito administrativo brasileiro, 1993, p. 333: A sociedade de economia mista ostenta a estrutura e funcionamento da empresa particular, porque isto constitui, precisamente, sua prpria razo de ser. Nem se compreenderia que se burocratizasse tal sociedade a ponto de emperrar-lhe os movimentos e a flexibilidade mercantil, com os mtodos estatais.

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um ambiente concorrencial, podem inclusive ensejar concorrncia desleal , mas demanda a agilidade similar aos particulares8. A sujeio ao regime prprio das empresas privadas j constava da redao original do 1 do art. 173 da Constituio, verbis: A empresa pblica, a sociedade de economia mista e outras entidades que explorem atividade econmica sujeitam-se ao regime jurdico prprio das empresas privadas, inclusive quanto s obrigaes trabalhistas e tributrias. Na mesma linha, a lei das sociedades por aes (Lei 6.404, de 15.12.1976) abriu um captulo especfico para esta espcie de sociedade, provendo no art. 235: Art. 235. As sociedades annimas de economia mista esto sujeitas a esta Lei, sem prejuzo das disposies especiais de lei federal. 10. Como se v, o regime jurdico das sociedades de economia

mista que exploram atividades econmicas pode ser descrito como hbrido. De um lado, elas integram a Administrao Pblica e sujeitam-se aos princpios e regras constitucionais a ela aplicveis9; de outro, foram criadas como pessoas jurdicas de direito privado exatamente para se valerem das regras tpicas das empresas privadas, ganhando em agilidade para a realizao do fim pblico a elas cometido. Assim, e considerando o regime jurdico tpico da Administrao Pblica, no h dvida de que as sociedades de economia mista exploradoras de atividade econmica tm um regime jurdico distinto.

11.

Essa distino, alis, aprofundou-se ainda mais com a edio

da Emenda Constitucional n 19/98. A Emenda, como se sabe, deu nova redao ao8

Celso Antnio Bandeira de Mello, Curso de direito administrativo, 1996, p. 31; e Maria Sylvia di Pietro, Direito administrativo, 1996, p. 305.

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Alm da Constituio, tambm o Decreto-lei n 200, de 25 fev. 1967, faz referncia s sociedades de economia mista, fornecendo um conceito legal e incluindo-as expressamente entre as entidades da Administrao Indireta.

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1 do art. 173 e ao art. 22, XXVII. No primeiro caso, a Emenda determinou a instituio de um regime jurdico diferenciado para as sociedades de economia mista e empresas pblicas que explorem atividades econmicas. Esse regime deve dispor inclusive sobre licitaes e contrataes, observados os princpios da Administrao Pblica. Quanto ao art. 22, XXVII, que trata da competncia da Unio para legislar sobre normas gerais de licitao e contratao10, o constituinte derivado destacou a situao particular das empresas pblicas e sociedades de economia mista, referindo de forma expressa o art. 173, 1. Essa a dico dos dois dispositivos em sua redao atual:

Art. 173. ............................................................................. 1. A lei estabelecer o estatuto jurdico da empresa pblica, da sociedade de economia mista e de suas subsidirias que explorem atividade econmica de produo ou comercializao de bens ou de prestao de servios, dispondo sobre: I sua funo social e formas de fiscalizao pelo Estado e pela sociedade; II a sujeio ao regime jurdico prprio das empresas privadas, inclusive quanto aos direitos e obrigaes civis, comerciais, trabalhistas e tributrios; III licitao e contratao de obras, servios, compras e alienaes, observados os princpios da administrao pblica; IV a constituio e o funcionamento dos conselhos de administrao e fiscal, com a participao de acionistas minoritrios; V os mandatos, a avaliao de desempenho e a responsabilidade dos administradores. Art. 22. Compete privativamente Unio legislar sobre: (...)10

Confira-se a redao original do dispositivo: Art. 22. Compete privativamente Unio legislar sobre: (...) XXVII normas gerais de licitao e contratao, em todas as modalidades, para a administrao pblica, direta e indireta, includas as fundaes institudas e mantidas pelo Poder Pblico, nas diversas esferas de governo, e empresas sob seu controle;.

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XXVII normas gerais de licitao e contratao, em todas as modalidades, para as administraes pblicas diretas, autrquicas e fundacionais da Unio, Estados, Distrito Federal e Municpios, obedecido o disposto no art. 37, XXI, e para as empresas pblicas e sociedades de economia mista, nos termos do art. 173, 1, III. 12. Alis, e embora no tenha sido editada lei geral sobre a matria

at o momento, parte da doutrina entende, no que toca a licitaes e contrataes, que as sociedades de economia mista que explorem atividade econmica esto sujeitas apenas aos princpios gerais da Administrao previstos no art. 37 da Constituio ao que o novo inciso III do 1 do art. 173 faz referncia expressa , no lhes sendo mais aplicveis todas as regras da Lei n 8.666, de 21.06.1993, que trata do tema de forma geral11.

13.

Note-se um ponto importante. O fato de as sociedades de

economia mista exploradoras de atividade econmica sujeitarem-se ao regime

11

Adilson Abreu Dallari, Licitaes nas empresas estatais, Revista de Direito Administrativo, 229:69, 2002, p. 72: Est perfeitamente claro, no 1, que o estatuto jurdico da empresa pblica, da sociedade de economia mista e de suas subsidirias que explorem atividade econmica de produo ou comercializao de bens ou de prestao de servios ser estabelecido por uma futura lei; mas tambm est igualmente claro, no inciso III, que essas entidades esto obrigadas a realizar suas licitaes e contrataes de obras, servios, compras e alienaes, com observncia dos princpios da administrao pblica e no mais das mesmas normas aplicveis administrao direta e outras entidades da administrao indireta. Entendem alguns, entretanto, com base em outra linha de pensamento e num processo interpretativo radicalmente diferente do esposado neste estudo, que essa desonerao somente se verificaria aps a edio do estatuto de tais empresas. Tal entendimento somente se sustenta caso se atribua ao dispositivo constitucional em exame (o 1 do art. 173 e seus incisos) a qualidade de um NADA JURDICO, de uma norma total e absolutamente ineficaz.; e Robertnio Pessoa, Administrao indireta Uma reflexo crtica, Revista Interesse Pblico 31:75, 2005, p. 84: O artigo 173, 1, inciso III, prev a obrigatoriedade da licitao para as empresas estatais. Enfatiza, porm, que a licitao e a contratao de obras, servios, compras e alienaes nestas empresas devero observar os princpios da Administrao Pblica. Flexibiliza-se, assim, sem suprimir-lhe, o regime licitatrio nessas agncias econmicas do Estado. A licitao continua prevalecendo nas empresas pblicas, porm, de forma mais simplificada e flexvel. Em todo caso, cumpre sejam observados certos princpios bsicos, tanto os genricos, pertinentes legalidade, impessoalidade, publicidade, moralidade, eficincia, como os especficos, concernentes ao procedimento licitatrio (igualdade, vinculao ao instrumento convocatrio, julgamento objetivo)..

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prprio das empresas privadas no significa que, como criaturas estatais, possam existir de maneira descompromissada do interesse pblico. O que relevante assinalar, vista dos comandos constitucionais aplicveis, que se estabeleceu que a melhor forma de atender ao interesse pblico, em certo contexto, era dar a tais sociedades a mobilidade e a liberdade de atuao de uma empresa privada. No h, assim, uma abdicao do interesse pblico pela adoo de um regime privado, mas a eleio de um meio especfico de atuao para satisfao das finalidades estatais. Vale dizer: flexibilidade, agilidade, competitividade e eficincia no so para tais empresas apenas qualidades desejveis, mas requisitos vitais para que possam cumprir o seu papel.

14.

O que se acaba de descrever incide sobre as sociedades de

economia mista exploradoras de atividade econmica em geral. consulente, alm dessas disposies, aplicam-se normas especficas, que cabe referir rapidamente. Como se sabe, quando de sua criao, a consulente desenvolvia suas atividades em regime de monoplio (arts. 1 e 2 da Lei n 2004/5312), mantido pela Constituio de 1988 (art. 17713). A Emenda Constitucional n 9, de 9 de

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Lei n 2004/53: Art. 1. Constituem monoplio da Unio: I - a pesquisa e a lavra das jazidas de petrleo e gs natural e outros hidrocarbonetos fluidos; II - a refinao do petrleo nacional ou estrangeiro; III - o transporte martimo do petrleo bruto de origem nacional ou de derivados de petrleo produzidos no Pas, e bem assim o transporte, por meio de condutos, de petrleo bruto e seus derivados, assim como de gases raros de qualquer origem. Art. 2 A Unio exercer, o monoplio estabelecido no artigo anterior: I por meio do Conselho Nacional do Petrleo, como rgo de orientao e fiscalizao; II por meio da sociedade por aes Petrleo Brasileiro S. A. e das suas subsidirias, constitudas na forma da presente lei, como rgos de execuo. Esta era a redao original do dispositivo: Art. 177. Constituem monoplio da Unio: I - a pesquisa e a lavra das jazidas de petrleo e gs natural e outros hidrocarbonetos fluidos; II - a refinao do petrleo nacional ou estrangeiro; III - a importao e exportao dos produtos e derivados bsicos resultantes das atividades previstas nos incisos anteriores; IV - o transporte martimo do petrleo bruto de origem nacional ou de derivados bsicos de petrleo produzidos no Pas, bem assim o transporte, por meio de conduto, de petrleo bruto, seus derivados e gs natural de qualquer origem; V - a pesquisa, a lavra, o enriquecimento, o reprocessamento, a industrializao e o comrcio de minrios e minerais nucleares e seus derivados. 1. O monoplio previsto neste artigo inclui os riscos e resultados decorrentes das atividades nele mencionadas, sendo vedado Unio ceder ou conceder qualquer tipo de participao, em 9

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novembro de 1995, porm, flexibilizou esse monoplio, autorizando a Unio Federal a contratar com empresas privadas diversas atividades antes desenvolvidas privativamente pela consulente, de modo a instituir, no setor, um mercado concorrencial14.

15.

Diante

desse

novo

quadro

jurdico,

o

legislador

infraconstitucional editou a Lei n 9.478, de 6 de agosto de 1997 (Lei do Petrleo)15, que, dentre outros temas, regulou as atividades relativas ao monoplio do petrleo, instituiu o Conselho Nacional de Poltica Energtica e a Agncia Nacional do Petrleo e abriu captulo especfico para a Petrobras (Captulo IX), revogando a Lei n 2.004/53, que a regia at ento.

16.

Ao tratar especificamente da consulente, dentre outras

previses, a Lei n 9.478/97 acabou por definir que, nada obstante a abertura do mercado, continuava a ser de interesse pblico a atuao da Petrobras no setor, sendo que a empresa agora deveria desenvolver suas atividades em carter de livre competio (art. 6116). E a fim de lhe conferir maior agilidade, o art. 67 daespcie ou em valor, na explorao de jazidas de petrleo ou gs natural, ressalvado o disposto no art. 20, 1.14

Esta a redao atual do art. 177, 1 e 2 da Carta: Art. 177. Constituem monoplio da Unio:I a pesquisa e a lavra das jazidas de petrleo e gs natural e outros hidrocarbonetos fluidos; II a refinao do petrleo nacional ou estrangeiro; III a importao e exportao dos produtos e derivados bsicos resultantes das atividades previstas nos incisos anteriores; IV o transporte martimo do petrleo bruto de origem nacional ou de derivados bsicos de petrleo produzidos no Pas, bem assim o transporte, por meio de conduto, de petrleo bruto, seus derivados e gs natural de qualquer origem; (...) 1. A Unio poder contratar com empresas estatais ou privadas a realizao das atividades previstas nos incisos I a IV deste artigo, observadas as condies estabelecidas em lei.2. A lei a que se refere o 1 dispor sobre:I a garantia do fornecimento dos derivados de petrleo em todo o territrio nacional; II - as condies de contratao; III - a estrutura e atribuies do rgo regulador do monoplio da Unio. Note-se que a iniciativa do projeto de que resultou a Lei partiu do Poder Executivo.

15 16

Confira-se o art. 61 da Lei n 9.478/97:Art. 61. A Petrleo Brasileiro S.A. - PETROBRAS uma sociedade de economia mista vinculada ao Ministrio de Minas e Energia, que tem como objeto a pesquisa, a lavra, a refinao, o processamento, o comrcio e o transporte de petrleo proveniente de poo, de xisto ou outras rochas, de seus derivados, de gs natural e de outros 10

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lei autorizou o Presidente da Repblica a, por meio de decreto, definir uma simplificao do procedimento licitatrio, que passaria ento a ser aplicvel consulente. Esta a dico do dispositivo:

Art. 67. Os contratos celebrados pela PETROBRAS, para aquisio de bens e servios, sero precedidos de procedimento licitatrio simplificado, a ser definido em decreto do Presidente da Repblica. 17. O Presidente da Repblica regulamentou o referido

dispositivo mediante a expedio do Decreto n 2.745, de 24 de agosto de 1998, que aprovou o Regulamento do Procedimento Licitatrio Simplificado da Petrobras. interessante notar que a j referida EC n 19/98 foi editada exatamente entre a promulgao da Lei n 9.478/97 e a expedio do Decreto n 2.745/98. Com efeito, a necessidade premente de um regime diferenciado e sobretudo simplificado de licitaes para a consulente vinculava-se de forma particular a sua circunstncia especfica (abertura do mercado, necessidade iminente de mover-se de forma mais gil para competir com os outros agentes que ingressariam no setor, etc.). Na avaliao do constituinte derivado que aprovou a EC n 19/98, porm, essa necessidade generalizou-se para todas as sociedades de economia mista exploradoras de atividades econmicas17.

hidrocarbonetos fluidos, bem como quaisquer outras atividades correlatas ou afins, conforme definidas em lei. 1. As atividades econmicas referidas neste artigo sero desenvolvidas pela PETROBRAS em carter de livre competio com outras empresas, em funo das condies de mercado, observados o perodo de transio previsto no captulo X e os demais princpios e diretrizes desta Lei.17

Lembre-se apenas que, at o momento, no foi editada a lei geral a que faz referncia o art. 173, 1. Se a consulente no houvesse recebido um tratamento especfico por parte da Lei n 9.478/97, possvel questionar se a Petrobras teria alcanado o sucesso que obteve aps a abertura do mercado.

11

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18.

Feita essa breve nota geral sobre o regime jurdico da

consulente, cabe agora examinar de forma especfica as questes por ela suscitadas.

III. CONSTITUCIONALIDADE DO ART. 67 DA LEI N 9.47897

19.

Como referido inicialmente, h quem sustente a invalidade

do art. 67 da Lei n 9.478/97 e, a fortiori, do Decreto n 2.745/98 sob o fundamento de que ele veicularia uma delegao invlida de poderes do Legislativo para o Executivo. Na verdade, o tema da delegao legislativa inserese em um quadro mais amplo, integrado pelo princpio da legalidade, pelo poder regulamentar do Chefe do Poder Executivo e, para alguns, pelo que se passou a denominar de deslegalizao. Veja-se, de forma sucinta, cada um desses elementos.

20.

No

direito

brasileiro,

o

princpio

da

legalidade,

genericamente considerado, e gravado no art. 5o, II da Constituio da Repblica, reserva lei a criao de deveres e obrigaes. Vale dizer: todo e qualquer ato que interfira com o direito de liberdade e propriedade das pessoas carece de lei prvia que o autorize18. verdade que a doutrina tem construdo em torno desse princpio uma teorizao mais sofisticada, capaz de adapt-lo nova distribuio de espaos de atuao entre os trs Poderes. Com efeito, a crise do Legislativo e da prpria lei formal e o crescimento do papel do Executivo, alimentado pela necessidade moderna de agilidade nas aes estatais e pela relao cada vez mais

18

V. Lus Roberto Barroso, Apontamentos sobre o princpio da legalidade (delegaes legislativas, poder regulamentar e repartio constitucional de competncias legislativas). In: Temas de direito constitucional, t. I, 2001, p. 165 e ss..

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prxima entre ao estatal e conhecimentos tcnicos especializados19, acabou por exigir uma nova leitura do princpio. Nessa linha que se admite hoje a distino entre reserva absoluta e reserva relativa de lei, de um lado, e, de outro, entre reserva de lei formal ou material20.

21.

Fala-se de reserva legal absoluta quando se exige do

legislador que esgote o tratamento da matria no relato da norma, sem deixar espao remanescente para a atuao discricionria dos agentes pblicos que vo aplic-la. Ser relativa a reserva legal quando se admitir a atuao subjetiva do aplicador da norma ao dar-lhe concreo. H consenso de que a eliminao completa dessa atuao subjetiva no momento da aplicao praticamente impossvel, de modo que a distino entre a reserva absoluta e relativa acaba por ser visualizada em termos de grau ou extenso21.

22.

De parte isso, tambm possvel distinguir a (a) reserva de

lei formal da (b) reserva de lei material. Haver reserva de lei formal quando determinada matria s possa ser tratada por ato emanado do Poder Legislativo, mediante adoo do procedimento analtico ditado pela prpria Constituio, que normalmente incluir iniciativa, discusso e votao, sano-veto, promulgao e publicao. A Constituio contempla, de outra parte, atos normativos que, embora no emanados diretamente do Legislativo, tm fora de lei. Com efeito, a19

Sobre o tema, veja-se Clmerson Merlin Clve, Atividade legislativa do Poder Executivo, 2000; Vicente Paulo Francisco Ro, Fatores polticos e sociais da legislao delegada, Revista dos Tribunais 742:765, 1997, p. 766-7; e Alexandre Santos de Arago, O poder normativo das agncias reguladoras, Revista Forense 354:3, 2001, p. 354-5.

20

Tais idias encontram-se sinteticamente expostas na notvel conferncia do Professor Alberto Xavier, Legalidade e tributao, publicada na RDP 47-48:329.

21

Alexandre Santos de Arago, Princpio da legalidade e poder regulamentar no Estado contemporneo, Boletim de Direito Administrativo 5:370, 2002, p. 378: (...) sabemos que o carter exaustivo da lei, pretensamente excludente de qualquer subjetividade por parte do seu concretizador, uma idealizao irrealizvel na prtica. Basta vermos a grande quantidade de divergncias doutrinrias e judiciais existentes em matria tributria e criminal, com posies jurdicas diversas, todas plausveis.

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Carta de 1988 confere ao Poder Executivo competncia para (i) a edio de leis delegadas22; (ii) a edio de atos normativos primrios, por meio de decreto, no espao reservado Administrao (e.g., art. 84, VI23); e (iii) a edio extraordinria de atos normativos primrios as medidas provisrias , sem prvia autorizao do Congresso24. O art. 62, 1 da Constituio lista as matrias que no podem ser objeto de medidas provisrias e que, por isso, esto submetidas reserva de lei formal25.

23.

Nada obstante toda essa construo, cujo propsito evidente

atenuar a rigidez da noo original do princpio da legalidade (inicialmente associado apenas a atos expedidos pelo Poder Legislativo), permanece vlida a concepo tradicional do direito constitucional brasileiro26 de que vedada a22

CF/88, art. 68: As leis delegadas sero elaboradas pelo Presidente da Repblica, que dever solicitar a delegao ao Congresso Nacional. CF/88, art. 84: Compete privativamente ao Presidente da Repblica: (...) VI dispor, mediante decreto, sobre: a) organizao e funcionamento da administrao federal, quando no implicar aumento de despesa nem criao ou extino de rgos pblicos; b) extino de funes ou cargos pblicos, quando vagos. CF/88, art. 62: Em caso de relevncia e urgncia, o Presidente da Repblica poder adotar medidas provisrias, com fora de lei, devendo submet-las de imediato ao Congresso Nacional.

23

24

25

CF/88, art. 62, 1: vedada a edio de medidas provisrias sobre matria: I. relativa a: a) nacionalidade, cidadania, direitos polticos, partidos polticos e direito eleitoral; b) direito penal, processual penal e processual civil; c) organizao do Poder Judicirio e do Ministrio Pblico, a carreira e a garantia de seus membros; d) planos plurianuais, diretrizes oramentrias, oramento e crditos adicionais e suplementares, ressalvado o previsto no art. 167, 3; II. que vise a deteno ou seqestro de bens, de poupana popular ou qualquer outro ativo financeiro; III. Reservada a lei complementar; IV j disciplinada em projeto de lei aprovado pelo Congresso Nacional e pendente de sano ou veto do Presidente da Repblica.

A Constituio de 1967/69 dispunha textualmente: Art. 6o (...) Pargrafo nico. Salvo as excees previstas nesta Constituio, vedado a qualquer dos Poderes delegar atribuies; quem for investida na funo de um deles no poder exercer a de outro. No obstante a textualidade do dispositivo, ocorreram no regime constitucional anterior inmeras delegaes legislativas, copiosamente exemplificveis. Algumas j vinham de longe, mas no foram questionadas. Confirme-se. Pela Lei n 1779, de 22.12.52, criou-se a autarquia Instituto Brasileiro do Caf, qual se cometeram diversas atribuies de cunho normativo, inclusive quanto ao trnsito do caf entre a produo e o escoamento, fixao de quotas etc. Semelhantemente se passara com o acar desde o Decreto n 22.779, de 01.06.33. Mais recentemente, foi tambm por via de delegao que se submeteu a disciplina de todo o setor monetrio e financeiro s resolues do Banco Central do Brasil e do Conselho Monetrio 14

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delegao de funes de um Poder a outro27 fora das hipteses constitucionais28; ou, ao menos, de que a delegao, ainda que possvel, no pode ser em branco, isto , desacompanhada de parmetros ou diretrizes obrigatrias que permitam o controle de seu exerccio. Trata-se de uma exigncia bsica da separao de poderes, que um Poder no concentre competncias as suas prprias e mais as que eventualmente receba de outro Poder sem estar submetido a controle29. Adiante essa questo ser retomada. Lanados esses elementos bsicos acerca do princpio da legalidade, cabe tratar do poder regulamentar, da delegao legislativa e da deslegalizao.

24.

No direito brasileiro, na linha da concepo tradicional, o

poder regulamentar titularizado pelo Chefe do Poder Executivo, que com base nele poder expedir atos normativos administrativos. O regulamento, assim, destina-se a explicitar, a detalhar o modo e a forma de execuo da lei. Vale dizer: o regulamento ato inferior lei e a ela subordinado. Ainda na linha do conhecimento convencional, no pode o regulamento, por fora da separao de

Nacional, com fulcro na Lei n 4.595/64. Tambm no setor de comrcio exterior, sucessivos diplomas legais, desde a Lei n 3.244/57, repassaram a rgos do Executivo vastssimas competncias de cunho normativo.27

Confira-se, a propsito, o seguinte excerto de trabalho doutrinrio do Ministro Carlos Mario da Silva Velloso: no Direito Constitucional clssico, anotam os autores, a regra a indelegabilidade, como corolrio, alis, da doutrina da separao de poderes teorizada por Montesquieu. Locke, no Segundo Tratado de Governo Civil, deixa expresso que nenhum poder pode delegar atribuies, porque o poder exercido por delegao do soberano, e quem age por delegao no pode delegar o que no lhe pertence, o que se enuncia na mxima latina: delegata potestas delegari non potest. (Delegao legislativa A legislao por associaes, RDP 90:179, p. 180). Nessa linha, CF/88, ADCT: Art. 25. Ficam revogados, a partir de cento e oitenta dias da promulgao da Constituio, sujeito este prazo a prorrogao por lei, todo os dispositivos legais que atribuam ou deleguem a rgo do Poder Executivo competncia assinalada pela Constituio ao Congresso Nacional, especialmente no que tange a: I. ao normativa; (...) Nuno Piarra, A separao dos Poderes como doutrina e princpio constitucional Um contributo para o estudo das suas origens e evoluo, 1989, p. 26: Na sua dimenso orgnicofuncional, o princpio da separao dos Poderes deve continuar a ser encarado como princpio de moderao, racionalizao e limitao do poder poltico-estadual no interesse da liberdade. Tal constitui seguramente o seu ncleo intangvel.

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poderes e do princpio da legalidade, inovar na ordem jurdica, modificando situao preexistente. Somente a lei, e no o regulamento, ser a via legtima pela qual podem-se criar obrigaes para os particulares30. Algumas dessas idias comeam a ser revisitadas pela moderna doutrina administrativista, mas o desvio no necessrio para os fins visados no presente estudo31.

25.

A fronteira entre o exerccio tradicional do poder

regulamentar e o que mais modernamente se passou a denominar de delegao legislativa bastante tnue. A expresso delegao legislativa empregada em geral para descrever hipteses nas quais o Legislador fixa determinados parmetros mais ou menos gerais e autoriza o Executivo a disciplinar de forma mais detalhada um tema. Embora o ato expedido com fundamento na delegao legislativa seja inferior lei e a ela vinculado32, o espao de criao outorgado ao Executivo pode ser substancialmente mais amplo aqui do que noNesse sentido, que expressa o ponto de vista da quase totalidade da doutrina, v. por todos, Celso Antnio Bandeira de Mello, Curso de direito administrativo, 2003, p. 94: Portanto, a funo do ato administrativo s poder ser a de agregar lei nvel de concreo; nunca lhe assistir instaurar originariamente qualquer cerceio a direitos de terceiros.; Maria Sylvia Zanella Di Pietro, Direito administrativo, 2002, p. 68: Em decorrncia disso, a Administrao Pblica no pode, por simples ato administrativo, conceder direitos de qualquer espcie, criar obrigaes ou impor vedaes aos administrados; para tanto, depende de lei.; e M. Seabra Fagundes, O controle dos atos administrativos pelo Poder Judicirio, 1984, pp. 3-5: [Regulamentos] no acarretam, no podem acarretar qualquer modificao ordem jurdica vigorante. Vejam-se, ainda, Carlos. Mrio Velloso, Delegao legislativa A legislao por associaes, Revista de Direito Pblico 90:179; Celso Ribeiro Bastos, Curso de direito constitucional, 1990, p. 337; Michel Temer, Elementos de direito constitucional, 1999, pp. 15969; Pontes de Miranda, Comentrios Constituio de 1967, com a Emenda 1/69, 2a. ed., p. 31431 30

Sobre o tema, v. Patrcia Batista, Transformaes do direito administrativo, 2003. V. tb. a tese de doutoramento de Gustavo Binenbojm, da qual fui orientador, intitulada Novos paradigmas do direito administrativo, mimeografado, 2005. Sobre esse ponto especfico, v. Clmerson Merlin Clve, A atividade legislativa do Poder Executivo, 2000, p. 134. Embora no trate da questo nesses termos, Alexandre de Moraes considera que a evoluo do entendimento liberal sobre a separao dos Poderes e sobre o conceito de lei, e a necessidade de descentralizao administrativa tornaram plenamente aceitvel a possibilidade de delegao legislativa. O autor tambm ressalta que o disposto no art. 49, V, que confere ao Congresso Nacional poderes para sustar os atos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar, deve ser aplicado para controlar os atos normativos das agncias reguladoras (Agncias reguladoras, Revista dos Tribunais 791:8).

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exerccio tradicional do poder regulamentar. Diversos sistemas constitucionais do mundo, tais como os de EUA, Inglaterra, Frana, Itlia e Alemanha, passaram a adotar mecanismos de delegao legislativa, seja mediante previso expressa na Constituio e.g., os decreti-leggi, na Itlia, e as ordonnances, na Frana , seja em decorrncia de construo jurisprudencial, como no caso dos EUA33.

26.

A polmica figura da deslegalizao, por sua vez, constituiria

a hiptese na qual o prprio legislador retira certas matrias do domnio da lei, para atribu-las disciplina de rgos ou entidades administrativas. O ato normativo expedido pela Administrao em tais hipteses criaria direitos e obrigaes em carter primrio, isto : sem subordinao lei, revogando inclusive legislao anterior por acaso existente e que dispusesse de forma diversa34.

27.

fcil perceber que a figura da delegao legislativa poder,

em cada caso, aproximar-se mais da idia tradicional de poder regulamentar35 ou da controvertida hiptese de deslegalizao, dependendo da amplitude do espao de atuao transferido ao Executivo e da existncia ou no, na lei, de parmetros capazes de nortear e controlar a ao do Executivo. Nessa linha, o direito norteamericano desenvolveu a teoria do delegation with standards, para a qual a delegao seria legtima uma vez que o rgo legislativo fixasse parmetros,

33

Sobre o tema, vejam-se Richard J. Pierce, Jr., Sidney A. Shapiro e Paul R. Verkuil, Administrative law and process, 1999; e Jerry L. Mashaw e Richard A. Merrill, Administrative Law: the American public law system, 1985. Em lngua portuguesa, confira-se a anlise do fenmeno em Carlos Mrio da Silva Velloso, Delegao legislativa A legislao por associaes, Revista de Direito Pblico 92:150, 1989, p. 152 e ss.. Sobre o tema, v. Diogo de Figueiredo Moreira Neto, Direito regulatrio, 2003; e Alexandre Santos de Arago, Agncias reguladoras e a evoluo do direito administrativo econmico, 2002. Sobre o tema na doutrina americana vejam-se, dentre muitos outros: L. Tribe, American constitutional law, 1988, p . 362-69; e Mashaw & Merrill, Administrative law, 1985, p. 2-30.

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standards adequados e capazes de pautar e limitar a atuao normativa do rgo delegado36.

28.

A possibilidade de delegao legislativa nesses termos, desde

que acompanhada de standards, j foi implicitamente aceita pelo Supremo Tribunal Federal em vrias ocasies, que merecem registro. No Recurso Extraordinrio n 264.289/CE, de que foi Relator o Ministro Seplveda Pertence, a Corte considerou invlida determinada delegao exatamente porque no acompanhada de qualquer parmetro. Confira-se trecho do acrdo:

O legislador local, como se v, instituiu e nomeou uma vantagem remuneratria, delegando, porm, ao Executivo livre de quaisquer parmetros legais , a definio de todos os demais aspectos de sua disciplina a qual, acrescente-se, se revelou extremamente complexa , includos aspectos essenciais como o valor de cada ponto, as pontuaes mnima e mxima e a quantidade de pontos atribuveis a cada atividade e funo. Essa delegao sem parmetro, contudo, penso eu, incompatvel com o princpio da reserva

Carlos Mrio da Silva Velloso, Delegao legislativa A legislao por associaes, Revista de Direito Pblico 92:150, 1989, p. 152: (...) o primeiro que a delegao legtima aquela que pode, a qualquer momento, ser retirada daquele que recebeu a delegao. Se isto no fosse possvel, o Congresso teria simplesmente abdicado dos seus poderes legislativos, o que seria inconstitucional, porque a Constituio estabelece a doutrina da separao dos poderes e confere ao Congresso todos os poderes legislativos. O segundo critrio aquele que diz respeito fixao de standards, ou de padres que limitam a ao do delegado. A qualquer momento, ento, a Corte Suprema pode ser chamada a verificar da constitucionalidade da delegao, assim do regulamento, porque poder verificar se este obedeceu aos standards ou padres fixados pelo Legislativo. (...) O terceiro critrio utilizado pela Corte Suprema, para aferir da legitimidade da delegao legislativa, o da razoabilidade desta. (negrito no original). A Suprema Corte, de fato, j coibiu aquilo que considerou delegaes excessivas de poder normativo. V., como um exemplo, o caso citado em Nowak, Rotunda e Young, Constitutional law, 1986, p. 144, referente ao National Industrial Recovery Act, de 1933, o qual, entre outras medidas, autorizava o Presidente a proibir o transporte de produtos do petrleo obtidos com violao da lei: In Panama Refining Co. v. Ryan, the Supreme Court held that the Act was an excessive delegation of the legislative power to the executive because it did not set any standards for when the president should exercise his discretionary power to prohibit shipment of these products.

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de lei formal a que est submetida a concesso de aumentos aos servidores pblicos (CF, art. 61, 1, II, a). 37 29. Mais recentemente, o STF examinou recurso extraordinrio

em que se discutia a validade do 2 do art. 1 do Decreto-lei n 1.422/75. O dispositivo autorizou o Executivo a alterar a alquota do salrio-educao tendo em conta a variao do custo real unitrio do ensino de 1 grau, embora o art. 178 da Constituio de 1967/69, que tratava da matria, tivesse empregado a expresso: na forma que a lei estabelecer.

30.

A tese do recorrente era a de que o dispositivo seria

inconstitucional desde sua origem, por representar delegao de competncia em desrespeito aos princpios da legalidade e separao de Poderes (j consagrados na Carta de 1967/69), e, por eventualidade, a no recepo pela Carta de 1988. O STF, por maioria, entendeu que, na vigncia da Constituio anterior, o salrioeducao no tinha natureza tributria e, portanto, sua disciplina no estava submetida reserva de lei formal. Mais que isso, a Corte entendeu que os parmetros previstos em lei, que deveriam balizar a atuao do Executivo, no eram arbitrrios nem constituam um cheque em branco, de modo que a delegao era vlida. Confira-se trecho do voto do relator, Ministro Ilmar Galvo:

Na verdade, como facilmente se percebe, no foi sem motivo que o Decreto-Lei n 1.422/75 deixou de instituir, diretamente, a alquota do salrio-educao: considerou as dificuldades para a mensurao das despesas educacionais com o ensino primrio e sua variabilidade, fatores esses incompatveis com o carter esttico da disciplina legal (...). Portanto, a atribuio de competncia ao Poder Executivo para fixar e alterar a alquota do salrio-educao, em razo da flutuao do custo atuarial do ensino fundamental,37

STF, DJU 14 dez. 2001, RE 264289/CE, Min. Seplveda Pertence.

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no era arbitrria, ilimitada, verdadeiro cheque em branco, como se alega, mas sujeita a condies (critrio previsto em lei) e limites (custo atuarial do ensino fundamental) tambm previstos em lei. (...) O que restaria verificar, portanto, j que, pelo critrio estabelecido no decreto-lei, a determinao da alquota do salrio-educao se revelou tarefa inadequada ao legislador, se houve observncia dos parmetros legais, como preconizado no art. 178 da EC 01/69 (...).38 31. Em sede abstrata, o tema foi examinado indiretamente na

ADIn n 166839, na qual se considerou invlido dispositivo da Lei da ANATEL (Lei n 9.472/97) que conferia agncia poderes normativos para dispor sobre o procedimento licitatrio simplificado de outorga do servio de telefonia40. Notese que, na hiptese, a delegao (i) no foi acompanhada de parmetros, mesmo porque o art. 210 da Lei 9.472/97 excluiu expressamente a aplicao das Leis ns 8.666/93, 8.987/95 e 9.074/95 s concesses, permisses e autorizaes dos servios de telecomunicaes e uso de radiofreqncia41; e (ii) foi feita ao prprio rgo que procederia s licitaes em concreto, e no ao Chefe do Executivo.

32.

Pois bem: vista dos elementos expostos, passa-se agora a

examinar a validade do art. 67 da Lei n 9.478/97, cujo teor j foi acima transcrito (v. nota 1). A questo, a rigor, no envolve maior complexidade. Em primeiro lugar, no h dvida de que a disciplina das licitaes e dos contratos envolvendo a Administrao Pblica seja a geral, seja a prpria das sociedades de economia mista exploradoras de atividade econmica, seja ainda a referente Petrobras no se sujeita reserva de lei formal prevista no art. 62, 1 da Constituio.38 39 40 41

STF, DJU 4 abr. 2003, RE 290079-6/SC, Rel. Min. Ilmar Galvo. STF, DJU 23 out. 1997, ADIn 1668, Rel. Min. Marco Aurlio de Mello. STF, DJU 23 out. 97, ADIn 1668, Rel. Min. Marco Aurlio de Mello.

Ademais, as outras disposies sobre o tema licitaes contidas na prpria Lei da ANATEL tambm eram objeto de impugnao por inconstitucionalidade na mesma ocasio.

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33.

bem de ver, ainda, que a delegao prevista no dispositivo

pode ser desfeita, se for o caso. Nada h que impea o Poder Legislativo de retomar a competncia eventualmente delegada ao Executivo, nesse caso. Ademais, enquanto no sobrevier o estatuto geral previsto pela EC n 19/98, o Decreto n 2.745/98, anterior Emenda referida, encontra espao legtimo de regulamentao, especificamente em relao consulente, conforme autorizado pela Lei n 9.478/97. Sobrevindo tal estatuto, poder ele revogar a delegao feita pela Lei n 9.478/97, se assim entender por bem, e substituir o Decreto na regulamentao do procedimento licitatrio da consulente. Nesse quadro, no consistente a crtica de que se estaria transferindo ao Executivo tema que apenas poderia ser tratado por lei formal.

34.

Em segundo lugar, tambm no haveria aqui razo especfica

para exigir-se a reserva absoluta de lei. Isto , em matria de licitaes, no indispensvel que a lei (formal ou material) regule todos os aspectos possveis da questo, de modo a restringir ao mnimo indispensvel a atividade regulamentar do Executivo. Mesmo porque a simplificao do regime licitatrio no envolve a restrio de direitos fundamentais, no limita direitos subjetivos e nem cria obrigaes oponveis aos particulares. Salvo, claro, se, a pretexto de dispor sobre um procedimento licitatrio, forem veiculadas normas incompatveis com os fins constitucionais associados licitao. Esse, porm, no o caso do Decreto n 2.745/98, como se ver adiante.

35.

A prpria Lei n 8.666/93 ilustra o que se acaba de afirmar:

que no se trata aqui de reserva absoluta de lei. Com efeito, a lei prev em vrios de seus dispositivos a possibilidade de rgos da Administrao expedirem regulamentos, ainda que, em geral, se registre que tais atos do Executivo no

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afastam a incidncia das regras contidas em seu texto42. De forma mais abrangente, o art. 123 da Lei n 8.666/93 autoriza a expedio de regulamentos para disciplinar a atuao de reparties sediadas no exterior que devem submeter-se apenas aos princpios bsicos da Lei n 8.666/93, e no a todas as suas regras43, conferindo ao Executivo, ao menos tendo em conta a noo clssica de poder regulamentar, um espao substancialmente mais amplo de atuao.

36.

Ora: o comando contido no art. 67 da Lei n 9.478/97

assemelha-se em muito ao contido no art. 123 da Lei n 8.666/93. Na mesma linha da lei geral, aqui compete ao Chefe do Executivo organizar, a partir do procedimento licitatrio padro, uma regra especial, aplicvel consulente, e que deve corresponder a uma simplificao das regras gerais. Talvez se possa dizer que o art. 67 outorgou um espao mais amplo de atuao ao Executivo, caracterizando uma delegao legislativa, e no apenas o exerccio do poder regulamentar. Seja como for, certo que no se trata de reserva absoluta de lei. E se assim, a validade da competncia prevista no art. 67 tenha ela natureza de poder regulamentar ou de delegao legislativa depender da existncia de parmetros que permitam o controle da ao do Poder Executivo44. Esta, portanto, a questo que resta examinar.

42

Lei n 8.666/93: Art. 115. Os rgos da Administrao podero expedir normas relativas aos procedimentos operacionais a serem observados na execuo das licitaes, no mbito de sua competncia, observadas as disposies desta Lei. (...) Art. 119. As sociedades de economia mista, empresas e fundaes pblicas e demais entidades controladas direta ou indiretamente pela Unio e pelas entidades referidas no artigo anterior editaro regulamentos prprios devidamente publicados, ficando sujeitas s disposies desta Lei. Lei n 8.666/93: Art. 123. Em suas licitaes e contrataes adminsitrativas, as reparties sediadas no exterior observaro as peculiaridades locais e os princpios bsicos desta Lei, na forma de regulamentao especfica. Note-se que o controle da ao do Poder Executivo pode ser levado a cabo pelo Poder Judicirio e pelo prprio Poder Legislativo que, alm da possibilidade de revogar o dispositivo em questo ou dispor de forma diversa por meio de lei, poder, nos termos do art. 49, V, da Constituio, sustar os atos normativos que exorbitem do poder regulamentar ou dos limites da delegao legislativa.

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44

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37.

De forma mediata, o Decreto procura estabelecer um

equilbrio timo entre dois parmetros constitucionais: a sujeio da consulente aos princpios gerais incidentes sobre a Administrao Pblica (CF, art. 37, caput) e o dever de licitar (CF, art. 22, XXVII, art. 37, XXI e art. 173, 1, III), de um lado, e, de outro, o fim constitucional atribudo s estatais exploradoras de atividade econmica (CF, art. 173, caput), sua sujeio ao direito privado e ao regime concorrencial (CF, art. 173) e a diretriz constitucional que determinou a edio de regime jurdico diferenciado para tais empresas em matria de licitaes e contratos (CF, art. 22, XXVII, e art. 173, 1, III). O Decreto faz referncia explcita a tais parmetros45.

45

Embora a anlise ora empreendida concentre-se na constitucionalidade em tese da delegao, vale reproduzir alguns dos dispositivos referidos do Decreto, para ilustrar: Captulo I. Disposies gerais. (...) 1.2. A licitao destina-se a selecionar a proposta mais vantajosa para a realizao da obra, servio ou fornecimento pretendido pela PETROBRAS e ser processada e julgada com observncia dos princpios da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da publicidade, da igualdade, bem como da vinculao ao instrumento convocatrio, da economicidade, do julgamento objetivo e dos que lhes so correlatos. (...) 1.4.1. As compras realizadas pela PETROBRAS devero ter como balizadores: a) o princpio da padronizao, que imponha compatibilidade de especificaes tcnica e de desempenho, observadas, quando for o caso, as condies de manuteno, assistncia tcnica e de garantia oferecidas; b) condies de aquisio e pagamento semelhantes s do setor privado; e c) definio das unidades e quantidades em funo do consumo e utilizao provveis. (...) 1.8.1. A licitao no ser sigilosa, sendo pblicos e acessveis a todos os interessados os atos de seu procedimento. (...) 1.10. Sempre que reconhecida na prtica comercial, e sua no utilizao importar perda de competitividade empresarial, a PETROBRAS poder valer-se de mecanismos seguros de trasmisso de dados distncia, para fechamento de contratos vinculados s suas atividades finalsticas, devendo manter registros dos entendimentos e tratativas realizados e arquivar as propostas recebidas, para fins de sua anlise pelos rgos internos e externos de controle. (...) Captulo III. Modalidades, tipos e limites de licitao. (...) 3.3. Para a escolha da modalidade de licitao sero levados em conta, dentre outros, os seguintes fatores: a) necessidade de atingimento do segmento industrial, comercial ou de negcios correspondente obra, servio ou fornecimento a ser contratado; b) participao ampla dos detentores da capacitao, especialidade ou conhecimento pretendidos; c) satisfao dos prazos ou caractersticas especiais da contratao; d) garantia e segurana dos bens e servios a serem oferecidos; e) velocidade de deciso, eficincia e presteza da operao industrial, comercial ou de negcios pretendida; f) peculidaridades da atividade e do mercado de petrleo; g) busca de padres internacionais de qualidade e produtividade e aumento da eficincia; h) desempenho, qualidade e confiabilidade exigidos para os materiais e equipamentos; i) conhecimento do mercado fornecedor de materiais e equipamentos especficos da indstria de petrleo, permanentemente qualificados por mecanismos que verifiquem e certifiquem suas instalaes, procedimentos e sistemas de qualidade, quando exigveis.

23

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38.

De forma imediata, o parmetro fixado pela Lei n 9.478/97

foi, sem dvida, o procedimento licitatrio padro, previsto na Lei n 8.666/93. Nem haveria, a rigor, como ser diferente. Ao utilizar a expresso procedimento licitatrio simplificado, a Lei n 9.478/97 refere-se ao procedimento licitatrio existente no pas, que at porque no h outro o previsto na Lei n 8.666/93. O parmetro legal, portanto, determinou ao Poder Executivo a simplificao do procedimento padro. Isso significa, como parece evidente, que o Decreto no haveria de reproduzir o que dispe a Lei n 8.666/93, sob pena de ser incuo e no se prestar sua finalidade. Por outro lado, tambm no poderia conceber uma estrutura de procedimento licitatrio totalmente diversa da hoje existente. E de fato, sem embargo de obedecer ao comando de simplificao do art. 67 da Lei n 9.478/97, o Decreto chega a praticamente reproduzir muitos dispositivos da lei geral de licitaes e contratos administrativos (e.g., itens 2.1, 2.2 e 2.3 do Decreto n 2.745/98, que cuidam das hipteses de dispensa e inexigibilidade de licitao).

39.

Cabe fazer uma observao final nesse ponto. Com a abertura

do mercado petrolfero, o fator tempo se tornou determinante na sobrevivncia das empresas que nele atuam, tendo em conta metas e prazos estabelecidos pela regulamentao da prpria Agncia Nacional do Petrleo ANP, em especial no que toca explorao de campos e bacias petrolferas. De fato, a inobservncia de tais prazos e metas pode importar na devoluo inoportuna de blocos adquiridos pela consulente, com a conseqente perda de investimentos de grande porte e todos os demais prejuzos da decorrentes para o interesse pblico. Assim, a adoo de um modelo licitatrio que permita consulente a tomada de medidas geis e que levem em conta suas caractersticas e objetivos especficos, dentro de um espao razovel de discricionariedade reservado ao administrador46, 46

Como registra Celso Antnio Bandeira de Mello, discricionariedade apenas e to-somente a margem de liberdade que remanea ao administrador para eleger, segundo critrios consistentes de razoabilidade, um, dentre pelo menos dois comportamentos cabveis, perante 24

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fundamental para que se torne competitiva no setor do petrleo, sendo a soluo mais adequada realizao dos fins constitucionais.

40.

Em suma: tendo-se em conta que no se est diante de

reserva de lei formal ou de reserva absoluta de lei e que o art. 67 da Lei n 9.478/97 veicula parmetros adequados, capazes de nortear e controlar a atuao do Chefe do Executivo, no h por que questionar a validade do dispositivo ou, nesse sentido, do Decreto n 2.745/98.

IV. VALIDADE DO PROCEDIMENTO LICITATRIO INSTITUDO PELO DECRETON 2.74598

41.

O Decreto n 2.745/98, em seu item 3.1, enumerou as

modalidades de licitao aplicveis consulente, de maneira idntica ao dispositivo correspondente da Lei n. 8.666/93 (art. 22), a saber: concorrncia, tomada de preos, convite, concurso e leilo. Interessa especificamente consulente a distino existente entre os regimes da Lei n 8.666/93 e do Decreto relativamente aos critrios a serem utilizados para a definio da modalidade licitatria aplicvel, em particular no que diz respeito ao convite.

42.

Com efeito, e como j referido, o Decreto utiliza um conjunto

de critrios a serem aferidos in concreto pelo administrador, em lugar de se valer de uma tabela de valores objetivos, como faz a Lei n 8.66693. Por conta dacada caso concreto, a fim de cumprir o dever de adotar a soluo mais adequada satisfao da finalidade legal, quando, por fora da fluidez das expresses da lei ou da liberdade conferida no mandamento, dela no se possa extrair, objetivamente, uma soluo unvoca para a situao vertente. (Discricionariedade e controle jurisdicional, 2003, p. 48). Constitui, assim, instrumento legtimo para o cumprimento timo das finalidades que a Constituio e a lei impem ao administrador, nem por isso representando uma esfera de liberdade irrestrita para a Administrao, isto , imune ao controle de juridicidade.

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maior subjetividade que tais critrios ensejam, h quem sustente que, alm de ilegal, por vulnerar o que dispe a Lei n 8.666/93, o Decreto violaria nesse ponto os princpios constitucionais da Administrao Pblica, em particular a impessoalidade e a moralidade. Vale transcrever o que dispem, sobre o ponto, respectivamente, a Lei n 8.666/93 e o Decreto n 2.745/98:

- Lei n 8.666/93 Art. 23. As modalidades de licitao a que se referem os incisos I a III do artigo anterior [concorrncia, tomada de preos e convite] sero determinadas em funo dos seguintes limites, tendo em vista o valor estimado da contratao: I para obras e servios de engenharia: a) convite at R$ 150.000,00 (cento e cinqenta mil reais); b) tomada de preos at R$ 1.500.000,00 (um milho e quinhentos mil reais); c) concorrncia acima de R$ 1.500.000,00 (um milho e quinhentos mil reais); II para compras e servios no referidos no inciso anterior: a) convite at R$ 80.000,00 (oitenta mil reais); b) tomada de preos at R$ 650.000,00 (seiscentos e cinqenta mil reais); c) concorrncia acima de R$ 650.000,00 (seiscentos e cinqenta mil reais). - Decreto n 2.745/98 3.3. Para a escolha da modalidade de licitao sero levados em conta, dentre outros, os seguintes fatores: a) necessidade de atingimento do segmento industrial, comercial ou de negcios correspondente obra, servio ou fornecimento a ser contratado; b) participao ampla dos detentores da capacitao, especialidade ou conhecimento pretendidos; c) satisfao dos prazos ou caractersticas especiais da contratao; d) garantia e segurana dos bens e servios a serem oferecidos;

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e) velocidade de deciso, eficincia e presteza da operao industrial, comercial ou de negcios pretendida; f) peculiaridades da atividade e do mercado de petrleo; g) busca de padres internacionais de qualidade e produtividade e aumento da eficincia; h) desempenho, qualidade e confiabilidade exigidos para os materiais e equipamentos; i) conhecimento do mercado fornecedor de materiais e equipamentos especficos da indstria de petrleo, permanentemente qualificados por mecanismos que verifiquem e certifiquem suas instalaes, procedimentos e sistemas de qualidade, quando exigveis. 43. Como se v, enquanto a lei geral de licitaes encerra um

nico critrio objetivo o critrio do valor , o Regulamento do Procedimento Licitatrio Simplificado da Petrobras adota um conjunto de critrios de natureza subjetiva mas nem por isso infensos a verificao e controle , a serem aplicados e sopesados vista do caso concreto. A pergunta a seguinte: poderia o Decreto n 2.745/98 t-lo feito, abandonando o critrio objetivo do valor? A resposta, luz dos princpios aplicveis atuao da consulente, afigura-se afirmativa.

44.

Em primeiro lugar, mesmo os no especialistas podem

perceber a inadequao do parmetro fixado pela Lei n 8.666/93 para o mercado de petrleo. Alm da rigidez de se utilizarem valores fixos, no caso especfico da modalidade convite os valores estimados muito baixos praticamente tornariam intil essa modalidade de licitao, tendo em conta as dimenses econmicas dos negcios do setor. De forma geral, a possibilidade de se adotar uma modalidade de licitao de maior ou menor complexidade e onerosidade em funo das circunstncias e necessidades do caso certamente um mecanismo que pode conferir maior agilidade e eficincia atuao da empresa.

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45.

Em segundo lugar, no h dvida de que os critrios fixados

pelo Decreto ligam-se de forma clara e direta realizao dos dois fins constitucionais visados com o procedimento licitatrio: a obteno, de um lado, da melhor proposta e do melhor servio ou bem para a Administrao e, de outro, a garantia de tratamento isonmico a todos os interessados que sejam capazes de oferecer tal bem ou servio Administrao. Explica-se melhor.

46.

Vinculado ao primeiro objetivo, o Decreto n 2.745/98 exige

que se levem em conta fatores como prazo (3.3, c), garantia e segurana dos bens e servios oferecidos (3.3, d), velocidade, eficincia e presteza na operao pretendida (3.3, e), busca de padres internacionais de qualidade (3.3, g), desempenho, qualidade e confiabilidade dos materiais e equipamentos (3.3, h), etc.. Na linha do segundo objetivo, o Decreto determina que se assegure a participao ampla dos que detm a capacitao, especialidade ou conhecimento pretendidos (3.3, b). Ou seja: os mecanismos criados pelo Decreto n 2.745/98 visam a realizar os mesmos fins que a Lei n 8.666/93 procurou atingir, que so, afinal, os fins pretendidos pela Constituio ao impor Administrao o dever de licitar. A diferena que a Lei adotou um critrio objetivo e o Decreto, um critrio mais complexo, que exige avaliaes e ponderaes por parte do administrador.

47.

Nesse ponto, h necessidade de uma observao. Foi-se o

tempo em que os problemas eram simples e as respostas a eles podiam ser prfabricadas em carter geral. O mundo contemporneo no convive mais com as solues simplistas. Os problemas compreendem uma multiplicidade de elementos e a realizao do interesse pblico envolve sutilezas e complexidades. No mais possvel fiar-se apenas em critrios objetivos e frmulas padronizadas, a despeito do conforto que eles podem transmitir. Muitas vezes, o

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administrador, para atender ao interesse pblico, ter de tomar decises difceis, cabendo-lhe demonstrar a racionalidade de sua avaliao por meio de motivao especfica. No toa que o tema da argumentao jurdica tem sido objeto de cada vez maior quantidade de estudos, j que esse instituto tornou-se fundamental na construo da legitimidade dos atos do Poder Pblico47.

48.

certo que os critrios objetivos como os previstos na Lei

n 8.666/93 facilitam a fiscalizao e simplificam, nesse aspecto, o processo decisrio. Sua utilidade persiste, no h dvida, mas a utilizao de critrios objetivos no a nica forma de atingir os fins constitucionais e, eventualmente, pode no ser sequer uma forma adequada de atingi-los, sobretudo quando a realidade e o mercado de petrleo certamente um exemplo oferece questes que no podem ser solucionadas por essa espcie de frmula.

49.

Deve-se enfatizar que o emprego de critrios mais

complexos, que exigem avaliaes in concreto por parte do aplicador, no impossibilita o controle de tais avaliaes. Muito ao revs, exatamente por conta dessa maior carga de subjetividade, o aplicador dever ser capaz de demonstrar racionalmente porque considerou sua deciso a mais adequada para o interesse pblico no caso48.Sobre o tema teoria da argumentao, v. Lus Roberto Barroso e Ana Paula de Barcellos, O comeo da histria. A nova intrepretao constitucional e o papel dos princpios no direito brasileiro. In: Luis Roberto Barroso (org.), A nova interpretao constitucional. Ponderao, direitos fundamentais e relaes privadas, 2006, p. 350-8; Chaim Perelman e Lucie OlbrechtsTyteca, Tratado da argumentao: a nova retrica, 1996 (1a. edio do original Trait de largumentation: la nouvelle rhtorique, 1958); Stephen E. Toulmin, The uses of argument, 1958; Neil Maccormick, Legal reasoning and legal theory, 1978; Robert Alexy, Teoria de la argumentacin jurdica, 1989 (1a. edio do original Theorie der juristischen Argumentation, 1978); Manuel Atienza, As razes do direito. Teorias da argumentao jurdica, 2002; Antnio Carlos Cavalcanti Maia, Notas sobre direito, argumentao e democracia. In: Margarida Maria Lacombe Camargo (org.), 1988-1998: uma dcada de Constituio, 1999.48 47

O ponto destacado por Maral Justen Filho, ao tratar, de forma geral, sobre a impossibilidade de aplicarem-se s estatais exploradoras de atividade econmica as regras da Lei n 8.666/93: A disciplina das contrataes administrativas deve ser compatvel com o 29

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50.

Em resumo: os critrios adotados pelo Decreto n 2.745/98

para a escolha das modalidades de licitao, e do convite em particular, no tm o condo de frustrar o carter de competio da licitao, nem violam, per se, os princpios constitucionais a que est submetida a Petrobras, no havendo qualquer inconstitucionalidade em tese na no observncia do critrio de valores objetivos adotados pela Lei n 8.666/93.

IV. CONCLUSES

51.

Ao fim desta exposio, possvel compendiar as principais

idias desenvolvidas nas proposies seguintes:

A.

As sociedades de economia mista que exploram atividade

econmica tm um regime diferenciado no mbito da Administrao Pblica, tendo em conta as necessidades de flexibilidade, agilidade, competitividade e eficincia que se ligam de forma direta razo de existncia dessas entidades e ao interesse pblico que devem realizar. Um dos aspectos centrais desse regime diferenciado justamente a disciplina das licitaes e contratos aplicvel a tais empresas. Essa diretriz, que j constava do texto original da Constituio de 1988, tornou-se ainda mais explcita aps a Emenda Constitucional n 19/98.

funcionamento eficiente das organizaes administrativas. Logo, as entidades que desenvolvem atividade econmica no podem sujeitar-se ao mesmo regramento licitatrio previsto para a Administrao direta e autrquica. Isso incompatvel com os prprios fins buscados por elas e acarreta frustrao de sua competitividade no mercado. (...) Isso no significa liber-las das regras sobre licitao e publicidade, mas adotar disciplina mais simples, dinmica e compatvel com a natureza de sua atuao. A sumariedade das formalidades no mbito licitatrio dever ser compensada pelo incremento dos controles no mbito de motivao e eficincia, com ampla responsabilizao dos administradores por contrataes despropositadas. (Comentrios lei de licitaes e contratos administrativos, 2002, p. 23-4.).

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B.

No se vislumbra invalidade no art. 67 da Lei n 9.478/97. A

matria por ele versada no est submetida reserva de lei formal ou reserva absoluta de lei. Ademais, a ao do Chefe do Executivo, na hiptese, est vinculada a parmetros constitucionais e legais, em particular estrutura geral do procedimento licitatrio padro previsto na Lei n 8.666/93, que o Executivo deveria simplificar. Isso no significa, como parece evidente, que o Executivo deveria reproduzir o que dispe a Lei n 8.666/93, sob pena de sua ao ser incua e no se prestar sua finalidade.

C.

No que diz respeito aos critrios fixados pelo Decreto n

2.745/98 para a escolha das modalidades de licitao, eles se vinculam diretamente s duas finalidades constitucionais associadas tcnica da licitao: obteno de melhor proposta para a Administrao e garantia de tratamento isonmico a todos os interessados capazes de atender s necessidades do Poder Pblico. A utilizao de um critrio totalmente objetivo como o previsto na Lei n 8.666/93 no o nico meio de realizar os fins constitucionais e, eventualmente, tendo em conta a complexidade da realidade sobre a qual dever incidir, poder at mesmo no ser um meio adequado. A existncia de maior subjetividade no compromete, portanto, a validade do Decreto, mas impe ao administrador o dever jurdico de racionalmente demonstrar que sua deciso foi a mais adequada para o interesse pblico no caso.

como me parece. Rio de Janeiro, 09 de janeiro de 2006

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