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205 RESUMO Rev. Sociol. Polít., Curitiba, v. 18, n. 36, p. 205-226, jun. 2010 Leonardo G. M. da Rocha Recebido em 2 de setembro de 2008. Aprovado em 7 de janeiro de 2009. PARQUES NACIONAIS BRASILEIROS: PROBLEMAS FUNDIÁRIOS E ALTERNATIVAS PARAA SUA RESOLUÇÃO 1 Roseli Senna Ganem José Augusto Drummond O texto faz um diagnóstico da situação fundiária dos parques nacionais brasileiros atualmente existentes. Argumenta que a herança cultural e política brasileira, o histórico dos órgãos que administraram os parques nacionais e as complexidades da questão fundiária são fatores determinantes dos entraves ao processo de regularização fundiária dessas unidades de conservação (UCs). O texto sustenta que a carên- cia de recursos financeiros para indenizações de terras a serem desapropriadas não é o maior entrave para a resolução da questão. Propõe-se, além disso, diversos instrumentos legais e administrativos alternativos que podem ser acionados para regularizar ou incorporar terras aos parques nacionais e dar mais efetividade à política de conservação da biodiversidade no Brasil. Por fim, conclui-se que a conservação da biodiversidade vai muito além da criação de unidades de conservação de qualquer modalidade, sendo necessário que diferentes setores do poder público e da sociedade civil invistam também em ações de fiscalização, formação de corredores ecológicos entre UCs de proteção integral e de uso sustentável, edu- cação ambiental e implantação de instrumentos econômicos de gestão ambiental que induzam os proprie- tários particulares de terras a adotarem práticas compatíveis com a conservação da natureza. PALAVRAS-CHAVE: unidades de conservação; políticas ambientais; ordenamento fundiário; ordenamento territorial; terras públicas. I. INTRODUÇÃO O presente artigo tem como objetivo discutir a política de regularização fundiária dos parques na- cionais (PNs) no Brasil, desde a criação do pri- meiro deles, em 1937, até a atualidade. Analisa as pendências dessa política e algumas soluções al- ternativas para a regularização fundiária dos PNs. A premissa de que as terras destinadas aos PNs deveriam pertencer integralmente ao patrimônio público sempre prevaleceu na política brasileira sobre o assunto. Está subjacente a essa opção a idéia de que somente como bens públicos os PNs poderiam ser plenamente manejados para conser- var a natureza e as suas belezas cênicas e para oferecer oportunidades de recreação, educação ambiental e pesquisa científica para a sociedade em geral. O Brasil adotou essa premissa (que não é adotada universalmente, diga-se de passagem) desde a criação do seu primeiro PN, o Parque Nacional do Itatiaia, em 1937. Desde então, con- vive com o desafio de cumprir o preceito básico de transformar em patrimônio público, com pos- se e domínio do Estado, as áreas decretadas como PNs. Esse desafio estende-se a outras categorias de unidades de conservação (UCs), como esta- ções ecológicas e reservas biológicas, que, no entanto, não serão discutidas aqui. O país criou, de 1937 a 2008, 65 PNs (Tabela 1). Grande parte deles nasceu com graves pendências fundiárias, que se acumularam e mesmo se agravaram ao lon- go dos anos. Como conseqüência, grandes preju- ízos vêm sendo causados à política conservacionista e ao erário e ao patrimônio pú- blicos. 1 Adaptado e atualizado a partir de Rocha (2002).

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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA V. 18, Nº 36: 205-226 JUN. 2010

RESUMO

Rev. Sociol. Polít., Curitiba, v. 18, n. 36, p. 205-226, jun. 2010

Leonardo G. M. da Rocha

Recebido em 2 de setembro de 2008.Aprovado em 7 de janeiro de 2009.

PARQUES NACIONAIS BRASILEIROS:PROBLEMAS FUNDIÁRIOS E ALTERNATIVAS PARA A SUA

RESOLUÇÃO1

Roseli Senna GanemJosé Augusto Drummond

O texto faz um diagnóstico da situação fundiária dos parques nacionais brasileiros atualmente existentes.Argumenta que a herança cultural e política brasileira, o histórico dos órgãos que administraram osparques nacionais e as complexidades da questão fundiária são fatores determinantes dos entraves aoprocesso de regularização fundiária dessas unidades de conservação (UCs). O texto sustenta que a carên-cia de recursos financeiros para indenizações de terras a serem desapropriadas não é o maior entrave paraa resolução da questão. Propõe-se, além disso, diversos instrumentos legais e administrativos alternativosque podem ser acionados para regularizar ou incorporar terras aos parques nacionais e dar mais efetividadeà política de conservação da biodiversidade no Brasil. Por fim, conclui-se que a conservação dabiodiversidade vai muito além da criação de unidades de conservação de qualquer modalidade, sendonecessário que diferentes setores do poder público e da sociedade civil invistam também em ações defiscalização, formação de corredores ecológicos entre UCs de proteção integral e de uso sustentável, edu-cação ambiental e implantação de instrumentos econômicos de gestão ambiental que induzam os proprie-tários particulares de terras a adotarem práticas compatíveis com a conservação da natureza.

PALAVRAS-CHAVE: unidades de conservação; políticas ambientais; ordenamento fundiário; ordenamentoterritorial; terras públicas.

I. INTRODUÇÃO

O presente artigo tem como objetivo discutir apolítica de regularização fundiária dos parques na-cionais (PNs) no Brasil, desde a criação do pri-meiro deles, em 1937, até a atualidade. Analisa aspendências dessa política e algumas soluções al-ternativas para a regularização fundiária dos PNs.

A premissa de que as terras destinadas aos PNsdeveriam pertencer integralmente ao patrimôniopúblico sempre prevaleceu na política brasileirasobre o assunto. Está subjacente a essa opção aidéia de que somente como bens públicos os PNspoderiam ser plenamente manejados para conser-var a natureza e as suas belezas cênicas e paraoferecer oportunidades de recreação, educaçãoambiental e pesquisa científica para a sociedade

em geral. O Brasil adotou essa premissa (que nãoé adotada universalmente, diga-se de passagem)desde a criação do seu primeiro PN, o ParqueNacional do Itatiaia, em 1937. Desde então, con-vive com o desafio de cumprir o preceito básicode transformar em patrimônio público, com pos-se e domínio do Estado, as áreas decretadas comoPNs. Esse desafio estende-se a outras categoriasde unidades de conservação (UCs), como esta-ções ecológicas e reservas biológicas, que, noentanto, não serão discutidas aqui. O país criou,de 1937 a 2008, 65 PNs (Tabela 1). Grande partedeles nasceu com graves pendências fundiárias,que se acumularam e mesmo se agravaram ao lon-go dos anos. Como conseqüência, grandes preju-ízos vêm sendo causados à políticaconservacionista e ao erário e ao patrimônio pú-blicos.

1 Adaptado e atualizado a partir de Rocha (2002).

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PARQUES NACIONAIS BRASILEIROS

TABELA 1 – PARQUES NACIONAIS BRASILEIROS CRIADOS ENTRE 1937 E 2008 (EM ORDEMCRONOLÓGICA DE CRIAÇÃO)

FONTE: Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (2008), Ministério do Meio Ambiente(2008) e Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (2009).

Para entender a questão fundiária dos PNs bra-sileiros, buscou-se neste texto analisar as seguin-tes dimensões passadas e atuais da política de suacriação: 1) a sua situação fundiária atual; 2) asraízes históricas da questão fundiária no Brasil; e3) a missão das diversas instituições responsáveispelos PNs entre 1937 e 2008. A finalidade é apon-tar os motivos que expliquem os graves proble-mas fundiários vividos pelos PNs, bem como su-gerir alternativas para a solução da maioria daspendências observadas. Destaque-se que as pro-postas aqui apresentadas para o equacionamentoda questão foram selecionadas de modo a ter uma

importante virtude comum: elas não exigem mu-danças legais, pois estão embasadas na legislaçãovigente. Isso não ocorre nos casos de muitas ou-tras propostas que circulam entre gestores, cien-tistas e ambientalistas brasileiros.

As principais fontes de informações usadasforam materiais bibliográficos que tratam da le-gislação de terras e do histórico dos órgãos gestorese das políticas para o setor. Além disso, foi feita aanálise das principais leis de terras que vigoraramno país, desde o período colonial. A legislação atualfoi obtida no sítio eletrônico da Presidência da

1. Itatiaia (RJ e MG) 1937 34. Monte Roraima (RR) 19892. Iguaçu (PR) 1939 35. Serra Geral (RS) 19923. Serra dos Órgãos (RJ) 1939 36. Ilha Grande (PR e MS) 19974. Ubajara (CE) 1959 37. Restinga de Jurubatiba (RJ) 19985. Aparados da Serra (RS) 1959 38. Serra da Mocidade (RR) 19986. Araguaia (TO) 1959 39. Viruá (RR) 19987. Emas (GO) 1961 40. Serra das Confusões (PI) 19988. Chapada dos Veadeiros (GO) 1961 41. Pau Brasil (BA) 19999. Caparaó (MG e ES) 1961 42. Descobrimento (BA) 199910. Sete Cidades (PI) 1961 43. Cavernas do Peruaçu (MG) 199911. São Joaquim (SC) 1961 44. Serra da Bodoquena (MS) 200012. Tijuca (RJ)* 1961 45. Serra da Cutia (RR) 200113. Brasília (DF)** 1961 46. Saint-Hillaire / Lange (PR) 200114. Monte Pascoal (BA) 1961 47. Catimbau (PE) 200215. Serra da Bocaina (RJ e SP) 1971 48. Jericoacoara (CE) 200216. Serra da Canastra (MG) 1972 49. Montanhas do Tumucumaque (AP) 200217. Amazônia (AM e PA) 1974 50. Nascentes do Rio Parnaíba (PI) 200218. Serra da Capivara (PI) 1979 51. Pontões Capixabas (ES) 200219. Pico da Neblina (AM) 1979 52. Sempre-Vivas (MG) 200220. Pacaás Novos (RO) 1979 53. Serra do Itajaí (SC) 200421. Cabo Orange (AP) 1980 54. Chapada das Mesas (MA) 200522. Jaú (AM) 1980 55. Serra da Itabaiana (SE) 200523. Lençóis Maranhenses (MA) 1981 56. Serra do Pardo (PA) 200524. Pantanal Matogrossense (MT) 1981 57. Araucárias (SC) 200525. Abrolhos (BA) 1983 58. Jamanxim (PA) 200626. Serra do Cipó (MG) 1984 59. Juruena (AM e MT) 200627. Chapada Diamantina (BA) 1985 60. Rio Novo (PA) 200628. Lagoa do Peixe (RS) 1986 61. Campos Amazônicos (AM e RO) 200629. Fernando de Noronha (PE) 1988 62. Campos Gerais (PR) 200630. Chapada dos Guimarães (MT) 1989 63. Nascentes do Lago Jari (AM) 200831. Grande Sertão, Veredas (MG e BA) 1989 64. Mapinguari (AM) 200832. Superagui (PR) 1989 65. Anavilhanas (AM) 200833. Serra do Divisor (AC) 1989

NOME / LOCALIZAÇÃO CRIAÇÃO NOME / LOCALIZAÇÃO CRIAÇÃO

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República (PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA DOBRASIL, 2008). Para o diagnóstico da situaçãoatual, foram feitas entrevistas com três informan-tes qualificados2.

Especificamente para a análise da situaçãofundiária dos parques, foram utilizados como fonteprincipal os dados da Divisão de Criação e Im-plantação de UCs (DICRI), do Instituto Brasileirodo Meio Ambiente e dos Recursos NaturaisRenováveis (Ibama), referentes aos PNs criadosaté 2000.

Além disso, foram feitas consultas ao Ca-dastro Nacional de UCs, do Ministério do MeioAmbiente, e diretamente ao Instituto ChicoMendes de Conservação da Biodiversidade(ICMBio). Com relação ao Cadastro Nacionalde UCs, houve dois acessos. No primeiro, em22 de dezembro de 2005, foram obtidas infor-mações específicas, mas pouco precisas, so-bre o grau de regularização fundiária de todasas UCs (não-regularizadas, parcialmente regu-larizadas, regularizadas). Em consulta mais re-cente, em 14 de agosto de 2008, o referido ca-dastro estava em revisão e dispunha de dadosesparsos sobre apenas três PNs (Serra dos Ór-gãos, Ubajara e São Joaquim), dados essesdesconsiderados. Usamos os dados obtidos como acesso de 2005, pois eles não foram oficial-mente revisados nem invalidados. A consulta di-reta ao ICMBio ocorreu em 22 de agosto de2008, especificamente à Coordenação Geral deRegularização Fundiária3. Esses dados são, in-felizmente, desatualizados e incompletos, masforam incluídos por serem a informação maisrecente sobre o tema.

Lançou-se mão, ainda, de informações sobreos PNs do estado do Rio de Janeiro, mais especi-ficamente o Relatório do Grupo de Trabalho (GT)criado pelo Escritório Regional do Ibama, por meioda Portaria Ibama n. 1 288/98-P, de 22 de outu-bro de 1998. Esse GT levantou as questões

fundiárias específicas das UCs do estado do Riode Janeiro4.

II. A POLÍTICA BRASILEIRA DE PARQUESNACIONAIS

Esta seção apresenta alguns dados históricossobre a política brasileira de PNs, relevantes paraa análise da sua situação fundiária. Desde 1937, acriação de UCs de vários tipos tem sido a maisimportante estratégia de conservação dabiodiversidade no país. Formou-se assim o siste-ma atual, vasto e diversificado, que, segundo oCadastro de UCs do Ministério do Meio Ambien-te, em 14 de agosto de 2008, abrangia 65 PNs,além de pelo menos 658 UCs federais de outrascategorias.

Além dos parques nacionais, o Sistema deUnidades de Conservação da Natureza do Brasil(SNUC) abrange, apenas no nível federal, 32 es-tações ecológicas, 29 reservas biológicas, trêsrefúgios de vida silvestre, 30 áreas de proteçãoambiental, 17 áreas de relevante interesse ecoló-gico, 62 florestas nacionais, uma reserva de de-senvolvimento sustentável e 54 reservas extrativis-tas (MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE, 2008).Conforme o Ibama (2008), o SNUC conta, ainda,com 430 reservas particulares do patrimônio na-tural. A ampliação do número de UCs e a institui-ção de um sistema nacional seguiram uma ten-dência mundial. No entanto, esse progresso nãoocorreu de forma contínua e regular. Os PNs bra-sileiros foram criados em várias etapas, descritaspor Quintão (1983) e Drummond (1997) e visí-veis nos dados das tabelas 1 e 2. A Tabela 2 mos-tra as fases de criação de PNs, divididas confor-me os grupos de anos em que se concentraram oestabelecimento de novos PNs. Houve grandesintervalos (sem a criação de um único PN) entre aprimeira (1937-1939) e a segunda fases (1959-1961) e entre a segunda e a terceira (1971-1974).A partir da quarta fase (1979-1986), os intervalossem criação de novas unidades tornaram-se maiscurtos, mas continuaram a ocorrer. A quarta fase,entre 1979 e 1986, destaca-se como fruto direto

2 Luiz Cláudio Pereira Leivas, Procurador da República noestado do Rio de Janeiro, entrevistado em 11 de janeiro de2001; Alceu Magnanini, pioneiro do conservacionismo noBrasil e funcionário de diversos órgãos que geriram UCs,entrevistado em 26 de setembro de 2001; e Paulo de BessaAntunes, Procurador da República, especializado em Di-reito Ambiental, entrevistado em 9 de maio de 2001.3 Comunicação pessoal de Luciano Petribu, CoordenadorGeral de Regularização Fundiária.

4 Disparidades nas diferentes fontes indicam a poucaconfiabilidade de alguns dados. Isso se expressa particular-mente nas cifras referentes a áreas “regularizadas” e “aregularizar” dos PNs. Mesmo que elas fossem totalmentecorretas, no entanto, seriam insuficientes para dar contadas complexas situações fundiárias da maioria das UCs.

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PARQUES NACIONAIS BRASILEIROS

FONTE: Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (2008) e Ministério do Meio Ambiente(2008).

de um esforço concentrado de planejamento noâmbito do Instituto Brasileiro de Desenvolvimen-to Florestal (IBDF). Esse planejamento teve a suaexpressão mais acabada nos Planos do Sistemade Unidades de Conservação – Etapas I e II (INS-

TITUTO BRASILEIRO DE DESENVOLVIMEN-TO FLORESTAL & FUNDAÇÃO BRASILEIRAPARA CONSERVAÇÃO DA NATUREZA, 1979;1982), que adotaram diretrizes técnicas de cria-ção e de gerenciamento de UCs.

Esses dois planos de 1979 e 1982 são os prin-cipais precursores do atual Sistema Nacional deUnidades de Conservação da Natureza, criado porlei de 2000. Adotaram, entre outros, os princípiosda ampliação das áreas protegidas na Amazônia,do aumento da representatividade ecossistêmicado sistema de UCs, da preferência por áreas degrande extensão e da priorização de escolha deáreas sem ocupantes. Em 1986, depois de cercade sete anos de aplicação dos dois planos, o Brasiltinha quase triplicado a área protegida por PNsexistente em 1979.

Ressalte-se que não houve uma distribuiçãoregional ou ecossistêmica equilibrada dos PNs bra-sileiros ao longo da sua história. Drummond (1997)salienta que, por muito tempo, os critérios paraescolha de áreas para PNs privilegiaram a belezacênica excepcional, a facilidade de acesso e a pos-sibilidade de visitação de massa. Mesmo na se-gunda fase (1959-1961), influenciada pela cons-

TABELA 2 – DISTRIBUIÇÃO DOS PARQUES NACIONAIS DO BRASIL CRIADOS ENTRE 1937 E 2006,SEGUNDO FASES DE CRIAÇÃO E REGIÃO

trução de Brasília, que levou à instalação de qua-tro parques na região Centro-Oeste, a justificativaenfatizada foi a de ofertar áreas de lazer e turismopara a população a ser instalada no Distrito Fede-ral, e não a de proteger o Bioma Cerrado. Somen-te a partir de 1979, com os dois citados planos doIBDF, houve um esforço deliberado de fazer comque a política de criação de UCs se antecipasse aoprocesso de ocupação de áreas mais remotas eincluísse amostras grandes e em bom estado dosvários biomas e ecossistemas do país(DRUMMOND, 1997).

Essa mudança de critérios refletiu-se claramentena criação de PNs na Amazônia. Até o início dadécada de 1970, a região não contava com um únicoPN (Tabela 1). A partir de 1974, vinte PNs foraminstituídos na região Norte, correspondendo a cer-ca de 31% dos PNs criados até 2008 (Tabela 1).

As mudanças nos critérios de escolha das áre-as para a criação dos PNs brasileiros refletem em

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parte a evolução do próprio conceito de PNs, noBrasil e no mundo. Esse conceito vem-se alte-rando desde a criação do primeiro parque nomundo – Yellowstone –, em 1872, nos EstadosUnidos da América. Inicialmente, os PNs visa-vam socializar o usufruto das belezas cênicasexcepcionais e, ao mesmo tempo, resguardar taisbelezas dos efeitos destrutivos da sua explora-ção direta. Aos poucos, outros objetivos foramincorporados, entre eles a proteção de certosanimais ou plantas, a pesquisa científica e a edu-cação ambiental. Os objetivos de conservaçãotambém foram ampliados, procurando-se garantira representatividade dos ecossistemas e das pai-sagens nos PNs e demais UCs nos contextosnacionais.

A União Internacional para a Conservação daNatureza (UICN) tentou consolidar um conceitode PN a ser seguido por todas as nações. A cadadez anos, desde 1962, ela realiza conferênciasmundiais sobre PNs, nos quais os conceitos dePN e de UCs em geral são amplamente debati-dos. As recomendações da UICN influenciarama política de UCs de muitos países, entre eles oBrasil. Dentre as questões discutidas nesses eem outros fóruns internacionais sobre PNs, des-taca-se a da ocupação humana das áreas formal-mente protegidas. Um dos aspectos mais polê-micos a respeito de uma área de PN (no Brasil eem alguns outros paises, embora não em todos)é a presença de população humana, o que temrelação direta com o tema principal deste artigo.Tradicionalmente, os PNs eram concebidos, so-bretudo, para proveito limitado do homem urba-no e para a conservação dos recursos para asfuturas gerações, não se admitindo no seu interi-or a presença humana permanente, nem a posseparticular das terras, nem a exploração dos re-cursos naturais. Essa concepção baseava-se nopreceito segundo o qual os humanos seriammodificadores ou destruidores contumazes de seuambiente natural e, portanto, a conservação danatureza requereria a criação de áreas livres desua presença.

No entanto, esse conceito não éincontroverso, nem foi adotado universalmente.Em países da Europa, no Japão e no Canadá,admitia-se e ainda se admite tanto a presençahumana como a propriedade particular nos par-ques. No III Congresso Mundial de Parques

Nacionais, da UICN, em 1982, houve ênfase nainserção dos PNs no desenvolvimento regional ena sua vinculação à melhoria do padrão de vidadas comunidades locais, sobretudo das mais ca-rentes. Recomendou-se o manejo dessas áreasem conjunto com os seus habitantes originais(WORLD CONFERENCE ON NATIONALPARKS, 1984). Nessa concepção, os parques,além de cumprirem a sua função de protetoresda biodiversidade, poderiam e deveriam contri-buir para viabilizar diversas atividades indutorasdo desenvolvimento local (QUINTÃO, 1983). Omodelo de zoneamento de PN proposto pela UICNpropunha, entre outras, uma “Zona de AmbienteNatural com Culturas Humanas Autóctones”,destinada a abrigar populações primitivas ou tra-dicionais (BRITO, 2000).

Embora o Brasil tenha adotado muitas reco-mendações da UICN para criação e gestão deUCs e, em especial, de PNs, as recomendaçõesquanto à admissão de presença humana nos par-ques não foram absorvidas, embora existam ou-tros tipos de UCs que admitem essa presença. Éinteressante observar que o Código Florestal de1934 (Decreto n. 23 793, de 23 de janeiro de1934), base legal dos primeiros PNs, previa apossibilidade de permanência de propriedadesparticulares em florestas remanescentes (entreas quais se incluíam os PNs), desde que os pro-prietários, herdeiros e sucessores concordassemcom as restrições impostas e se obrigassem amantê-las sob o regime legal correspondente. OCódigo Florestal de 1965 (Lei n. 4 771, de 15 desetembro de 1965) e o Regulamento de ParquesNacionais de 1979 (Decreto n. 84 017, de 21 desetembro de 1979), entretanto, eliminaram essapossibilidade.

Mais tarde, durante a discussão, no Congres-so Nacional, do Projeto de Lei que deu origem àLei n. 9 985, de 18 de julho de 2000, que institui oSistema Nacional de Unidades de Conservação daNatureza (Snuc), houve um intenso debate entreos ambientalistas brasileiros. Duas correntes en-frentaram-se: a dos preservacionistas, que defen-dia, entre outros pontos, o conceito tradicional dePN, e a dos socioambientalistas, para quem a ad-ministração das áreas protegidas teria melhor êxi-to se elas suportassem atividades humanas e ti-vessem as populações primitivas ou tradicionaiscomo as suas aliadas (idem).

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PARQUES NACIONAIS BRASILEIROS

Para os socioambientalistas, os preservacio-nistas baseiam-se em dois mitos: o primeiro é deque o homem é, necessariamente, destruidor danatureza; o segundo é de que a natureza selva-gem é intocada pelas mãos humanas, ou seja, éoriunda apenas de sua evolução natural. Assim,para os preservacionistas, a interferência huma-na na natureza, quando ocorre, é sempre des-truidora. Contra-argumentando em bases cultu-rais, os socioambientalistas afirmam que a soci-edade urbano-industrial é, de fato, destruidora,mas existem culturas que desenvolveram umarelação mais harmônica com a natureza, cujosrepresentantes, muitas vezes, residem justamen-te nas áreas onde se quer implantar UCs. Para ossocioambientalistas, a natureza “selvagem” queos preservacionistas hoje consideram digna deproteção foi, em parte, moldada pelo gênero devida das populações tradicionais (DIEGUES,1998). Argumentam que a diversidade culturaltambém precisa ser conservada, tanto por moti-vos éticos, quanto como instrumento de prote-ção do conhecimento tradicional. As populaçõestradicionais, para eles, devem ser vistas comoaliadas da conservação, e não como suas inimi-gas.

O texto final da Lei do Snuc refletiu, em parte,essa cisão no ambientalismo brasileiro. Não hou-ve consenso sobre a permanência de populaçõestradicionais no interior dos PNs, mas a criação deUCs passou a ser obrigatoriamente precedida deestudos técnicos e consultas públicas (exceto paraas categorias “estação ecológica” e “reserva bio-lógica”). Estabeleceu-se ainda que “as populaçõestradicionais residentes em unidades de conserva-ção nas quais sua permanência não seja permitidaserão indenizadas ou compensadas pelasbenfeitorias existentes e devidamente realocadaspelo Poder Público, em local e condições acorda-das entre as partes” (art. 42). Enquanto oreassentamento não for realizado, serãoestabelecidas normas destinadas a compatibilizara presença das populações tradicionais residentescom os objetivos da unidade, “sem prejuízo dosmodos de vida, das fontes de subsistência e doslocais de moradia dessas populações, asseguran-do-se sua participação na elaboração das referi-das normas e ações” (art. 42, § 2º). Mais ainda,a lei do Snuc prevê nada menos do que sete ti-

pos de UCs que admitem a presença de comuni-dades humanas e a exploração direta dos recur-sos naturais. Garantiu-se, portanto, aos que de-têm apenas a posse de terras designadas paraintegrarem UCs, o direito de serem devidamenteindenizados e realocados. Quanto à propriedadeparticular, a lei manteve a norma de que o “par-que nacional é de posse e domínio públicos, sen-do que as áreas particulares incluídas em seuslimites serão desapropriadas” (art. 11, § 1º; semgrifos no original).

Assim, o Brasil mantém em sua legislação, há70 anos, o princípio do controle público integraldas terras de PNs. As mudanças nos critérios delocalização dos PNs, o gigantismo geográfico, adiversidade social do Brasil e, principalmente, apersistente falta de ordenação territorial efundiária em amplas seções do país têm conspi-rado contra esse controle. Ainda assim, seria dese esperar que a situação fundiária dos PNs edas UCs em geral estivesse ao menosequacionada. A realidade, entretanto, é muito di-versa, conforme será mostrado na próxima se-ção.

III. RESUMO DA SITUAÇÃO FUNDIÁRIA DOSPARQUES NACIONAIS BRASILEIROS

É patente e bem sabido que a política de regu-larização fundiária dos PNs não tem alcançado oseu objetivo maior, qual seja, o de fazer com queas suas terras sejam, em sua totalidade, de possee domínio públicos. A análise a seguir evidenciaque a questão nunca recebeu a devida prioridadedos órgãos competentes. Iniciemos pela análisedos dados da Tabela 3, que apresenta a situaçãodos PNs criados até 2000, para os quais se obte-ve os dados mais completos e organizados doIbama-Dicri. Os dados mostram as áreas “regu-larizada” e “a regularizar” e o percentual regulari-zado de cada unidade. Embora cerca de 86% daárea total dos PNs criados até aquele ano cons-tassem como regularizados, 28 (66%) desses 44PNs tinham problemas fundiários registrados. Ouseja, bem mais da metade ainda tinha terras emmãos de particulares e/ou fora do domínio públi-co efetivo, o que certamente prejudicava o seugerenciamento adequado. Há o agravante de que15 unidades (34% desses mesmos 44 parques)tinham menos de 50% de sua superfície sob do-mínio público.

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PARQUES NACIONAIS BRASILEIROS

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Não existe uma relação positiva entre as datasde criação dos PNs e as suas respectivas situa-ções de regularização fundiária (Tabela 3). Ou seja,as unidades mais antigas não estavam em situa-ção notavelmente melhor que as de idade interme-diária ou as mais recentes. Essa observação re-força o argumento de que as pendências fundiáriassão crônicas na política brasileira de PNs5 e deque não houve, ou não funcionou, uma diretriz decriação de PNs preferencialmente em áreas públi-cas e livres de problemas fundiários.

Examinemos agora a situação pela ótica daspossíveis diferenças regionais entre as situaçõesfundiárias dos PNs (tabelas 4 e 5). Em 2000, aregião Norte destacava-se por apresentar o me-lhor índice de terras de PNs regularizadas. A situ-ação fundiária dos PNs da região contribui maisdo que proporcionalmente para elevar as estatísti-cas nacionais de regularização fundiária, uma vezque a região detinha mais de 73% da superfíciedos PNs brasileiros.

TABELA 4 – SITUAÇÃO FUNDIÁRIA DOS PARQUES NACIONAIS BRASILEIROS CRIADOS ATÉ 2000, PORREGIÃO

FONTE: Rocha (2002).

TABELA 5 – PROPORÇÃO DE ÁREA REGULARIZADA DOS PARQUES NACIONAIS BRASILEIROS CRIADOSATÉ 2000, POR REGIÃO

FONTE: Rocha (2002).

5 Destaque-se que a desapropriação de terras e a indeniza-ção por benfeitorias exigem grandes somas de recursos. Em2001, o Ibama-Dicri apresentou uma estimativa de custospara aquisição das terras a regularizar, na ordem de R$556.496.216,00, ou seja, mais de meio bilhão de reais (RO-CHA, 2002). Uma análise da situação fundiária dos PNsfeita em 1997 (PÁDUA, 1997) evidenciava que, entre 1994e 1997, o ritmo de aplicação de recursos destinados à regu-

larização fundiária dos PNs foi tão lento que, a persistir,seriam necessários 700 anos para aquisição das áreas ne-cessárias para regularizar as terras de todos os PNs! Con-siderando que, desde então, não se acelerou o ritmo dedesapropriações, fica claro que o futuro de muitos PNsbrasileiros não parece ser muito promissor no que toca àsolução da sua situação fundiária pela via das indenizações.

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PARQUES NACIONAIS BRASILEIROS

A região Nordeste também apresentava índi-ces elevados de regularização fundiária dos seusPNs, tanto em relação à superfície (cerca de82%), quanto ao número de unidades (73% commais de 85% da superfície regularizados). Emposição intermediária estavam o Centro-Oeste eo Sul, razoavelmente colocados quanto à super-fície regularizada (cerca de 73% e 62%, respec-tivamente), mas apenas medianamente coloca-dos quanto ao número de unidades (50% no Sule um pouco mais no Centro-Oeste). Chama aatenção a fragilidade dos PNs da região Sudeste,onde apenas 20% tinham mais de 50% de suasterras regularizadas. Em termos de superfície, asituação é igualmente ruim, pois a região não ti-nha nem sequer 50% de sua superfície de PNsregularizados. Trata-se de uma situação perver-sa para a conservação da Mata Atlântica (objetoda proteção da maioria dos PNs dessa região),uma vez que a alta concentração demográficaregional promove, ao mesmo tempo, a valoriza-ção das terras e o aumento da pressão humana

sobre as áreas protegidas. Consequentemente, oproblema tende a piorar.

A título de ilustração, é interessante analisarmais detalhadamente a situação dos PNs do esta-do do Rio de Janeiro6. Ela mostra eloqüentementetanto a gravidade da situação fundiária dos PNsdo Sudeste quanto o caráter crônico das pendên-cias fundiárias dos PNs antigos (Tabela 6). Ape-sar de ter sediado a capital federal até a década de1960; apesar de o seu território relativamente pe-queno ser afetado por cinco PNs e outras 14 UCsfederais; apesar de esses PNs serem relativamen-te pequenos; e apesar de três desses PNs teremmais do que 40 anos de existência, apenas cercade 15% da área total das cinco unidades estavamregularizados em 2000. Jurubatiba tinha um índi-ce de regularização de 0% e Serra da Bocaina deapenas 8%. O enorme percentual (85%) de áreasdos PNs fluminenses carentes de regularizaçãofundiária expressa bem a fragilidade dos PNs doSudeste e o caráter crônico dos problemasfundiários dos PNs brasileiros.

TABELA 6 – PARQUES NACIONAIS DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO: ÁREA TOTAL E SITUAÇÃO FUNDIÁRIAEM 2000 (EM ORDEM CRONOLÓGICA DE CRIAÇÃO)

FONTE: Rocha (2002).

Em relação à totalidade do sistema de PNs, aconclusão geral é que a interiorização tardia dosPNs brasileiros, expressa principalmente pela cri-ação de UCs na região Norte, contribuiu, propor-cionalmente, para a melhoria do desempenho emrelação à sua superfície regularizada, embora nãoem relação ao número de PNs afetados por pro-blemas fundiários. Os problemas fundiários dosPNs são generalizados em todo o território brasi-leiro, situação que seria perceptível apenas a par-tir dos dados da Tabela 3, a partir dos quais severifica que, em 2000, ainda era grande o número

de unidades com área não-regularizada em seuinterior (29, correspondentes a 66% dos PNs exis-tentes). Porém, a situação era nitidamente maisgrave na região Sudeste.

Na verdade, os PNs brasileiros constituem, noseu conjunto, mosaicos patrimoniais caracteriza-dos por inúmeras situações: terras de domínio do

6 Os PNs do estado do Rio de Janeiro foram objeto deanálise mais detalhada em Rocha (2002).

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Estado ocupadas ou não por posseiros ou intru-sos; terras de particulares, muitas vezes de domí-nio indefinido ou contestável, exploradas ou não;terras de particulares ocupadas pelos PNs ou porposseiros; terras devolutas ou “terras de ninguém”ocupadas pelos PNs ou por posseiros (GUATURA,CORREA & COSTA, 1997)7.

Passemos, agora, à análise dos dados maisrecentes, obtidos junto à Coordenação Geral deRegularização Fundiária do ICMBio. Eles abran-gem apenas 52 dos 65 PNs existentes em meadosde 2008. A Coordenação não dispunha de dadosrelativos a 13 PNs criados entre 2001 e 2008. Damesma forma, não constam informações porme-norizadas acerca da área regularizada e a regulari-zar de cada PN. Embora o Ibama tenha se preo-cupado mais sistematicamente, após a aprovaçãoda Lei do Snuc, com a existência de comunidadese atividades produtivas nas áreas selecionadas paracriação de novas unidades, isso não redundou naelaboração de estudos prévios completos acerca

da situação fundiária das áreas onde se pretendecriar PNs, de modo a evitar conflitos. É prudenteesperar que os resultados finais dos levantamen-tos demonstrem a existência de problemasfundiários nos PNs mais novos, semelhantes aosdas unidades antigas.

De qualquer forma, os dados do ICMBio des-tacam a desanimadora informação de que nenhumPN é considerado regularizado pelo órgão (Tabe-la 7). Dos 52 parques para os quais valem os da-dos, 58% não estão regularizados e 42% estãoapenas parcialmente regularizados. Esses dadossão incongruentes com as informações da Tabela3, pois eles apontam que 14 unidades estão 100%regularizadas. Na verdade, essa incongruênciaressalta na própria Tabela 3, pois, entre as 14 uni-dades 100% regularizadas, seis não dispunham delevantamento fundiário. Portanto, se esses PNsnão foram nem sequer objeto de estudos fundiários,não faz sentido a informação sobre a ausência dependências fundiárias em seus limites.

Essas incoerências talvez se expliquem pelaadoção de critérios diferentes de regularizaçãofundiária, ao longo do tempo, pelos diferentes se-tores do Ibama e, mais recentemente, do ICMBio.No entanto, elas reforçam a nossa observaçãosobre a falta de dados confiáveis que permitamum diagnósticopreciso acerca da situação fundiáriados PNs.

TABELA 7 – SITUAÇÃO DE 52 PARQUES NACIONAIS BRASILEIROS EM RELAÇÃO AO GRAU DEREGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA (2008)

FONTE: Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (2008).

Finalmente, para contextualizar a situaçãofundiária dos PNs brasileiros (inclusive a precari-edade dos dados disponíveis), apresentamos osdados do Ministério do Meio Ambiente (2005)acerca do grau de regularização fundiária das setecategorias de UC cujo domínio deve ser exclusi-vamente público (Tabela 8).

7 Um aspecto correlato, não focalizado no presente traba-lho, diz respeito à presença de posseiros em grande núme-ro de PNs. É comum nos PNs brasileiros a presença depopulações residentes que não detêm a propriedade, masapenas a posse das terras, inclusive naqueles localizadosna região Norte.

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PARQUES NACIONAIS BRASILEIROS

TABELA 8 – SITUAÇÃO FUNDIÁRIA DAS UNIDADES DE CONSERVAÇÃO FEDERAIS BRASILEIRAS DEDOMÍNIO PÚBLICO, POR CATEGORIA, EM 2005

Apesar das inconsistências com os dados dastabelas anteriores e da grande quantidade de in-formações não-disponíveis, fica claro que os PNsnão estão sozinhos na sua precária situaçãofundiária.

IV. A MISSÃO DAS INSTITUIÇÕES RESPON-SÁVEIS PELA GESTÃO DE PARQUESNACIONAIS NO BRASIL

Em 1925, foi criado no Brasil o primeiro ór-gão governamental federal destinado a adminis-trar áreas cobertas por flora nativa – o ServiçoFlorestal Federal (SFF), subordinado ao Ministé-rio da Agricultura. Desde então, a política brasi-leira de PNs em particular, e de UCs em geral,ficou por mais de 60 anos vinculada ao Ministérioda Agricultura. Primeiramente, nas décadas de1930, 1940, 1950 e parte da década de 1960, en-carregaram-se dessa política diversas seções edepartamentos ministeriais de segundo e terceiroescalões, alguns incumbidos também do fomentoà produção florestal. Em seguida, o Instituto Bra-sileiro do Desenvolvimento Florestal (IBDF), cri-ado em 1967, representou um passo importantena institucionalização da gestão pública da flora edos seus produtos, mas a sua ênfase recaiu sobreos aspectos produtivos. Igualmente subordinadoao Ministério da Agricultura, o IBDF herdou os qua-dros e as missões do Instituto Nacional do Pinho edo Instituto Nacional do Mate, dois órgãos de fo-mento de produtos madeireiros e não-madeireiros,sem missões conservacionistas ou preservacionistas(DRUMMOND, 1988; URBAN, 1998).

O IBDF geriu as UCs brasileiras por mais de20 anos (1967-1989). Ao longo desse período,manteve o seu perfil produtivista, com ênfase se-cundária na conservação. Mesmo assim, foi den-tro dele que surgiram e foram aplicados os referi-dos Planos do Sistema de Unidades de Conserva-ção, que ampliaram em muito as áreas sob prote-ção e propuseram diversas novas categorias deáreas protegidas. Na década de 1970 e no princí-pio dos anos 1980, a mesma equipe do IBDF queredigiu esses planos introduziu uma prática ino-vadora que permitiu que o órgão adquirisse cercade dois milhões de hectares de terras incorpora-das a PNs e reservas biológicas. Esses recursosvieram de um Fundo de Reposição Florestal, for-mado com as taxas pagas por usuários de matéri-as-primas de florestas nativas. Até então, essesrecursos tinham sido usados apenas para fomen-tar a formação de florestas plantadas para finscomerciais (DRUMMOND, 1988). Desse modo,o lado mais forte do IBDF, desenvolvimentista,ajudou a financiar o seu lado mais fraco,conservacionista.

Em 1989, foi criado o Ibama, vinculado inici-almente ao Ministério do Interior e hoje ao Minis-tério do Meio Ambiente. As características desseórgão e o contexto de sua criação colocaram pelaprimeira vez a política ambiental brasileira em ge-ral, e a de UCs em particular, fora do domínio daesfera produtivista. Entre as suas incumbênciasestava a gestão das UCs federais. No entanto, oIbama nasceu com um grande número de outrasincumbências, bem variadas, herdadas dos qua-

FONTE: Ministério do Meio Ambiente (2005).

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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA V. 18, Nº 36: 205-226 JUN. 2010

tro organismos federais que o formaram – IBDF,Secretaria Especial do Meio Ambiente (SEMA),Superintendência de Desenvolvimento da Pesca(Sudepe) e Superintendência da Borracha(Sudhevea). Essas incumbências variavam da re-gulamentação ao fomento da pesca e da borra-cha, ao licenciamento ambiental, à criação de nor-mas de qualidade ambiental, à proteção dabiodiversidade etc. No entanto, a forte centraliza-ção administrativa embutida no desenho do Ibama,o reduzido número de servidores envolvidos noprocesso de regularização fundiária e o próprioacúmulo de pendências fundiárias fizeram comque o órgão continuasse a agir apenas pontual-mente no enfrentamento dessas pendências dasUCs.

Seguindo uma tendência nacional ainda recen-te de descentralização das políticas ambientais ede algumas outras políticas governamentais, ini-ciada a partir da vigência da Constituição de 1988,os PNs estavam vinculados às SuperintendênciasEstaduais do Ibama. Isso contribuiu para entra-var o bom funcionamento das UCs, em virtudedo grande volume de atividades de licenciamentoe fiscalização desenvolvidas rotineiramente pelassuperintendências. Elas acabavam drenando qua-se toda a atenção de seus dirigentes, bem comoos parcos recursos disponíveis, enfraquecendo acapacidade de resolução das complexas e dura-douras questões fundiárias.

Em 2007, a criação e a gestão das UCs fede-rais foram dissociadas das funções do Ibama. Elasforam repassadas ao Instituto Chico Mendes deConservação da Biodiversidade (ICMBio), por meioda Lei n. 11 516, de 28 de agosto de 2007. A es-trutura do ICMBio abrange quatro diretorias, en-tre elas a de Planejamento, Administração eLogística, que abrange uma Coordenação Geralde Regularização Fundiária. Aparentemente é aprimeira vez que a política federal de UCs contacom uma instância específica para tratar do as-sunto. Tal como o Ibama, o ICMBio deverá con-tar com órgãos descentralizados para a gestão dasUCs (INSTITUTO CHICO MENDES DE CON-SERVAÇÃO DA BIODIVERSIDADE, 2008). Noentanto, um ano após a sua criação, o ICMBioainda não realizou concurso público para a for-mação de seus quadros, valendo-se da transfe-rência de servidores do Ibama. As unidades des-centralizadas ainda não foram estruturadas e, se-gundo notícias veiculadas em O Eco (2008), 80UCs federais continuam sem gestor.

Outro problema institucional herdado peloICMBio diz respeito à carência de informaçõessobre as UCs. Não havia – como ainda não há –uma base de dados unificada e confiável, calcadaem levantamentos e estudos fundiários dos PNs,que permita uma ação coordenada, generalizada erápida de resolução de pendências fundiárias.

A regularização fundiária de PNs é assunto dealta complexidade. Envolve muitos interesses,vultosos recursos financeiros, terras usadas paraa produção agropecuária, comunidades rurais dediversos tipos, fluxos de visitação, empreendimen-tos turísticos etc. Talvez o mais grave problemaseja o contexto historicamente consolidado deespeculação e de apossamento ilegal de terras pú-blicas. Isso configura um quadro de “indústria dasdesapropriações”, que envolve procedimentosduvidosos e indenizações milionárias. Por outrolado, a questão fundiária tem peculiaridades queestimulam a inércia do poder público no seu trato,agravando os problemas. As pendências na regu-larização fundiária dos PNs, apesar dos prejuízoscausados, normalmente não inviabilizam a exis-tência das unidades e o cumprimento parcial desuas funções. Curiosamente, um PN pode convi-ver com elas por períodos relativamente longossem que haja conflitos agudos, mas também semque se alcancem soluções definitivas. Assim, osproblemas fundiários não alcançam necessariamen-te uma grande repercussão pública, nem geramforte mobilização social que pressione o órgãogestor a resolvê-los. Isto suscita a convivênciaprolongada com situações irregulares e uma pos-tura complacente ou postergadora dos órgãosadministradores.

Outro fator que contribui para a inércia no tra-to da questão fundiária dos PNs é a baixa proba-bilidade de que a sua eventual resolução gere divi-dendos políticos para os gestores dos órgãos in-cumbidos de tratar das UCs. Os prazos para aobtenção de resultados significativos são relativa-mente longos, contrapostos aos períodos relati-vamente curtos dos cargos de direção. Criar no-vas UCs rende maior visibilidade e dividendos doque resolver os complexos problemas das UCsexistentes. Novas UCs enriquecem o currículo doadministrador. Além do mais, a resolução dos pro-blemas fundiários, via de regra, gera atritos e des-gaste com pessoas influentes, que se mobilizamjurídica e politicamente para resistir às ações queos prejudicam. Ocorre ainda a possibilidade deatritos não-desejados com as comunidades vizi-

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218

PARQUES NACIONAIS BRASILEIROS

nhas das UCs. Essas situações levam à anulaçãorecíproca das forças sociais envolvidas na ques-tão e ajudam a explicar porque o problema nuncafoi objeto de medidas sistemáticas, firmes e efi-cazes.

V. PERSISTÊNCIA DOS PROBLEMAS FUN-DIÁRIOS DOS PARQUES NACIONAIS BRA-SILEIROS

A persistência dos problemas fundiários dosPNs brasileiros indica que eles têm sido tratadoscom baixo grau de prioridade. Além de ocasiona-rem prejuízos diretos à gestão dos PNs, eles seagravam progressivamente, em várias dimensões:valorizam comercialmente as terras em litígio, emalguns casos por causa da própria criação da UC;ampliam a presença humana e, consequentemente,a construção de benfeitorias que interferem noecossistema, mas incorporam mais valor à terra;contribuem para o desmembramento e venda deterrenos do entorno para pessoas “de fora”, inte-ressadas em construir casas de veraneio ou de se-gunda residência (isso, por sua vez, suscita a apa-rição de novos atores, com novos interesses, com-plicando as soluções); criam a “perspectiva de di-reito” ou o “direito” propriamente dito para os ocu-pantes; e propiciam a prescrição de prazos legais.

No entanto, se a situação é examinada à luz dahistória da ocupação das terras no Brasil, vê-seque ela não se deve apenas à falta de eficiênciados órgãos gestores das UCs ou à falta de vonta-de política de seus dirigentes. Os PNs e as demaisUCs são vitimados pela desordem fundiária secu-lar que assola o país. O processo de colonizaçãodo Brasil pelos portugueses teve por base o siste-ma sesmarial de distribuição de terras a particula-res. Esse sistema teve início em 1532, com a di-visão do enorme, recém-descoberto e ainda mui-to mal conhecido território em capitanias heredi-tárias, entregues a donatários. Eles detinham gran-de poder, entre eles o de outorgar sesmarias –concessões de terras – a pessoas de sua confian-ça. As sesmarias constituíam, via de regra, gran-de extensões de terras “virgens” que os sesmeiroscomprometiam-se a cultivar dentro do prazo, or-ganizando atividades produtivas, pagando tribu-tos à Coroa e defendendo-as contra os inimigosde Portugal (FAUSTO, 1999).

Assim, a maneira básica de ocupação das ter-ras do Brasil, consideradas propriedade do rei dePortugal, era a sua doação a pessoas selecionadas,

em retribuição à lealdade e a serviços prestados àCoroa (MARTINS, 1999). A concessão desesmarias era regulamentada pelas OrdenaçõesFilipinas, vigentes em Portugal. As ordenaçõesimpunham ainda a obrigatoriedade de aproveita-mento do solo (MOTTA, 1998a), que, se não cum-prida, levaria à perda da concessão. Entretanto,isso raramente aconteceu, embora a Coroa porvezes tentasse recuperar o controle sobresesmarias abandonadas ou de outra forma negli-genciadas. Os concessionários de terras – quasetodos homens, portugueses, católicos e fiéis aoRei de Portugal – formaram uma oligarquia pe-quena, unida, poderosa e fechada, a expressãosocial acabada da falta de uma política democráti-ca de ocupação das novas terras coloniais(DRUMMOND, 1997).

O sistema de distribuição de terras viasesmarias foi formalmente suspenso em 1822,pouco antes da independência do Brasil(MARTINS, 1999). Com a independência, o Bra-sil passou por um período de quase três décadas,conhecido como extralegal ou das posses, carac-terizado pela inexistência de uma legislação espe-cífica sobre terras (SOUZA, 1994). Em 1850,promulgou-se a Lei de Terras, confusa e contro-versa, fortemente influenciada pelo pensamentoinglês, que zelou acima de tudo pelos interessesda elite rural criada e estabilizada pelo antigo sis-tema de sesmarias (SMITH, 1990).

A Lei de Terras instituiu o “registro paroqui-al”, cadastro por meio do qual o governo quis dis-tinguir as terras que eram de sua propriedade dasque eram propriedade de particulares. Os regis-tros paroquiais eram ligados à organização da IgrejaCatólica. Acabaram sendo utilizados para acomo-dar os interesses estabelecidos dos grandes se-nhores de terra. As decisões de registrar ou não,de informar os limites e o tamanho da proprieda-de com precisão, eram tomadas conforme a suaconveniência, tendo em vista que os clérigos nãoeram qualificados para verificar a veracidade dasinformações. Além do mais, como proprietária e/ou ocupante de muitas extensões de terras, a IgrejaCatólica era uma parte interessada cuja atuaçãona regularização não era desejável, sob o ponto devista das finalidades expressas de alcançar a re-gularização fundiária. Dessa forma, uma lei quese pretendia modernizante não teve os efeitos de-sejados, pois foi incapaz de reorganizar a estrutu-ra fundiária e de discriminar as terras públicas das

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terras privadas. Ainda assim, ela criou efeitos du-radouros e é usada, até os dias de hoje, comobase para tomadas de decisão acerca da proprie-dade e do direito à terra (MOTTA, 1998a), inclu-sive no que diz respeito à regularização de UCs.

Assim, o registro paroquial, baseado nas sim-ples declarações dos interessados, gerou intensapolêmica e duradoura confusão. Para alguns, oregistro passou a ser considerado como título dedomínio, enquanto outros o consideram um sim-ples cadastro que não poderia ser usado para de-terminação da propriedade do imóvel, nem paraconferir direitos ao declarante. Outros ainda con-sideram que, embora não fosse título de proprie-dade, o registro paroquial é fonte importante paraanálise da cadeia sucessória de proprietários emcasos de terras em litígio (MOTTA, 1998b).

A Lei de 1850 possibilitou a consolidação e alegitimação de uma pequena elite agrária de gran-des proprietários. Ela se fortaleceu desmesurada-mente e adquiriu enormes poderes na sociedade enas instituições públicas e privadas, conseguindo,pelos mais diversos meios, que os seus interessesfossem sempre resguardados. Holston (1993) afir-ma que a Lei de Terras promoveu “[...] conflito, enão soluções, porque estabelece os termos atra-vés dos quais a grilagem é legalizada de maneiraconsistente. [...] Nesse contexto repleto de para-doxos, a lei é o instrumento de manipulação, com-plicação, estratagema e violência, através do qualtodas as partes envolvidas – dominadoras ou su-balternas, o público e o privado – fazem valer seusinteresses” (HOLSTON, 1993, p. 68).

Apesar de tudo, essa lei se tornou um marcona legislação de terras do país. Até hoje muitosprocedimentos judiciais e as defesas das posiçõesmais antagônicas buscam fundamentação nela.Isso dificulta, atrasa e, em muitos casos, impededecisões administrativas e judiciais seguras e ágeissobre as pendências fundiárias em geral, e as dasUCs e dos PNs em particular.

Outro fator relevante para a apreciação da de-sordem fundiária do Brasil é o do registro de imó-veis. Esse registro foi instituído apenas em 1864,pela Lei n. 1 237, tornando-se um serviço públicoapenas em 1917, com base no Código Civil. En-tretanto, os registros feitos nos Cartórios de Re-gistro de Imóveis, órgãos auxiliares do poder Ju-diciário, os quais deveriam garantir legitimidadeao reconhecimento da propriedade imobiliária, tor-

naram-se outro fator complicador, pois eles mui-tas vezes foram focos de distorções e fraudes.Em 1913, foi aprovado o Novo Regulamento deTerras Devolutas da União (Decreto n. 10 105),ampliando o prazo dado a concessionários, pos-seiros e sucessores para declararem as suas ter-ras. Isso possibilitou uma nova rodada deapossamentos irregulares de terras públicas, prin-cipalmente por grandes proprietários (SERVIÇODO PATRIMÔNIO DA UNIÃO, 1964).

Durante a Primeira República (1889-1930), osgrandes proprietários de terras, principalmente osdos Estados economicamente mais fortes, inter-feriram ativamente na escolha de praticamentetodos os detentores de mandatos eleitorais, inclu-sive governadores e presidentes. A política nacio-nal ficava em grande parte à mercê de conchavosentre políticos de São Paulo, Minas Gerais e Riode Janeiro, principalmente, mas havia tambémgrande influência das oligarquias do Nordeste. Ésignificativo, portanto, que a Constituição Federalde 1891 transferisse todo o patrimônio de terraspúblicas para os Estados e desse a eles a prerro-gativa de legislar sobre o assunto, abrindo aindamais espaço para a influência dos proprietáriosrurais. A concentração da propriedade de terras,as dificuldades de acesso democrático a elas e asua falta de regularização documental não apenastiveram continuidade, mas agravaram-se(LINHARES & SILVA, 1999).

A Revolução de 1930 afastou do poder umaparte desses setores até então dominantes. A novaelite de poder, no entanto, evitou um confrontomais explícito com os setores mais conservado-res da elite rural, mesmo porque ela compartilha-va dos benefícios do sistema fundiário vigente.De qualquer forma, no Estado Novo, a União as-sumiu em parte o patrimônio de terras públicas,principalmente para fins de doações e concessõesde grande porte, pondo fim ao período em que asoligarquias locais tiveram pleno domínio sobre osmecanismos de legitimação das imensas possesadquiridas ao longo da República Velha (idem).

Em 1934, foram aprovados o Código de Águase o Código Florestal, que instituíam limites ao di-reito de propriedade da terra. Os dois códigos nãoestancaram a exploração intensiva desses recur-sos – nem era esse o seu objetivo –, mas foi oCódigo Florestal que forneceu a base legal para acriação dos primeiros PNs. Em 1964, já sob a

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ditadura militar, foi promulgado o Estatuto da Terra(Lei n. 4 504, de 30 de novembro de 1964). Con-cebido para servir como base legal para um vastoprograma de reforma agrária – chegando a incluirexigências de uso racional dos recursos naturaiscomo um requisito para a legitimidade da proprie-dade privada da terra –, ele não conseguiu alterara situação fundiária e agrária do país(DRUMMOND, 1999).

O legado dessa longa cadeia de políticasfundiárias privatistas, baseadas no favoritismo eno patrimonialismo, foi uma sociedade na qual“apenas 1% dos proprietários rurais detém 44%das terras, enquanto 67% deles detêm apenas 6%das terras” (MOTTA, 2000). Dados do CensoAgropecuário de 1995 mostram que, no fim doséculo XX, ainda era grande a concentraçãofundiária no Brasil (Tabela 9).

TABELA 9 – ESTRUTURA AGRÁRIA BRASILEIRA, EM 31 DE DEZEMBRO DE 1995

Seria difícil, portanto, esperar que as UCs emgeral, e os PNs em particular, ao pressuporemum grau significativo de controle público sobreextensões de terras por vezes grandes, estives-sem livres dos problemas fundiários que expres-sam esse legado.

VI. SUGESTÕES PARA A RESOLUÇÃO DEPENDÊNCIAS FUNDIÁRIAS DOS PAR-QUES NACIONAIS

Tendo em vista a tendência de os problemasfundiários dos PNs tornarem-se crônicos, refletirsobre soluções alternativas é mais do que relevan-te. Este é o objetivo principal desta seção. O pro-cesso de regularização das terras dos PNs res-sente-se muito da falta de uma política do poderpúblico que proponha e acompanhe as ações ne-cessárias, normalmente complexas e de longaduração. Quando se fala em regularização fundiária,quase sempre se faz ligação direta com desapro-priações, via aquisição de terras e pagamento porbenfeitorias pelo poder público e a conseqüenteinscrição dessas terras como patrimônio público.No entanto, a regularização fundiária é complexae deve contemplar outros procedimentos, algunsalternativos à desapropriação, os quais dependem

de trabalho administrativo árduo e de atenção con-tinuada estratégica. Seguem-se vários exemplosde tais procedimentos, a maioria deles discutidadetalhadamente em Rocha (2002). Destaque-seque todos as alternativas aqui discutidas sãofactíveis sem que haja necessidade de criação denovas leis.

Desde o período do Império, o governo brasi-leiro toma posse ou adquire regularmente terraspara fins diversos (colonização, reforma agrária,proteção de mananciais, construção de portos,ferrovias e rodovias, obras públicas de vários ti-pos etc.). Por falta de controle e de administraçãocriteriosa, a documentação pertinente perde-se emuitas vezes as terras adquiridas acabam utiliza-das por terceiros para outros fins. Para evitar oureverter essa perda do patrimônio público, os tí-tulos das propriedades da União precisam sermeticulosamente pesquisados nos arquivos públi-cos. Isso significa que a pesquisa cartorial de tí-tulos de terras públicas é um primeiro procedi-mento que pode favorecer a regularização fundiáriade UCs. Trata-se de um procedimento lento e di-fícil, mas, dentro de uma política conseqüente deUCs, não é admissível que terras públicasabrangidas pelos PNs estejam sob posse de ter-

FONTE: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2008).

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ceiros, nem que a titularidade pública perca-se porfalta de acesso ou por insuficiência de documen-tação comprobatória.

Um segundo procedimento a adotar, igualmentedependente de pesquisa sistemática em cartórios,é a identificação e incorporação de terrasdevolutas. Terras devolutas são “espaços físicosque não se encontram registrados, ou se afastamdo patrimônio das pessoas jurídicas públicas, ad-ministrativamente encaradas, todavia sem se in-corporarem, a qualquer título, ao patrimônio departiculares” (SIDOU, 1995). A pertinência desseprocedimento é inquestionável, já que, de acordocom a Constituição Federal, art. 20, II, as terrasdevolutas “indispensáveis à preservação ambiental”constituem bens da União. Podem e devem, por-tanto, ser identificadas e incorporadas aos PNs eoutras UCs como terras públicas (PRESIDÊN-CIA DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL,2008). Essas terras geralmente são de difícil iden-tificação, principalmente quando são pesquisadasnum universo muito grande. Levantamentosfundiários localizados, em torno das UCs, quandobem feitos, no entanto, são capazes de identificá-las.

Esse procedimento afeta as desapropriaçõesde terras particulares para fins de sua incorpora-ção a PNs, que podem ser diretas ou indiretas. Asprimeiras assemelham-se a uma alienação com-pulsória. Compreendem uma fase declaratória, emque o poder público declara, por meio de lei oudecreto, que determinado imóvel é de utilidadepública, e outra fase executória, em que oexpropriante e o expropriado entram em acordosobre o preço da indenização. A indenização deveser feita em dinheiro e deve ser prévia e justa.Não havendo acordo, segue-se para a fase judici-al. Uma ação de desapropriação indireta, ao con-trário, é aquela movida pelo particular que teve oseu imóvel apossado pelo poder público, em de-corrência da criação da UC. Esse instrumento temsido largamente usado por particulares cujas ter-ras são incluídas em UCs. Uma atenção sistemáti-ca às terras devolutas nas regiões de abrangênciados PNs pode, assim, ajudar a sanar pendênciasfundiárias das UCs, pois gera argumentos paraimpugnar processos de desapropriação indireta.

Essa medida é fundamental, tendo em vista que,em muitos casos, as desapropriações de terras –para todos os fins, e não apenas para regulariza-ção de UCs – são objeto de grandes transações

financeiras, envolvendo dispêndios de dinheiropúblico. Avaliações muitas vezes irreais são aca-tadas, dando margem ao que se chama de “indús-tria das desapropriações indiretas”. Asupervalorização das indenizações decorre de lau-dos periciais que inflacionam o valor das terras e/ou impõem “condenações acessórias”, relativas ajuros compensatórios, honorários de advogados,atualização monetária etc. (SCHWENCK JÚNIOR& AZEVEDO, 1998).

Outro problema torna mais complexo o pro-cedimento da desapropriação, qual seja, a dagrilagem de terras públicas, por meio da obtençãode documentos fraudulentos. Em certas situações,que infelizmente não são raras, principalmente emáreas de avanço acelerado da fronteiraagropecuária, podem existir diversos títulos depropriedade referentes às mesmas parcelas de ter-ra, dificultando sobremodo os procedimentos ad-ministrativos e judiciais de identificação dos “ver-dadeiros” donos, inclusive se o dono for o gover-no. A própria Constituição de 1988, em seu art.225, § 5o, dispõe que “são indisponíveis as terrasdevolutas ou arrecadadas pelos Estados, por açõesdiscriminatórias, necessárias à proteção dosecossistemas naturais”. A Lei do Snuc, tendo emvista este problema, determinou, em seu art. 43,que o “Poder Público fará o levantamento nacio-nal das terras devolutas, com o objetivo de definiráreas destinadas à conservação da natureza, noprazo de cinco anos” (PRESIDÊNCIA DA RE-PÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL, 2008),determinação esta que não foi executada8.

Daí a importância de que se proceda tambémà pesquisa cartorial sobre títulos de terras parti-culares. Considerando a probabilidade (por vezesforte) de existirem documentos de propriedadeparticular juridicamente inconsistentes, é impres-cindível que sejam verificados todos os títulos de

8 Destaque-se que o Ibama e o ICMBio são menos res-ponsáveis do que vitimas do desordenamento fundiário eda generalizada falta de controle governamental sobre asterras públicas em muitas partes do país. Pode-se especu-lar que se o Serviço de Patrimônio da União (SPU) e oInstituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra)cumprissem as suas missões a contento, as terras públicaseventualmente colocadas sob algum status de proteçãoambiental seriam muito mais facilmente incorporadas àsUCs pelo Ibama e pelo ICMBio. O mesmo coloca-se quan-to à Fundação Nacional do Índio e aos diversos institutosestaduais de terras.

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terras sobrepostas e vizinhas aos PNs, por meiodos levantamentos das cadeias sucessórias e daaveriguação do cumprimento dos princípios queregem a transmissão das propriedades, até a suaorigem. Títulos dúbios ou suspeitos devem serconferidos administrativamente e contestados ju-dicialmente pelo órgão gestor de UCs, o que sig-nifica abrir toda uma outra linha de trabalho, com-plementar à pesquisa de terras públicas oudevolutas. Estes procedimentos tendem a ser de-morados, mas podem contribuir significativamentepara resolver pendências.

Um terceiro procedimento capaz de ajudar naconsolidação fundiária das UCs é que o órgãogestor desenvolva uma ação sistemática e decidi-da na localização e incorporação de terras aban-donadas. Trata-se de terras sobre as quais o pro-prietário deixa de satisfazer os ônus fiscais, ces-sados os atos de posse (Lei n. 10 406, de 10 dejaneiro de 2002, que institui o Novo Código Civil,art. 1 276). O imóvel é arrecadado como bemvago e, no prazo de três anos, passa à proprieda-de do Município ou do Distrito Federal, em casode imóvel urbano, ou à propriedade da União, emcaso de imóvel rural9. Haverá casos em que taisterras sejam de interesse para as políticas de con-servação e sejam eventualmente incorporadas aUCs, em geral, e a PNs, em particular.

Os chamados “terrenos de marinha” e as “ter-ras situadas em cursos baixos de rios” tambémdevem ser considerados para incorporação aopatrimônio público. O Decreto-Lei n. 9 760, de 5de setembro de 1946, inclui entre os bens da Uniãoos terrenos de marinha e os seus acrescidos. Deacordo com este decreto, os terrenos de marinhasão aqueles situados no fundo dos litorais maríti-mos, até uma distância de 33 metros, medidoshorizontalmente a partir da posição da linha de pre-amar média de 1831. Neles estão incluídos tam-bém os terrenos situados no continente, nas cos-tas marítimas e nas margens dos rios e lagoas eos que contornam as ilhas, até onde se faça sentira influência das marés. Os terrenos acrescidos de

marinha são aqueles que se tiverem formado, na-tural ou artificialmente, para o lado do mar ou dosrios e lagoas, em seguimento aos terrenos de ma-rinha. Afirma Machado (2003) que, em temposcoloniais, a reserva dos terrenos de Marinha tinhacomo objetivo garantir a defesa militar do litoral ezonas adjacentes. Essa diretriz continua a valer,mas com o objetivo de manter o livre acesso aomar e proteger o meio ambiente litorâneo. Con-forme Leivas (1977, p. 54), o citado Decreto-Leie os regulamentos conexos ao patrimônio da Uniãoconstituem “formidável arma de que dispõe oConservacionismo no Brasil, se souber usá-la”.Assim, a limitação legal à propriedade particularde terrenos de marinha favorece a consolidaçãofundiária das UCs que as contêm.

Somente depois de esgotadas essas alternati-vas é que cabe dar início aos procedimentos paraa desapropriação de terras em UCs. Uma consi-deração fundamental a respeito disso é que a ale-gação de que inexistam recursos não pode maisser citada como obstáculo à regularização fundiáriade UCs. A própria Lei do Snuc, art. 36, cria oinstrumento da compensação ambiental e deter-mina que os seus recursos sejam usados para aregularização fundiária das UCs (entre outras fi-nalidades). De acordo com esse artigo, nos casosde licenciamento ambiental de empreendimentosde significativo impacto ambiental, o empreende-dor é obrigado, a título de compensação, a apoiara implantação e a manutenção de UCs do grupode proteção integral. O valor da compensação serádefinido pelo órgão ambiental licenciador, caso acaso, de acordo com a sua avaliação sobre o graude impacto do empreendimento. Esses recursospodem ser usados para diversos fins, entre osquais a consolidação de UCs, por meio da aquisi-ção de terras desapropriadas10. Adicionalmente,o art. 33, I, do Decreto n. 4 340, de 22 de agosto

9 É relevante mencionar a falta de respaldo legal para umasolução por vezes defendida pelos defensores e até porgestores de UCs. Trata-se da proposta de que terras usa-das para atividades ilegais – em particular, o cultivo e oprocessamento de drogas – sejam confiscadas e transferidaspara UCs eventualmente existentes nas suas proximida-des.

10 Em abril de 2008, o Supremo Tribunal Federal julgouparcialmente procedente a Ação Direta deInconstitucionalidade n. 3 378, proposta pela Confedera-ção Nacional da Indústria contra o art. 36 da Lei do Snuc.Foram julgadas inconstitucionais as expressões “não podeser inferior a meio por cento dos custos totais previstos naimplantação de empreendimento” e “o percentual”, conti-das no § 1º do referido artigo. Assim, a lei deixou de definirum percentual mínimo para a compensação, como consta-va de sua redação original. A compensação continua a serobrigatória, mas o seu valor passou a ser definido caso acaso.

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de 2002, que regulamenta a Lei do Snuc, determi-nou que os recursos da compensação ambientalsejam aplicados prioritariamente na regularizaçãofundiária e na demarcação de terras de UCs.

A Lei do Snuc prevê ainda outras fontes derecursos, como os provenientes de pagamentospela exploração comercial da exploração da ima-gem de UC (art. 33), bem como os oriundos decontribuição financeira prestada por órgão ouempresa, público ou privado, responsável peloabastecimento de água, pela geração e distribui-ção de energia elétrica ou que faça uso de recur-sos hídricos da UC e que seja beneficiário da pro-teção por ela proporcionada (arts. 47 e 48). Cabeaos órgãos ambientais, portanto, lançar mão des-ses instrumentos e aplicar os recursos por elesgerados na regularização fundiária dos PNs e de-mais UCs de domínio e posse públicos.

A Lei do Snuc (art. 34) possibilita ainda aosórgãos responsáveis pela administração das UCso recebimento de “recursos ou doações de qual-quer natureza, nacionais ou internacionais, comou sem encargos, provenientes de organizaçõesprivadas ou públicas ou de pessoas físicas quedesejarem colaborar com a sua conservação”. Essedispositivo abre um leque de alternativas, comoas negociações para que terras de interesse paraUCs sejam compradas por entidades civis com-prometidas com a questão ambiental e depois do-adas ao ICMBio. Tendo em vista a crescente sen-sibilidade ambiental da população em geral, o queinclui a atenção dada à proteção da biodiversidadee aos impactos do aquecimento global, aumenta ointeresse de empresas e organizações de vinculara sua imagem à conservação da natureza. Assim,ONGs ambientalistas podem e devem se aproxi-mar delas em busca dos recursos destinados aviabilizar a aquisição de terras disputadas em UCse no seu entorno. É imprescindível, no entanto,que as terras em questão tenham sido cuidadosa-mente selecionadas a partir dos estudos detitularidade e de cadeia de dominialidade, feitossob responsabilidade do órgão gestor, a fim deque esses recursos não sejam gastos em proprie-dades que mais tarde gerarão novas pendênciasou processos.

Finalmente, há casos que podem ser resolvi-dos diretamente com os proprietários rurais, pormeio da compensação da reserva legal, previstana Lei n. 4 771/1965, do Código Florestal. A re-serva legal é “a área localizada no interior de uma

propriedade ou posse rural, excetuada a de pre-servação permanente, necessária ao uso susten-tável dos recursos naturais, à conservação e rea-bilitação dos processos ecológicos, à conserva-ção da biodiversidade e ao abrigo e proteção defauna e flora nativas” (art. 1°, § 2°). O proprietá-rio que não tem reserva legal é obrigado a recuperá-la, por meio de recomposição, condução da rege-neração natural ou compensação em outra área.Entretanto, ele pode ser desonerado dessa obriga-ção, se doar área localizada no interior de UC dedomínio público pendente de regularizaçãofundiária, desde que a UC situe-se em área equi-valente em importância ecológica e extensão, per-tença ao mesmo ecossistema e esteja localizadana mesma microbacia (art. 44, § 6º). Portanto,cumpre aos órgãos gestores de UCs promover olevantamento das propriedades rurais externas àUC, mas situadas nas microbacias por elaabrangidas, cadastrar os imóveis desguarnecidosde reserva legal e propor aos proprietários a regu-larização de suas pendências ambientais por meioda compra e doação de terras no interior dasUCs11.

VII. CONCLUSÕES

A questão fundiária dos PNs brasileiros é gra-ve. Ela precisa ser enfrentada de forma sistemáti-ca, por mais irresolúvel que a questão apresente-se em muitas partes do território brasileiro. Osproblemas que envolvem a matéria tendem a seavolumar e a gerar grandes prejuízos para as UCs.A manutenção de propriedades privadas no interi-or dos PNs sem dúvida compromete os seus ob-jetivos de manejo. Além disso, a situação prejudi-ca a atividade produtiva das populações residen-tes em PNs ou nas suas vizinhanças, em funçãoda instabilidade gerada.

Criar um PN implica, por definição, restringirseriamente o rol de atividades produtivas possí-veis de serem desenvolvidas em uma área. UmPN exclui toda e qualquer atividade produtiva noseu interior e limita atividades produtivas no seuentorno. A possível exceção é o ecoturismo ou o

11 Não é inédito que particulares doem aos órgãos gestorespartes de suas propriedades incluídas em PNs ou outrasunidades. Um caso documentado ocorreu quando da cria-ção do PN Serra dos Órgãos (RJ), em 1939 –informaçãocolhida por Leonardo Rocha em arquivos administrativosdo parque (cf. ROCHA, 2002).

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turismo de natureza, quando praticado em regimede concessão e em conformidade com o plano demanejo da unidade. Portanto, a falta de regulari-zação fundiária fragiliza também os produtores,proprietários e residentes locais. Nos muitos ca-sos em que eles não foram indenizados, ficarampraticamente impossibilitados de explorar econo-micamente a terra e os demais recursos. Por ou-tro lado, a não-resolução do problema fundiáriomuitas vezes termina por trazer sérios problemaspara a conservação da área, pois proprietários não-indenizados tendem a descontar o valor dos re-cursos naturais que motivaram a criação do PN epassam a explorá-los de forma desregrada.

O poder público precisa, portanto,implementar, com seriedade e prioridade, umaespécie de abrangente “Programa de Regulariza-ção Fundiária de UCs”, de longo prazo, commetodologia definida, etapas plurianuais, metasquantitativas claras e esquemas de consolidação,monitoramento e ajuste. Os procedimentos aquiindicados – e outros a serem definidos e avaliados– devem ser adotados seletivamente, de acordocom cada caso a resolver. A eficácia de cada umdeve ser objeto de atenção cuidadosa, a fim de

evitar desperdício e duplicação de esforços e re-cursos.

Sabemos que as soluções propostas não ge-ram efeitos de curto prazo, devido à complexida-de dos procedimentos envolvidos, da exigênciade pessoal especializado, do volume de informa-ções exigidas e da quantidade de variáveis presen-tes na discussão e na tomada de decisão. Elas sóserão viabilizadas e alcançadas a partir de trabalhocontínuo e persistente, que não foi realizado noslongos anos de existência da política de UCs. Éfundamental, portanto, que o poder público assu-ma posição ativa na questão, conferindo-lhe altograu de prioridade.

De toda forma, a conservação dabiodiversidade vai muito além da criação de UCsde qualquer modalidade. Diferentes setores dopoder público e da sociedade civil devem investirtambém em ações de fiscalização, formação decorredores ecológicos entre UCs de proteção in-tegral e de uso sustentável, educação ambiental eimplantação de instrumentos econômicos de ges-tão ambiental, que induzam proprietários particu-lares de terras a adotar práticas compatíveis coma conservação da natureza.

Leonardo G. M. da Rocha ([email protected]) é Mestre em Ciência Ambiental pela Univer-sidade Federal Fluminense (UFF) e Analista Ambiental do Instituto Chico Mendes de Conservação daBiodiversidade (ICMBio).

José Augusto Drummond ([email protected]) é Doutor em Land Resources pela University ofWisconsin (Madison, Estados Unidos) e Professor na Universidade de Brasília (UnB).

Roseli Senna Ganem ([email protected]) é Doutora em Desenvolvimento Sustentável pelaUniversidade de Brasília (UnB) e Consultora Legislativa da Câmara dos Deputados, na área de meioambiente.

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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA V. 18, Nº 36: 295-300 JUN. 2010

BRAZILIAN NATIONAL PARKS: LAND OWNERSHIP PROBLEMS AND ALTERNATIVESFOR THEIR SOLUTION

Leonardo G. M. Rocha, José Augusto Drummond and Roseli Senna Ganem

This article makes a diagnosis of the land ownership situation for currently existing Brazilian nationalparks. We argue that Brazilian cultural and political heritage, the historical record left by theadministrative organs managing national parks and the complexity of the land problem are determiningfactors in holding back processes of regularization of land use and ownership within these “conservationunits” (CUs). We maintain that the paucity of financial resources for indemnification of lands thathave been appropriated is not the greatest obstacle in resolving the matter. We propose, furthermore,that diverse alternative legal and administrative instruments could be deployed to regularize orincorporate land into national parks and therefore make policies for conserving the country’s biodiversitymore effective. Finally, we conclude that conserving biodiversity goes far beyond the creation ofconservation units of whatever sort, making it necessary for different segments of public power andcivil society to invest as well in actions of monitoring, formation of ecological corridors between fullyprotected and sustainable use CUs , environmental education and the implantation of economicinstruments for environmental management that induce private owners of land to adopt practicesthat are compatible with the preservation of nature.

KEYWORDS: conservation units; environmental policies; land ownership regulation; public lands.

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THE ISSUE OF CONTINUITY IN MACRO-ECONOMIC POLICY: FROM FERNANDOHENRIQUE CARDOSO TO LULA (1995-2006)

José Marcos Nayme Novelli

The goal of this article is to acquire an understanding of the continuity of macroeconomic policy,from the Fernando Henrique Cardoso administration through the Lula government. The article isorganized in three parts. In the first one, we provide a succinct description of the macroeconomicpolicies of Cardoso and Lula administrations. In the second, we present and discuss the debatewithin specialized literature on the hypothesis of continuity in macroeconomic policy from the oneadministration to the next. In the third section, we provide a mapping of State leadership withinwhich we emphasize certain aspects that contributed to the continuity between both administrations.Without neglecting consideration of the actions of those who were the ultimate beneficiaries of thesepolitics, we identify three factors that explain the maintenance of macroeconomic policy: i) thestructure of Brazilian capitalism and its place within the world economy; ii) the strength of theorthodox ideas disseminated by the media and dominant within the economic team (the Ministry ofInternal Revenue and the Brazilian Central Bank) that was recruited from the same “field”; and iii)Worker’s Party acceptance of the “rules of the game” of democracy.

KEYWORDS: macroeconomic policy; continuity; Cardoso administration; Lula administration;Workers’ Party; world economic order; State leadership.

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PARLIAMENTARY FRONTS, INTEREST REPRESENTATION AND POLITICALALIGNMENTS

Odaci Luiz Coradini

The Brazilian parliament has been characterized by the large amount of parliamentary fronts createdin recent years. Common interpretations, usually based on “managerial” and normative conceptionsof political domination, associate this with the fragility of alignments and of party loyalty, or with the“pragmatism” of politicians. Taking federal representatives from the 2002-2006 period as our empiricaluniverse, we seek to demonstrate that these parliamentary fronts are not the product of party fragility,

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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA V. 18, Nº 36: 303-309 JUN. 2010

établie entre l’Etat et la société civile pendant la même période. L’hypothèse d’où nous partons,c’est celle où la création de nouveaux espaces participatifs, malgré étant une condition importantepour assurer une dynamique inclusive effective, elle n’est pas suffisante. L’analyse faite montre quemême que le gouvernement Lula ait construit les bases d’un nouveau pacte avec la société civileorganisée par la création, ampliation et institutionnalisation de nouveaux espaces participatifs, tellepratique n’est pas devenue une politique de gouvernement majoritairement soutenue. De cette façon,les efforts entrepris jusqu’à ici pour la construction et l’amélioration de la participation des organisationsde la société civile dans les politiques publiques du gouvernement Lula, deviennent marginaux etsélectifs, compromettant ainsi, les potentialités inclusives que ces mêmes efforts pourraient générer.

MOTS-CLES : Etat ; organisations de la société civile ; participation ; gouvernement Lula.

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PARCS NATIONAUX BRÉSILIENS : DES PROBLÈMES DE TERRE ET DESALTERNATIVES POUR LEUR RÉSOLUTION

Leonardo G. M. da Rocha, José Augusto Drummond et Roseli Senna Ganem

L’article fait un diagnostique de la situation agraire des parcs nationaux brésiliens actuellementéxistents. Il argumente que l’héritage culturelle et politique brésilienne, l’historique des organes quiadministrent les parcs nationaux et les complexités agraires, sont des facteurs déterminants desobstacles dans le processus de régularisation de la terre de ces unités de préservation (Ucs). Letexte indique que le manque de ressources financières pour des indemnisations de terrains à expropriern’est pas le plus grand obstacle pour la résolution de la question. On propose, encore, plusieursinstruments juridiques et administratifs alternatifs qui peuvent être déclenchés pour regulariser ouincorporer des terres aux parcs nationaux et donner plus d’effectivité à la politique de préservationde la biodiversité au Brésil. Pour finaliser, on conclut que la préservation de la biodiversité vabeaucoup plus loin de la création des unités de préservation de n’importe quelle modalité, étantnécessaire que des différents secteurs du pouvoir publique et de la société civile investissent aussidans des actions de fiscalisation, formation de corridors écologiques entre Ucs de protection intégraleet d’utilisation durable, education ambientale et implantation d’instruments économiques de gestionambientale qui induisent les propriétaires de terres privées à adopter des pratiques compatiblesavec la préservation de la nature.

MOTS-CLES : unités de préservation ; politiques ambientales, planification de terres, planificationterritoriale ; terres publiques.

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LA QUESTION DE LA CONTINUITÉ DE LA POLITIQUE MACRO-ÉCONOMIQUE EN-TRE LES GOUVERNEMENTS CARDOSO ET LULA (1995-1996)

José Marcos Nayme Novelli

L’objectif de l’article c’est de comprendre la continuité de la politique macro-économique entre legouvernement Cardoso et le gouvernement Lula. L’article est organisé en trois parties. Dans lapremière, on décrit brièvement la politique macro-économique des gouvernements Cardoso et Lula.Dans la deuxième, on présente et discute le débat de la littérature specialisée sur l’hypothèse de lacontinuité de la politique macro-économique entre les deux gouvernements. Dans la troisième partie,une cartographie est faite des dirigeant des Etats, où nous mettons l’accent sur certains aspects quiont contribué pour cette continuité entre les deux gouvernements. Sans déconsidérer l’action desbénéficiaires ultimes des résultats de cette politique; nous identifions trois facteurs pour expliquerl’entretien de la politique macro-économique: i) la structure du capitalisme brésilien elle même, etson insertion dans l’économie mondiale; ii) la force des idées orthodoxes difusées par les médias et