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PARTE A: PRODUÇÃO ARTÍSTICA RECITAL

PARTE A: PRODUÇÃO ARTÍSTICA RECITALgêneros musicais como o jazz , o reggae, a salsa ou o rock afro-celta . Mas essa abordagem da cultura não serve apenas aos objetos culturais

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PARTE A: PRODUÇÃO ARTÍSTICA

RECITAL

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ESCOLA DE MÚSICA E ARTES CÊNICAS – EMAC PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO – MESTRADO EM MÚSICA

Mini-Auditório da EMAC – Campus II – UFG 26/03/2009 09:00h

RECITAL

PROGRAMA

Casa de Caboclo Hekel Tavares e Luiz Peixoto

Canção (Caboclo Bom) Hekel Tavares e Raul Pederneiras

O leilão Hekel Tavares e Joracy Camargo

Guacyra Hekel Tavares e Joracy Camargo

Você Hekel Tavares e Nair Mesquita

Harmonia! Harmonia! Hekel Tavares e Luiz Peixoto

Viola Quebrada Villa-Lobos e Mário de Andrade

Festa (Baianinha chegou da Sé) Hekel Tavares e Luiz Peixoto

O Boiadêro Hekel Tavares e Olegário Mariano

Cantiga de Nossa Senhora Hekel Tavares e Luiz Peixoto

Azulão Hekel Tavares e Luiz Peixoto

Banzo Hekel Tavares e Murillo Araújo

Funeral d’um rei nagô Hekel Tavares e Murillo Araújo

SAMUEL SILVA, canto HELOÍSA BARRA, piano

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PARTE B: TEXTO DISSERTATIVO EM FORMA DE ARTIGO

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1. INTRODUÇÃO

O cancioneiro de Hekel Tavares (Maceió1, 1896 – Rio de Janeiro, 1969) tem-se

mostrado um campo de estudo necessário por sua importância histórica. A literatura sobre o

compositor é pequena e por vezes contraditória. Não há uma publicação revisada do seu

cancioneiro e ainda há dúvidas sobre o total exato de canções2 de sua autoria. A crítica é

contraditória ao rotular a figura do compositor e sua obra. Alguns autores tendem a

desprestigiar sua produção baseando-se na suposta fraqueza estrutural de seu trabalho

sinfônico.

Em cada período da história, a crítica musical tende a fixar o olhar sobre figuras

consideradas gênios musicais, ou apenas naqueles que se destacam em sua época.

Concomitantemente, deixam de lado, por motivos vários, outros músicos que ajudaram a

construir os ambientes musicais que compuseram o cenário propício para o despontar de

compositores. Esse quadro se confunde ainda mais com a forte segmentação dentro da música

brasileira no que se refere à separação de linhas musicais denominadas erudito, popular e

folclórico. A rotulação da produção de determinado compositor costuma enquadrar não

apenas sua obra, mas também o próprio compositor como pertencente a um ou outro estilo.

Em tempos não muito distantes, compositores eruditos escondiam-se, atrás dos seus

pseudônimos (TRAVASSOS, 2000, p. 10 a 17), protegendo seus verdadeiros nomes, podendo

assim enveredar imaculados pelos caminhos da música popular. Guerra-Peixe e Francisco

Mignone são casos bem conhecidos. Curioso ver, no entanto, que compositores originários da

música popular por vezes puderam trabalhar em ambientes musicais mais formais e nem por

isso foram desmerecidos, como é o caso de Pixinguinha. O trânsito entre ambientes musicais,

enfim, parece muito natural, apesar de haver certo atrito entre os agentes produtores dessas

linguagens.

Entre os vários rótulos que procuraram caracterizar sua produção e personalidade,

Hekel Tavares foi conhecido como o “Schubert brasileiro”3. Todavia, vem sendo, de certa

1 Todas as fontes consultadas indicam Satuba–AL como cidade de nascimento de Hekel Tavares; contudo, seu filho Alberto Tavares informa que seu local de nascimento é Maceió–AL. 2 As fontes variam na especificação da quantidade de canções compostas por Hekel Tavares. Em alguns casos, para não serem exatas, afirmam que a quantia é acima de cem. Vasco Mariz (2002, p. 118) escreve que são cento e três. Alberto Tavares, filho do compositor, informa que seu pai teria listado inicialmente a quantia de cento e três canções mas teria deixado de contar peças que ele pessoalmente desconsiderava. Para conferir listagens publicadas das canções, veja Bortoli (1996) e Soares (1999). Para conferir a listagem de partituras estudadas neste trabalho veja a bibliografia. 3 O apelido “Schubert brasileiro”, segundo o jornalista Fernando Coelho, foi dado pelo maestro Eleazar de Carvalho (1912-1996). A referência “comparando” Hekel a Schubert pode ter algum desses motivos ou os três

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forma, preterido dentro da área de canto “erudito”. São poucos os livros que dele falam e não

há, até o momento, teses ou trabalhos acadêmicos tratando especificamente de suas canções.

Provavelmente isso resulte do fato de algumas menções ao compositor o declararem, apesar

de seu lirismo melódico, limitado em seu métier por falta de estudo formal. De qualquer

forma, o fomento do interesse sobre a obra do compositor atualmente fica comprometido, pois

a literatura a seu respeito muitas vezes é negativa ou superficial. Não se pode esquecer, no

entanto, da importância que a obra do compositor teve no passado. Hekel Tavares foi um

músico de grande sucesso no meio da canção urbana conhecidas hoje.

Suas canções podem contribuir acrescentadas a um repertório de canções brasileiras

para fins didáticos na formação expressiva de estudantes. A organização desse repertório seria

de importância estratégica, pois falta aos estudantes de canto um repertório de canções que

permita o desenvolvimento de sua expressividade musical, sem elevada exigência de técnica

vocal. Nas décadas de 1920 e 1930, as canções de Hekel Tavares tiveram grande êxito

popular. Atualmente, no entanto, sua pouca divulgação, provocada, entre outros motivos, pela

dificuldade de acesso ao material impresso, cria uma lacuna na história da canção brasileira.

Este trabalho tem o objetivo de ajudar o intérprete a procurar fontes e materiais, rever

a crítica a Hekel Tavares e contribuir para a busca de caminhos reflexivos que venham

auxiliá-lo na construção de uma performance de suas canções. O cancioneiro do compositor é

extenso. Não foi possível, durante o percurso deste trabalho, o acesso a um número próximo

da totalidade conhecida. Dessa forma, não foi possível também estabelecer uma lista

definitiva. A proposta inicial era escolher um número de canções que pudesse contemplar as

necessidades do presente trabalho. Assim, as canções escolhidas deveriam compor um recital

de mestrado. O conteúdo do recital foi montado seguindo critérios tais como o sucesso das

canções e sua relação com os conteúdos específicos tratados no corpo do trabalho. Além

disso, as canções tinham que ser adequadas à voz do cantor e representar uma amostra da

variedade das canções do compositor. Não obstante, haja vista a grandeza da tarefa necessária

nesse assunto, este texto procura se firmar apenas sobre aquilo que foi possível diante das

condições limitadas de tempo, espaço e recursos financeiros próprios existentes para sua

realização. Para a reflexão, dentro do corpo do texto, optou-se pela reflexão sobre três

canções:

motivos: 1) o melodismo fácil; 2) a enorme quantidade de canções que embora sigam uma intenção, variam entre si; 3) a maneira como a parte do piano cria a ambientação para melodia a partir do significado do texto.

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Casa de Caboclo (letra de Luiz Peixoto)

Canção (letra de Raul Pederneiras)

Banzo (letra de Murillo Araújo)

Durante o estudo de todo o material colhido sobre o compositor, surgiram

necessidades especiais de abordagem, de olhar, de método de observação que seria adotado

para refletir sobre ele. Tudo tratava claramente da produção musical e da vida de uma pessoa,

fruto da consulta a documentos produzidos em momentos históricos diferentes do que

vivemos hoje. Então, para um olhar que fosse suficientemente amplo e geral, para ser base

reflexiva, foi escolhida a teoria da cultura seguindo sua abordagem antropológica. Além desse

olhar, acrescentou-se, dada a peculiaridade do assunto, o ponto de vista da teoria do

hibridismo cultural. Isso se deve a aspectos que dizem respeito tanto à vida quanto à obra do

compositor estudado. A abordagem da cultura segue o conceito visto em Laraia (2004). Para o

suporte quanto ao tema do hibridismo cultural, optou-se pelas abordagens vistas em Burke

(2003) e Canclini (2006).

Laraia, sem querer entrar em questões mais profundas das dificuldades hercúleas de

conceituação moderna da cultura na antropologia, busca expor o tema em sua possibilidade

mais simples. Ele utiliza a conceituação antiga de Edward Tylor (1832-1917) onde se lê que

cultura tomada “em seu amplo sentido etnográfico é este todo complexo que inclui

conhecimentos, crenças, arte, moral, leis, costumes ou qualquer outra capacidade ou hábitos

adquiridos pelo homem como membro de uma sociedade” (LARAIA, 2004, p. 25). Em outras

palavras, é tudo que não é produzido pela genética humana, por sua biologia. A cultura é

dinâmica (idem, p. 94) e possui áreas que se modificam mais rapidamente que outras. Em

nossa sociedade, por exemplo, as inovações tecnológicas nos forçam a esquemas de mudança

bastante rápidos, como vem escrevendo Bauman (2004) em seu ponto de vista de liquidez da

modernidade. De forma oposta, a velocidade de mudança das idéias de moralidade na

sociedade se modificam mais lentamente. Laraia afirma também que “a cultura influencia o

comportamento social e diversifica enormemente a humanidade, apesar de sua comprovada

unidade biológica” (op. cit., p.8). É um paradoxo entre a unicidade da espécie humana ante a

sua multiplicidade cultural. Dentro desse pensamento, existe discussão sobre o peso imposto

pela genética e pelo ambiente cultural no desenvolvimento comportamental do indivíduo.

Entre antropólogos, é aceita a idéia de que a genética não é determinante sobre a

diferenciação cultural.

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Qualquer criança humana normal pode ser educada em qualquer cultura, se for colocada desde o início em situação conveniente de aprendizado (idem, p. 17). Da mesma forma “o comportamento dos indivíduos depende de um aprendizado, de um processo que chamamos endoculturação. Um menino e uma menina agem diferentemente não em função de seus hormônios, mas em decorrência de uma educação diferenciada” (idem, p. 20).

A escolha do olhar antropológico da cultura se dá por várias razões, mas, a princípio,

porque o trabalho se debruça sobre aspectos da vida e da obra de um compositor assim como

aquilo que se diz ou escreve a seu respeito.

O historiador Peter Burke expõe uma tendência dentro da pós-modernidade de se

discutir a mistura, o híbrido, a mescla dentro da cultura. O que se entende com esses termos é

que, diferentemente dos pontos vista sobre cultura em que se pode delimitar as fronteiras

culturais das sociedades, por meio do hibridismo cultural entende-se esse processo de modo

contrário. “Não existe uma fronteira cultural nítida ou firme entre grupos, e sim, pelo

contrário, um continuum cultural” (BURKE, 2003, p. 2). Para Canclini, hibridização “são

processos socioculturais nos quais estruturas ou práticas discretas, que existiam de forma

separada, se combinam para gerar novas estruturas, objetos e práticas” (2006, p. XIX).

Canclini deixa claro que objetos antes entendidos como separados, que indica com o termo

discretas, também, por sua vez, são elementos advindos de hibridizações. Esse ponto de vista

é fomentado em conseqüência da “tendência global para a mistura e a hibridização” (idem).

Segundo Burke, esse processo é particularmente evidente na música através de formas e

gêneros musicais como o jazz, o reggae, a salsa ou o rock afro-celta. Mas essa abordagem da

cultura não serve apenas aos objetos culturais de tempos mais próximos ao presente. Os

processos híbridos da cultura servem, da mesma forma, a objetos culturais que penetram no

passado historiográfico. Sendo assim, o Brasil se mostra um objeto de estudo particularmente

interessante. Da mesma forma, o assunto que nos interessa especificamente é um produto de

mistura cultural. A canção, quando é abrasileirada, é entendida como uma mistura cultural,

um híbrido de herança européia e africana. No caso da produção de Hekel Tavares, procura-se

encontrar os sinais de hibridização em seu cancioneiro.

Para Burke, o surgimento dessa tendência na reflexão sobre a cultura pode ser

explicado também pela presença de figuras, nos grupos de discussão sobre hibridismo, que

são elas mesmas figuras de identidade cultural dupla ou mista (op. cit., p. 15). Cita o exemplo

de Homi Bhabha, Stuart Hall, Ien Ang, Edward Said entre outros. Semelhantemente, pelo que

se pôde verificar na literatura observada, Hekel Tavares desfruta, desde a infância, de um

ambiente cultural em que convivem culturas diferentes. Um ambiente formal e outro informal.

No que se refere especificamente à música, percebe-se que o compositor cresce num ambiente

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de fronteiras culturais. Burke percebe esse tipo de ambiente, de contato e mistura, relacionado

à criação: “acho convincente o argumento de que toda inovação é uma espécie de adaptação

e que encontros culturais encorajam a criatividade” (idem, p. 17).

No caso da música de Hekel Tavares, essa mistura se dá, à primeira vista, na maneira

como capta a cultura popular e a mostra em formas e ambientes culturais diferentes. A

utilização de uma abordagem híbrida de cultura se justifica pela necessidade de uma visão não

hierarquizada da cultura além da mistura cultural existente dentro da obra desse compositor.

Esse ponto de vista tenta liberar o olhar observador do viés modernista em que as classes

intelectuais mais elevadas procuravam produzir e incentivar formas de arte adaptadas ao seu

senso crítico iniciado. Mesmo em tempos pós-modernos, em que a multiplicidade convive, o

senso comum dentro do ambiente musical, particularmente, é de grande segregação entre as

estéticas conhecidas como erudita e popular. Dessa forma, a opção pela não-hierarquização

das estéticas musicais parece necessária para evitar deformações reflexivas do meio erudito

sobre o popular e vice-versa. Por outro lado, o hibridismo cultural permite observar processos

de negociação, tradução, sobreposição de elementos simbólicos de origens diferentes na

criação de objetos culturais ‘novos’.

Observado o caminho reflexivo optado, parte-se para a exposição dos caminhos

percorridos durante a fase de coleta de materiais para compor o trabalho. Fala-se de pessoas,

instituições e materiais consultados. Esse percurso pode contribuir para o leitor interessado

em estudar a vida e a obra de Hekel Tavares.

A literatura específica sobre o compositor é pequena e pouco focada no tema das

canções. As duas principais publicações específicas sobre o autor são o livro de Fernando

Bortoli intitulado Hekel Tavares e o mais lindo concerto para piano e orquestra (1996) e o

álbum, da editora Abril, intitulado Nova História da Música Popular Brasileira (1979) com

LP e encarte contando a história da vida e obra do compositor. Fora essas duas fontes, restam

as menções em enciclopédias e livros sobre a canção brasileira. Nenhuma das publicações

encontradas possui foco na interpretação das canções.

A busca de partituras foi uma tarefa de consulta a acervos públicos e privados. A

primeira fonte de apoio nesse sentido veio do jornalista Fernando Coelho (2005), que

disponibilizou, através da Gazeta de Alagoas, um artigo sobre o compositor alagoano. O

jornalista indicou a consulta ao radialista Edécio Lopes, em Maceió, que indicou fontes de

informação e gravações de Hekel Tavares.

Em Brasília, o pianista Joel Bello Soares, professor da Universidade de Brasília,

recebeu este pesquisador em sua casa. Deu informações sobre Hekel Tavares, mostrou

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gravações de música sinfônica do compositor e forneceu um livro de sua autoria intitulado

Alagoas e seus músicos, livro atualmente esgotado. Nesse livro consta menção ao compositor

alagoano além de uma lista de obras com datas de gravação. O professor Joel Bello indicou a

consulta ao professor Eduardo Xavier em Maceió-AL.

Eduardo Xavier4 é professor da universidade Federal de Alagoas. Foi fonte de consulta

fundamental, pois, além de enviar cópias de partituras que tinha em mãos, indicou a consulta

ao radialista Lauro Gomes5, do Rio de Janeiro. Lauro Gomes havia realizado na Rádio MEC

do Rio de Janeiro um programa, em 1996, dedicado somente ao compositor Hekel Tavares,

em que foram mostradas canções e obras sinfônicas e realizada uma entrevista com a esposa

do compositor, Martha Dutra. Lauro Gomes converteu o programa para o veículo digital e

deixou uma cópia CD no MISA (Museu da Imagem e do Som de Maceió-AL). Isso

direcionou o trabalho de pesquisa até Maceió para consulta ao acervo do MISA, consulta essa

que veio a ser frustrada, pois as mídias doadas pelo radialista ao museu estavam danificadas.

Além dessa gravação existem lá pequenos artigos de revista, de valor inexpressivo sobre o

compositor alagoano. Lauro Gomes foi o intermediário no contato, já há muito tempo

procurado, com Alberto Tavares, atualmente o único herdeiro e responsável pela obra de

Hekel Tavares, seu pai. Alberto Tavares concedeu uma entrevista para a realização desta

pesquisa, que se encontra no anexo A.

Além dessas fontes, foi feito trabalho de coleta no acervo do Instituto Moreira Salles

situado em São Paulo. Lá se pode encontrar partituras, recortes de jornal e um livro de

colagens, feito pela esposa do Hekel Tavares, contendo informações sobre o compositor.

A cantora Ana Salvagni6, que realizava um estudo para gravação de canções de Hekel

Tavares, também foi fonte de consulta importante, concedendo informações especiais sobre

questões de direitos autorais e fontes de informação sobre o compositor.

4 José Eduardo Xavier da Silva: possui graduação em Canto pela Universidade Federal de Alagoas (1991), graduação em Psicologia Clínica pelo Centro de Estudos Superiores de Maceió (1981) e doutorado em Letras e Lingüística pela Universidade Federal de Alagoas (2004). Atualmente é Professor da Universidade Federal de Alagoas. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Literatura Comparada e atua principalmente nos seguintes temas: literatura-música, mímesis, representação. (http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/busca.do?metodo=apresentar. Acessado em 19.07.08). 5 Lauro Gomes: produtor e apresentador dos programas Sala de Concerto, Música e Músicos do Brasil. Redator e Produtor do Concerto MEC. Produz ciclos e programas especiais, de eventos e concertos ao vivo na RÁDIO MEC-FM. Radialista, Produtor Executivo, Autor, Roteirista, Locutor, Apresentador e Entrevistador. (http://br.geocities.com/laurogomes2002/laurogomes.html. Acessado em 18.07.08) 6 Ana Salvagni tem site oficial disponível em: http://www.anasalvagni.com.br/. Acessado em 19.07.08.

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2. HEKEL TAVARES

2.1. REVENDO A CRÍTICA MUSICAL

Em meados da década de 1920, um compositor jovem e desconhecido dá início à

composição de uma série de canções que alcançaram tanto sucesso que se fundiram aos

cantos populares do Brasil. Inicialmente trabalhando no teatro de revista do Rio de Janeiro,

produziu canções memoráveis que circularam do palco para as ruas, das ruas para os serões e

dos serões para as salas de concerto. Suas canções foram gravadas várias vezes por intérpretes

diferentes desde o final da década de 1920. Intérpretes importantes como Gastão Formenti

lograram uma relação tão forte com o público apreciador que levaram consigo não apenas o

conteúdo musical, das letras e melodias, mas contribuíram também para o estabelecimento de

uma estética sonora do canto que implicava, entre outras coisas, uma pronúncia abrasileirada

da língua portuguesa pois, até então a pronúncia era italianizada, com muitos exageros

principalmente na pronúncia de “l(s)” e “r(s)”.

O mesmo Hekel Tavares (chamado apenas de Hekel), que era amado pelo público

geral, tanto por suas canções quanto por sua música de concerto, sofreu com alguns críticos,

que deram pouco crédito ao seu trabalho. Essas críticas negativas, ao que tudo indica,

interferiram nas referências históricas que aparecem nos dias de hoje, tendendo fortemente

para uma visão descaracterizada a seu respeito e de sua obra principalmente. Após sua morte

em 1969, referências ao compositor, presentes em livros especializados, são pequenas e

contêm imprecisões.

Na busca de literatura e fontes sobre o compositor, pôde-se constatar a contribuição de

José Ramos Tinhorão ao Instituto Moreira Salles, em São Paulo. Entre livros, gravações,

partituras e recortes de jornal, há um extenso livro de colagens que revelam detalhes

importantes no estudo sobre Hekel Tavares. O livro de recortes, especificamente, contém

recortes de jornal com reportagens sobre seus trabalhos, críticas positivas e negativas a suas

obras e programas de concerto. A apresentação desse livro foi uma boa surpresa. No entanto,

ocorreu uma confusão. Todo o material sobre o compositor foi apresentado como pertencente

ao acervo de José Ramos Tinhorão. Não se sabia, tampouco, quem havia produzido o livro de

recortes. Informou-se apenas que o livro pertencia anteriormente a Hekel Tavares. Na

verdade, o livro foi feito por Martha Dutra, esposa do compositor. A frase escrita à mão, na

folha de rosto, é dela mesma: “iniciado na Fazenda Apparecida em Ribeirão Preto, no E. de

São Paulo em outubro de 1938”. O livro foi doado ao Instituto Moreira Salles por Alberto

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Tavares porque gostaria que “fosse digitalizado e colocado na internet. Foi por isso que eu

(Alberto) fiz com o [doei o livro ao] Instituto mas, pelo jeito, eles até agora não fizeram a

digitalização disso aí”.

As reportagens iniciais tratam, entre outros assuntos, do sumiço de dois anos do

compositor, que emplacara um sucesso atrás do outro. Esse momento é citado em várias

fontes diferentes. É quando Hekel Tavares muda o rumo do seu trabalho, decide não mais se

dedicar exclusivamente à canção e passa a compor, também, música de concerto. Isso, além

de gerar um burburinho na imprensa, deu início às manifestações negativas e de revolta de

alguns músicos “sérios” do Rio de Janeiro. Esse, creio, é um momento divisório para o

compositor, que parece ter vivido entre o amor e o ódio durante toda sua vida profissional

como músico. De um lado, o amor do público que apreciava sua música e, do outro, a

intelectualidade acadêmica, que não queria, de jeito nenhum, mais um compositor atuando

fora da vanguarda.

Não é segredo que o movimento suicida de vanguarda modernista preteria as

manifestações clássicas, românticas ou qualquer coisa que soasse como apologia à tradição. A

modernidade tinha um olho fixo no porvir, na aceleração. Quanto maior o afastamento das

massas, maior seria, então, o seu valor. Refiro-me aqui ao texto do sociólogo Zigmunt

Bauman intitulado A arte pós-moderna, ou a impossibilidade da vanguarda, presente no livro

O mal-estar da pós-modernidade. O texto faz referência a uma ação: “os mais avançados

destacamentos das classes intelectuais européias empreenderam um esforço combinado de

excluir as massas da cultura; de que a função essencial da arte moderna era dividir o público

em duas classes – a que pode compreender e a que não pode” (1998, p. 125). Afirma ainda,

mais adiante, citando Walter Benjamin, que a modernidade “nasceu sob o signo do suicídio”

(idem, p. 125-126). Essas personagens que aparecem no texto de Bauman como sendo

destacamento da classe intelectual aparecem também nas referências às críticas negativas

citadas em quase todas as reportagens feitas sobre Hekel Tavares. Essa divisão da cultura em

dois mundos é perceptível em um recorte, sem data, de Maceió, intitulado Book-notes, escrito

por Carlos Alberto, presente no livro de recortes citado:

Ninguém pode tirar da memória auditiva aquela (me dêem licença os senhores modernistas!) gostosura de rythmos que tanto nos delicia em “Casa de Caboclo”. É verdade que muitos srs. finos preferem Villalobos a Hekel. Ora, não sei porque. Eu acho o Sr. Villalobos um homem complicadíssimo.

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Percebe-se a necessidade do narrador de se ter na música um caráter aprazível, de

identificação. Fica a idéia subliminar de que música deve agradar, estar ligada ao prazer, e

não ser “complicada” (e a música vista como complicada está ligada aos “modernistas”). Na

página 18 do livro de recortes, encontra-se outra referência específica às canções de Hekel

Tavares, em um artigo sem fonte determinada, intitulado “Som da Canção Brasileira”, escrito

por L. da C. C., de 31 de janeiro de 1938 (data manuscrita).

O Espírito da música popular não está deformado, para baixo ou para cima como faz o Villa-Lobos, mas se mantém em sua graça espontânea e leve, comunicativa e doce. Certas composições, particularmente felizes pela justeza do acompanhamento com o brilho da melodia que não ficou prejudicada (como aconteceu uma ou mais vezes com o saudoso Gallet), deviam merecer um outro acolhimento por parte dos ‘interessados’ na cultura musical do Brasil. O que realmente existe é uma campanha de silêncio e de registro amável, desmoralizante para o Sr. Hekel Tavares que devia arrancar as orelhas dos seus editores no tocante a falta de divulgação, única responsável pela não popularidade absoluta do autor.

Novamente Villa-Lobos aqui é criticado por suas canções. Em oposição, Hekel

Tavares é colocado no patamar de verdadeiro representante da canção nacional. A “justeza do

acompanhamento com o brilho da melodia que não fica prejudicada” é característica

desejável que pode ser comparada aos anseios de Mário de Andrade (1928, p.17). Aqui fica

evidente, também, que a música de Hekel Tavares gera identificação com o gosto musical e o

jeito de gostar das massas. Em oposição, os representantes da alta cultura fizeram com ele um

movimento de boicote – “existe uma campanha de silêncio”. Ao que parece, o sucesso de

Hekel Tavares em idade tão jovem causou furor e ciúmes em alguns representantes da alta

cultura.

Abaixo se encontra compilado outro recorte, do jornal O Globo de fevereiro de 1938

(data manuscrita), também extraído de seu livro de recortes, intitulado Brasil Brasileiro e

assinado simplesmente por JACK:

Hekel Tavares deu à canção popular brasileira dignidade poética e musical, sem falar em belleza que qualquer batedor de caixa de phosphoro consegue nacionalizando o rythmo de uma música de Schubert para alguns versos em argot de punguista. Elle começou, como um bom alagoano, deixando o corpo no Rio e o espírito nos eitos nordestinos, onde ainda se encontram cantigas filhas legítimas da raça. Nós devemos ao bugre alagoano muitas coisas que parecem pouco importantes aos mestres de harmonia e contraponto, aos que fazem Massenet e Puccini em cima de certas histórias brasileiras pensando que deram operas ao Brasil. Hekel fez o Brasil cantar em brasileiro fora do Carnaval, quando [se tocava], Tino Rossi, Lucienne Boyer, Bing Crosby, Gardel e Tito Schipa na vitrola para tomar uma bebedeira de mundo e achar que o Brasil só tem futuro. Hekel fez a mocinha sempre tonta em cima de um mappa fornecido pela vitrola, pelo radio e pelo cinema, fincar o pé no Brasil e enternecer-se com as lamentações de um negro. De um negro que nunca appareceu no quadro da revista americana porque não sapateia e tem a mania de contar que os brancos batiam nelle depois de furtar-lhe as energias e as filhas mais bonitas. De um negro que parecia chato, visto nas paginas da nossa magra História.

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O Jornalista lembra, no segundo parágrafo, o descaso dos “mestres de harmonia e

contraponto” em conseqüência do aparecimento das canções de Hekel Tavares. Ele fez o

“Brasil cantar em brasileiro fora do carnaval”. Fora do carnaval, quando as vitrolas que

então tocavam mais música estrangeira, passam a tocar música nacional. Aqui se percebe que

as canções de Hekel Tavares fomentaram o mercado fonográfico brasileiro ajudando o

produto nacional a tornar-se um sucesso. Por outro lado, também colocaram os assuntos e as

coisas do Brasil no imaginário das classes urbanas consumidoras, que passaram a estar mais

ligadas às peculiaridades culturais do país.

Em outro recorte, do mesmo mês, assinado pelo mesmo autor (Jack) do artigo anterior

e com o mesmo título – Brasil Brasileiro –, consta o relato da apresentação da primeira obra

de concerto escrita por Hekel Tavares, que lançou após algum tempo sumido da mídia:

Sobre um poema de Cassiano Ricardo, Hekel Tavares fez uma suíte symphonica em seis partes, chamada André de Leão e o demônio do cabelo encarnado. Essa etapa evolutiva da sua carreira é recente e foi revelada depois de um longo abandono do cartaz, quando os adversários da sua invejável popularidade acreditavam em desistência. No Brasil os artistas solitários irritam os collegas agrupados em igrejinhas, sobretudo quando seu desprezo pelo elogio mutuo coincide com a consagração popular. Hekel é uma espinha atravessada na garganta de certos medalhões do Instituto Nacional de Música que compõe músicas destinadas ao nosso povo, ligam o radio para ouvir seus “sucessos” e recebem pelas afinadas orelhas, todas as noites, de todas as estações as sempre jovens velhas melodias do alagoano: Sujeito irritante! Não tem curso completo de música. Não é formado. A música devia ser como a medicina. Nós prohibiriamos suas composições. Mas não devemos escrever essas coisas: o silêncio deve ser a nossa diabólica arma de combate. Nessa mesma hora, pelo menos em oito transmissoras brasileiras, em quatrocentos pianos e em mil e quinhentas victrolas as músicas de Hekel quebram o bloqueio do silêncio e combatem os rythmos alienígenas. Mas seriamos injustos se esquecêssemos um detalhe desfavorável ao causador dessa barulhenta campanha de silêncio. De manhã à noite ouve-se numa casa, martelladas com magnífica technica, as músicas do medalhão. O sol nasce para todos? Em música, não. Naquella casa reside o autor... André de Leão e o demônio do cabelo encarnado acaba de aparecer gravado em três discos duplos por grande orchestra symphonica sob a regência do próprio Hekel Tavares. “Sujeito irritante! Não contente de metter-se em música difícil, ainda inventa um álbum com xilogravuras de Oswaldo Goeldi, que na certa vae enthusiasmar os discophilos. E o peor é que seu poema symphonico está musicalmente correcto e é delicioso, sejamos francos. Por isso devemos prosseguir em nossa campanha do silêncio, fingindo ignorar a existência de Hekel Tavares, de André de Leão, dos discos e daquelle maldito álbum que nós compraríamos se Hekel Tavares fosse um músico como nós... Nesse momento, as quarenta e três estações de radio que cobrem o território nacional com a “Hora do Brasil”, gritam lá fora: - Attendendo a centenas de cartas da capital e do interior do paiz, vamos irradiar novamente “André de Leão e o demônio do cabelo encarnado”.

Continua aqui a oposição da intelectualidade, que o jornalista chamou de “collegas

agrupados em igrejinhas” ou mesmo de certos “medalhões do Instituto Nacional de Música”

que sentiriam inveja do êxito profissional de Hekel Tavares. Pena que essas figuras não foram

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nomeadas7. Fica ainda a informação de que a ação de Hekel Tavares teria sido autônoma,

afastada do ambiente acadêmico, fato que mereceu os comentários irônicos do jornalista,

lembrando que o compositor seria tido como “sujeito irritante!” para aqueles acadêmicos.

Aparte a ironia do jornalista, percebe-se que o afastamento do compositor do universo

pedante da “alta cultura” brasileira era mesmo um fato. Mas isso não era a história toda. Há

detalhes esquecidos pelo jornalista que aparecem em outros textos. Na publicação da Abril

Cultural intitulada Nova História da Música Popular Brasileira de 1979, por exemplo, lê-se o

seguinte:

A presença de Hekel na montagem de cinco musicais em apenas um ano valeu-lhe grande popularidade. E esse sucesso trouxe alguma recompensa financeira, permitindo-lhe realizar um sonho que na época pareceu excentricidade: construir no alto da Gávea um tajupar (espécie de cabana rústica) estilizado, inspirando-se nos modelos alagoanos. Era sua casa de caboclo, de onde podia ver o verde se derramando pela terra.

Esse ano de grande atuação no teatro de revista seria 1926. Seu trabalho, sua

dedicação à sua música, então, adquiriu autonomia de ação muito cedo devido a esses ganhos.

Essa autonomia deu ao compositor subsídios para fomentar seu próprio trabalho sinfônico

iniciado pela obra André de Leão e seguido pelo Concerto sobre formas brasileiras. O êxito

da estréia do concerto para piano rendeu ao autor o convite para realizar a obra com a

Philarmônica de São Paulo – na verdade a Sociedade Filarmônica – no dia 28 de novembro de

1939. Nessa data, no livro de recortes de Hekel Tavares, aparecem duas críticas de jornal ao

concerto juntamente com um exemplar do programa. O primeiro recorte, que vem marcado

em lápis vermelho, destacando a crítica negativa a sua obra, foi publicado pelo Diário de São

Paulo, de 29 de novembro de 1939. Abaixo se encontra trecho compilado dessa crítica:

... O que se seguiu aí à Synphonia em ré maior, do cândido e fecundo mestre austríaco [Haydn], foi um concerto para piano e orchestra em que o popular compositor Hekel Tavares tenta elevar-se a formas musicaes mais sérias ou presumidamente menos precárias a anonymas. O innegável talento de melodista que se abebera no mágico filão do populório, a sua facilidade, são outros tantos perigos na sua nova empresa. O concerto tem três partes: Modinha, Ponteio e Maracatú, das quais a última pareceu mais trabalhada, se bem que se possa identificar muito bem as fontes aproveitadas, tanto na parte orchestral como na parte do piano. Será um defeito real, mas que se salda pelo que deixa aparecer de aplicação do novo compositor em seguir os bons modelos. Quanto a significação geral da obra se é que existe, foi de facto sacrificada pelo caráter rudimentar da escrita e da orchestração (grandes massas de sonoridades sem propósito, pobreza de desenvolvimentos, insuficiência clamorosa do piano em variar os themas apresentados). Hekel Tavares regeu a orchestra e o solista foi Sousa Lima.

7 Alberto Tavares revela alguns desses nomes no item 2.5.

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Aqui aparece a crítica negativa pesada que estabelece o ponto de vista pejorativo

quanto ao domínio de Hekel Tavares no que se refere à técnica, forma, métier da escrita

orquestral. Isso se vê refletido nos comentários do Dicionário Biográfico da Música Erudita

Brasileira (2005, p. 433) de Olga G. Cacciatore:

Em 1935 [Hekel] começou a tentar formas maiores (eruditas), como concertos e outras, mas “sua fraqueza na estrutura de tais obras, exatamente por falta de estudos, não permitiu que fosse um grande compositor, como poderia”.

Ao contrário do que possa dar a entender, por conseqüência do rótulo de autodidata,

Hekel Tavares procurou, sim, orientação para desenvolver seu conhecimento musical. Ele não

passou, no entanto, pelo ensino formal acadêmico. Dessa forma, creio que o que está em jogo

subliminarmente, nesse ponto de vista, sobre sua formação é uma concepção de aprendizagem

e, também, da existência da habilidade musical no indivíduo. O trabalho mostrado por Hekel

Tavares era aparentemente incompreensível, haja vista não ter estudado nas principais escolas

de música do país ou mesmo ter formação em instituições do exterior. Do ponto de vista dos

escritos da época, parece improvável que uma pessoa fosse capaz de tal desenvolvimento sem

ser “formada”. Subentende-se aqui que as instituições de ensino formam, ensinam de fato. O

que é conhecido hoje coloca esse pensamento em dúvida. Hoje se aceita que o conhecimento

não é algo implantado, mas, sim, construído8. Por outro lado, depois do surgimento da teoria

de inteligências múltiplas na década de 1980, fica claro que a inteligência musical existe e que

ela pode apresentar-se mais fortemente em alguns indivíduos que em outros9. Como os

cientistas ainda não conseguiram estabelecer onde as maiores inteligências irão nascer, nem

de quem irão nascer, é perfeitamente aceitável que Hekel Tavares tenha sido uma dessas

inteligências musicais privilegiadas.

2.2. A PREOCUPAÇÃO COM A CRÍTICA

Ao encontrar no Instituto Moreira Salles, em São Paulo, o livro de recortes sobre

Hekel Tavares, além de outros recortes avulsos, surgiu a pergunta: o compositor tinha alguma

preocupação com a crítica a seu trabalho? Sobre isso, Alberto Tavares disse:

8 Paulo Freire, em Pedagogia da Autonomia (1996), reflete profundamente sobre a questão do esnino-aprendizagem e, já na p. 22, afirma que “ensinar não é transmitir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua produção ou a sua construção”. 9 Howard Gardner publicou seus primeiros escritos sobre a teoria das inteligências múltiplas em 1983. Livros consultados foram Estruturas de Mente: a teoria das inteligências múltiplas e Inteligências múltiplas: a teoria na prática.

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Não, ele não tinha muita preocupação com a crítica, mamãe é que gostava de colar, fazer esse livro de recortes sobre a vida dele. Papai, pra você ter uma idéia, pra partir pra essa área sinfônica, essa gravação que ele fez pra divulgar o trabalho dele, porque era o Hekel das canções pro Hekel sinfônico. Ele vendeu uma casa, isso aí ta nesse livro, logo no início. Ele vendeu uma casa aqui no alto da Gávea pra pagar essa gravação. Por que? Porque ele gravava muito na RCA-VICTOR acompanhando cantores, etc. músicas dele só; [ele] nunca acompanhou música de outra pessoa que não fosse as músicas dele. E ele foi ao diretor da RCA-VICTOR com esse projeto de gravar o “André de Leão”. E mostrou e disse: olha, eu tô mudando, esse é meu primeiro trabalho sinfônico, uma coisa que eu queria fazer com a RCA. E... isso aqui é uma coisa que você pode fazer assim, eu vou trazer essa contribuição do Oswaldo Goeldi. É sobre um poema de um poeta paulista, Cassiano Ricardo. A RCA não quis saber dele. Ele disse: não quer? Então eu vou fazer sozinho. Vendeu a casa foi morar num apartamento alugado pequeno em Ipanema.

Descartada a dúvida inicial, aparece outro detalhe importante na vida do compositor,

que foi o grau de autonomia na produção de seus projetos musicais. A gravação do poema

sinfônico André de Leão é um bom exemplo. Sua postura de trabalho na música passou

aparentemente despercebida por José Maria Neves (1981, p. 166 e 167), tão apreciador da

autonomia produtiva em compositores como, por exemplo, o festejado Gilberto Mendes.

Alberto Tavares informa ainda sobre esse tópico:

Ele [Hekel] dizia: eu não vou escrever pra agradar ninguém, eu vou escrever primeiro as coisas que eu sinto, se for do agrado, muito bem, se não for... Detestava qualquer coisa que fosse dodecafonismo, qualquer coisa que fosse nesse sentido, ele achava que isso não tinha sentimento, não tinha nada.

[frase de Hekel citada por Alberto Tavares] E não vou vender minha ideologia que é a ideologia da liberdade em primeiro lugar... em função de alguma coisa. Então isso é uma coisa que, hoje na vida do Hekel, poucas pessoas sabem.

2.3. FORMAÇÃO MUSICAL

Segundo relato de Alberto Hekel, seu pai começou a demonstrar interesse e habilidade

musical desde criança. Sua vivência musical parece ter sido, desde o início, feita em duas

vertentes, o uso do harmônio e a participação em manifestações musicais populares. Disse

Alberto:

(Hekel) começou escrevendo canções lá em Alagoas, quando ele estava com 5 anos de idade (se a idade estiver correta, isso corresponde ao ano de 1901), meu avô, João Tavares da Costa, pai dele, era cônsul da Áustria, Império Austro-Húngaro, no norte e nordeste do Brasil. Então ele ganhou, do governo da Áustria, um harmônio10. E colocou esse harmônio numa capela da casa dele lá em Alagoas, uma casa muito grande. [João Tavares] transportava toda parte de

10 Harmônio é um instrumento musical com som parecido com o do acordeão e possui funcionamento parecido com um órgão, mas não possui tubos.

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açúcar, e ele tinha uma..., ele era sócio de uma empresa de navegação chamada ITA11. Tem uma canção do Caymmi até que fala do Ita do norte... bom... E os alemães12 afundaram 3 navios dele aí... (trecho indecifrável)... pegou o dinheiro restante pagou tudo, distribuiu pra família e papai veio pro Rio, papai com 18 anos de idade13 [corresponde a 1914]. Papai ainda jovem ele aprendeu, ele estudou no Colégio Marista, e ele começou a improvisar... ele apertava o fole do harmônio, e aos cinco anos ele começou a fazer umas improvisações. Minha avó tocava piano, minha tia tocava piano, meu avô tocava flauta em casa... E aí descobriram essa história dele [Hekel] e começaram a incentivar... foi aí que ele começou a escrever as canções. Porque vovô patrocinava aquelas festas todas, “Nau Catarineta”14 em que ele tomava parte... Enfim, todas essas manifestações, vovô ajudava que fossem feitas e ele participava disso tudo. Então ele [Hekel] nasceu no meio dessa história. Então ele nunca utilizou o tema folclore. Ele criava dentro daquele espírito que ele bebeu.

Além da habilidade musical percebida desde a infância, o relato de Alberto Tavares

deixa claro que seu pai viveu num ambiente familiar onde pai (flauta), mãe (piano) e tia

(piano) tocavam música em casa. Foi incentivado à prática musical fazendo improvisações ao

harmônio por iniciativa própria. Desde o início foi assim acumulando, construindo e

desenvolvendo um conhecimento musical vivenciado entre dois universos musicais

diferentes, um ligado à música que chamamos de erudita, que era feita em casa, e outro da

cultura popular de sua cidade. Um vindo da escrita formal e outro da oralidade. Essa

bipartição de sua experiência se reflete na maneira como alguns críticos percebem sua

produção. Nota-se isso nos meios em que Hekel Tavares aparece citado, ora ligado ao

universo popular, ora ao erudito. Referências a ele feitas por Cravo Albin (2002) ou Zuza

Homem de Mello (SEVERIANO, Jairo; MELLO, Zuza Homem de., 1999, p. 47, 78, 85, 91,

95, 124, 146) ligam a figura do compositor ao popular. Por outro lado, pode-se encontrar

referência a ele em José Maria Neves (1981, p. 70) ou em Cacciatore (2005, p. 432), isso

relaciona a produção do compositor ao erudito. No senso comum, atualmente, Hekel Tavares

está mais associado ao universo popular do que ao erudito. Sua imagem ligada à significação

de ‘popular’ tende a subestimar o valor de sua obra. Do ponto vista da crítica ao indivíduo

Hekel Tavares quanto a sua produção, há uma confusão ao classificá-lo, criando-se sobre ele a

11 Ita era o nome que designava a classe de navios ou qualquer um dos navios a vapor brasileiros pertencentes à Companhia Nacional de Navegação Costeira que faziam a cabotagem, transportando cargas e passageiros de norte a sul do Brasil, na primeira metade do século 20 e que tinham nomes em tupi-guarani iniciados pelas sílabas ita: Itaberá, Itagiba, Itaguassu, Itahité, Itaimbé, Itaipu, Itajubá, Itanagé, Itapagé, Itapé, Itapema, Itapuca, Itapuhy, Itapura, Itaquara, Itaquatiá, Itaquera, Itaquicé, Itassucê, Itatinga, Itaúba. 12 Não pude encontrar as referências ao afundamento de navios da Companhia Nacional de Navegação Costeira antes da Segunda Guerra Mundial; contudo os navios a que Alberto Tavares se refere devem ter sido afundados no período de agosto de 1914 a novembro de 1918, período da Primeira Guerra Mundial. 13 Datas informadas por Alberto Tavares conflitam com datas encontradas nas referências bibliográficas mais comuns. Na Nova História da Música Popular Brasileira (p. 9), lê-se que Hekel Tavares chega ao Rio de Janeiro com 24 anos; já em Bortoli lê-se, que ele chegou com 20 anos. 14 Nau Catarineta: também conhecida como chegança-de-marujos, é uma “Dança dramática com enredo tragicômico de uma nau sem rumo” (MARCONDES, p. 195)

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idéia de uma figura que viveu e produziu cultura em um entremeio, numa fronteira entre

universos vistos como desconexos.

No Rio de Janeiro, Hekel Tavares estuda piano com Henrique Oswald15, tempo que

teria durado cerca de oito meses. Apesar de Alberto não informar a data precisa, é possível

que nessa época Hekel Tavares já tivesse canções compostas (canções de sucesso). Sobre isso,

ele relata o seguinte:

... ele foi estudar um pouco mais de piano, com Henrique Oswald, compositor. E um dia ele [Hekel] fez uma orquestração das canções dele [mesmo], papai nunca fez arranjo pra ninguém, nunca orquestrou nada de terceiros, ele só mexia nas coisas dele. [Oswald] Perguntou a ele: mas aonde é que você estudou isso? Ele [Hekel] disse: eu não estudei. Eu achei que era assim, escrevi assim... [Oswald] É isso aqui..., isso mesmo, eu não vou mudar uma vírgula nisso aqui. E o Henrique Oswald disse a ele: você precisa trilhar esse caminho sinfônico. É uma coisa natural tua dentro do que você tá fazendo com as suas orquestrações das canções... eu vou te indicar o professor J. Otaviano, da Escola Nacional de Música, pra te dar uma orientação qualquer nesse sentido. E papai foi, ficou seis meses com o J. Otaviano na Escola Nacional de Música e depois saiu. Disse (Hekel): não quero, eu posso sofrer uma influência, [o que] já aprendi a escrever já me satisfaz, eu daqui me desenvolvo por isso mesmo. E foi tocar a vida.

Aqui surgem outros detalhes do comportamento do compositor em sua vida musical.

Pelo que mostra o discurso de Alberto Tavares, seu pai procurou orientação na área de piano,

com um pianista e compositor renomado, um ícone da música nacional. Henrique Oswald

teria percebido a habilidade de seu aluno encaminhando-o para um profissional que pudesse

ajudá-lo a crescer na área de composição para orquestra. Oswald indica um professor da

Escola Nacional de Música, J. Octaviano. Hekel Tavares teria passado seis meses sob

orientação desse professor, tendo uma aula por semana; contudo, decide interromper o estudo

alegando o temor de sofrer uma influência que interferiria em sua composição. Essa

orientação dada por J. Octaviano, segundo Alberto Tavares, não é o que se pensaria no senso

comum. “Papai ia na Escola Nacional de Música uma vez por semana, iam almoçar juntos.

Essa é a orientação, não é uma orientação de sentar pra estudar”. De qualquer forma, Hekel

Tavares demonstra, já nessa época, uma visão crítica de si próprio, relacionada à sua prática

de compor. Percebe em seu artesanato um jeito pessoal, que possui qualidade peculiar, que

deve ser protegido de certos processos de aprendizagem que existem a sua disposição. Por

outro lado, Alberto Tavares deixa clara outra opinião por trás da atitude do compositor que

15 Henrique Oswald (1852-1931). Bruno Kiefer afirma que, Oswald foi tido, ainda em vida, como figura marcante no cenário da música erudita. Mário de Andrade revela que Oswald foi “considerado o mais completo, o mais sábio e o mais refinado que o Brasil produzira até então” (apud KIEFER, 1977, p. 128).

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diz respeito ao conceito que Hekel Tavares tinha sobre a Escola Nacional de Música. Disse

ele:

Ele [Hekel] e o Villa-Lobos riam muito do pessoal da Escola Nacional de Música, ou seja, dos compositores. Um cara que cursava nove anos, estudava contraponto, estudava composição. Quando falavam pro papai: você precisa estudar composição ele dava risada porque ele não sabia como é que o sujeito estuda composição. Então, vamo lá, bota pra tocar. Aí toca, não é nada. E disse: mas, ficou nove anos pra escrever isso? Então ele e o Villa-Lobos riam muito dessa situação... [sic]

Tanto Hekel Tavares como seu amigo Villa-Lobos criticavam a qualidade de Ensino

da Escola Nacional de Música. Não viam ali uma oportunidade de aprendizagem concreta. A

opinião deles reflete, de certa forma, a opinião de Mário de Andrade sobre o ensino de música

no Brasil:

O dilema em que se encontram os compositores brasileiros vem duma falha de cultura, duma fatalidade de educação e duma ignorância estética. A fatalidade de educação consiste no estudo necessário e quotidiano dos grandes gênios e da cultura européia. Isso faz com que a gente adquira as normas desta e os jeitos daqueles (ANDRADE, 1928, p. 33 e 34).

O mesmo ponto de vista crítico que Hekel Tavares tinha do ensino de música no Brasil

tinha também do costume de compositores nacionais irem estudar no exterior. Sobre esse

assunto, Alberto Tavares critica o fato de Guarnieri e Mignone terem se utilizado de bolsas de

estudo conseguidas em São Paulo para irem ao exterior estudar. Disse ele:

E em São Paulo, foi um grande problema naquela época. Que tinha uma escola de música paulista que promovia bolsas de estudo às pessoas de São Paulo. Então, não podia pegar um Hekel alagoano ou carioca... por isso é que foi o Mignone16, que nessa época tava em São Paulo17, foi o Guarnieri18 principalmente, foram lá pra fora. Papai achava que você escrevendo música sinfônica você não tinha que sair do Brasil. [sic]

Com essa mentalidade, Hekel Tavares prossegue no Brasil e, pelo que informa Alberto

Tavares, nunca saiu do país, mesmo tendo oportunidades para estudar ou trabalhar, nem fez

uso da convivência amistosa que tinha com políticos importantes para usufruir dessas

possibilidades. Disse Alberto Tavares:

16 Francisco Mignone, patrocinado pela Comissão do Pensionato Artístico de São Paulo vai estudar em Milão, Itália, a partir de 1920 (MARCONDES, 1999, p. 510). 17 O ano que Guarnieri e Mignone foram para o exterior estudar é muito diferente um do outro, sendo que, no período que Guarnieri vai a Paris, em 1938, Mignone já tinha se mudado para o Rio de Janeiro em 1933 para lecionar no então Instituto Nacional de Música, INM (Idem, p.510 e 249) 18 Camargo Guarnieri vai estudar em Paris em 1938, mas logo regressa por causa da Segunda Guerra Mundial.

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[Hekel] Nunca saiu [do Brasil]. Todas as bolsas que ele recebeu, quer dizer, que o governo deu a ele, e que ele poderia ter utilizado... se ele quisesse ir lá pra fora ele podia ter ido, aliás, amicíssimo do Getúlio...

Pelo relato de Alberto Tavares, a atitude de seu pai diante da música nacional e seu

descaso para com o ensino formal e a submissão à cultura européia têm a ver com a crítica

exacerbada de Mário Andrade em seu Ensaio sobre a Música Brasileira:

Ora por mais respeitoso que a gente seja da crítica européia carece verificar de uma vez por todas que o sucesso na Europa não tem importância nenhuma para a Música Brasileira (op. cit., p. 12). Como a gente não tem grandeza social nenhuma que nos imponha ao velho mundo, nem filosófica que nem a Ásia, nem econômica que nem a América do Norte, o que a Europa tira da gente são elementos de exposição universal: exotismo divertido. Na música, mesmo os europeus que visitam a gente perseveram nessa procura do esquisito apimentado. Se escutam batuque brabo mesmo que bem, estão gozando, porém se é modinha sem síncope ou certas efusões líricas dos tanguinhos de Marcelo Tupinambá, isso é música italiana! Falam de cara enjoada. (idem)

Quando Janjão, um personagem de Mário de Andrade, se revolta contra a crítica

européia, no livro O Banquete, que contém crônicas musicais publicadas na Folha da Manhã,

sob o título de Mundo Musical, a partir de 1943, afirma o seguinte:

Mas essa é a visão geral, realmente tonta, da crítica européia a nosso respeito e do Brasil: somos uns exóticos, somos uma esquimolândia, e no fundo o que eles pedem não é arte brasileira, nem arte livre, nem nada. Querem é vatapá, querem gamelão (p. 131).

Assim como Hekel Tavares, Mário de Andrade percebe que a música popular já é um

elemento nacionalizado que reflete, segundo relata Andrade, uma conexão cultura-raça de

caráter brasileiro.

O critério histórico atual da Música Brasileira é o da manifestação musical sendo feita por brasileiro ou indivíduo nacionalizado, reflete as características musicais da raça. Onde que estas estão? Na música popular. (1928, p.16)

Hekel Tavares, nessa época (final de década de 1920), já realizava essa música,

compunha segundo esse ponto de vista de Mário de Andrade. Estava no ápice do sucesso e se

encaminhava para a próxima fase de trabalho em que se dedicaria à música sinfônica.

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2.4. FORMAÇÃO PIANÍSTICA

A habilidade de Hekel Tavares como pianista acompanhador chama a atenção na

simplicidade da escrita musical em suas canções assim como nas suas interpretações gravadas

nas décadas de 1920 e 30. As participações em gravações são muitas, mas separo, a título de

exemplo, a gravação de Casa de Caboclo (lançada em 1928) com Gastão Formenti, a fim de

observar certos detalhes. O compositor faz o acompanhamento diferente do que está escrito na

edição da música, utilizando-se de improviso para enriquecer a execução. Insere, como

usualmente fazia, uma pequena introdução ao piano contendo quatro compassos, para

preparar a entrada do canto. Dessa maneira, prepara o ambiente sonoro tocando, também, o

trecho inicial da melodia para o cantor saber em que nota deve atacar. O caráter da música

fica evidente logo de início com o modo que o compositor apresenta a canção deixando claro

qual o andamento e o ambiente emocional em que ocorrerá o discurso musical. Isso mostra

que o pianista está com a responsabilidade sobre esses parâmetros musicais a serem captados

pelo cantor. Após a entrada do canto, ocorre a utilização, aqui e ali, de trinados (ornamentos),

momentos em que se acelera ou retarda o andamento em função da interpretação dada pelo

cantor, que segue necessidades expressivas vindas do texto da música. O movimento de vai-e-

vem, cresce-decresce, acelera-retarda pode ser comparado ao modo interpretativo romântico

na interpretação de Hekel Tavares. Outro detalhe é o tipo de toque que ele nos oferece, um

toque equilibrado, leve, dando a impressão de que toca sem esforço. O acompanhamento se

funde muito bem ao canto, somando-se à tarefa do cantor de passar a mensagem do texto.

Quando o cantor subitamente realiza momentos de interrupção, como o que ocorre no trecho

“sabe quem mora dentro de dela?”, deixando um instante para o espectador responder

perguntando “quem?”, o piano também segue essa idéia deixando o silêncio como ambiente

para que surja a interrogação no ouvinte.

A qualidade (característica) pianística presente em Hekel Tavares leva ao

questionamento sobre de que forma ou com quem teria aprendido a tocar dessa maneira. Teria

sido com Henrique Oswald? Segundo informou Alberto Tavares, a formação pianística de seu

pai foi feita sem orientação: “em mil novecentos e vinte e pouco ele teve aulas com o

Henrique Oswald, coisa de cinco, seis meses de aula e parou também”. Não se pode

esquecer, no entanto, que em casa sua mãe e sua tia tocavam piano, sendo sua tia citada como

sua orientadora inicial ao instrumento. Da mesma maneira, é bom lembrar da facilidade na

lida com a música que Hekel Tavares apresentou desde a infância, sendo esse um fator de

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relevância ao tratarmos da sua aprendizagem musical. Enfim, é provável que ele tivesse

grande facilidade para aprender música.

Na literatura pesquisada, a presença do contato com Henrique Oswald é geralmente

esquecida. Nos livros de Joel Bello (1999, p.73) e Vasco Mariz (2002, p. 118), lê-se que

Souza Lima teria sido professor de piano de Hekel Tavares. Essa informação foi negada por

Alberto Tavares sob justificativa de que o surgimento de Souza Lima no trabalho de seu pai é

por ocasião do concerto em que o pianista toca o Concerto em Formas Brasileiras, em São

Paulo, 1939.

2.5. HEKEL TAVARES UM AUTODIDATA?

Hekel Tavares é usualmente entendido e citado em publicações como sendo

autodidata. Esse termo é usado geralmente significando que o compositor possuía habilidade

musical nata e trabalhava de forma solitária, alheio à crítica.

Fernando Bortoli, lançou o livro Hekel Tavares e o mais lindo concerto para piano e

orquestra, publicado em 1996, ano em que o compositor completaria 100 anos. A publicação

é criticada por Alberto Tavares devido à presença de vários erros. Ademais, o texto é

claramente de caráter laudatório. Não se encontra atualmente um exemplar do livro para

venda; no entanto, pode ser consultado no Instituto Moreira Salles em São Paulo. Essa edição

aparece como fonte de consulta sobre Hekel Tavares em algumas publicações importantes

como a Enciclopédia da Música Brasileira e o Dicionário Cravo Albin da Música Popular

Brasileira (versão disponível na internet). Em Bortoli, lê-se o seguinte: (Hekel) “compositor

autodidata, assimilou os dados básicos do problema composicional da linguagem musical

que preferiu, baseado no tonalismo harmônico” (1996, p. 12). No Dicionário Biográfico de

Música Erudita Brasileira de Olga Cacciatore, lê-se: “mas, na realidade, (Hekel) foi

basicamente um autodidata” (2005, p. 432). Em Nova História da Música Popular Brasileira,

lê-se: “Nesses anos todos de teimosia (Hekel) conseguira uma base musical, alicerçada no

autodidatismo, que, aliada ao talento e inspirada nos temas de sua terra, possibilitou seus

primeiros arroubos de compositor” (1979, p. 9).

Parece que Hekel Tavares não se adaptava ao esquema escolar tradicional, mas isso

não quer dizer que o conhecimento que veio a desenvolver tenha vindo do nada. Certamente

teve acesso a conhecimento na vivência com a cultura popular, partituras, gravações, livros, a

vida efervescente da música no Rio de Janeiro do início do século XX. A questão é a da

aceitabilidade de seu conhecimento desenvolvido sem ter se submetido ao ensino formal ou a

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um professor do establishment como reza a tradição. Seria necessário estudar sua intimidade,

conhecer os livros, discos, publicações e outras formas de cultura a que teve acesso que

possam tê-lo influenciado determinantemente.

É duvidoso que a convivência familiar e a cultura popular vivenciada na infância, o

contato com Henrique Oswald e J. Octaviano, entre outros, não tenham contribuído

minimamente para a reflexão do compositor. Mesmo tendo sido um prodígio musical, Hekel

Tavares não viveu isolado do mundo e da convivência. Sua imagem de figura individualista se

deve ao fato de fugir ao convívio com algumas figuras importantes do cenário musical. Como

se pode ver no livro de recortes montado pela esposa, Martha Dutra, o compositor tinha

inimizades no meio musical que trabalhavam contra ele. Alberto Tavares informa alguns dos

nomes. São nomes importantes como Marlos Nobre e Edino Krieger. Importante citar os

nomes não para gerar intriga, mas para que se conheça de qual ambiente musical advém a

crítica negativa a Hekel Tavares – do ambiente erudito estabelecido. Fora a questão dos que

agiam contra o compositor, há o caso, cada vez mais claro, de omissão do nome Hekel

Tavares por Mário de Andrade em seus livros como Ensaio sobre a música brasileira e

Aspectos da música brasileira. Essa suposta atitude de Andrade tem peso muito grande, haja

vista sua importância no âmbito da crítica musical brasileira. A não-citação de Hekel Tavares

em seus livros tem consequências. Mas, tirando esses casos de inimizade, Hekel Tavares tinha

amizades importantes com expoentes da intelectualidade nacional e figuras políticas

poderosas.

Entre as vivências que contribuíram para a construção de seu conhecimento musical,

mas que são desprezadas do ponto de vista do valor formal que têm, estão aquelas próximas e

participativas que o compositor teve, por toda vida, com a cultura popular. Esse ambiente de

aprendizagem deveria constar como efetivo contribuidor para a formação musical do

compositor, e não apenas a aprendizagem de música formal.

Do ponto de vista da teoria das inteligências múltiplas, como proposta por Gardner

(1995, p 22), Hekel Tavares se mostra, pelas evidências, uma pessoa dotada de grande

inteligência musical e que teve um ambiente de desenvolvimento singular nessa área.

Alberto Tavares disse: [Hekel] “é um autodidata mesmo, quer dizer, o que ele teve aí

foi um aconselhamento, vamos dizer assim”. Seu discurso, porém, deixa evidente uma

discordância de significações da palavra autodidata. Se autodidata é a pessoa que aprende sem

ajuda de mestres (HOUAISS, 2001), de fato, isso não ocorreu no caso Hekel Tavares. O que

parece é que existe a necessidade de mitificar a figura do autor no sentido de dar-lhe poderes

autônomos maiores do que na realidade teve. Por outro lado, há a necessidade de incutir sobre

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ele a figura tradicional e respeitosa de maestro-compositor, uma figura icônica. Essa atitude é

um contra-ataque à opinião geral vinda da crítica musical especializada, que não posiciona a

obra do autor junto à dos grandes mestres brasileiros.

2.6. SUPOSTO CONTATO COM MÁRIO DE ANDRADE

No Ensaio sobre a Música Brasileira, Mário de Andrade apresenta diretrizes para a

formação da música nacional. O período das artes no Brasil daquela época é entendido pelo

autor como sendo o da nacionalização, especialmente nas artes. A Mário de Andrade parece

interessar o incremento da produção artística do país com as manifestações chamadas de

primitivas, como ele chama a cultura popular, no sentido de fazer a transposição da música

popular para a música erudita, música artística. Música artística é o que autor denomina

música desinteressada e música popular é circunstancial, interessada.

A idéia por traz do conceito de música popular mostrado por Mário de Andrade

naquela época deixa transparecer uma visão folclorista da cultura em que se pressupõem

hierarquizações culturais. A visão folclorista é tradicionalmente a do observador externo à

cultura do povo, feita com um olhar de diferenciação quanto ao objeto observado

(BRANDÃO, 1982; VANNUCCHI, 1999; AYALA, 1987). Ao que parece, interessava a

Andrade o fomento da produção intelectual brasileira, a produção de uma arte desinteressada,

no sentido de afastá-la da funcionalidade tradicional. Para o autor, a arte que almejava

incentivar era afastada de função histórico-social, queria ser atemporal, como se fosse

possível extrair da cultura sua ligação com o homem histórico. Além disso, há que se criticar

o ponto de vista do autor de ligação entre cultura e raça, ou seja, a raça brasileira produz

determinada forma de cultura. Enfim, raça determinada produz um determinado objeto

cultural. Dessa maneira, levando esse ponto de vista ao extremo, como se vê no senso comum,

um alemão não aprenderá a sambar como um brasileiro nem um brasileiro cantará Brahms

como um alemão.

A proposta de se fazer uma música baseada nas manifestações populares, que procura

desprezar de certa forma a crítica do europeu (do estrangeiro), uma arte em que o brasileiro

possa se espelhar, ou seja, uma arte de certa forma mimética da brasilidade, encontra na

produção de Hekel Tavares um parceiro muito próximo, mas que estranhamente não é citado

por Mário de Andrade. À época da publicação do Ensaio sobre a música brasileira, período

pós-Semana de Arte Moderna de 22, a produção de canções de Hekel Tavares já era

substancial e gozava de grande sucesso em âmbito nacional. Dessa forma, era aceitável supor

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que Mário de Andrade tivesse estudado a produção do compositor, como de outros autores,

para escrever seu livro. Essa suposição veio a ser corroborada pelo relato de Alberto Tavares.

Em contrapartida, surgiu a pergunta se Hekel Tavares teria sofrido influência determinante do

pensamento de Mário de Andrade na sua produção, se vieram a se conhecer pessoalmente.

Essas questões também surgiram devido ao que se lê em algumas fontes sobre o compositor

como, por exemplo, na Enciclopédia da Música brasileira: “Ao lado de Valdemar Henrique,

Marcelo Tupinambá e Henrique Vogeler, sob influência nacionalista da Semana de Arte

Moderna, criou um tipo de música situado na fronteira do erudito e do popular” (p. 765 e

766). Esse tipo de comentário, além de outros, aparece em outras fontes sobre o autor sem que

se informe a fonte inicial dessa informação. Sobre esse assunto, Alberto Tavares disse:

... papai não escreveu por uma influência do Mário. Papai escreveu porque ele tinha que escrever. Quando Mário faz um estudo do que existe, que ele pega vários compositores, Tupinambá e vai por aí a fora, ele pega o Hekel. Claro que ele pega o Hekel. É impossível não conhecer as coisas do Hekel na época, que era o que fazia mais sucesso, era o Hekel. E ele não cita o Hekel. Você não pode ver uma citação do Hekel por causa disso... o Hekel não foi a ele, apesar de ele ter feito sugestões através desse amigo comum [Paulo Mendes de Almeida] / Eu acredito, isso é uma opinião, porque eu li a obra do Mário toda. [Mário] Conhecia a música do meu pai, conhecia o amigo deles comum que era o Paulo Mendes de Almeida19. E eu acredito que o Mário talvez... encontrou no Hekel aquilo que ele idealizava como a síntese da música brasileira. E por essa ‘desfeita’, porque ele se colocava mais ou menos numa posição que todo mundo ia a ele; como é que o Hekel não foi a ele? Eu acho que ele ficou magoado com essa história a ponto de... simplesmente ignorar, é o que ele poderia ter feito. Porque ele não poderia falar contra. Porque... eu já te expliquei porque. E se ele falasse contra ia contra tudo o que ele tinha escrito. Então... porque que ele nunca falou do Hekel? É uma pergunta que eu te faço. Não conhecia? Claro que conhecia, e conhecia muito. O Paulo Mendes disse a papai: o Mário conhece a tua obra.

Segundo Alberto Tavares, seu pai não teria sofrido influência direta do Mário de

Andrade, nem tampouco da Semana de Arte Moderna de 22, evento em que Hekel Tavares,

de fato, nem esteve presente. O que ele informa é que:

... a influência não houve simplesmente pelo seguinte: porque em 1922 – papai era 11 anos mais moço que Villa-Lobos – e em 1922 ele tava ainda na fase das canções. E ele só foi começar a fazer alguma coisa quando ele faz as orquestrações dessa canção [sic] e mostra pro Henrique Oswald, isso é em 1933. Quer dizer, 11 anos depois é que ele foi fazer alguma coisa, que ele começa dar o primeiro passo, e logo em seguida ele faz o poema sinfônico e grava em 36 – começou a escrever em 34. Então não teve muito significado na obra dele esse movimento da arte moderna de 22. E... ele era amigo do Menotti Del Picchia, muito amigo do Menotti Del Picchia, muito amigo mesmo. [Então] não teve... poderia dizer que foi mas a obra dele, eu achava que não tinha nada a ver... [com a Semana de Arte Moderna de 22].

19 Paulo Mendes de Almeida (São Paulo, 1905 — São Paulo, 1986) foi jurista, poeta e crítico de arte. Acompanhou, a partir da década de 1930, os movimentos de vanguarda em São Paulo. É um dos fundadores da Sociedade Pró-Arte Moderna e da Família Artística Paulista.

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No discurso do entrevistado, a influência da Semana de Arte Moderna de 22 seria

possível apenas na época em que Hekel Tavares começa a compor música sinfônica,

correspondendo assim à chamada segunda fase na produção do compositor. Contudo, é na

produção das canções que a influência nacionalista é inicialmente percebida em Hekel

Tavares, aproximando-o da linha estética vista nos escritos de Mário de Andrade. O que fica

latente por trás do discurso de Alberto Tavares é que, até para seu pai, a produção inicial de

canções é subestimada, deixando assim para a música sinfônica o ponto alto da produção do

compositor. Isso sob o ponto de vista pessoal dele. Contudo, as canções, apesar de terem sido

a princípio objetivadas para o ambiente popular, sofreram um caso particular de circularidade

entre ambientes sociais. As canções ligam Hekel Tavares ao seu passado, à cultura

popularesca do Rio de Janeiro e a seu trabalho com o teatro de revista, mal visto pelas classes

mais elevadas naquela época. Todavia passam a ser cantadas em casas mais abastadas.

Pelo que revela a entrevista, citada acima na página 12, as canções do compositor, por

ironia histórica, mudam de status e passam a ser adotadas por classes sociais mais elevadas,

justificando até sua produção editorial. As edições das canções vinham direcionadas para esse

mercado. Percebe-se isso, por exemplo, na ornamentação das publicações da editora Irmãos

Vitale, em que se vê nas capas a figura estilizada de uma mulher tocando piano. Da mesma

maneira, saindo da casa das pessoas, canções de Hekel Tavares passam a aparecer em

concertos formais, dentro e fora do Brasil, vestindo assim a roupa da erudição. Esse fato é

citado até por José Maria Neves em seu Música Contemporânea Brasileira (1981, p. 70).

Volto ao encontro apagado da história entre Hekel Tavares e Mário de Andrade citado

por Alberto Tavares. Ocorreu em um jantar em São Paulo (data não informada):

E ele [Hekel] vai a São Paulo, ele ia muito a São Paulo, tinha muitos amigos, e começa a estudar alguma coisa. O Mário de Andrade sabe disso... e pega o Paulo Mendes de Almeida pra [fazer] uma aproximação com ele [Hekel]. E nessa aproximação com o Mário de Andrade, o Mário apresenta a papai que já conhecia as canções de papai, isso em 1933, por aí, tá... 34... [...] e pede, então, essa aproximação. O Paulo então apresenta. Vão num jantar, eles ficam conhecidos e tal. E o Mário mostra uma série de coisas a papai. [...] Quem sabe papai tinha algum interesse em pegar alguma das coisas do Mário. E papai olhou aquilo tudo do Mário e disse pro Paulo depois: Paulo, nada disso vai... Papai estava escrevendo umas canções, umas canções de invocação da pátria, com o Manuel Bandeira e o Ribeiro Couto, poeta Ribeiro Couto. E o Mário cita na obra dele, o Ribeiro Couto. ... e o Paulo disse: você vai precisar se aproximar com o Mário, porque o Mário é o cara que manda nessa situação toda de Brasil que ninguém faz nada, e o Mário é o Rei dessa história, [ele] fala e tá falado. Papai disse: não, eu não vou fazer. [Se] tá de acordo com o Mário tá, se não tiver, não tá, e eu vou seguir o meu caminho.[sic]

Embora o Paulo [Mendes de Almeida] sempre disse: ‘cê não devia ter afastado; que o Mário é o grande cara dessa área de música no Brasil... Você poderia ter acompanhado. ... faz uma canção junto com o Mário. O Mário também escreveu inclusive algumas letras. Papai disse:

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não vou fazer. As letras que eu faço têm que ser dentro da forma que eu quero e do espírito que eu quero. [sic]

Dessa forma, a suposição da influência direta de Mário de Andrade sobre a produção

de Hekel Tavares fica descartada. Resta verificar a ação, ou melhor, a omissão das menções a

Hekel Tavares por Mário de Andrade, como uma forma de atuar contra a produção do

compositor. É preciso lembrar que Mário de Andrade usualmente citava e criticava

compositores sabidamente do campo erudito. Hekel Tavares não era visto como compositor

erudito como eram Villa-Lobos, Camargo Guarnieri, Francisco Mignone, J. Otaviano e

outros, largamente citados em obras de Andrade. O próprio Hekel Tavares, aos 70 anos, em

entrevista concedida ao Jornal do Brasil (Rio de Janeiro, terça feira 20 de setembro de 1966),

intitulada HEKEL, HARMONIA DE SETENTA ANOS, afirmou o seguinte sobre a diferença

entre ele e Villa-Lobos: a música de Hekel Tavares “é popular, a de Villa – que ele (Hekel)

considera não somente o maior compositor brasileiro como o maior do século – é erudita.”

Dessa forma, percebe-se que o compositor respeita a música que percebe como erudita, mas

se autodefine como popular.

Ainda refletindo sobre a última citação acima, lembro a crítica de Mário de Andrade

sobre o individualismo em compositores na fase nacionalista inicial:

Toda arte exclusivamente artística e desinteressada não tem cabimento numa fase primitiva, fase de construção. É intrinsecamente individualista. E os efeitos do individualismo são destrutivos.

Ao contrário do que agradaria ao ponto de vista de Andrade, Hekel Tavares sempre

atuou segundo seus próprios objetivos artísticos, não permitindo interferências na sua criação.

Por outro lado, é preciso lembrar que o individualismo do compositor não casa com a noção

de criação livre vista em O Banquete (1989, p. 150): a habilidade ilusória de criação pura,

como que vinda do nada. Muito pelo contrário, e em concordância com a linha de pensamento

de Andrade, a música de Hekel Tavares era intimamente ligada à cultura popular. Disse ele na

mesma reportagem citada acima: “Não aproveito temas, diz ele: recordo-me do que vivi no

nordeste e crio, então, com a minha formação musical”.

No livro Aspectos da Música Brasileira, Mário de Andrade abre espaço para a crítica

aos compositores nacionais empenhados na nacionalização da canção erudita. Esse livro

contém dois capítulos específicos sobre crítica à canção nacional que foram publicados nos

anais do Primeiro Congresso da Língua Nacional Cantada, ocorrido em 1938. São eles “Os

compositores e a língua nacional” e “A pronúncia cantada e o problema do nasal, pelos

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discos”. No primeiro, Mário de Andrade faz críticas como que corrigindo os “erros” dos

compositores, erros de adequação texto e melodia, texto e ritmo, omissão ou uso de elisão de

texto em lugares inadequados, entre outras coisas. O autor sempre deixa bem clara a

necessidade de adequar a composição às regras de “fraseado e metrificação”. A crítica é

técnica, mas dá a impressão de ser sobre a não-fusão som/palavra no sentido de trazer o

conteúdo significativo do texto. Enfim, as deficiências “fonéticas” tornariam a canção

nacional muitas das vezes ineficiente do ponto de vista expressivo. A palavra, as frases, o

modo de discursar no coloquial é modificado por demais, atrapalhando sua capacidade de

passar a mensagem.

No caso das edições musicais brasileiras, há que se colocar um problema preliminar,

antes de entrar definitivamente no tópico. Se Mário de Andrade usou edições musicais em vez

de manuscritos, fontes primárias, o resultado de sua crítica teria sido diferente do que se

esperaria na realidade? Se tivesse usado manuscritos originais, não teria sido mais fiel ao

trabalho dos compositores? Sabendo da possibilidade de divergência entre edição e

manuscrito autoral, imagino que sim. Mas não deixa claro o tipo de fonte utilizada na

pesquisa das 221 canções examinadas para montar seu trabalho. Não se sabe ao menos se teria

incluído em suas fontes canções de Hekel Tavares.

2.7. A MANEIRA DE COMPOR E A SITUAÇÃO DAS EDIÇÕES

Ao observar as edições das canções de Hekel Tavares e compará-las às suas

respectivas gravações, nas quais o compositor toca piano, percebe-se muita diferença entre

uma e outra. Nas edições, aparecem questões de adaptação texto/música, com mais texto do

que notas para recebê-lo, ou vice-versa; trechos de textos que são diferentes da gravação;

acentos tônicos de palavras fora dos tempos fortes do ritmo, caracterizando erro de prosódia,

que não aparecem na gravação20.

Diante das diferenças de texto na partitura e nas gravações, uma das dúvidas que

surgiu é se Hekel Tavares teria liberdade para alterar a letra das canções. Enfim, qual era a

relação que o compositor tinha com seus parceiros letristas? Um poderia interferir no trabalho

do outro? Alberto Tavares afirma o seguinte:

20 Para o leitor observar esses casos, é preciso ouvir as gravações, disponíveis no sítio virtual do Instituto Moreira Salles, e comparar com as imagens das partituras no item 3.

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Geralmente ele tinha, eu senti pelo que eu vi lá em casa. Porque ele trabalhou lá em casa com o Murillo Araújo. Trabalhou lá em casa com o Luis Peixoto21. Trabalhou lá em casa com o Juracy Camargo. Porque geralmente eles faziam lá em casa que tinha o piano. Passavam a tarde lá, os letristas, os parceiros. Papai às vezes chamava alguém, um baixo, ou enfim, uma cantora e tal, pra cantar uma coisa que eles estavam fazendo. Às vezes faziam duas ou três canções juntas. Ele interferia totalmente na letra.

... Era sempre no sentido de ele interferir no letrista. Ele tinha uma concepção e ele nunca, por exemplo, colocou uma música numa letra. A coisa sempre partiu da música, e veio a letra. Então essa coisa do som, que eu te falei, da sonoridade da palavra, ele às vezes interferia muito porque ela não batia com o que ele sentia... no ritmo, ele tinha muita atenção ao ritmo, a cadência.

A informação do modo de composição utilizado por Hekel Tavares é importante, pois

mantém o discurso de Alberto Tavares sobre os termos como sentido, espírito e concepção.

Esses termos têm parecença com os termos utilizados por Deleuze22, Santaella23 e

Laboissièrre (2007, p. 19). A relação do processo de concepção criadora em Hekel Tavares,

que compunha em determinado sentido – no caso sentido musical –, com os processos

sígnicos e de recriação vistos em Deleuze e Laboissièrre tem-se mostrado um dos caminhos

com vias à construção de interpretações sobre as canções do compositor. O trabalho de estudo

prolongado que envolve processos de significação contínuos na direção de essências ou

signos imateriais, como diria Deleuze, tem-se afastado de verdades imediatas advindas do

contato com as canções estudadas.

Como Hekel Tavares tinha o cuidado de publicar suas canções, surgiu a pergunta

sobre como funcionava o processo de feitura das edições. Alberto lembra:

... quando ele era ainda muito jovem ele não se ateve a esse pormenor. Ele escrevia, ia ao editor junto com o parceiro, entregava o original ao editor e só ia tomar conhecimento quando o papel tivesse impresso. Às vezes vinha com erro. Geralmente vinha com erro. Então ele ia ao editor e pedia. E não sei se era feita ou não, a coisa.

Esse relato confirma idéias já suspeitadas. Hekel Tavares, na fase inicial, quando era

jovem, não foi meticuloso no trabalho de feitura das edições. Não que ele não escrevesse

corretamente, mas o trabalho de edição mostrava erros que porventura permaneceram. São

essas edições que usamos até hoje. Mesmo não sabendo detalhadamente quais os erros, sabe- 21 Luiz Carlos Peixoto de Castro (1889 – 1973) era sobrinho de Leopoldo Miguez. Era um artista com habilidades múltiplas. Foi letrista, teatrólogo, poeta, pintor, caricaturista e escultor. Peixoto fez várias canções em parceria com Hekel Tavares. No teatro de revista, seu primeiro grande sucesso foi o libreto de Forrobodó, peça musicada por Chiquinha Gonzaga (ALBIN, 2002). 22 Em seu livro Proust e os signos (2006), Deleuze utiliza termos correlatos como signo, essência, espírito, particularmente no cap. IV (p. 37-48), intitulado Os signos da arte e a essência. 23 Lúcia Santaella, em seu pequeno livro O que é semiótica, lança mão desses termos como, por exemplo, na p. 13, ao conceituar semiótica como “qualquer fenômeno de produção de significação e de sentido”.

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se que é provável que os que encontramos hoje sejam os mesmos erros de edição. Para ser

mais preciso, precisaríamos observar algum manuscrito, de canção da década de 1920, início

de 1930. Sobre a existência desses manuscritos, relatou Alberto Tavares: “E esses

manuscritos nem existem mais. Não tem mais mesmo. Se tiver não tá nem comigo. Eu não

tenho. Isso aí foi pra fazer cópia e ficou. Ele também não ligava muito pra isso”. Em visita ao

Rio de Janeiro, procurei encontrar informação sobre as antigas editoras das canções de Hekel

Tavares, mas todas já haviam fechado. Consultei alguns vendedores mais antigos, que

disseram ser improvável a existência de um arquivo de manuscritos dos compositores, pois

era de praxe a devolução dos manuscritos quando o processo de edição terminava. Sabendo da

importância que tinha Hekel Tavares na época, quando era sucesso por todo o Brasil por

causa de suas canções, a esperança é que alguém tenha guardado esse material.

2.8. A PRESENÇA DAS CANÇÕES NO TEATRO DE REVISTA

Um dos pontos importantes para as canções iniciais de Hekel Tavares é sua presença

no teatro de revista brasileiro. Neyde Veneziano faz menção a um processo de nacionalização

crescente, a partir de 1906, em que a relação do teatro de revista “com a música popular se

torna mais inevitável, estreita, indissolúvel” (1991, p. 41). A partir daí, “a revista tomou para

si o papel de divulgadora de êxitos” musicais (idem, p. 42). A relação entre os dois veículos

foi tão grande que “chegou-se a uma nova fórmula, tipicamente brasileira, afastada do

modelo luso-francês. A melodia, agora, era parte integrante do conjunto” (idem). Hekel

Tavares surge no cenário musical no auge desse período de abrasileiramento do teatro de

revista. No ano anterior à estréia de Stá na hora, 1925, a famosa companhia Tro-lo-ló

inaugurava o teatro Glória, na Cinelândia (Rio de Janeiro), local onde as revistas são

direcionadas à elite social (idem, p. 44). O que se vê na revista dessa época, segundo

Veneziano, é um processo de “revalorização das coisas e dos sentimentos nacionais” (idem,

p. 45). Nesse processo, a figura do caboclo, considerado o brasileiro legítimo, é fundamental.

Um exemplo curioso é o surgimento, citado por Veneziano, após 1929, ou seja após a revista

Stá na hora, de uma outra revista, intitulada Casa de Caboclo, que depois daria origem a uma

companhia de mesmo nome. Veneziano não cita a influência do sucesso prévio da revista Stá

na hora nem tampouco do sucesso da canção de Hekel Tavares em parceria com a importante

figura do teatro de revista, Luiz Peixoto.

Da relação inicial da canção de Hekel Tavares com o teatro de revista surgiram

questionamentos sobre aspectos da performance que poderiam ter existido nas apresentações

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de palco. Talvez um gestual especial, uma técnica vocal, etc. No entanto, não foi possível

esclarecer detalhes sobre esse período com base nos materiais verificados. Alberto Tavares

tampouco pôde contribuir nesse sentido, pois alegou que ao nascer Hekel Tavares já estava

com 48 anos de idade e não trabalhava mais com as revistas. Não obstante, relatou-nos o

seguinte:

que ele [Hekel] nunca renegou o trabalho que fez nas canções, mesmo as mais simples pra teatro de revista, lá pra traz. ... ele disse: isso simplesmente foi uma fase em minha vida. Que ficou lá atrás. E vai ficar porque... eu passei por ela.

No decorrer da entrevista concedida por Alberto Tavares e mesmo em algumas fontes

consultadas, percebe-se que o próprio Hekel Tavares desgostava de algumas canções que

havia composto. Assim, a importância dada ao trabalho sinfônico do compositor é bem maior.

A produção inicial, incluindo o trabalho nas revistas, parece ser de menor valor dentro do todo

da obra, talvez em função, mesmo, da ligação do compositor com o teatro de revista. O teatro

de revista brasileiro, bastante vivenciado pela população do Rio de Janeiro do início do século

XX, hoje é objeto de grande interesse. Não obstante, tanto a música popular quanto o teatro

foram, ao que parece, desprestigiados ou preteridos pela academia por sua ligação com o

humor escrachado, a chacota, a informalidade, a improvisação, a sensualidade. Ao que revela

Veneziano, “foi a tão condenada imoralidade da revista que abriu as portas dos cassinos e

dos night-clubs para receber a classe média conservadora” (idem, p. 50). Por muito tempo,

enfim, a revista teve má fama entre os conservadores. Sobre ela recaía significação negativa.

3. CANÇÕES

O preparo do performer que pretende realizar as canções de Hekel Tavares em

concerto, com a formação canto e piano, é feito sobre gravações de época24 e partituras com

edições problemáticas. Esse material de referência tem-se mostrado insuficiente para o

preparo das canções. Há mais detalhes a se levantar para ajudar a compor uma interpretação

mais segura. Detalhes interpretativos se perderam no tempo devido ao caminho percorrido

pelas canções, que passaram do teatro para as ruas, depois para gravações, rádios, serões.

Nesse trajeto, incorporaram mudanças funcionais, interpretativas e, com o passar do tempo,

criaram uma distância cultural com as interpretações de época. Faz-se necessária uma

24 Há várias canções de Hekel Tavares gravadas, grande número, na década de 1920 e 30. Entre as mais antigas, que usamos como referência, estão canções gravadas tendo o próprio compositor ao piano. As gravações mais antigas vêm sendo vendidas no formato (digital) CD por meio de empresas com sítio na internet.

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tentativa de lembrar os modos interpretativos de época como forma de aproximar as

concepções dessas canções aos modos do período a que pertenciam.

Atualmente Hekel Tavares é conhecido, por grande parte dos estudantes de canto, por

sua versão musicada da letra de Luiz Peixoto intitulada Azulão. No entanto, essa canção é

apenas a ponta de uma obra bem maior dedicada à canção nacional. Muitas canções suas são

famosas e pertencem ao imaginário do brasileiro sem que se saiba que foram, na verdade,

compostas por esse compositor.

Como o trabalho do compositor segue linha nacionalista, foi necessário verificar como

se deu essa orientação. Afinal ele e outros compositores são citados como influenciados pelo

movimento da Semana de Arte Moderna de 1922 (MARCONDES, 1999, P. 765). Como já

informado supra, dentro desse assunto havia a suposição de uma possível ligação do

pensamento de Mário de Andrade com a produção de Hekel Tavares. O Ensaio sobre a

música brasileira, de 1928, assim como os Aspectos da música brasileira, com textos escritos

entre 1936 e 1941, apresentam características que se aplicam à obra de Hekel Tavares.

Quando Andrade diz “do que estamos carecendo imediatamente é dum harmonizador simples

mas crítico também, capaz de cingir à manifestação popular e representá-la com integridade

e eficiência” (1928, p. 17), as canções Hekel Tavares se enquadram muito bem nessa

expectativa.

O compositor parece ter trabalhado segundo duas linhas de interesse dentro da música,

a tradição popular brasileira e a música formal, de concerto. Antes de prosseguir, é preciso

refletir brevemente sobre a questão do popular na obra de Hekel Tavares.

Existe uma idéia no senso comum de que manifestações musicais da tradição oral

podem ser registradas através da escrita musical, ou seja, escrever música como se escrevem

palavras, ou ainda através de gravação em áudio ou vídeo – registros mecânicos ou digitais.

Mário de Andrade deixa entender (idem p. 19) que seria possível grafar a totalidade de

alguma canção da tradição oral. Vale lembrar que o próprio Hekel Tavares enveredou pelo

caminho do interesse pela cultura popular do interior do Brasil. Fez inclusive viagens,

semelhantes às de Mário de Andrade, para conhecer o interior do país. O que se verifica no

comportamento de ambos, independentemente da maneira como trabalhariam posteriormente

esse material “coletado”, é que tinham essa cultura do registro da tradição oral. Pode-se, no

entanto, criticar esse tipo de procedimento na medida em que nem a escrita musical

convencional nem tampouco os registros mecânicos ou digitais dão conta de todo o universo

que comporta a realidade das coisas. Eis um ponto crucial para o performer na lida com a

fronteira entre formal e informal na música. Não é possível transcrever um canto da tradição

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oral sem que ele se torne deformado e destacado de todo o ambiente cultural e histórico –

amarras do presente – que contribuem para compor a idéia que se tem dele. Isso se percebe

mais claramente ao ouvir a diferença entre o arranjo de Hekel Tavares nas canções Vadeia

Cabocolinho, Meu barco é veleiro e Engenho novo25 e suas versões originais nas gravações

feitas por Mário de Andrade26. O canto, na tradição oral, está conectado a tudo o que compõe

o seu presente; dá a impressão de maior sinceridade, verdade. Quando se ouvem as gravações

dos arranjos, a impressão é de uma imagem caricaturada, deformada. Nesse caso, é a

caricatura do homem do interior construída pelo homem urbano. Isso se vê também, mas de

modo diferente, em canções originais do compositor, na medida em que o intérprete lhe incute

o caráter usualmente associado ao canto lírico, a pedância, a voz deformada, a palavra

deformada. De certo que existe uma procura de autenticidade na ligação com a cultura

popular na canção de Hekel Tavares; no entanto, sua música não é mais a música que se ouve

na tradição oral. O compositor, munido de liberdade criativa, utiliza elementos dessa

linguagem deixando reconhecíveis elementos da tradição popular, da oralidade, mesmo que

traduzida, e da tradição erudita, em seu piano de linhagem clássica ou mesmo romântica. O

resultado final, no entanto, configura-se em outro objeto cultural.

No que se refere a suas partituras editadas, há dificuldade de acesso ao acervo

completo. Existem partituras que estão esgotadas e não há expectativa de re-impressão. Entre

as edições de partituras recolhidas, percebem-se problemas gerais de prosódia musical, erros

de adequação texto/música: ocorre problema de texto que não cabe na melodia escrita, falta

texto ou há deslocamento do texto na melodia. Na maioria dos casos, isso impossibilita a

execução do intérprete sem que se tenha de subverter a escrita das edições. Os problemas de

prosódia exigem um esforço de ajuste quase constante na lida com as partituras. Fazia-se

necessário esclarecer a natureza da origem dessas questões. Todavia, como as gravações de

época com a presença de Hekel Tavares não apresentam erros de prosódia, surgiu a dúvida de

qual o parâmetro de correção.

O que se segue abaixo é um trabalho de reflexão sobre três canções do compositor

levando em consideração as condições limitadas existentes até o momento. A tarefa é feita por

comparação entre gravação e edição com a proposição de maneiras de se pensar as peças para

a construção de uma performance.

25 Refiro-me à coleção Missão de pesquisas folclóricas lançada pelo SESC – São Paulo em 2006. A coleção mostra uma seleção de gravações de folclore feitas por Mário de Andrade. As faixas citadas são Vadeia cabocolinho, CD 4, faixa 54. Meu barco é veleiro, CD 1, faixa 1. Engenho novo, CD 2, faixa 4. 26 Poder-se-ia até criticar a incompletude dos registros de áudio por serem também um enfoque sobre o real, ou mesmo uma imagem do real, mas não a realidade como é no presente.

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34

Devido ao objetivo particular, de contribuir para que o cantor forme um ponto vista

sobre as canções, o processo de análise das peças também assume um olhar, ou um jeito

diferenciado de pensá-las. O trabalho se concentra mais sobre a parte melódica das peças do

que na parte harmônica. Isso não quer dizer que se está desprezando a esfera harmônica, pelo

contrário. A contribuição reflexiva sobre a abordagem na escrita melódica do compositor

parece mais urgente do que processos de análise mais convencionais como vistos em LaRue e

Cook. Para o cantor, detalhes a respeito dos ambientes de significação construídos durante a

performance são contribuições mais imediatas a seu trabalho. Análises musicais

convencionais assumem geralmente um caráter bastante descritivo e que caminha para

dissecação de materiais musicais pequenos. Isso leva ao aumento demasiado de texto escrito a

respeito de determinada peça. Para o analista que escreve, que tem intimidade com a música

analisada, todo esse volume literário pode ser útil e necessário, mas não quer dizer que o leitor

tenha facilidade para retraduzir aquilo que foi escrito por outrem. Nesses casos, resta ao leitor

enveredar por um processo, às vezes longo, de tradução de tudo aquilo que é tratado na escrita

das análises. Nicholas Cook, em seu livro A Guide to Musical Analysis, afirma que as

conclusões de uma análise são menos importantes do que os detalhes musicais citados em

defesa dessas conclusões (1987, p. 229-230). Esse discurso pode servir de justificativa para

trabalhos volumosos que demandam grande gasto de tempo do leitor para traduzi-los.

Há mais uma peculiaridade no trabalho sobre canções de Hekel Tavares que os livros

de análise musical de LaRue, Stein e Spillman e Cook não observam. Nos autores citados, a

análise é feita sobre partituras seguras e não sobre gravações em que o próprio compositor da

obra analisada está tocando, regendo ou é o arranjador das peças. Eles lidam com partituras

seguras ou que, pelo menos, não apresentam grandes questionamentos a respeito do material

editado. De certo que a profundidade analítica proposta por eles é desejável, mas, nas

condições atuais, há uma necessidade maior de fixar o olhar sobre questões mais urgentes e

focadas no público alvo de cantores interessados na obra de Hekel Tavares. É iminente a

necessidade de refletir principalmente sobre questões relativas à abordagem em relação à

escrita, pois as soluções estão ainda longe do possível. Enfim, interessa-nos facilitar o acesso

do performer, dar-lhe diretrizes simples, mostrando problemas editoriais, elementos

expressivos nas obras que dêem rumo reflexivo no confronto com esse material.

Até o momento, o que parece vital procurar em cada peça observada diz respeito às

palavras de Alberto Tavares quanto aos ambientes de significação nela existentes. Em outras

palavras, é a idéia de sentido, essência, que dará rumo à reflexão do intérprete.

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35

As canções estudadas são como histórias narradas por personagens que são tipos

brasileiros. Essa constatação leva à uma das prioridades vistas no texto de Stein e Spillman

em seu livro Poetry into song27 (1996, p. 29-33). Eles chamam a atenção para questão da

persona e mode of address. Isso se refere a quem realiza o discurso da canção, o personagem

que canta/conta a história, assim como a quem é endereçado o discurso. É importante ao

intérprete manter isso em mente.

Hekel Tavares compôs estritamente dentro do universo tonal. Para as canções, a

questão da escolha de tonalidade pode ser entendida como Alberto Tavares informou, ou seja,

ao que parece, diz respeito à formação dos sentidos a serem transmitidos pela música. O que

se viu, no entanto, foi que, na verdade, o registro vocal do cantor para determinada canção é

mais importante do que a precisão da tonalidade.

Outra questão com que se debaterá o intérprete é a dificuldade de acesso à música

editada do compositor. Não é provável que o cantor tenha acesso às canções facilmente. A

maior fonte de apoio nesse sentido é o herdeiro do compositor, Alberto Tavares. Isso porque

as edições existentes já estão quase totalmente esgotadas28. Por isso muitas edições recolhidas

são fotocópias conseguidas com pessoas que gentilmente enviaram pelo correio para ajudar na

pesquisa.

Não há até hoje um inventário do total das canções de Hekel Tavares. O número de

103 é o último número fornecido pelo próprio compositor; contudo, depois que se listam as

canções de sua autoria, cruzando informações de fontes diferentes, percebe-se que o número

pode chegar a 118 ou mais (vide nota de rodapé n. 2). Uma peculiaridade na obra do

compositor é que as edições de suas canções não têm a data de composição registrada, ou

anotada. As datas que se conhece são as de publicação, gravação e lançamento de gravação.

Segundo o depoimento de Alberto Tavares, não restam manuscritos da fase inicial do

compositor, refiro-me às canções dos anos 1920 e início de 1930. A falta de manuscritos

originais impossibilita o esclarecimento de várias dúvidas, como a data precisa de composição

de cada canção para que se estabeleça uma linha temporal precisa no trabalho do autor.

27 O livro de Stein e Spillman é direcionado ao público de língua nativa inglesa que pretende estudar a canção romântica de língua alemã. Mesmo se tratando de um enfoque particular, há elementos tratados por eles que servem à presente reflexão. 28 Entre as edições existentes, muitas são de editoras que não existem mais. A única editora que oferece algumas canções para venda é a Irmãos Vitale, que não tem previsão para reimpressão das canções de Hekel Tavares que já se esgotaram. Alguns exemplares antigos foram encontrados para venda na MUSIMED, em Brasília. No entanto, o acervo com maior número de exemplares foi encontrado no Instituto Moreira Salles em São Paulo, que disponibiliza a lista das edições que possui pela internet. Pode também o pesquisador requerer um fac-simile das canções por um valor determinado pela instituição.

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Mesmo de posse do material desejado, o usuário encontrará dificuldades na execução

devido à má qualidade editorial das canções. Embora ciente desses problemas, Alberto

Tavares não forneceu data para recuperação desse material, pois está no momento editando e

publicando o material sinfônico de seu pai.

As diretrizes fornecidas pela conversa com Alberto Tavares foram importantes. Por

seu testemunho sobre a abordagem de Hekel Tavares em seu processo de composição,

ofereceu um caminho reflexivo para interpretar suas canções. Tendo em mente a idéia de que

o compositor trabalhava a partir de um certo sentido, concepção, levou a uma correlação com

os escritos de Laboissièrre (2007) e Deleuze (2006). Nesses autores, percebe-se que o contato

com as coisas, aqui no caso direcionado às canções, desencadeia um processo de criação

ininterrupto e original de formação de signos e sentidos.

O que se segue abaixo é um trabalho de reflexão sobre três canções escolhidas do

compositor. Procura-se caminhos para pensar as peças com o enfoque na interpretação do

executante.

3.1. CASA DE CABÔCO (CASA DE CABOCLO)

Casa de caboclo, referida também em outros momentos com o nome estilizado Casa

de Cabôco, uma das canções mais conhecidas de Hekel Tavares, apresenta uma série de

supostos empecilhos ao estudo através de suas partituras. Foram encontradas três partituras:

partitura publicada em jornal29; partitura da editora Casa Vieira Machado30; partitura da

editora Irmãos Vitale.

A peça aparece primeiramente na revista (teatro de revista) Stá na hora e, segundo o

declarado na capa das partituras da Casa Vieira Machado e Irmãos Vitale, é feita sobre motivo

da Maestrina Francisca Gonzaga. Na publicação Nova Música Popular Brasileira (op. cit., p.

9), há menção a esse momento da vida de Hekel Tavares:

A primeira oportunidade de trabalhar com música [no Rio de Janeiro] surgiu em 1926, quando Hekel encontrou outro alagoano, o poeta José Maria Goulart de Andrade (conhecido na época sob o pseudônimo de Zé Expedito). Dono de boas relações no meio intelectual do Rio de Janeiro, Goulart vivia num ambiente requintado e queria experimentar uma espécie de revista – uma fantasia literária – dirigida ao público mais sofisticado que começava a surgir dos bairros da Zona Sul, em direção à Cinelândia e à Praça Tiradentes. Juntos elaboraram então a revista Stá na hora, que estreou em

29 Essa partitura em papel jornal faz parte dos recortes pertencentes ao acervo de Tinhorão que se encontram no Instituto Moreira Salles. Fonte e data não são mencionados. Vide Anexo B. 30 Partitura pertencente ao acervo de Tinhorão encontrada no Instituto Moreira Salles.

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janeiro de 1926, no Teatro da Glória. No elenco destacava-se Sylvio Vieira31, um dos cantores líricos mais conhecidos na época.

Casa de caboclo, como a maioria das canções de Hekel Tavares, é estruturalmente

simples. É escrita na forma binária seguindo quadraturas perfeitas. Cada frase contém quatro

compassos divididos em dois compassos, que chamo aqui de semi-frases, sendo que duas

frases formam um sentença32. A parte A pode ser dividida em duas sentenças de oito

compassos, a1 (do compasso 1 ao 8) e a2 (do compasso 9 ao 16). Cada sentença pode ser

divida em duas frases de quatro compassos. Cada frase, por sua vez, pode ser dividida em

duas idéias musicais menores, semi-frases, de dois compassos cada. A parte B é menor que a

parte A. Ela apresenta apenas uma sentença completa (do compasso 18 ao 25), mas mantém a

mesma divisão em duas frases que se dividem em duas semi-frases (Veja imagem abaixo).

31 Segundo a Enciclopédia da Música Brasileira, em 1924, Sylvio Vieira desponta na cena lírica carioca com montagem da ópera La Bohême, de Puccini. A partir desse momento amplia sua ação participando também em “companhias populares e em revistas nos Teatros Recreio, João Caetano, da Glória e do Cassino, no Rio de Janeiro”. 32 A nomenclatura de “frase” e “sentença” segue o esquema visto em Forma e estrutura da música de Roy Bennett (1986, p. 11 e 12).

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À parte B (do compasso 18 até o fim) fica reservado o trecho mais agudo da peça,

correspondendo também a uma exigência expressiva dos versos da letra “Deixa falá toda essa

gente maldizente” e “Tem duas cruz entrelaçada bem na estrada”. As frases da peça são

construídas em trechos pequenos, exigindo, assim, respirações curtas, mais fáceis de realizar,

e seguindo o modo da recitação poética dos versos da canção. A tessitura fica dentro de um

intervalo de nona, sendo que a nota mi aguda é atingida poucas vezes e em notas curtas.

Tessitura

Perguntado sobre a prática usual de transpor canções para adequação ao registro vocal

dos cantores, Alberto Tavares afirma o seguinte:

Por exemplo: Funeral de um Rei Nagô, escrito pra baixo. É uma música pesada. É um funeral... d´um Rei. Eu não posso botar isso pra ser cantado por uma soprano com esse espírito, com esse sentido... Então, você transporta isso pra uma mezzo ou qualquer coisa, vai ficar muito complicado, a interpretação. Não vai ter o espírito... e ele [Hekel] disse: ...não precisa cantar, não precisa tocar minha música não. Deixa lá como ta, mas [se for fazer] é assim que eu gosto. [sic]

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Ao que relata o entrevistado, Hekel Tavares não gostava que se modificasse o espírito

ou o sentido de suas canções, indicando ser a tonalidade parte do caráter das peças. Mas,

apesar de Alberto Tavares assim afirmar, isso não quer dizer, exatamente, que não se vá fazer

transposições de qualquer canção do compositor. A transposição de canções para adequação

ao registro vocal de cantores é uma praxe. Além do mais, ao observar a gravação de Casa de

Caboclo com Gastão Formenti, percebe-se que a execução está um semitom abaixo do tom da

edição. Essa diferença pode ser proveniente da variação na rotação dos discos. Mas, mesmo

sabendo dessa possibilidade, o importante é o fato de que o resultado final audível mostra a

variação na afinação.

A linha melódica é construída seguindo o esquema simples de ré maior modulando

para a relativa menor harmônica, si menor harmônico. Percebe-se que na escrita ocorrem

alguns cromatismos, como nos compassos 6 e 13. O uso desse recurso é muito comum nas

melodias do compositor.

Do ponto de vista de uma observação musical tradicional, esta e outras canções de

Hekel Tavares não carregam a densidade harmônica ou contrapontística de uma canção de

Camargo Guarnieri ou de Cláudio Santoro. Talvez aí resida uma das fontes das opiniões

quanto ao seu caráter não voltado à riqueza estrutural. Contudo, o que há de simples,

estruturalmente falando, há de rico nas mensagens musicais. Pois, mesmo trabalhando dentro

de esquemas composicionais conhecidos, o compositor, ainda assim, consegue estabelecer um

ambiente profícuo de expressividade33. Suas canções se tornam mais ricas do ponto de vista

poético, simbólico. Dessa forma, o foco maior em suas canções parece estar menos

relacionado a aspectos estruturais convencionais como estrutura melódica, forma,

contraponto, escalas, harmonia, etc., e mais às possibilidades discursivas que essas estruturas

comportam. A simplicidade estrutural se torna o âmbito ideal para carregar os modos de

realização do discurso cantado, que se aproxima muitíssimo da maneira como o discurso é

falado, sendo essa fala impregnada dos ritmos, entonações, movimentos, trejeitos,

maneirismos dos brasileiros. Essas características, pouco perceptíveis na escrita musical,

aparecem nas interpretações de época. Parece que, para os intérpretes de época, os modos dos

fazeres musicais, como pertenciam a sua realidade presente, eram bem claros, coisa que

atualmente não são devido à distância histórica existente. Esse vão que se percebe entre a

33 Parcialmente de acordo com a socióloga Astréia Soares Batista, em suas Outras conversas sobre os jeitos do Brasil (2002. p.16), onde se lê “na música popular, o eixo fundamental para a interpretação está na letra, quer seja ela complexa ou banal do ponto de vista poético”; contudo, a importância da escrita musical que se casa com essa letra é fundamental para a construção do discurso. Somente a letra não sustenta uma canção. Contudo, é do senso comum a idéia de que a atenção do ouvinte à mensagem que vem da letra é mais forte.

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escrita musical e interpretação na música popular é citado por Mario de Andrade e Renato

Almeida.

Mario de Andrade, em seu Ensaio sobre a música brasileira, ao se referir à qualidade

rítmica da canção brasileira, comenta a respeito das diferenças entre música impressa e

música realizada:

Seja porquê os compositores de maxixes e cantigas impressas não sabem grafar o que executam, seja porquê dão só a síntese essencial deixando as subtilezas pra invenção do cantador, o certo é que uma obra executada difere às vezes totalmente do que está escrito (p.17 e 18). / Os maxixes impressos de Sinhô são no geral banalidades melódicas. Executados, são peças soberbas, a melodia transfigurando ao ritmo novo. (idem, p. 19).

Essa disparidade percebida por Andrade, exemplificada na canção Pinião, aparece em

canções de Hekel Tavares, inclusive em Casa de caboclo. Uma das justificativas, propostas

por Andrade, seria porque “qualquer cantiga está sujeita a um tal ou qual ad libitum rítmico

devido às próprias condições da dicção” (idem). Com relação às canções de Hekel Tavares,

esse ad libitum a que Andrade se refere tem a ver, possivelmente, com a liberdade

improvisativa presente na música conhecida como popular e quase completamente ausente na

canção erudita. O respeito supremo à escrita do compositor e a crescente limitação da ação do

intérprete para com a obra musical crescem bastante com o tempo34. Mas, no ambiente da

música popular, ou, por que não dizer, da tradição oral, suas riquezas interpretativas aparecem

quanto maior for a habilidade e domínio dos códigos expressivos da linguagem pelo

executante. Andrade fala um pouco sobre isso ao se referir aos cantadores nordestinos:

“... nestas zonas [do nordeste] os cantadores se aproveitando dos valores prosódicos da fala

brasileira tiram dela elementos específicos essenciais e imprescindíveis de ritmo musical”

(idem). Aqui Andrade faz menção a elementos pertencentes ao discurso musical, que o

caracterizam e enriquecem, mas que não estão presentes na escrita musical. Mais à frente,

procura justificar essa ausência referindo-se à mesma peça nordestina:

... ela se apresenta muitas feitas com uma rítmica tão subtil que se torna quase impossível grafar toda a realidade dela. Principalmente por que não é apenas prosódica. Os nordestinos se utilizam no canto dum laisser aller contínuo, de fetitos surpreendentes e muitíssimas vezes de natureza exclusivamente musical. Nada tem de prosódico. É pura fantasia duma larqueza às vezes cômica, às vezes ardentes, sem aquela tristurinha paciente que aparece na zona caipira (idem).

34 Thurston Dart, em seu livro Interpretação da Música, reflete sobre a evolução da escrita musical através dos tempos e em culturas diferentes, afirma: “Quanto mais retrocedemos na história da música, menos essas indicações [dinâmica, fraseado, andamento e outras coisas] aparecem, e mais confiança era evidentemente depositada no preparo do intérprete, no seu senso de tradição, na sua musicalidade inata” (2000, p. 7).

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Renato Almeida, em seu Compêndio de História da Música Brasileira, ao tratar da

problemática da caracterização da música brasileira, faz referência a elementos dessa

discussão:

Assim, por exemplo, a fantasia do ritmo que permite abundante polirritmia, a moleza da síncope, certos empostamentos da voz, a liberdade de o cantor adaptar a seu modo a palavra à melodia, de sorte que esta se alongue ou se retraia ao sabor do verso, o modo de cantar nasalizando sempre, e as entonações, com aquêle ligado peculiar, dum glissando tão preguiçoso que Mário de Andrade chegou a imaginar que nordestinos empregassem o quarto-de-tom (1958, p.15 e 16).

Andrade e Almeida percebem a presença do caráter improvisativo do cantador.

Paralelamente à canção de Hekel Tavares, há detalhes que contribuem para a construção de

um enfoque sobre suas canções. Quando Almeida e Andrade procuram retratar – traduzir em

palavras – os mecanismos expressivos do cantador, eles fazem referência a uma certa

liberdade de improvisação que, por sua vez, carrega consigo uma função expressiva, criativa,

comunicativa, diferenciadora. Não se pode deixar de ver que, tanto Andrade quanto Almeida,

observaram esses fatos musicais in loco ou por registros gravados, viram as fontes que

pertenciam ao seu tempo próximo.

A dicotomia, então, entre discurso oral e escrito está presente também nas canções de

Hekel Tavares. Mas, diante do impasse sobre o peso que cada elemento (oral ou escrito) tem

na construção de uma interpretação, torna-se necessária a proposição de caminhos para

resolvê-lo. Andrade e Almeida mostraram um caminho, consultando as fontes sonoras de seu

tempo. Ao intérprete do presente, como fizeram eles, é importante fazer uso dos registros de

época e, por que não, usar de sua “liberdade”, como citado por Almeida, para construir

interpretações. De qualquer forma, o que vem-se mostrando até agora é que a submissão

incondicional ao material impresso deve levar a interpretações muito distantes da realidade

musical pretendida para essas canções. Parece que existe todo um corpo cultural a ser

apreendido, incorporado que há de se hibridizar ao material escrito. Contudo, mesmo

percebendo essas diferenciações entre material impresso e gravações de época, resta saber

qual a natureza das partituras manuscritas de Hekel Tavares. Por exemplo, nas partituras de

Casa de Caboclo, deixando de lado as diferenças nas letras e nos acompanhamentos do piano

das três edições aqui observadas, vejam as diferenças na melodia e na letra entre a partitura da

editora Irmãos Vitale35 e a interpretação de Gastão Formenti36 transcritas abaixo:

35 A opção pela digitação da partitura se deve à precaução quanto ao respeito aos direitos autorais da editora. Há também a necessidade de colocar a segunda letra sob a melodia para que possa ser visualizada mais facilmente. Mesmo assumindo a possibilidade de incorporação de mais erros de digitação, o leitor deve encarar os exemplos

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Edição

Gravação

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com o objetivo específico de visualizar as questões tratadas no decorrer da dissertação. O que se procura na transcrição da gravação são diferenças de nota e ritmo. 36 Na gravação, existem alguns compassos no início e no fim que são feitos apenas pelos instrumentos.

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Alberto Tavares, quando perguntado sobre qual a referência de maior confiabilidade,

edição ou gravação com o Hekel Tavares tocando, foi categórico: é a gravação. Contudo é

preciso ter cautela nas decisões a serem tomadas. Depende-se muito ainda do bom senso do

intérprete.

Sobre a idéia que se tem hoje da música dita popular e a orientação de Hekel Tavares

sobre a interpretação de suas canções, Alberto Tavares afirma que seu pai tinha uma

concepção bastante fechada, precisa, da maneira que suas canções deveriam ser executadas.

Isso entra em conflito com a idéia de liberdade interpretativa vista na música popular

mostrada anteriormente. Quando perguntado sobre a liberdade de interpretação, como vista na

música popular atualmente, Alberto Tavares fala sobre o caso das gravações da Inezita

Barroso, principalmente a gravação do Funeral dum Rei Nagô:

Por isso que ele teve problema com a Inezita Barroso. Porque a Inezita Barroso, além de transportar, ela criava harmonias dentro da canção que ela achava que era, e ele [Hekel] não queria. Ele escrevia tudo com partitura, criava dentro de um determinado espírito e gostaria que aquilo fosse seguido como ele escreveu.

Noventa por cento das canções dele [Hekel] foram escritas pra piano, então ele escrevia direto. [Hekel escrevia] Nota por nota, acorde por acorde, mão esquerda mão direita, toda a base da canção. E a linha melódica da canção com a letra em cima.

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Sabendo disso, mesmo encontrando todo tipo de dificuldade no contato com as

edições, é necessário encarar a escrita em Hekel Tavares com cuidado e bom senso. Quando

perguntado se a escrita em Hekel Tavares representa precisamente o que o executante deve

realizar ou se sugere uma espécie de caminho aberto à interpretação como de costume na

música popular, Alberto Tavares confirma que a interpretação “é fechada”. No entanto, ao ser

perguntado sobre as diferenças entre o que Hekel Tavares toca nas gravações ao piano e as

edições, diz que: “Pode ser que na hora ele tenha preferido colocar alguma coisa, ter sentido

alguma coisa, então, alguma coisa de momento dele, no que tá gravando, mas ele era muito

fiel àquilo que ele se propunha”. [sic]

Quando Alberto Tavares fala da questão do espírito ou sentido que deve haver nas

canções, leva o intérprete a buscar, em seu processo de estudo, idéias de sentido que surjam

na lida com a música. Contudo, mesmo sendo o ponto de vista, exposto por Alberto Tavares,

fechado no que se refere ao sentido que se deve encontrar nas canções de Hekel Tavares, é

necessário levar em conta o ponto de vista atual de Laboissièrre, em que se lê que a

interpretação é a “significância da música para cada um em particular” (op. cit., p.188) e a

performance da música uma recriação. Essa afirmação está de acordo com a visão de

Deleuze, quando refere que a “essência não é apenas particular, individual, mas

individualizante” (op. cit., p. 46). O processo de construção da performance é um processo de

construção de sentidos que, mesmo levando em conta aquilo que é história, conexão com o

passado, se configura num trabalho encapsulado no presente e projeta-se sobre um devir

único, particular. Dessa forma, a idéia de que é possível a transposição de sentidos estáveis,

como gostaria Hekel Tavares, parece improvável. A descoberta do sentido ou do espírito

relatados por Alberto Tavares, ao se referir a Hekel Tavares, configura-se num processo de

diálogo interno do performer no qual se encontram elementos do passado e do presente,

criando a expectativa de um devir novo, sentidos novos, diferentes do que concebera

inicialmente o compositor. Resta saber quão diferentes.

O personagem narrador, assim como o ambiente da história, nessa e na próxima

canção observada, é a figura do caboclo, o típico brasileiro, resultado da mistura racial entre o

português, o africano e o indígena. Nessa canção, procura-se falar dele assim como ele é.

Constrói-se um olhar em que um dos objetivos é dar-lhe pertencimento, dignidade. À primeira

vista, a leitura dessa peça dá a impressão de um contentamento no discurso, diferentemente

das interpretações escolhidas. Em Casa de Caboclo e Caboclo Bom, ouve-se um cantar digno,

mas há tristeza e sofrimento. Talvez pela sensação que se tem do próprio personagem

caboclo, mas também por gostos estéticos da época ou pela herança modinheira, presente

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nessas e em outras canções. Dessa forma, o personagem de quem se fala e o narrador que

incorpora seu estereótipo procuram, mostram, suas qualidades. Sua casa simples, que tem na

varanda uma árvore, que recebe os sabiás. Quando se diz que na casa do caboclo não mora

ninguém, afinal, uma casa tão simples e pobrezinha, diz-se que não, aí mora o grande

cantador Zé Gazela. Aí mora alguém importante, um cantador (e não cantor) famoso. A lição

de moral ao final, um é pouco, dois é bom, três é demais, não permite a presença de mais um

parceiro no meio da relação entre Gazela e Siá Rita. Enfim, esse caboclo é uma figura

‘civilizada’. A música, o ato de cantar, o engajamento artístico, enfim, dá pertencimento ao

personagem. Se observarmos o contexto brasileiro pós-abolição, poderemos construir um

ponto vista que auxilie no entendimento do discurso de Casa de Caboclo. Segundo Regiane

Augusto de Mattos (2007, p. 186), o contexto pós-abolição da escravatura37 foi testemunha de

uma tentativa da elite e do estado brasileiros de europeizar o Brasil, quando se procurou

eliminar a herança biológica e cultural negra. Àquela época, a visão que se tinha do negro era

de um selvagem, bárbaro, antítese do homem civilizado. Dessa forma, continua Mattos,

concomitante à eliminação do negro, foi incentivada a imigração européia e a miscigenação

para o branqueamento da população. O negro ou o mestiço eram figuras preteridas pela elite,

que as queria eliminar, branquear, civilizar segundo parâmetros europeus.

Voltando ao caráter do discurso na canção, se em visão geral triste ou contente, a

percepção de contentamento, vivenciada na lida com a música, parece inadequada se

observado o contexto histórico que ela representa. Dessa forma, o sorriso farto e a alegria na

performance discordam com esse ponto vista contextual.

3.2. CANÇÃO (CABOCLO BOM)

É comum a idéia de que as canções de Hekel Tavares são simples, e que são, também,

de leitura fácil, mas essa canção há de mudar esse ponto de vista. A leitura, à primeira vista,

da melodia de Canção38 não é fácil. O uso freqüente de cromatismos dá a impressão de que as

notas estão fora de lugar. Isso só se modifica quando se junta a melodia ao contexto

harmônico preciso, fazendo com que tudo faça sentido musical. Se não viesse escrita a

indicação Lento, assim como o andamento ouvido na gravação de Paraguaçu39 com a presença

37 A Princesa Isabel assinou a Lei Áurea em 13 de maio de 1888. 38 Canção feita em parceria com Raul Pederneiras (1874–1953). 39 Paraguaçu: Roque Ricciardi (1894-1976), cantor, compositor. Paraguaçu foi músico de formação informal e de atuação na música popular urbana de São Paulo. Antes de 1923, quando foi o primeiro contratado da Rádio

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de Hekel Tavares ao piano, essa peça se aproximaria de um samba. Elementos como o uso de

cromatismos na linha melódica, a mão esquerda do piano fazendo colcheias pontuadas e

semicolcheias com um caminho cromático descendente e a imitação do toque do violão,

indicado na partitura, ajudam a dar essa idéia. Acelerando-se o andamento, tirando da peça

seu aspecto meio melancólico, é trazida para o gênero samba canção. Canção foi publicada

juntamente com Casa de Coboclo, num conjunto de três canções, como de costume, intitulado

Série Regional. Um caso curioso, observado também em outras canções do compositor, é que

algumas são mais conhecidas pelo apelido, pelo seu bordão, que pelo seu nome de batismo.

Canção, dessa maneira, é conhecida como Caboclo Bom; Coco da minha terra é conhecida

como Bia-ta-tá; Festa é conhecida como Baianinha chegou da Sé.

Canção é construída em duas partes, uma em ré maior e outra na relativa, si menor

harmônico. A diferença em relação a Casa de Caboclo é que em Canção as segunda parte

aparece com um acorde de fá sustenido maior com sétima menor, dominante de si menor.

Como visto no item 3.1. As frases e suas respectivas divisões são mostradas na imagem

abaixo.

Educadora Paulista (Gazeta) cantava num grupo com Caramuru acompanhado por Canhoto e Luiz Miranda. (Enciclopédia da Música Brasileira. p. 604).

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Da mesma maneira que em Casa de Caboclo, mesmo havendo a repetição (ritornello)

da música, a interpretação, como segue o discurso da letra, muda completamente. Isso

interfere no andamento e expressão do canto. Paraguaçu realiza isso claramente no segundo

verso ao chegar no trecho “guardei a raiva meus tarecos reunindo”, quando acelera,

mostrando o sentimento relatado, para logo após retornar ao andamento mais lento, até chegar

ao bordão em sentimento consolado em “ser solteiro é ouro em pó”. Como nas edições de

Hekel Tavares só se escreve a primeira letra debaixo das notas da melodia, os segundos,

terceiros e demais versos costumam reservar problemas ao se tentar adequá-los às notas.

Geralmente os demais versos vêm escritos no final da partitura. Na terceira estrofe, quarta

linha, “Caboclo bom conhece bem a sua sina”, falta a palavra bem. Na segunda casa,

compasso 25, a letra vem deslocada:

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Caboclo Bom, compasso 25-26. Transcrição da edição Casa Vieira Machado.

Caboclo Bom, compasso 25-26, versão corrigida da edição acima baseada na gravação de Paraguaçu.

A tonalidade da peça é a mesma de Casa de Caboclo, sendo a tessitura de uma

décima-primeira maior. Na gravação de Paraguaçu, a tonalidade soa um semitom acima, ou

seja, em mi bemol maior. Mais uma vez, provavelmente pela questão da rotação dos discos.

A nota mi aguda é atingida apenas uma vez no compasso 13, com boa relação com a

exigência sonora do texto “Tão sa-tis-fei-to”. As exigências maiores para o canto são

decorrência dos caminhos melódicos na região mais grave. Manter a projeção sonora nas

notas graves é difícil.

Tessitura

À escrita melódica em semicolcheias deve-se dar atenção particular. Assim como em

Casa de Caboclo e outros casos, as semicolcheias não são realizadas com precisão métrica e

pulso metronômico, divergindo dessa forma do discurso de Alberto Tavares sobre a escrita

das canções. O entrevistado afirma que a abordagem do compositor em relação à escrita

musical é mais rígida. Contrariamente a isso, como mostrado acima nos comentários de

Almeida e Andrade, a escrita das canções brasileiras tende a se distanciar de sua realização.

Com efeito, esse detalhe, nesta e outras canções de Hekel Tavares, parece ser verdade. Isso

porque na realização, principalmente das canções anteriores a Banzo e Funeral d’um Rei

Nagô, se não se altera a métrica e o pulso, fazendo uso da agógica exigida pelas demandas

expressivas das letras, a canção perde sentido, perde relação com a brasilidade. O afastamento

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da realização para com a escrita cria um percurso que o cantor deve transpor no caminho em

que constrói sua interpretação. A escrita sofre um processo de tradução, que leva em conta,

em grande medida, seu acervo pessoal, sua vivência da cultura popular, da tradição oral. Essa

constatação prática nos remete a Luiz Tatit, em seu O Cancionista, quando afirma a

possibilidade de toda e qualquer canção popular ter sua origem na fala (2002, p.12).

A gravação de Paraguaçu em Caboclo Bom, diferentemente da de Gastão Formenti em

Casa de Caboclo, mostra-se mais próxima da escrita melódica no que se refere à justeza do

ritmo na melodia e ao ajuste da letra à melodia. Isso se vê pelo melhor ajuste à partitura

editada, por exemplo, no trecho abaixo, em que a construção melódica é semelhante numa e

noutra peça.

Caboclo Bom, compasso 1-2. Transcrição baseada na edição da Casa Vieira Machado.

Na gravação de Casa de Caboclo, Gastão Formenti antecipa a nota aguda para a parte

forte do tempo, dando à melodia maior adequação da dificuldade vocal do salto intervalar

com o acento forte do tempo. Veja nas imagens do item 3.1., Casa de Caboclo, compassos 13

e 14, onde se compara gravação e edição. No trecho “quan-do_o di-a”, Formenti altera a

escrita da edição adequando, arrumando, ao seu jeito, a colocação do texto na música. O

resultado, com efeito, soa mais natural do que o que se lê na edição “quan-do o di-a”. A

subida para a nota aguda gera um acento natural sobre a letra a da palavra dia, gerando um

deslocamento da acentuação natural da palavra, que é sobre a sílaba di. No caso de Paraguaçu

em Caboclo Bom, num recorte melódico de construção parecida, “on-de guar-da-va”, o tipo

de mudança, adequação, vista em Formenti soaria melhor.

Semelhante à mostragem feita em Casa de Caboclo, segue a comparação entre edição

e gravação de Caboclo Bom. A edição é da Casa Vieira Machado. A gravação de Paraguaçu40

mostra diferenças em relação à edição principalmente na execução dos trechos melódicos

onde aparecem os caminhos feitos em semitons. Vê-se isso logo nas três primeiras notas.

40 Caboclo bom foi gravada por Paraguassú (ou Paraguaçu) em 1930 na gravadora Columbia. Essa gravação pode ser ouvida acessando-se o sítio virtual do Instituto Moreira Salles (http://ims.uol.com.br/ims/). Da mesma maneira que na canção anterior, a transcrição despreza os compassos extras, mantendo apenas o corpo da canção como visto na edição.

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Em Canção, personagem e narrador são a mesma pessoa. Refere-se ao caboclo, que

canta, toca. Atributos similares aos de Zé Gazela. A diferença está no aspecto de malandro

que se pode sentir nesse personagem. Mais uma vez, o personagem procura se justificar para o

ouvinte informando sobre suas posses, onde e como vive; os poucos objetos que tem, seus

pertences; sua função social, sua lida e sua música. Casa de Caboclo e Canção possuem uma

peculiaridade em sua forma. Na parte inicial, duas primeiras sentenças, é a parte em que o

narrador descreve a personagem e o ambiente em que vive. É a parte explicativa como uma

semelhança distante de recitativo. A construção melódica é iniciada em sua tessitura

mediana.

Caboclo Bom, compasso 1. Transcrição da edição Casa Vieira Machado.

À segunda parte é reservado o momento mais emotivo, em que se fala de coisas que se

passam com o personagem, numa descrição de seus sentimentos ou, então, fala-se de algo que

aconteceu com ele. A construção melódica segue a demanda do texto, iniciando seu percurso

em sua tessitura mais aguda.

Caboclo Bom, compasso 16-18. Transcrição da edição Casa Vieira Machado.

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3.3. BANZO

Banzo, assim como Funeral d’um rei nagô, as duas canções em parceria com Murillo

Araújo, fazem parte de uma linha evolutiva no cancioneiro de Hekel Tavares41. Essa

“evolução” significa um maior grau de formalização na sua composição, aproximando-a ainda

mais ao que se chama usualmente de canção de arte. Nesse processo evolutivo, por assim

dizer, existem elementos que permanecem e outros que se modificam. A temática, por

exemplo, é similar a várias outras, centrada na questão do negro, um tipo brasileiro. Quanto à

escrita, percebe-se que o autor deixa menos espaço para o improviso. Um indício disso é que

passa a escrever os compassos introdutórios, que antes deixava ao acompanhador. Do ponto

de vista da formação das frases, Banzo se diferencia de outras canções por modificar a

quantidade de semi-frases que formam uma frase. Não mais são duas semi-frases, mas agora,

três, e na primeira frase de B (b1) há uma frase com quatro semi-frases (Xangô, meu céu

escureceu). As semi-frases, no entanto, mantém seu âmbito de dois compassos. A parte A se

mantém dentro da tonalidade de fá maior mas a parte de B (a partir do compasso 40) tem

início em um acorde de lá menor, a relativa menor da dominante de fá maior, que é dó maior.

Veja imagem abaixo mostrando a organização das frases.

41 Fernando Bortoli relata que “Hekel considerava Casa de caboclo, Sussuarana, Funeral d’um rei Nagô e Banzo como demonstrativas de sua evolução, sendo Oração do Guerreiro representativa de sua última fase” (op. cit., p. 14).

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A riqueza simbólica na escrita melódica de Banzo aumenta devido ao aspecto

sincrético e descritivo de sua construção. Do ponto de vista intervalar, a escrita melódica não

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se modifica na parte A (compasso 1 a 39), pois mantém prevalência de intervalos pequenos. A

utilização obstinada do intervalo de segunda parece fazer referência à cultura popular. Na

seqüência em que aparecem as usuais semicolcheias (negro quando cava, quando...), estas

carregam consigo a lembrança de fragmentos sonoros como o toque do agogô, batuque de

tambores ou do berimbau. O toque do agogô, por sua vez, se torna explícito quando da

chegada aos compassos 21 e 28 em que o ritmo é citado diretamente por sua célula rítmica

característica. Enfim, esses sentidos se fundem a uma ação obstinada, descritiva do

significado da palavra banzo. No dicionário Houaiss, banzo é o “processo psicológico

causado pela desculturação, que levava os negros africanos escravizados, transportados

para terras distantes, a um estado inicial de forte excitação, seguido de ímpetos de destruição

e depois de uma nostalgia profunda, que induzia à apatia, à inanição e, por vezes, à loucura

ou à morte”.

Na parte B (compasso 40 ao 59), trecho mais emotivo da peça (Xangô, meu céu

escureceu...), ocorre a utilização de um intervalo pouco visto em canções desse compositor. É

a quarta diminuta, intervalo de difícil realização, propositadamente usado para descrever a dor

na palavra morreu. A tensão sonora é incrementada ainda mais ao final do compasso 56,

quando o canto executa a nota fá sustenido, criando uma dissonância aguda com o fá natural

da parte da mão esquerda do piano.

Dentro da peça, a divisão de momentos em excitação e revolta, na parte A, seguido de

nostalgia e inanição, na parte B, casa com a forma bipartida da canção usada pelo compositor

em outras obras. Dessa maneira, a peça mantém elementos estruturais conhecidos. Uma parte

mais próxima de um falar, em que se explicam coisas que se passam com o narrador, no caso

o negro. Outra parte mais emotiva, em que se expõem sentimentos que se passam no seu

interior. Esse contraste, contudo, intensifica-se devido à modificação na escrita musical.

Altera-se o compasso para ternário e o andamento para lento em Xangô, meu céu escureceu (a

partir do compasso 40). Diferentemente da primeira parte, a estrutura intervalar na parte B é

modificada para adaptar-se ao novo ambiente simbólico de tristeza. Aparecem intervalos de

segunda menor ascendente em Xangô (compasso 40-41) e escureceu (compasso 42-43) e

descendente em despachou (compasso 43-44), Xangô (compasso 48-49), se acabou

Agogô ou batuque

Berimbau

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(compasso 50-51) e levou (compasso 52-53). As palavras Xangô e escureceu são devidamente

reforçadas pelo caminho harmônico, passando de um acorde de lá menor, terça de fá maior, e

caindo num acorde dissonante de sol diminuto com sétima menor. Já na palavra despachou, o

autor opta por um salto cromático, saindo do mesmo lá menor, usando um acorde de lá

bemol, sem a terça, com nona maior resolvendo num acorde de sol menor, segundo grau de fá

menor, mas que, na verdade, funciona como dominante da dominante que é dó maior com

sétima menor, acorde que aparece no compasso 46, retornando logo em seguida ao centro

tonal fá no compasso 47.

O registro vocal usado na peça mantém-se ainda dentro de limites de facilidade

técnica; no entanto, o caminho melódico por notas graves como dó,ré e mi, na parte A, torna a

sustentação da projeção sonora difícil para cantores de voz aguda.

Tessitura

A parte do piano se aproxima de uma escrita musical das canções do período

romântico em que instrumento contribui para a formação do discurso poético, diferentemente

da escrita de outras canções desse compositor, em que se percebe uma melodia de

acompanhamento simples. Essa mudança de escrita tem paralelo com a evolução do lied, no

período romântico. Grout, referindo-se à evolução da canção alemã do final do século XVIII

início do século XIX, escreve: “a parte do piano evoluiu de um simples acompanhamento

para a posição de um parceiro da voz, dividindo igualmente a tarefa de sustentação,

ilustração poética, e intensificando o seu significado” (1988, p. 667) (tradução nossa).

Anteriormente percebia-se que o pianista acompanhador tinha que se imbuir do conteúdo

significativo da letra para contar a história junto com o canto, sem que houvesse na escrita do

instrumento um aspecto descritivo mais explícito.

Na letra, a trama se constrói sobre um contraste entre as qualidades do narrador, as

coisas que lhe dão pertencimento e o sofrimento a que é submetido. Dentro desse cenário,

ficam evidentes o caráter de resistência e o apego à religiosidade africana – o clamor a Xangô.

Semelhante ao discurso dos negro-spirituals da América do Norte, o sentimento de morte em

vida leva a esperança do narrador à vida após a morte (se Xangô chegasse... e já me

levasse...). A diferença é que, em Banzo, a divindade é africana e, no spiritual ela é cristã.

Segue abaixo a comparação entre edição e gravação de Banzo42.

42 Esta edição é da editora Mangione S/A e vem sem data de copyright ou de publicação. Como ela tem indicado na capa que foi gravada por Osny Silva, é provável que seja posterior à gravação de Jorge Fernandes. A gravação

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de referência é a de Jorge Fernandes, também feita pela gravadora Odeon, em 1933. Faixa disponível pelo sítio virtual do Instituo Moreira Salles, disponível em: http://ims.uol.com.br/ims/. Acessado em: 27 de abril de 2008.

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Nesta comparação, ocorre o mesmo problema de diferença entre tonalidade da edição

e da gravação ocorrido nos outros casos. Na edição é fá maior e na gravação é fá sustenido

maior. Diferentemente das peças vistas anteriormente, essa não apresenta as mudanças de

notas encontradas em outras edições. A única alteração perceptível é a troca de duas colcheias

por duas semínimas nos compassos 9 e 17. No texto, aparecem as alterações: do muganga em

vez de da muganga (compasso 14). Muganga é um substantivo feminino que significa

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trejeito; no compasso 18, na edição lê-se a palavra pensa, no entanto, na gravação ouve-se

pena; no compasso 28, lê-se negro, mas na gravação ouve-se negra; no compasso 30, lê-se a

palavra beça, mas na gravação ouve-se bença, corruptela de benção – o sentido é de tomar a

benção e não de tomar à beça. Nessa gravação, ocorre uma alteração de andamento clara, mas

que não aparece na edição. Ela ocorre nos compassos 25 e 32, fazendo uma alteração súbita

do andamento para mais lento, para cantar texto negro ponta e samba nua, respectivamente.

No compasso 42, lê-se escureceu, mas na gravação ouve-se a elisão se_escureceu. No

compasso 56, lê-se a nota fá sustenido seguida de lá; na gravação ouvem-se as notas (aqui

transpostas ao tom original para melhor entendimento) fá natural seguida de lá. Esse caso

particular soa como erro de execução de Fernandes, pois a execução da nota fá sustenido

contra o fá natural da mão esquerda do acompanhamento soa fora da harmonia.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Na escrita musical, o hibridismo se dá pela maneira peculiar de ligação entre a

linguagem musical conhecida como erudita e sua realização, sua transformação em fato

sonoro. A escrita musical em Hekel Tavares não estabelece completamente aquilo que se há

de executar. Isso está em desconformidade com o discurso do filho Alberto Hekel, ao reiterar

que o que se deve realizar na interpretação é o que está escrito. È preciso lembrar que Alberto

Tavares também afirmou que, no caso de uma comparação entre edição e gravação, onde

Hekel Tavares está presente, a gravação deve ser entendida como referencial de correção. De

qualquer forma, a tentativa de se mimetizar as interpretações do compositor é improvável.

Ainda há falhas editoriais que permanecem sem solução. O ponto de vista de Laboissièrre

(2007) remete a interpretações musicais sempre diferentes. A própria vivência da cultura

popular exige um compromisso com a oralidade que também está sujeita a transformações no

tempo. As canções de Hekel Tavares recorrem à nossa vivência da cultura popular brasileira;

cultura musical, lingüística, gestual, à maneira como dizemos as coisas. Principalmente a

maneira como dizemos as coisas. O ritmo da melodia é alterado pelo discurso do texto para

adequá-lo ao nosso modo de dizer. A adequação texto/ritmo é um trabalho delicado, que

demanda tempo de amadurecimento dos intérpretes. Esses detalhes, em conseqüência do

veículo lingüístico (literário) desse trabalho, levam a dificuldades de tradução de um

fenômeno meramente musical a outro escrito (textual). A síntese, no entanto, que parece mais

próxima a essa realidade é a de que o que manda na realização é o modo de dizer as coisas e

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todo campo comunicativo que isso implica – vocal, técnico, estético, gestual, frasal. Não se

propõe com isso o desprezo ao processo de estudo que passa pela escrita musical, muito pelo

contrário. Para se atingir uma interpretação, é preciso enveredar pelo caminho do estudo

meticuloso da escrita, procurando solucionar da melhor maneira possível suas falhas, em

direção ao ápice da interpretação, que é o refinamento do discurso que se irá passar. Não se

pode chegar a esse estágio sem que se tenha passado pela introjeção da escrita, o apuramento

da técnica da voz, da estética sonora, o apuramento do jogo musical entre cantor e pianista. O

pianista acompanhador, vale ressaltar, deve da mesma forma ouvir gravações de Hekel

Tavares ao piano para observar sua qualidade de toque, seu improviso, sua sensibilidade em

somar ao piano o que se passa na linha melódica feita pelo cantor.

Diferentemente de Villa-Lobos, citado por vezes como tendo expressado uma essência

brasileira em sua música, criando música de concerto com aspecto brasileiro, Hekel Tavares

compôs, a princípio, como se fosse um cantador popular. Compunha sem empregar em sua

música o caráter de erudição, palavra aqui usada com significado de pedância, artificialidade.

Sua música soa acessível, pertence-nos culturalmente, ponto de vista corroborado por Astréia

Soares Batista, que relaciona a presença da canção à identidade coletiva (op. cit., p. 11).

Em uma visão geral das canções, o senso de pertencimento perfaz a totalidade.

Performer ou ouvinte se reconhecem em um sentido cultural; reforça-se neles o sentimento de

ligação com a obra executada devido ao seu conteúdo simbólico. A canção de Hekel Tavares

fala sobre o Brasil, gerando identificação, revelando um sentido mimético, de ver-se no

espelho. A canção nos faz pertencer.

Alberto Tavares admite que as edições das canções de seu pai contêm erros. Isso é

perceptível quando se compara edição e gravação em que Hekel Tavares está presente

tocando ou regendo. Nesses casos, segundo Alberto Tavares, prevalece a execução da

gravação. No que se refere à interpretação do performer, levando em conta considerações da

teoria dos símbolos, como visto em Deleuze, o modo como o intérprete significa (dá sentido)

às canções é pessoal e não repetível em modos absolutos; haverá uma confluência da

semelhança na diferença. De qualquer forma, como o ponto de vista de Hekel Tavares sobre

suas canções, segundo relato de seu filho, é uma estrutura fechada em que se deve perceber

um sentido, um espírito, é necessário levar em grande consideração os objetos culturais

deixados pelo compositor, suas edições e gravações. O cuidado deve ficar sobre os registros

sonoros das canções que não têm a presença do compositor. Há vários casos em que a

interpretação pode fugir ao ponto de vista previsto por ele. O caso citado por Alberto Tavares,

sobre Inezita Barroso, é um exemplo dessa divergência de pontos de vista. Sendo o ideal deste

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trabalho uma tentativa de ligação com o passado das canções, as referências de Alberto

Tavares são as opções acatadas. Por outro lado, mesmo levando em conta esses pontos de

vista, é arriscada a proposição de novas edições neste trabalho, pois a consulta aos

manuscritos do autor não foi possível pelos motivos já expostos. Sem observar as fontes

primárias das edições, o intérprete, munido dessas informações, deve propor suas próprias

correções, dependendo, para isso, de seu bom senso e conhecimento musical.

Uma das possibilidades advindas da procura da hibridização se vê sobre o aspecto

estrutural, a maneira como a canção se mostra. A canção em Hekel Tavares é primeiramente o

encontro de dois elementos musicais, o piano, seu instrumento por herança familiar, e o canto

composto à moda da cultura popular. O canto em Hekel Tavares, tanto pelos pontos de vista

da crítica observada como pelo aprendizado na lida com o repertório, reforça a idéia de que

seu repertório melódico é de tempero popular. A construção melódica extrapola as

possibilidades de tradução através da escrita musical tradicional. Dessa maneira, a

importância de uma vivência da cultura brasileira pelo intérprete é fundamental. É seu

conteúdo simbólico que poderá completar aquilo que a escrita não comporta. Na preparação

do repertório, o intérprete se envolve num processo de consulta, adaptação, tradução

simbólica. Consulta o seu arcabouço histórico, envolve-se num trabalho de ligação com o

passado, de pertencimento, sinceridade, construção de verdades. Ao final, isso se traduz num

jeito particular de usar as palavras com determinado sotaque, no gestual que usa para

incrementar o discurso, na maneira como canta–conta a história em cada canção.

Nesse processo de negociação, tradução, mistura, na direção de um novo universo

simbólico com o qual se identificaria futuramente o público, a canção de Hekel Tavares

parece ter tido sucesso. São misteriosas, no entanto, as causas da circularidade e da adoção

por parte de vários nichos de apreciação musical que suas canções tiveram e têm até hoje.

Cantores assumidamente populares tomam para si esse repertório por acreditar que pertença

ao seu universo musical. O mesmo ocorre no meio da canção erudita. Por esse ângulo, as

canções desse compositor incorporam características da pós-modernidade, pois trafegam por

meios diferentes, públicos diferentes e são ao mesmo tempo sem rótulo, sem casa fixa.

Ao final deste trabalho, fica latente que a crítica a Hekel Tavares e a sua obra precisa

ser revista e reescrita. É preciso preparar, estudar e organizar sua obra para o público presente

e futuro. Haja vista o conhecimento e herança de Alberto Tavares, a linha de trabalho que se

abre está na direção da feitura de uma biografia detalhada do compositor. O caminho aberto

por um trabalho dessa natureza poderia fomentar um interesse maior sobre seu legado na

direção de estudos musicológicos, tanto na área da música instrumental como do canto.

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REFERÊNCIAS

BIBLIOGRAFIA CITADA

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_______________; MARIANO, Olegário. Benedito Pretinho. Rio de Janeiro: Casa Arthur Napoleão Ltda., 1971. _______________; MARIANO, Olegário. O Boiadêro. Local não informado: Casa Arthur Napoleão de Sampaio Araújo e Comp.: S/D _______________; MARIANO, Olegário. O meu barco é veleiro. Rio de Janeiro: Casa Arthur Napoleão Ltda., 1971. _______________; MARIANO, Olegário. Vadeia cabocolinho. Rio de Janeiro: Casa Arthur Napoleão Ltda., 1971. _______________; MENDES, Paulo. Mamãe-Preta. Local, editora, e data não encontrados. _______________; MOREYRA, Álvaro. A menina quer saber. Rio de Janeiro: Irmãos Vitale Ltda., 1939. _______________; MOREYRA, Álvaro. Bahia. Rio de Janeiro: Editora Arthur Napoleão Ltda., 1971. _______________; MOREYRA, Álvaro. Mamãesinha que estás no céu. Rio de Janeiro: Irmãos Vitale Ltda., 1939. _______________; MOREYRA, Álvaro. O realejo. Rio de Janeiro: Irmãos Vitale Ltda., 1939. _______________; PEDERNEIRAS, Raul. Canção. Rio de Janeiro: Casa Vieira Machado, S/D. _______________; PEIXOTO, Luiz. Azulão. Rio de Janeiro: Irmãos Vitale, 1939. _______________; PEIXOTO, Luiz. Cantiga de Nossa Senhora. Rio de Janeiro: Ernesto Augusto de Mattos: S/D. _______________; PEIXOTO, Luiz. Casa de Caboclo. Rio de Janeiro: Irmãos Vitale, 1940. _______________; PEIXOTO, Luiz. Dedo mindinho. São Paulo: Irmãos Vitale, 1940. _______________; PEIXOTO, Luiz. Era aquilo só. São Paulo: Irmãos Vitale, 1940. _______________; PEIXOTO, Luiz. Estrella pequenina. Local não informado: Casa Vieira Machado, S/D. _______________; PEIXOTO, Luiz. Felicidade. São Paulo: Irmãos Vitale, 1940. _______________; PEIXOTO, Luiz. Festa. São Paulo: E. S. Mangione, 1935. _______________; PEIXOTO, Luiz. Harmonia! Harmonia! Rio de Janeiro: Casa Vieira Machado, S/D. _______________; PEIXOTO, Luiz. Me deu uma vontade de chorá. São Paulo: Irmãos Vitale, 1940. _______________; PEIXOTO, Luiz. Na minha terra tem. Rio de Janeiro: Irmãos Vitale S. A., 1940. _______________; PEIXOTO, Luiz. Navio-Negreiro. Local não informado. Casa Arthur Napoleão de Sampaio Araújo e Comp., S/D. _______________; PEIXOTO, Luiz. No nosso tempo de colégio. São Paulo: Irmãos Vitale, 1940. _______________; PEIXOTO, Luiz. No Pegi de Ochossi. Local não informado. Casa Arthur Napoleão de Sampaio Araújo e Comp., S/D. _______________; PEIXOTO, Luiz. O leilão. Rio de Janeiro: Sampaio Araújo e Cia. Editores-Impressores, 1930. _______________; PEIXOTO, Luiz. P’ra Sinhôsinho drumi. Local não informado. Casa Arthur Napoleão de Sampaio Araújo e Comp., S/D. _______________; PEIXOTO, Luiz. Sussuarana. Rio de Janeiro: Carlos Werhs Cia, S/D. _______________; PEIXOTO, Luiz. Tenho uma raiva de você. São Paulo: Irmãos Vitale, 1940. _______________; VIANA, Sodré. Dança negra. São Paulo: E. S. Mangione, data ilegível.

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GRAVAÇÕES Azulão. Intérprete: Paraguassú. Compositor: Tavares, Hekel. Letrista: Peixoto, Luiz. Gravadora Columbia. Número do Álbum 5141. Data de Gravação 00/1930. Data de Lançamento 00/1930. Lado: lado A. Rotações Disco 78 rpm. Azulão. Intérprete: Sandra Felix, soprano, Scheikka Glases, piano. Compositor: Tavares, Hekel. Letrista: Peixoto, Luiz. Gravadora Paulus. Data da Gravação 1999. Banzo. Intérprete: Fernandes, Jorge. Compositor: Tavares, Hekel. Letrista: Araújo, Murilo. Gravadora Odeon. Número do Álbum 11039. Data de Gravação 00/1933. Data de Lançamento 00/1933. Lado: lado A. Rotações Disco 78 rpm. Caboclo bom. Intérprete: Paraguassú. Compositor: Tavares, Hekel. Letrista: Pederneiras, Raul. Gravadora Columbia. Número do Álbum 5243. Data de Gravação 00/1930. Data de Lançamento 00/1930. Lado: lado A. Rotações Disco 78 rpm. Casa de caboclo. Intérprete: Formenti, Gastão. Compositor: Tavares, Hekel. Letrista: Peixoto, Luiz. Gravadora: Odeon. Número do Álbum 12863. Data de Gravação 00/1928. Data de Lançamento 00/1928. Lado: lado A. Rotações Disco 78 rpm. Comendo bola. Intérprete: Grupo Regional - Redondo, Jaime. Compositor: Tavares, Hekel. Letrista: Peixoto, Luiz. Gravadora Columbia. Número do Álbum 5117. Data de Gravação 1929-1929. Data de Lançamento 1929-1929. Lado: lado B. Rotações Disco 78 rpm. Data de Lançamento 00/1929. Lado: lado B. Rotações Disco 78 rpm. Dona dometila. Intérprete: Miranda, Sérgio da Rocha. Compositor: Tavares, Hekel. Letrista: Moreira, Álvaro. Gravadora Odeon. Número do Álbum 10223. Data de Gravação 00/1928. Data de Lançamento 00/1928. Lado: lado B. Rotações Disco 78 rpm. Engenho novo. Intérprete: Oliveira, Januário de. Compositor: Tavares, Hekel. Gravadora Columbia. Número do Álbum 5141. Data de Gravação 00/1930. Data de Lançamento 00/1930. Lado: lado B. Rotações Disco 78 rpm. Era aquilo só. Intérprete: Macedo, Stefana de. Compositor: Tavares, Hekel. Letrista: Peixoto, Luiz. Gravadora Odeon. Número do Álbum 10228. Data de Gravação 00/1928. Data de Lançamento 00/1928. Lado: lado B. Rotações Disco 78 rpm. Estrela pequenina - Me deu uma vontade de chorar. Intérprete: Miranda, Sérgio da Rocha. Compositor: Tavares, Hekel. Letrista: Peixoto, Luiz. Gravadora Odeon. Número do Álbum 10172. Data de Gravação 00/1928. Data de Lançamento 00/1928. Lado: lado B Favela. Intérprete: Roulien, Raul. Compositor(es) Tavares, Hekel. Camargo, Joracy. Gravadora Victor. Número do Álbum 33631. Data de Gravação 00/1933. Data de Lançamento 00/1933. Lado: lado A. Rotações Disco 78 rpm. Felicidade – Papaizinho. Intérprete: Formenti, Gastão. Compositor: Tavares, Hekel. Gravadora Odeon. Número do Álbum 10173. Data de Gravação 00/1928. Data de Lançamento 00/1928. Lado: lado B. Rotações Disco 78 rpm. Funeral d'um rei nagô. Intérprete: Silva, Osni. Compositor: Tavares, Hekel. Letrista: Araújo, Murilo. Acompanhamento Gaó – Orquestra. Gravadora Odeon. Número do Álbum 3423. Lado lado A. Rotações Disco 78 rpm. Gravadora Victor. Número do Álbum 33794. Data de Gravação 00/1934. Data de Lançamento 00/1934. Lado: lado B. Rotações Disco 78 rpm. Funeral d'um rei nagô. Intérprete: Inezita Barroso. Compositor: Tavares, Hekel. Letrista: Araújo, Murilo. Gravadora Copacabana. Número do Álbum Copacabana CLP 3005. Data de Lançamento 1955. Guacyra. Intérprete: Roulien, Raul. Compositor: Tavares, Hekel. Camargo, Joracy. Gravadora Victor. Número do Álbum 33631. Data de Gravação 00/1933. Data de Lançamento 00/1933. Lado: lado B. Rotações Disco 78 rpm.

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Harmonia harmonia!. Intérprete: Grupo Regional - Redondo, Jaime. Compositor: Tavares, Hekel. Letrista: Peixoto, Luiz. Gravadora Columbia. Número do Álbum 5117. Data de Gravação 1929. Data de Lançamento 1929. Lado: lado A. Rotações Disco 78 rpm. Humaitá - bia-tá-tá. Intérprete: Coelho, Elisa - Irmãos Tapajós. Compositor: Tavares, Hekel. Leilão. Intérprete: Fernandes, Jorge. Compositor: Tavares, Hekel. Camargo, Joracy. Acompanhamento Orquestra Odeon de Salão. Gravadora Odeon. Número do Álbum 11032. Data de Gravação 15/04/1933. Data de Lançamento 07/1933. Lado: lado B. Rotações Disco 78 rpm. Meu barco é veleiro – benedito pretinho. Intérprete: Alves, Francisco. Compositor: Tavares, Hekel. Letrista: Mariano, Olegário. Acompanhamento Dois Pianos: Tavares, Hekel e Vogeler, Henrique. Gravadora Odeon. Número do Álbum 10491. Data de Gravação 1929. Data de Lançamento 11/1929. Lado: lado A. Rotações Disco 78 rpm. Na minha terra tem. Intérprete: Oliveira, Januário de. Compositor: Tavares, Hekel. Letrista: Moreira, Álvaro. Gravadora Columbia. Número do Álbum 5142. Data de Gravação 00/1930. Data de Lançamento 00/1930. Lado: lado A. Rotações Disco 78 rpm. Nosso tempo de colégio. Intérprete: Macedo, Stefana de. Compositor: Tavares, Hekel. Letrista: Peixoto, Luiz. Gravadora Odeon. Número do Álbum 10229. Data de Gravação 00/1928. Data de Lançamento 00/1928. Lado: lado A. Rotações Disco 78 rpm. O boiadero. Intérprete: Miranda, Sérgio da Rocha. Compositor: Tavares, Hekel. Letrista: Mariano, Olegário. Gravadora Odeon. Número do Álbum 10206. Data de Gravação 00/1928. Data de Lançamento 00/1928. Lado: lado A. Rotações Disco 78 rpm. O preto velho cambinda. Intérprete: Alves, Francisco. Compositor: Tavares, Hekel. Letrista: Camargo, Joracy. Gravadora Odeon. Número do Álbum 10365. Data de Gravação 00/1929 O que eu queria dizer ao seu ouvido. Intérprete: Fernandes, Jorge. Compositor: Tavares, Hekel. Letrista: Mendonça Júnior. Acompanhamento Orquestra Odeon de Salão. Gravadora Odeon. Número do Álbum 11032. Data de Gravação 15/04/1933. Data de Lançamento 07/1933. Lado: lado A. Rotações Disco 78 rpm. Rotações Disco 78 rpm. Sapo cururu. Intérprete: Miranda, Sérgio da Rocha. Compositor: Tavares, Hekel. Letrista: Mariano, Olegário. Gravadora Odeon. Número do Álbum 10206. Data de Gravação 00/1928. Data de Lançamento 00/1928. Lado: lado A. Rotações Disco 78 rpm. Saudade. Intérprete: Macedo, Stefana de. Compositor: Tavares, Hekel. Letrista: Peixoto, Luiz. Gravadora Odeon. Número do Álbum 10229. Data de Gravação 00/1928. Data de Lançamento 00/1928. Lado: lado B. Rotações Disco 78 rpm. Sussuarana. Intérprete: Formenti, Gastão. Compositor: Tavares, Hekel. Letrista: Peixoto, Luiz. Gravadora Odeon. Número do Álbum 10171. Data de Gravação 00/1928. Data de Lançamento 00/1928. Lado: lado A. Rotações Disco 78 rpm. Tenho uma raiva de vancê. Intérprete: Macedo, Stefana de. Compositor: Tavares, Hekel. Letrista: Peixoto, Luiz. Gravadora Odeon. Número do Álbum 10204. Data de Gravação 00/1928. Data de Lançamento 00/1928. Lado: lado A. Rotações Disco 78 rpm. Vadeia cabocolinho. Intérprete: Alves, Francisco. Compositor: Tavares, Hekel. Letrista: Mariano, Olegário. Acompanhamento Dois Pianos: Tavares, Hekel e Vogeler, Henrique. Gravadora Odeon. Número do Álbum 10491. Data de Gravação 1929. Data de Lançamento 11/1929. Lado: lado B. Rotações Disco 78 rpm.