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PARNASIANISMO E SIMBOLISMO AO ALCANCE DE TODOS: LEITURA DE POETAS BRASILEIROS CAMILLO CAVALCANTI (UFF) O Parnasianismo foi uma reviravolta da poesia romântica, para além da fácil confissão sentimentalista, em direção à experimentação dos elementos poéticos: língua, arte, ritual, palavra, ritmo, tema, for- ma, rima, sujeito lírico, etc., que só perdeu a hegemonia no cenário literário depois da Semana de Arte Moderna de1922 – i.e., o seu fim ou exaustão é concomitante com o esgotamento também do Simbolis- mo. Devido à ruptura com o sentimentalismo, pode-se afirmar que o momento parnasiano foi a primeira experiência do novo dentro do próprio novo, isto é, nas palavras de Compagnon, a primeira “traição moderna” da “tradição de ruptura” (1999, p. 9-13), desde a derrubada dos padrões clássicos pelo Romantismo. Para a gênese do Parnasia- nismo, leia-se a proposta de Manuel Bandeira: Em 78 se trava pelas colunas do Diário do Rio de Janeiro a "bata- lha do Parnaso". Não se entenda aqui "Parnaso" como sinônimo de parnasianismo. A batalha chamou-se do Parnaso porque os golpes se desfechavam em versos, quase sempre incorretos, na gramática e na metrificação, segundo os cânones parnasianos posteriores. (Bandeira, 1946, 96-7) Com a Batalha do Parnaso, triunfa o novo estilo. Confiantes numa drástica ruptura com os padrões românticos — dos quais só lograram efetivamente apaziguar o sentimentalismo derramado —, os parnasianos, a exemplo da França, lançam mão da poesia de temas

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PARNASIANISMO E SIMBOLISMO AO ALCANCE DE TODOS:

LEITURA DE POETAS BRASILEIROS

CAMILLO CAVALCANTI (UFF)

O Parnasianismo foi uma reviravolta da poesia romântica, para

além da fácil confissão sentimentalista, em direção à experimentação

dos elementos poéticos: língua, arte, ritual, palavra, ritmo, tema, for-

ma, rima, sujeito lírico, etc., que só perdeu a hegemonia no cenário

literário depois da Semana de Arte Moderna de1922 – i.e., o seu fim

ou exaustão é concomitante com o esgotamento também do Simbolis-

mo. Devido à ruptura com o sentimentalismo, pode-se afirmar que o

momento parnasiano foi a primeira experiência do novo dentro do

próprio novo, isto é, nas palavras de Compagnon, a primeira “traição

moderna” da “tradição de ruptura” (1999, p. 9-13), desde a derrubada

dos padrões clássicos pelo Romantismo. Para a gênese do Parnasia-

nismo, leia-se a proposta de Manuel Bandeira:

Em 78 se trava pelas colunas do Diário do Rio de Janeiro a "bata-lha do Parnaso". Não se entenda aqui "Parnaso" como sinônimo de parnasianismo. A batalha chamou-se do Parnaso porque os golpes se desfechavam em versos, quase sempre incorretos, na gramática e na metrificação, segundo os cânones parnasianos posteriores. (Bandeira, 1946, 96-7)

Com a Batalha do Parnaso, triunfa o novo estilo. Confiantes

numa drástica ruptura com os padrões românticos — dos quais só

lograram efetivamente apaziguar o sentimentalismo derramado —, os

parnasianos, a exemplo da França, lançam mão da poesia de temas

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greco-latinos, balizada pelo caráter épico que, fundido ao lirismo e ou

erotismo, tende ao prosaísmo. Enfraquece igualmente a epicidade dos

poemas o descritivismo com que esperavam fruir o meio circundante,

objetos ou seres exteriores (dentre os últimos, inclui-se a mulher),

resvalando para o fantástico ou o sensualista. Mas será o livro de es-

tréia do baluarte parnasiano, Alberto de Oliveira, que registrará, nos

autos da história, a vinculação entre sentimentais e parnasianos: Can-

ções Românticas (1878). Sobrevém o apuro formal, no intuito de apre-

ender ao máximo a beleza das coisas – o que se coaduna enfaticamente

com a preocupação descritiva – evitando o “descuido romântico” para

com a estrutura do verso (ritmo, metro, rima, estrofe). A poética par-

nasiana passa a ser inúmeras vezes trabalhada, para que, no esgota-

mento da linguagem, a expressão (lingüística mesmo) possa suscitar a

beleza o mais intensamente possível. O Simbolismo irá retomar esse

aspecto, porém com outro objetivo: não a beleza do ser, mas a beleza

do inefável. A chamada exuberância dos objetos parnasianos não é, de

forma alguma, bombástica ou pedante, mas experimental. Na verdade,

ela tem outra natureza que não a verborragia: trata-se dos primeiros

esboços impressionistas, pois o Parnasianismo fixa o objeto no íntimo,

através de um instantâneo, tal a impressão da paisagem do Impressio-

nismo. Um deles é “Vaso Grego”, de Alberto de Oliveira, que consti-

tui uma dinâmica interna, de pertencimento histórico quase nulo, ce-

dendo lugar ao fascínio da mitologia, numa re-criação plenamente

imaginativa e inventiva:

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VASO GREGO

Esta de áureos relevos, trabalhada De divas mãos, brilhante copa, um dia, Já de aos deuses servir como cansada Vinda do Olimpo, a um novo deus servia.

Era o poeta de Teos que a suspendia Então, e, ora repleta ora esvasada, A taça amiga aos dedos seus tinia, Toda de roxas pétalas colmada.

Depois... Mas o lavor da taça admira, Toca-a, e do ouvido aproximando-a, às bordas Finas hás-de lhe ouvir, canora e doce,

Ignota voz, qual se da antiga lira Fosse a encantada música das cordas, Qual se essa voz de Anacreonte fosse.

(Oliveira, 1978, p. 144)

A taça, que representa o estro, deixa de servir aos deuses, como

que por vontade própria, e passa para as mãos de uma figura “monis-

ta”, quer seja o homem, quer seja Deus (judaico-cristão), a depender

da ênfase que se dê a um dos termos do sintagma-imagem "Poeta de

Teos". É a mais profunda e constante relação entre as naturezas huma-

na e divina, razão pela qual o poema se colore de certo antropocen-

trismo bem dosado e bem discreto. O poema traz uma sugestão do

mágico, do encantatório, do fantástico, quando se lê a possibilidade de

Anacreonte abraça a taça – o tema mítico da própria poesia, nos pri-

mórdios da criação. Através da metonímia entre poesia e musa, perce-

be-se que a taça se humaniza, pois se exprime, com voz “canora e

doce” quando tocada pelo Poeta: –eis a nota erótica que se desvela por

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entre o contorcionismo sintático, que aqui pode sugerir entrelaçamen-

tos sensuais. O intervalo — instaurado pelo advérbio “depois” — se-

para o soneto em dois momentos: o primeiro em que o leitor aprecia a

forma com que o Poeta lida com a taça-poesia-musa; o segundo em

que ele se dá conta dum vínculo com Anacreonte, constituindo ampli-

ficação do “Poeta de Teos” – e, então, “hás de lhe ouvir [...] ignota

voz”. Assim, um mundo iniciático é oferecido ao leitor. Costuma-se

evidenciar a poética parnasiana com os versos de “L’Art”, de Théophi-

le Gautier ou de “Profissão de Fé”, de Olavo Bilac (1922: 5-10), que é

paráfrase da primeira, com uma pequena re-criação. Numa análise

mais detida, alguns julgamentos usuais podem ser re-elaborados: a) o

culto à forma não significava o abandono do conteúdo; b) a impassibi-

lidade não procede como alicerce do estilo parnasiano; c) não existe a

reação contra o romantismo; d) o uso de inversões que comprometam

a sintaxe e a legibilidade são quase imperceptíveis; e) a preferência

pelos temas eróticos, carnais e de beleza bruta se faz ausente. Em pri-

meiro lugar, a brutalidade erótica passará longe do artista, que se pro-

põe a cantar a beleza escondida no detalhe, na leveza e na miniatura:

“Mais que esse vulto extraordinário / Que assombra a vista, / Seduz-

me um leve relicário / De fino artista.”. A dedicação para talhar uma

bela forma é pano de fundo para a expressão do sentimento: “Invejo o

ourives quando escrevo: / Imito o amor / Com que ele, em ouro, o alto

relevo / Faz de uma flor.”. O escritor afirma que a forma não é sua

única preocupação: “E horas sem conto passo, mudo, / O olhar atento,

/ A trabalhar, longe de tudo / O pensamento.”. Enfim o poeta revela

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que a forma, portadora da idéia sublime, é sua musa: “Assim procedo.

Minha pena / Segue esta norma, / Por te servir, Deusa serena, / Serena

Forma!”; e por ela cai de amores: “Celebrarei o teu ofício / No altar:

porém, / Se inda é pequeno o sacrifício, / Morra eu também! // Caia eu

também, sem esperança, / Porém tranqüilo, / Inda, ao cair, vibrando a

lança, / Em prol do Estilo!”. Lendo esse “credo” parnasiano, a impas-

sibilidade se revela cada vez mais uma alcunha dada pelos positivistas

e socialistas aos poetas da arte-pela-arte, cujas obras não acionam

qualquer engajamento, despregada, logo, de todo compromisso políti-

co, moral ou ético. Os parnasianos assumiam uma ideologia própria,

longe dos reclames históricos, optando pelo “afastamento social” —

atitude mais do sujeito poético que do sujeito tout court. Nas palavras

de Gautier:

Cremos na autonomia da arte; a arte para nós não é um meio, mas um fim; – todo artista que se proponha a algo que não seja belo não é artista a nossos olhos; jamais pudemos compreender a sepa-ração da idéia e da forma, como tampouco compreendemos o cor-po sem a alma, ou a alma sem o corpo, pelo menos em nossa esfera de manifestação; – uma bela forma é uma bela idéia, pois que seria de uma forma se não exprimisse nada? (Apud. Martino, 1967, p. 16; tradução própria)

Correlacionar Parnasianismo e Realismo (Cf. Coutinho (Org.),

1986, IV, p. 13; Candido e Castelo, 1964, II, p. 125; Bosi, 1994, p.

220) é um segundo hábito desafortunado da crítica, após depreciar sua

poesia, argumentando que a análise descricionista e objetivante seria

um tonus do estilo parnasiano, e por isso, interligado fortemente ao

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Realismo, distinguindo-se deste pelo caráter reificador e “frio”, sobre-

vindo da impassibilidade com que se tratavam as coisas e os seres.

Ora, o Parnasianismo não exclui a carga emotiva: a “ponderação fria”

e “o poeta aço puro”, como afirmava Novalis, eram “defesa contra a

vida habitual” (Friedrich, 1991, p. 28), e “o próprio aparecimento, pela

primeira vez, da expressão arte pela arte está relacionado com os mei-

os românticos alemães, em especial de Weimar e Jena” (Silva, 1973, p.

83). Na verdade, é da poesia parnasiana que o Realismo se ausenta, já

que este se atém à observação da realidade, enquanto a inspiração em

modelos greco-romanos é de caráter ideativo, como bem ressaltou

Carmelo Bonet: “El realista – insistimos – copia la realidad sin defor-

marla. El idealista hace otra cosa: forja en su espíritu un molde estético

y a ese molde somete la realidad sensible.” (1958, p. 19). A corrente

parnasiana priorizava leituras greco-romanas, latinas, modernas nessa

tradição clássica de uma estética formalista (formas fixas), universal

(tema do amor e outros sentimentos) e abstracionista (arte-pela-arte,

temas independentes da vida real), bem opositora da estética realis-

ta/naturalista (que é, como se sabe, bastante pregada ao real), devido

ao caráter de imaginação poética na re-criação dos temas antigos: “los

períodos en que el artista se inspira más en los modelos antiguos que

en la realidad que lo circunda, y en los cuales la fantasía ocupa el sitio

de la observación” são “malos tiempos para el realismo.” (1958, p. 12

e 13). Desse modo, o lugar poético, geralmente extinto ou longínquo,

se cobre de fantasia, idealização e imaginação, porque era desconheci-

do, mítico e singular; daí o exotismo, que tomava conta das idéias de

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particular, raro, especial – é o fragmentário entendido em seu aspecto

mágico. Dessa linha brotam os poemas históricos e descritivos, com

intuito de experienciar esses elementos regionais e localistas do exo-

tismo, na sua dimensão encantada. Nessa investigação de lugares des-

conhecidos, objetos fetichistas e culturas exóticas, o parnasiano, além

de querer garantir a tradição clássica dos temas imortais na exaltação

de tempos heróicos de diversas civilizações (China, Japão, Egito, A-

meríndia, Fenícios, Creta, Grécia, etc.), se caracterizava pelo

tratamento do tema, através de um encantamento imaginativo e criati-

vo, bem diferente das antigas escolas clássicas (longe da invenção,

repetiam, segundo os cânones da imitatio) – como as Viagens, de

Olavo Bilac, cheias de fantasia e inventividade. Na volta ao tempo, o

parnasiano então explora culturas de civilizações extintas, exóticas ou

antigas – verdadeira experiência arqueológica: “um exército de deuses

e deusas saiu das tumbas para obsediar as imaginações” (Carpeaux,

1987, p. 1426). Aponte-se, como exemplo, “Fantástica”, de A. de

Oliveira, poema analisado por Antonio Candido (1985), que lhe

enfatizou o tonus antigo.

Despregando-se de suas referências histórico-contextuais, como

os românticos alemães preconizaram, “a lírica é uma oposição [...]

contra um mundo dos hábitos”, formando um universo encantatório,

litúrgico, iniciático; por isso, “a magia poética é severa, é [nas palavras

de Novalis] uma ‘fusão da fantasia com a força do pensamento’.” (Fri-

edrich, 1991, p. 28). claro está que a nota erótica surge como conse-

qüência irremediável do apelo ao pictórico, sobretudo ao se falar da

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mulher. Por outro lado, as paisagens, também exóticas, mostram con-

tornos claros e vivos, cores intensas, opulência de estímulos. Certo é

que a maior aspiração clássico-formalista do Parnasianismo, articulan-

do-se com o idealismo mágico do Romantismo de Jena, levava a “um

completo ‘alheamento’, para conduzir à ‘pátria superior [cuja] opera-

ção consiste em deduzir do conhecido o desconhecido”, como pensava

Novalis (Idem, p. 29):

A art pour l'art representa, sem dúvida, o mais complexo pro-blema em todo o campo da estética. Nada expressa tão incisi-vamente a natureza dualista, espiritualmente dividida da con-cepção artística. É a arte seu próprio fim ou apenas um meio para um fim [leia-se fim social]? (Hauser, 1998, p. 747)

Essa sociedade ideal seria supranacional; desenraizada do mun-

do real, adquire caracteres fantásticos (na efabulação) e impressionis-

tas (no paisagismo), passando pela construção de uma utopia: a inicia-

ção do leitor no exótico. Na prosa, reconhecem-se mais nitidamente os

laços com o mundo encantatório: “nas histórias fantásticas [...] os con-

tos de Gautier [...] estão conformes à regra.” (Todorov, 1975, p. 90).

Assim, a poesia também é carregada de uma atmosfera transcendental,

mística ou onírica (no Brasil, contudo, excluem-se do Parnasianismo

temas sobre entorpecentes, os “paraísos artificiais” de Baudelaire). O

caráter mágico dos ambientes “ultra-espirituais” ou “ultra-dimensio-

nais” foi traduzido, pelos poetas brasileiros, numa re-leitura dos temas

naturais, como “Plenilúnio” e “Anoitecer”, de Raimundo Correia, este

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último poema analisado, sob o mesmo ponto de vista, por Alfredo

Bosi (1996):

Esbraseia o Ocidente na agonia O sol... Aves em bandos destacados, Por céus de oiro e de púrpura raiados Fogem... Fecha-se a pálpebra do dia... Delineiam-se, além, da serrania Os vértices de chama aureolados, E em tudo, em tôrno, esbatem derramados Uns tons suaves de melancolia... Um mundo de vapores no ar flutua... Como uma informe nódoa, avulta e cresce A sombra à proporção que a luz recua... A natureza apática esmaece... Pouco a pouco, entre as árvores, a lua Surge trêmula, trêmula... Anoitece.

(CORREIA, 1948, p. 120)

Tal interesse pela natureza transubstancia-se, muitas vezes, em

nossa identidade, como Natália e Terra Natal, de Alberto de Oliveira,

em que o teor fantástico transborda de retratos aborígines, recorrendo

em forte impressionismo, sobre regiões fluminenses, sobretudo flores-

tais, com referências à fauna e à flora (toponímias) que enriquecem o

texto de um naturismo (e não naturalismo) sinestésico das impressões

paisagísticas (conceito de apreensão do momento-experiência). Olavo

Bilac dedicou um opúsculo ao tema do exotismo heróico-nacional, sob

o título O caçador de esmeraldas, extenso poema sobre a derrota de

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Fernão Dias Paes Leme, corajoso bandeirante, frente à natureza fantás-

tica e exótica, a grande heroína.

O sentimentalismo no Brasil foi inócuo (Cf. Lima, 1989, p. 130-

52); abandonando seus monólogos, o parnasiano almeja ao diálogo: o

crescimento interno do leitor pela experiência do sujeito poético. Re-

cuperar o fôlego da (auto)reflexão parece ser uma grande contribuição

do Parnasianismo brasileiro às letras nacionais: enfim, um refúgio

com poder contestatório (ainda que paganismo ilusório, sensualismo,

pátria superior não agradem quem os lê).

Com o triunfo do parnasianismo junto ao gosto do leitor, fecha-

se a velha página sentimentalista na França, em 1830 e no Brasil, cin-

qüenta anos depois. Mas ao contrário da França, cujo Simbolismo se

promiscuiu com o Parnasianismo, o Simbolismo do Brasil não surge

em comunhão com o Parnasianismo; pelo contrário, dividirá com ele,

através de outros agentes, as publicações da década de 1890. Não obs-

tante, esta situação não durou mais do que a década de 1890. O perío-

do sincrético, subseqüente ao Simbolismo, revela a interpenetração das

duas escolas, assinalando a impregnação de antigos parnasianos como

Alberto de Oliveira (Gomes, 1958, p. 95-110) e Coelho Neto (Couti-

nho, 1986, p. 324a) frente ao ideário simbolista.

Se as relações entre parnasianos e simbolistas no Brasil configu-

ravam uma rivalidade, a proximidade estética não pôde ser burlada,

dada a natureza formal dos dois estilos. Embora os estudos de vida

literária denunciem o preconceito parnasiano frente às novas tendên-

cias simbolistas, há afinidades como apuro formal, vocabulário erudito

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e exotismo, percebidas por Antonio Candido e Aderaldo Castelo ao

discorrerem sobre Cruz e Souza, genuíno simbolista:

A formação de Cruz e Souza foi naturalista, em ciência e estética. Já ia pelos trinta anos quando se voltou para Simbolismo, de que seria o verdadeiro fundador e um dos principais representantes en-tre nós. Por isso, sua obra guardou sempre na forma a impregnação parnasiana e, na idéia, o pessimismo e o materialismo dos realistas. (Candido e Castelo, 1978, p. 240a)

Portanto, no Brasil, se não houve autor que se entendesse parna-

siano e simbolista, por outro lado, a própria análise estética das obras

demonstra a interpenetração das duas tendências.

No caso da literatura brasileira, o domínio do parnasianismo é

incomensurável devido à adaptação que esse estilo formalista logrou

nas garras de uma mentalidade extremamente conservadora e reacio-

nária. Ou seja, a erudição estava em primeiro plano, a ponto de abri-

gar, nos anos parnasianos, a fundação da própria Academia Brasileira

de Letras. O conservadorismo da classe intelectual encontrou no for-

malismo parnasiano maneira de solidificar as instituições de um esta-

blishment estruturado no elitismo, no academicismo, no cientificismo.

O que se pode afirmar das diferenças entre Parnasianismo e Simbolis-

mo no Brasil é que o primeiro gozou de um prestígio que terminou por

sufocar o segundo. A retaliação era tamanha que os simbolistas foram

pejorativamente apelidados de nefelibatas (Coutinho, 1986, p. 323b).

O problema imediatamente em seguida à instauração é estabele-

cer a cronologia do movimento simbolista. Massaud Moisés afirma

que o Simbolismo se compreende entre 1893 e 1902, mas não deixa de

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expor outras cronologias (Moisés, 1973, p. 13-9) da parte de Wilson

Martins (que o considera efêmero e superficial); Amoroso Lima (que o

posiciona entre 1890 e 1900); e Afrânio Coutinho (que o pensa entre

1890 e 1910). Divergências à parte, vê-se que o Simbolismo teve força

na virada do século XIX ao XX.

O Simbolismo, enquanto estética, desenvolveu duas frentes de

trabalho que estruturaram as bases do movimento. A primeira, uma

discussão lingüística, se chamou teoria do símbolo. Investiga-se a

relação entre a palavra (grafia, pronúncia; significado, significante;

sentido) e a coisa (real/irreal, concreta/imaginada). Rompendo com a

hierarquia de mundos da filosofia platônica, concebe um mundo de

conexões entre o físico e o místico, o real e o transcendente. A teoria

do símbolo busca os sentidos ocultos do mundo íntimo, sensório e

espiritual, que a poesia é capaz de articular — como veículo de contato

com o transcendental. Jean-Paul prenunciava:

O verdadeiro poeta ao escrever é apenas um ouvinte, não o senhor de suas personagens; isto quer dizer que ele não compõe o diálogo juntando respostas [...] mas que, como no sonho, vê como suas personagens adquirem vida, ele escuta. (Apud Balakian, 2000, p. 24b)

A segunda frente de trabalho consolidou a famosa teoria das

correspondências. A vontade de transcendência do Simbolismo sub-

merge o poema numa atmosfera de mistério, à qual pertencem forças

ocultas que tomam conta de figuras poéticas como astros, fenômenos

naturais, entidades fantásticas, deuses, ou seja, imagens amplas que

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pretendem alcançar o infinito, numa profunda experiência mística,

com apoio de combinações sinestésicas, de cores, sons e perfumes,

fomentando a sede do infinito:

A = Órgão = Negro = Glória, Tumulto. E = Harpa = Branco = Serenidade. I = Violino = Azul = Paixão, Súplica aguda. O = Metais = Vermelho = Soberania, Glória, Triunfo. U = Flauta = Amarelo = Ingenuidade, Sorriso. A noir, E blanc, I rouge, U vert, O bleu

(Moisés, 1973: 40 e 41)

O Simbolismo é uma das propostas de estilização das idéias

românticas. A mística já era objeto de estudo no Romantismo:

Na verdade, toda a poesia, desde o começo do movimento român-tico, apossou-se do terreno da mística como uma espécie de substi-tuto para a religião: os românticos fizeram analogias ou sugestões do infinito, e o mesmo fizeram os simbolistas. Qualquer livro sobre o Romantismo nos dirá que o verdadeiro romântico encontrava sua perspectiva no sonho, o estágio intermediário entre esse mundo e o futuro; mas o simbolista cultivava os sonhos como o único nível vital da experiência do poeta[...] De fato, o simbolismo deveria ser considerado apenas uma continuação do Romantismo[.] (Balaki-an, 2000, p. 20b)

O inconsciente será explorado ao máximo através da paixão e

do sonho. Associações de idéias, aparentemente esdrúxulas e sem

nexo, se sustentam na liberdade metafórica da linguagem poética, que,

levadas ao pé da letra, seriam impraticáveis, como as grifadas:

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SIDERAÇÕES Para as estrelas de cristais gelados As ânsias e os desejos vão subindo, Galgando azuis e siderais noivados, De nuvens brancas a amplidão vestindo... N'um cortejo de cânticos alados Os arcanjos, as cítaras ferindo, Passam, das vestes nos troféus prateados, As asas de ouro finamente abrindo... Dos etéreos turíbulos de neve Claro incenso aromal, límpido e leve, Ondas nevoentas de Visões levanta... E as ânsias e os desejos infinitos Vão com os arcanjos formulando ritos Da Eternidade que nos Astros canta...

(Souza, 1923, p. 70)

Tais sinestesias representam o esforço para traduzir o indizível,

açambarcar o infinito, descobrir o oculto. Elegendo a cor branca como

principal referente ao paradigma do superior, a torre de marfim é pa-

tenteada como uma das causas simbolistas. Nota-se que o branco esta-

belece correspondência com o místico.

Os dois maiores simbolistas brasileiros, Alphonsus de Guimara-

ens e Cruz e Souza, tanto se distinguem na poética, que abrem dois

caminhos para o Simbolismo no Brasil:

Há, por outro lado, uma diferenciação temática no interior do Sim-bolismo brasileiro: a vertente que teve Cruz e Souza por modelo tendia a transfigurar a condição humana e dar-lhes horizontes

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transcendentais capazes de redimir os seus duros contrastes; já a que se aproximou de Alphonsus, e preferia Verlaine a Baudelaire, escolheu apenas as cadências elegíacas e fez da morte objeto de uma liturgia cheia de sombras e sons lamentosos. (Bosi, 1994, p. 269a)

Cruz e Souza, numa eloqüência de rara justeza, dissemina ima-

gens múltiplas que, circundando um mesmo objeto, realizam uma

apologia das coisas. Por isso é que encontramos tantas evocações que

glorificam os seres pela experiência mística que dão ao EU-lírico:

LÉSBIA (Souza, 1923, p. 71) Cróton selvagem, tinhorão lascivo, Planta mortal, carnívora, sangrenta Da tua carne báquica rebenta A vermelha explosão de um sangue vivo. [...] DEUSA SERENA (Souza, 1923, p. 100) Espiritualizante Formosura Gerada nas Estrelas impassíveis, Deusa de formas bíblicas, flexíveis, Dos eflúvios da graça e da ternura. Açucena dos vales da Escritura Da alvura das magnólias marcessíveis, Branca Via-Láctea das indefiníveis Brancuras, fonte da imortal brancura. [...]

Note-se que as apóstrofes, que são múltiplas, rodeiam o mesmo

referente, anunciado pelo título. Servem para qualificar e, no meio à

dispersão semântica de tantas imagens, experimentar as coisas pelo

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seu lado místico, diáfano e transcendental. Cruz e Souza cantou uma

poesia mais expansiva, mais dada a trocas simbólicas do que a de Al-

phonsus, por não se limitar a figuras católicas. As apóstrofes múltiplas

são facilmente percebidas em “Antífona”, sua profissão de fé:

Ó formas alvas, brancas, formas claras De luares, de neves e de neblinas!... Ó formas vagas, fluidas, cristalinas... Incensos dos turíbulos das aras... Formas do Amor, constelarmente puras, De Virgens e de Santas vaporosas... Brilhos errantes, mádidas frescuras E dolências de lírios e de rosas... Indefiníveis músicas supremas, Harmonias da Cor e do Perfume... Horas do Ocaso, trêmulas, extremas, Réquiem do Sol que a Dor da Luz resume... Visões, salmos e cânticos serenos, Surdinas de órgãos flébeis, soluçantes... Dormências de volúpicos venenos Sutis e suaves, mórbidos, radiantes... Infinitos espíritos dispersos, Inefáveis, edênicos, aéreos, Fecundai o Mistério destes versos Com a chama ideal de todos os mistérios. [...]

(Souza, 1923, p. 67)

Note-se que, circundando o mesmo referente, formas impalpá-

veis, vários adjetivos se reúnem levantando o paradigma do branco e

do etéreo: alvas, brancas, claras; e vagas, fluidas, cristalinas. Os outros

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qualificativos também obedecem ao mesmo padrão: do amor, puras,

de virgens e santas vaporosas, brilhos errantes, etc. A sinestesia entre

música, cor e perfume traduz o esforço em expressar a experiência

com o infinito e o transcendental. “Antífona” é uma experiência com o

místico. Além de estar voltado à experimentação, o eu-lírico é outor-

gante, clamando ordens a suas imagens. Dessa forma, o poeta não só

se preocupa em traduzir em versos o aspecto mágico e impalpável

que combina metapoesia e vontade de transcendência como tam-

bém quer experimentar o mundo espiritual e imaterial.

Alphonsus de Guimaraens, por outro lado, se apega muito à ex-

periência da vida mundana. Mesmo as referências místicas são enrai-

zadas, diferentemente dos passeios de Cruz e Souza pelo espaço side-

ral, de onde a sede do infinito surge mais intensa. Devido à religiosi-

dade que contorna sua alma contida, a catedral está sempre presente,

dotada de um mistério que confirma, na eternidade de sua existência, a

mística da obra. Por isso, toda aquela sede de infinito, que em Cruz e

Souza advém da opulência e multiplicidade de imagens que supervalo-

rizam o signo, se traduz na concentração de forças religiosas na cate-

dral de Alphonsus. É ela que sobrevive aos tempos, traduz a perenida-

de do homem e resiste – embora como ruína – ante as trevas e o caos

que dominam o universo poético. Em Alphonsus, a poesia é afetada

pelo maniqueísmo religioso, uma forma de representar a tensão entre o

medo de sucumbir às tentações e a afirmação de uma alma pronta para

o arrependimento. Suas afinidades, portanto, remontam ao decaden-

tismo, manifestação de espírito que semeou o tédio, a melancolia, o

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pessimismo e a depressão. É certo que o eu-lírico mergulhará em au-

todepreciação, pois a paz e a redenção estão distantes. Por isso, respi-

ra, numa atmosfera desolada e lúgubre, a falta de Deus, da amada, da

salvação:

OS SONETOS – I. Náufrago E temo, e temo tudo, e nem sei o que temo. Perde-se o meu olhar pelas trevas sem fim. Medonha é a escuridão do céu, de extremo a extremo... De que noite sem luar, mísero e triste, vim?

(Guimaraens, 2001, p. 137)

Alphonsus, sem a multiplicidade de Cruz e Souza, torna-se, ao

optar pela religiosidade católica de cunho tradicional, refém do mani-

queísmo. Quase sempre configura um embate entre Céus e Terra, entre

o bem e o mal ou além-mundo e mundo dos mortais, ocasionando

certa tensão barroca em sua obra: o abstrato é enraizado na experiência

carnal do mundo.

SUCCUBUS Às vezes, alta noite, ergo em meio da cama O meu vulto de espectro, a alma em sangue, os cabelos Hirtos, o torvo olhar como raso de lama, Sob o tropel de um batalhão de pesadelos. Pelo meu corpo todo uma Fúria de chama Enrosca-se, prendendo-o em satânicos elos: Vai-te, Demônio encantador, Demônio ou Dama, Loira Fidalga infiel dos infernais Castelos!

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Como um danado em raiva horrenda, clamo e rujo: Hausto por hausto aspiro um ar de enxofre: tento Erguer a voz, e como um réptil escabujo. Quem quer que sejas, vai-te, ó tu que assim me assombras! Acordo: o céu, lá fora, abre o olhar sonolento, Cheio da compunção dos luares e das sombras. (Guimaraens, 2001, p. 139-40)

Note-se que as imagens "fúria", "demônio", "dama", "loira fi-

dalga" significam a mesma força que perturba o eu-lírico à noite; este,

por sua vez, ganha as imagens "vulto de espectro", "alma em sangue",

"danado em raiva horrenda", "réptil". Dois paradigmas se erguem: o

perturbador e o perturbado, em meio a uma atmosfera de males con-

vulsos, traduzida na imagem "sob o tropel de um batalhão de pesade-

los". A mulher como tentação, associada com o demônio, impõe ao

poema um tom macabro, em que o eu-lírico, em meio a alucinações

satânicas, tem medo de sucumbir ao pecado. Claro está que as figuras

representam dois campos semânticos que se digladiam. A dualidade,

sempre presente em Alphonsus, configura seu maniqueísmo, pois, em

última análise, o eu-lírico é o bem, e a tormenta é o mal que tenta

transfigurá-lo. A figura do espectro, que representa o bem, sente a

possessão da fúria (o mal) quando se vê em figuras como "danado" e

"réptil". Quando acorda, o mal o deixa, pois sua natureza é do bem.

Em Cruz e Souza, esse processo não existe, pois as imagens estão

dispostas apenas para sugerir o abstrato, o indizível, o inexorável, sem

antagonismos tão marcados. A experiência melancólica se apresenta

como um dos fortes elos entre Romantismo e Simbolismo. O senti-

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mento do eu-lírico de Alphonsus é de insatisfação e sofrimento. Sua

obra está coberta de melancolia na medida em que o objeto amado

nunca é alcançado. O poeta compreende o mundo como um padeci-

mento, já que vive o luto eterno da amada e carrega uma descrença em

uma vida livre de pecados, pois o mal o perturba a todo instante.

Uma comparação interessante seria contrastar o tratamento dado

ao ente feminino nesses dois poetas. Talvez a figura da monja surja

como emblema do enfoque melancólico e místico da amada. É a dire-

ção que pretendemos tomar. Em Alphonsus:

PULCHRA UT LUNA - XI Que olhar de monja em longa penitência O olhar daqueles olhos macerados! Pairava-lhe talvez na morna essência Uma Alma carregada de pecados. Para que mundos, para que existência, Tão além desta vida, ei-los voltados! Oh! inacessível, mística dolência De uns olhos a sonhar outros noivados... Voz do passado, som que ressuscita! Olhar tão cheio de palavras mortas Daqui por certo que não pode ser... Alma, para me ver, Alma bendita, Põe-te de luto nessas duas portas Com uma tristeza de quem vai morrer...

(Guimaraens, 2001: 167)

Em Cruz e Souza:

MONJA

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Ó Lua, Lua triste, amargurada, Fantasma de brancuras vaporosas, A tua nívea luz ciliciada Faz murchecer e congelar as rosas. Nas floridas searas ondulosas, Cuja folhagem brilha fosforeada, Passam sombras angélicas, nivosas, Lua, Monja da cela constelada. Filtros dormentes dão aos lagos quietos, Ao mar, ao campo, os sonhos mais secretos, Que vão pelo ar, noctâmbulos, pairando... Então, ó Monja branca dos espaços, Parece que abres para mim os braços, Fria, de joelhos, trêmula, rezando...

(Souza, 1923, p. 74)

Alphonsus encara a mulher por uma distância enorme: ela, pres-

tes a morrer, pertence mais ao mundo do além; ele, preso à vida mun-

dana, assiste ao quadro moribundo da amada e reconhece que ela se

esforça para estar com ele. Afinal, ela, que já está experimentando o

místico em outros mundos e em outros noivados, sente tristeza ao per-

ceber que ainda está amarrada a este mundo imperfeito, pondo-se em

luto expresso nos olhos, metaforizados magnificamente por “duas

portas” (o que lembra acesso do mundo terreno para o mundo espiritu-

al). A passagem para o mundo espiritual exige uma purgação, pois a

redenção vem como sacrifício, e, através da dor e da tristeza, a “Alma

carregada de pecados” se redime.

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Cruz e Souza, por sua vez, liga a figura da monja à lua. A mon-

ja, apóstrofe da lua, está na cela constelada, metáfora para o céu: a

aproximação semântica é acompanhada de uma sonoridade fascinante:

cela e céu. A lua domina todo o espaço terrestre, pois além de murchar

as rosas, passeia, como sombras nivosas, pelas searas e paira, como os

sonhos mais secretos, em toda água do planeta: lagos e mar. “Filtros

dormentes” é uma excelente metáfora para se referir ao banho de luar

que cai no campo e nas águas, e, como desce através da atmosfera, o

luar paira também no ar. Note-se que, assim, Cruz e Souza persegue as

coisas imateriais, impalpáveis, na busca pelo místico e transcendental,

num desejo de apreender o absoluto (terra, água e ar). Há, por fim, no

último terceto, uma vaga sugestão da proximidade entre a lua e a mu-

lher, na referência a seus braços e joelhos e, principalmente, na proso-

popéia que lhes autoriza rezar como se fossem uma só figura.

Os aspectos românticos no Simbolismo predominam na escolha

da mística como motivo fundamental, enquanto remetiam ao afasta-

mento social e à fantasia no Parnasianismo. Se se levar em conta a

proximidade parnaso-simbolista quanto ao rigor estrutural, ver-se-á

que “a literatura do século XIX aparece realmente como um todo úni-

co e distinto que as várias fórmulas de romantismo, verismo, decaden-

tismo etc. tendem a disjuntar.” (Praz, 1996, p. 11).

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