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SciELO Books / SciELO Livros / SciELO Libros MACHADO, M.S., and MACHADO, T.A. Considerações sobre as Categorias analíticas do espaço geográfico em Milton Santos. In: MARAFON, G.J., ARIAS, L.Q., and SÁNCHEZ, M.A., orgs. Apresentação. In: Estudos territoriais no Brasil e na Costa Rica (online). Rio de Janeiro: EDUERJ, 2018, pp. 23-39. ISBN 978-85-7511-499-5. Available from: doi: 10.7476/9788575114995.0002. Also available in ePUB from: http://books.scielo.org/id/j3jbg/epub/marafon-9788575114995.epub. All the contents of this work, except where otherwise noted, is licensed under a Creative Commons Attribution 4.0 International license. Todo o conteúdo deste trabalho, exceto quando houver ressalva, é publicado sob a licença Creative Commons Atribição 4.0. Todo el contenido de esta obra, excepto donde se indique lo contrario, está bajo licencia de la licencia Creative Commons Reconocimento 4.0. Parte I – Estudos Territoriais no Brasil 1. Considerações sobre as Categorias analíticas do espaço geográfico em Milton Santos Mônica Sampaio Machado Thiago Adriano Machado

Parte I – Estudos Territoriais no Brasilbooks.scielo.org/id/j3jbg/pdf/marafon-9788575114995-02.pdf · plo de Por uma Geografia nova, publicada em 1978, ... entre uma Geografia geral

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Todo o conteúdo deste trabalho, exceto quando houver ressalva, é publicado sob a licença Creative Commons Atribição 4.0.

Todo el contenido de esta obra, excepto donde se indique lo contrario, está bajo licencia de la licencia Creative Commons Reconocimento 4.0.

Parte I – Estudos Territoriais no Brasil 1. Considerações sobre as Categorias analíticas do espaço geográfico em Milton Santos

Mônica Sampaio Machado Thiago Adriano Machado

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Parte I – Estudos territoriais no Brasil

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1. Considerações sobre as categorias analíticas do espaço geográfico em Milton Santos

Mônica Sampaio Machado

Thiago Adriano Machado

Introdução

A trajetória intelectual de Milton Santos pode ser compreendida a partir de dois projetos por ele desenvolvidos: o primeiro, de produzir uma teoria geo-gráfica, como uma teoria social crítica do espaço; e o segundo, de realizar uma in-terpretação geográfica do Brasil.1 Este capítulo tem por objetivo discutir alguns aspectos da teoria geográfica desse pesquisador, destacando as categorias analí-ticas do espaço por ele desenvolvidas. Uma breve periodização de sua trajetória distingue três principais momentos, por meio dos quais efetiva a sua produção teórica a partir de aproximações sucessivas da relação entre o espaço geográfico e o fenômeno técnico. Isso ocorre, porém, com uma renovada crítica da tradi-ção geográfica, inclusive daquela em que o autor situa seus primeiros trabalhos.

Podemos, desta feita, identificar uma primeira fase entre 1948 e 1960, caracterizada pelos seus estudos sobre a Bahia, nos quais predominava a geogra-fia regional de matriz lablachiana, sucedida pelo período de exílio entre 1965 e 1987, em que operacionaliza os conceitos marxistas para o estudo da urbaniza-ção dos países subdesenvolvidos e, por fim, uma última fase entre 1988 e 2001,

1 Essa ambição que tem sido sinalizada em várias estudos realizados sobre a obra de Milton Santos, como os de Thiago Machado (2017) e Flávia Grimm (2011).

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em que sua teoria geográfica atinge a maturidade em profundo diálogo com a temática da globalização.2

Algumas obras se destacam na elaboração dessa teoria geográfica, a exem-plo de Por uma Geografia nova, publicada em 1978, que marcou o movimento de renovação crítica da Geografia brasileira, e A natureza do espaço, de 1996, considerada a mais importante da sua produção geográfica por oferecer uma complexa teorização do espaço característica de trabalhos de maturidade. A compreensão das categorias analíticas do espaço passa, contudo, pela exploração de outros trabalhos do autor, nos quais é possível assimilar o desenvolvimento paulatino de sua teorização. Além das duas obras já mencionadas, destacamos também O trabalho do geógrafo no terceiro mundo, primeiramente publicada em francês, em 1971, Espaço e método, de 1985, Metamorfoses do espaço habitado, de 1988, e Técnica, espaço, tempo, de 1994. Todavia, é em A natureza do espaço (1996) que encontramos de maneira explícita a estruturação do seu sistema de conceitos a partir da distinção entre categorias analíticas internas e categorias analíticas externas ao espaço.

Para tanto, Milton Santos (1996) propõe pensar a Geografia, inserida no quadro mais amplo das ciências da sociedade, a partir da consolidação e delimi-tação de seu objeto de estudo − o espaço geográfico −, elevando-o a ente ana-lítico independente dentro do conjunto das ciências sociais e de extremo valor para a análise e compreensão da sociedade. E, para que o espaço geográfico pos-sa aspirar a ser esse ente analítico independente e indispensável, é fundamental que “os conceitos e instrumentos de análise apareçam dotados de condições de coerência e operacionalidade” (Santos, 1996, p. 18). Essa tarefa, apesar de estar explícita em A natureza do espaço, foi sendo elaborada ao longo de déca-das de trabalho do autor, que remontam aos finais dos anos de 1940, a partir do exercício dialético e cumulativo característico da sua forma de produção de conhecimento. Sempre pautado na crítica de estudos anteriores que realizava, Milton Santos incorporava novas leituras e observações do mundo empírico que permitiam dar um passo à frente ao tema investigado e, aos poucos, cons-truíam sua teoria geográfica.

A coerência e a operacionalidade dos conceitos e instrumentos de análise do espaço geográfico estão fundamentadas na técnica, ou melhor, no fenômeno

2 A classificação das produções teóricas de Milton Santos em três fases teve como referência o estudo de Mônica Machado (2014).

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técnico, sustentando o que o autor defende para o campo de estudo da ciência geográfica, não como uma filosofia da natureza, nos moldes amparados na Ge-ografia como ciência moderna do século XIX, mas uma Geografia como uma filosofia das técnicas, na medida em que as técnicas medeiam a relação huma-na com o mundo (Santos, 1988b). As técnicas devem, portanto, ser vistas sob um tríplice aspecto: como reveladora da produção histórica da realidade; como inspiradora de um método unitário; e como garantia da conquista do futuro, desde que pensada como fenômeno técnico (Santos, 1996, p. 20).

Por seu turno, a operacionalidade é efetivada na capacidade de a Geogra-fia corresponder às mudanças da sociedade, atualizando a teoria conforme a re-alidade, ao que Milton afirma toda teoria ser revolucionária, pois se encaminha para superar as velhas ideias e buscar investigar o terreno desconhecido do real. Em termos operacionais, podemos citar os trabalhos em que o autor dedicou-se ao Brasil, especialmente A urbanização brasileira, de 1993, e O Brasil: território e sociedade no início do século XXI, de 2001. Porém, as categorias analíticas por ele empregadas também ostentam o potencial explicativo do mundo contem-porâneo a partir do fenômeno da globalização. Nesse sentido, o fundamento técnico do meio geográfico é uma importante contribuição ao produzir uma periodização do território, que encontra o seu ponto alto no meio técnico-cien-tífico-informacional, a partir do qual os atributos técnicos do espaço respon-dem às demandas organizacionais que se articulam em redes globais.

A partir daí podemos identificar as categorias analíticas internas ao es-paço. Algumas remontam aos conceitos tradicionais da Geografia, outras são novas expressões conceituais resultantes da dinâmica do espaço geográfico contemporâneo que a ciência geográfica deveria incorporar nos seus estu-dos, como “paisagem, configuração territorial, divisão territorial do trabalho, espaço produzido ou produtivo, rugosidades e formas-conteúdo” (Santos, 1996, p. 19). A essas categorias analíticas, aqui apresentadas pelo autor, adi-cionaríamos mais algumas, como tecnosfera, psicosfera, lugar, região, redes, es-calas, meio técnico-científico-informacional e território usado. Todas têm em Milton Santos uma base fundamental − já assinalada anteriormente −, a base técnica do meio geográfico. E é a partir da base técnica que essas categorias de análise devem ser atualizadas e interpretadas.

Assim, para o desenvolvimento e o estudo das categorias internas ao es-paço geográfico, o referido autor apresenta a indispensabilidade da incorpo-ração da técnica ao território como resultado de todo um processo histórico e

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cumulativo da relação entre sociedade e meio, que, por sua vez, promove novas organizações espaciais, impactos e normas jurídicas. Desse modo, ele produz um sistema particular de conceitos que fundamenta a sua teoria no reconheci-mento do espaço como um híbrido, um conceito relacional que opera na con-junção do material e do imaterial.

Com o intuito de debater o problema e a formação de suas categorias analíticas, iniciamos com a discussão sobre a Geografia como viúva do espa-ço, ideia apresentada em Por uma Geografia nova (1978), provocação do autor para ressaltar a crise da Geografia na década de 1970 e a necessidade de pensá--la a partir do seu objeto, o espaço geográfico, como um produto social. Em seguida, buscando discutir e contextualizar essas categorias analíticas na teoria geográfica do autor, será assinalada a centralidade da técnica e sua incorporação ao território nos estudos por ele realizados. Por fim, será apresentada separa-damente a concepção de meio técnico-científico-informacional proposta por Milton Santos e por ele utilizada para a análise do caso brasileiro, por nós con-siderada uma das construções conceituais mais importantes e essenciais de sua teoria geográfica.

Geografia, viúva do espaço

O desenvolvimento da Geografia moderna até meados do século XX pôs como principal dilema ao campo disciplinar a definição de si mesmo, tema re-corrente em face da busca pelo estatuto de cientificidade e das inúmeras ques-tões metodológicas que envolviam a associação dos aspectos físicos e humanos do meio geográfico em um mesmo campo disciplinar. Nesse sentido, o embate entre uma Geografia geral (nomotética) e uma Geografia regional (idiográfica) como eixo definidor do saber geográfico dividiu grande parte da comunidade científica dessa área de conhecimento.3

3 Esta discussão foi celebrada no embate desenvolvido entre Richard Hartshorne e Fred Schae-fer. Hartshorne publicou, em 1939, The Nature of Geography, argumentando que a Geografia deveria ser definida a partir do seu método e este seria o método regional. Em 1953, foi pu-blicado o artigo de Schaefer, “Excepcionalism in Geography: a methodological examination”, no qual criticava profundamente a centralidade do conceito de região no pensamento geo-gráfico por meio do que ele chamou de “excepcionalismo”, argumentando que isso era respon-sável pelo frágil estatuto de cientificidade da Geografia. A crítica formulada por Schaefer foi

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Milton Santos, em O trabalho do geógrafo no Terceiro Mundo (1978), recupera essa discussão e questiona o conceito de região, definido tradicional-mente pela relação entre os grupos humanos e seus respectivos meios geográfi-cos, identificando as singularidades das áreas. Reconhecendo a intervenção de processos externos à região, Santos recorre ao conceito de “paisagens deriva-das”, de Maxmillien Sorre, o que lhe permitia lidar com as paisagens de países subdesenvolvidos, que resultam de necessidades econômicas e de ações oriun-das dos países desenvolvidos. Dessa forma, não é mais possível tratar da região por meio da ideia até então consolidada de personalidade regional e autônoma, bem característica da Geografia lablachiana.

O autor ratifica também sua releitura crítica do pensamento geográfico com a publicação de Por uma Geografia nova (1978), obra na qual parte de for-mulações marxistas para problematizar os aspectos centrais tanto da Geografia regional tradicional quanto da New Geography, resultado da influência neopo-sitivista dos anos de 1960. Faz isso por meio da reformulação do problema ge-ográfico central, deslocando o questionamento da definição da Geografia para o da definição do seu objeto. Ele argumenta, desse modo, que “destemporali-zando o espaço e desumanizando-o, a Geografia acabou dando as costas ao seu objeto e terminou sendo uma viúva do espaço” (Santos, 1986, p. 92). O apego às velhas ideias, a estrutura de cátedras e a reprodução de modelos simbólicos que perpetuam os sistemas de prestígio não permitiam, segundo Milton Santos, à Geografia avançar na elaboração de novos problemas e na preocupação em tratar apropriadamente o seu objeto.

A crescente divisão do trabalho científico havia introduzido o espaço na preocupação de outros campos do saber (economia, ciência política, urbanis-mo etc.), ao passo que os geógrafos dividiam-se em duas amplas tendências: a de garantir um lugar para a Geografia na classificação das ciências e, assim, elaborar leis e princípios gerais; e a perspectiva de transformaá-la em conheci-mento operacional ao planejamento sem, contudo, refletir sobre as demandas efetivas e potenciais (Santos, 1986). Como resultado de tais tendências, respec-tivamente, especulativa e pragmática, produziu-se uma negligência à reflexão e à pesquisa científica que lidasse com o seu objeto de estudo, o espaço geográ-fico. Milton Santos propõe como solução da crise da Geografia, expressa nessa

central para a introdução do neopositivismo no pensamento geográfico, de forma a fornecer as bases para a consolidação da chamada “New Geography”.

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viuvez do espaço, uma formulação teórica que defina o espaço geográfico como objeto central, reconhecido como fato social, fator e instância social. Assimila, assim, as noções da dialética marxista que possibilitaram o espaço geográfico a dialogar estreitamente com o conceito de formação econômica e social, cuja versão geográfica proposta por Santos, a “formação socioespacial”, introduz e fortalece a concepção desse espaço no quadro das tradicionais instâncias sociais do marxismo (base econômica, superestrutura ideológica e jurídico-política) (Santos, 1977).

Articulado à perspectiva marxista, Milton Santos recorre à noção sar-triana de prático-inerte para lidar com a dimensão temporal, efetivada naquilo que ele chama de “rugosidades”, ou seja, a permanência das formas espaciais procedentes de modos de produção anteriores e que efetivam novos usos e fun-ções que lhe permitem acompanhar as mudanças na sociedade. É dessa noção espaço-temporal das “rugosidades” que deriva a célebre assertiva do autor, de que “o espaço é uma acumulação desigual de tempos” (Santos, 1986, p. 209). Cada forma ou objeto espacial é a impressão de forças de produção e relações sociais de produção datadas, de sistemas técnicos impressos no meio geográfico e que convivem à revelia das suas diferenças. Contudo, o espaço não é feito apenas de formas, ou seja, o espaço não se reduz à materialidade, mas também se refere àquilo que a anima, as ações humanas que fornecem o conteúdo do espaço expresso pelas funções que cada forma desempenha.

O espaço é, portanto, uma “forma-conteúdo”, uma conjunção de mate-rialidade e imaterialidade que corrobora a definição proposta por Milton San-tos do espaço como “um conjunto indissociável, solidário e também contradi-tório de sistemas de objetos e sistemas de ações, não considerados isoladamente, mas como o quadro único no qual a história se dá” (Santos, 1996, p. 51). Para tal formulação, o autor ressalta que é essencial a noção de totalidade, a unidade de movimento que integra sociedade e espaço, de maneira que, se a sociedade é o Ser, o espaço é a existência, pois as ações humanas apenas existem, concreti-zam-se, no espaço (Santos, 1996). Porém, objetos e ações são a forma acabada dessa teorização de Milton Santos.

Anteriormente, outras categorias analíticas já haviam sido utilizadas pelo autor em sua teorização sobre o espaço geográfico. Em Espaço & método (1985), Santos recorreu à forma, função, estrutura e processo para lidar com a realidade espacial, de modo que o processo remetesse ao movimento temporal, a forma ao aspecto estritamente material do espaço, ao tempo que a função indicasse os

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usos e práticas sociais nas formas espaciais. Por seu turno, a estrutura refletia a totalidade social da qual o espaço é uma instância entre outras, realizando a tarefa de ser uma condição condicionada. Já em Metamorfose do espaço habitado (1988a), os fixos e os fluxos são apresentados na mesma lógica dos objetos e ações, reproduzindo a ideia de espaço como forma-conteúdo.

Outros pares dialéticos reproduzem a mesma noção, a exemplo dos cir-cuitos espaciais de produção e círculos de cooperação, tecnosfera e psicosfera, configuração territorial e relações sociais. A categoria analítica paisagem é so-mada a tal discussão ao se referir às formas espaciais, porém vinculada à ordem do sensível, à percepção, o que para Milton Santos a distingue do espaço, pois se a paisagem é a materialização de um instante da sociedade, o espaço contém o movimento, é a soma da paisagem com a sociedade (Santos, 1988a, p. 72). Con-tudo, é importante conhecer como essas categorias se articulam em seu projeto de produzir uma teoria geográfica como uma teoria social crítica do espaço, a partir da técnica.

As categorias analíticas do espaço geográfico em Milton Santos

Buscando elaborar uma teoria social crítica do espaço, Milton Santos procura construir um arsenal particular de conceitos e categorias importantes capazes de viabilizar uma análise mais reveladora do espaço geográfico contem-porâneo. Porém, ainda que muitos conceitos sejam obra da sua criatividade intelectual, partem de uma releitura crítica da tradição geográfica na qual ele próprio foi formado. Tal tradição desenvolveu-se em torno de duas grandes problemáticas definidoras da disciplina: o estudo da diferenciação do espaço na superfície terrestre e o das relações homem-meio.4 Cada qual foi, ao seu modo, operacionalizada por correntes teórico-metodológicas distintas, e é possível afirmar que não houve proposição teórica geral na Geografia que não buscasse integrá-las. Da mesma maneira, o autor pretendeu conduzir sua teorização geo-gráfica integralizada numa relação homem-meio, compreendida como produção do espaço, e numa diferenciação espacial convertida em organização do espaço, cada qual remetendo, respectivamente, à centralidade da técnica e da divisão territorial do trabalho.

4 Horácio Capel (2012, p. 241).

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30 Estudos territoriais no Brasil e na Costa Rica

A partir disso, é possível identificar as categorias internas ao espaço que, combinadas, permitem a análise geográfica apropriada, conforme a proposta teórica do autor. Dessa forma, a perspectiva da produção do espaço indica a im-portância de compreendê-lo como um híbrido, uma “forma-conteúdo”, resul-tado da transformação da natureza por meio do trabalho, porém, o processo do trabalho é então definido a partir de como se produz, e não o que se produz, daí a centralidade do fenômeno técnico para a análise espacial.5 Isso se converte na produção dos objetos técnicos, dos fixos e das formas, as quais, arranjadas espacialmente, constituem aquilo a que Milton Santos chama, se pensado estri-tamente em sua dimensão material, de configuração territorial. Por outro lado, a produção dos objetos é o resultado das ações, dos fluxos e das normas provindas de distintos sujeitos espaciais, homens e mulheres, empresas, governos, organi-zações locais, nacionais e internacionais.

Todavia, o espaço produzido está em permanente movimento, é uma to-talidade em processo de totalização, cujos momentos parcelares dão a indica-ção da dinâmica da realidade, mas não a apreendem em seu todo. Para tanto, Milton recorre à dimensão temporal, pois sua conceituação do espaço busca conjugar a ação, o espaço e o tempo numa perspectiva relacional. Por isso, uma das suas principais críticas à Geografia tradicional é que esta teria se dedicado excessivamente às formas e pouco à formação (Santos, 1979). Daí, sua preocu-pação em pensar a formação socioespacial como a sucessão histórica de meios geográficos (natural, técnico e técnico-científico-informacional), uma geogra-fia histórica da produção do espaço, em que cada período é caracterizado pela mediação técnica da relação entre a sociedade e o meio (Santos, 1977).

O espaço, portanto, permite empiricizar o tempo, torná-lo concre-to, de modo que, se voltarmos a um momento específico da materialidade espacial, podemos supor e investigar, tal qual um trabalho de arqueólogo, a dinâmica social correspondente às distintas temporalidades impressas no es-paço. A partir de então, emergem algumas categorias analíticas, tais como ru-gosidades, paisagem e configuração territorial. O conjunto de objetos técnicos e elementos naturais compõe a configuração territorial, áreas de preservação

5 Milton Santos ratifica aqui a afirmação de Marx de que “o que distingue as épocas econômi-cas umas das outras, não é o que se faz, mas como se faz, com que instrumentos de trabalho” (Santos, 1996, p. 46). É a partir dessa noção que, para Milton, o espaço torna o tempo empíri-co, permitindo a datação dos objetos geográficos pela técnica contemporânea à sua produção.

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ambiental, usinas hidrelétricas, estradas, plantações, florestas e pântanos. Esse conjunto é também o que Milton Santos denomina de sistemas de engenharia, que exprimem, em cada período da história humana, a presença da técnica no espaço. À medida que o meio é ampliado em seus componentes técnicos e infor-macionais, ampliam-se o domínio e a esfera da técnica, a tecnosfera, o ambiente construído, composto de crescentes densidades técnicas e informacionais, que, por sua vez, apresentam uma nova atmosfera vinculada diretamente às cren-ças, desejos, hábitos, etc., criando novo espírito de uma época, uma psicoesfera. Já a paisagem é, para Milton Santos, um recorte da configuração territorial, é um momento do espaço apreendido sensivelmente, viabilizado pela percepção (Santos, 1988).

A percepção da paisagem, todavia, não é ainda o conhecimento, mas um processo de apreensão seletivo que permite a existência de diversas visões e pon-tos de vista sobre a mesma realidade geográfica. Paisagens naturais e artificiais são, nessa perspectiva, o retrato de uma parcela da configuração territorial, mas não podem se confundir com o espaço, como apontado anteriormente, pois, a este, somam-se os movimentos, os fluxos e as ações − a dinâmica social da qual a paisagem expressa a aparência sem, contudo, chegar propriamente à essência. Nesse sentido, Milton Santos contraria a tradição geográfica que durante déca-das centrou-se na paisagem e na região, transformando ambos os conceitos em quase sinônimos, de modo a inserir a morfologia da paisagem de Carl Sauer na crítica à predominante preocupação geográfica com as formas.

Porém, as ações que produzem e animam os objetos também compõem o espaço. São ações teleológicas e racionais, mas também paixões e ideologias que constituem a psicosfera, mencionada anteriormente (Santos, 1994). Essas ações expressam-se em distintas escalas, podendo partir de contextos locais ou regionais, como também agir segundo normas internacionais que submetem os lugares a um acontecer hierárquico, impondo novos fluxos que alteram o funcionamento dos fixos e mudam sua ordem de valor. Tais ações produtoras de espaço, ao modificarem a natureza, também a diversificam, produzindo, a partir daí, uma diferenciação gerada pela divisão do trabalho, que resulta em uma nova organização desse espaço. Essa divisão converte-se crescentemente em divisão territorial, pondo em evidência os recortes espaciais que ditam ca-tegorias analíticas tradicionais da Geografia, a exemplo do lugar, da região, das redes e das escalas.

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32 Estudos territoriais no Brasil e na Costa Rica

O espaço é, portanto, organizado econômica e politicamente, integran-do no território os distintos momentos da produção, da circulação, da distri-buição e do consumo.6 A rede urbana e os circuitos produtivos são categorias analíticas aí empregadas, mas que têm sofrido importantes mudanças nas suas capacidades explicativas, especialmente no período da globalização. O modelo tradicional inspirado na teoria dos lugares centrais, no qual a rede urbana é compreendida numa rígida hierarquia vertical, é contestado pelos vínculos glo-bais, que atingem os lugares sem a necessidade de passarem por entes territoriais intermediários. Da mesma forma, a noção de circuitos regionais de produção, característicos do regime de acumulação fordista e da ideia de região homogê-nea, é reformulada por Milton Santos como circuitos espaciais de produção, os quais podem integrar toda sorte de atores em níveis escalares diversos (Santos, 1988a, p. 48).

Uma nova economia política do espaço se instala, agravando a seletivida-de espacial que estrutura a organização do espaço em rede e põe em questão a predominância da contiguidade espacial como definidora dos padrões geográfi-cos. As redes modificam a relação entre os fixos e fluxos ao alterarem o conteú-do técnico e organizacional dos objetos no espaço, efetivando a prevalência das verticalidades, em detrimento das horizontalidades (Santos, 1994).

Dessa forma, os lugares ficam crescentemente submetidos a técnicas de produção e a normas privadas e públicas remotas, que transcendem o território político local e nacional. O valor dos lugares muda, pois muda a divisão territo-rial do trabalho, cada vez mais internacionalizada e submetida às variações da economia política internacional.

Essas transformações promovem também efeitos sobre o cotidiano, con-frontando o lugar e o mundo, a ordem local e a ordem universal, a contiguidade e as redes. É no lugar que o espaço realiza a existência, em que todos os atores se

6 Uma importante contribuição de Milton Santos ao estudo da organização do espaço foi a teoria dos dois circuitos da economia urbana, na qual pretendia compreender a especifici-dade do fenômeno urbano nos países do Terceiro Mundo por meio da bipolaridade de suas economias urbanas, cindidas entre um circuito superior e um circuito inferior. Apresentada no seu livro “O Espaço Dividido”, cuja primeira edição data de 1975 em francês, essa teoria alçou Milton Santos ao debate internacional sobre as políticas de desenvolvimento e o efeito das modernizações. Contudo, esse desenvolvimento teórico não está presente nas suas últi-mas obras, a exemplo de “A Natureza do Espaço”, 1996.

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33Considerações sobre as categorias analíticas do espaço geográfico em Milton Santos

concretizam, existem, de modo cooperativo ou conflitivo, e a essa realidade que Milton chama de espaço banal, o espaço concreto da existência dos homens, das firmas, dos governos (Silveira, 2011).

A localidade se opõe à globalidade, mas também se confunde com ela.

O mundo, todavia, é nosso estranho. Entretanto se, pela sua essência,

ele pode esconder-se, não pode fazê-lo pela sua existência, que se dá nos

lugares. No lugar, nosso Próximo, se superpõem, dialeticamente, o eixo das

sucessões, que transmite os tempos externos das escalas superiores, e o eixo

dos tempos internos, que é o eixo das coexistências, onde tudo se funde,

enlaçando, definitivamente, as noções e as realidades de espaço e de tempo

(Santos, 1996, p. 258).

O meio técnico-científico-informacional e o território brasileiro

As técnicas têm sido, com frequência, consideradas em artigos e livros de

geógrafos, sobretudo em estudos empíricos de casos. Mas é raro que um es-

forço de generalização participe do processo de produção de uma teoria e um

método geográficos (Santos, 1996, p. 27)

O meio geográfico no sistema teórico de Milton Santos está presente em toda a sua trajetória intelectual, entretanto, associado à técnica que na socie-dade contemporânea constitui uma verdadeira prótese ao território, é o eixo interpretativo central de sua teoria. Nesse sentido, é importante a integração da técnica ao território, algo que, segundo o autor, não foi, todavia, explorada, apesar de a “principal forma de relação entre o homem e a natureza, ou melhor, entre o homem e o meio, ser dada pela técnica. As técnicas são um conjunto de meios instrumentais e sociais, com os quais o homem realiza sua vida, produz e, ao mesmo tempo, cria espaço” (Santos, 1996, p. 25).

Integra-se ao território não somente a técnica, que permite dar coerência ao conjunto de categorias, mas também o tempo, pois é a partir dos sucessivos sistemas técnicos que Milton Santos fundamenta a necessidade metodológica de periodizar. Essa periodização se converte numa sucessão de meios geográfi-cos distintos, que, em um período de longa duração, marca estágios diferencia-dos da relação da sociedade com o meio. Entretanto, na atualidade, observa-se a associação desses distintos meios técnicos que identificam capacidades e desen-

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34 Estudos territoriais no Brasil e na Costa Rica

volvimentos tecnológicos diferenciados, trazendo dinâmicas também diferen-ciadas aos territórios e interferindo não apenas no processo produtivo e na acu-mulação capitalista, mas também nas paisagens, nas configurações territoriais, nos lugares e nas regiões. A partir dessa base teórica, Milton Santos analisa o território brasileiro e sua dinâmica no livro em coautoria com Maria Laura Sil-veira, O Brasil: território e sociedade no início do século XXI, publicado em 2001.

Para melhor entendermos a concepção de meio técnico-científico-infor-macional elaborada por Milton Santos e sua aplicação à análise do território brasileiro, vale recuperar o desenvolvimento das suas proposições apresenta-das em A natureza do espaço (1996). Como essa concepção, segundo o autor, sustenta-se nas relações históricas entre sociedade e natureza, ela materializa a substituição do meio natural por um meio cada vez mais artificializado. Assim, ele traça a história do meio geográfico em três etapas.

Na primeira etapa, caracterizada como meio natural ou pré-técnico, o homem escolhia as partes fundamentais do espaço como um exercício da vida e utilizava a natureza sem grandes transformações. As técnicas e o trabalho se casavam com as dádivas da natureza, como a domesticação de plantas e ani-mais. Estas apontavam certo controle do homem sobre a natureza, entretanto predominava uma verdadeira relação simbiótica entre homem e natureza, e o equilíbrio natural era fracamente modificado pela intervenção do homem, sen-do logo retomado. O alcance dessas modificações e suas motivações se davam apenas na escala local.

A segunda fase, identificada como meio técnico, reserva a fase posterior à invenção e aos usos das máquinas, que, unidas ao solo, dão uma dimensão nova ao espaço geográfico. Este passa a ser crescentemente formado pelo na-tural e pelo artificial. As áreas e países passaram a se distinguir em virtude da incidência desses objetos artificiais, com destaque para os países do Ocidente e do Japão. Há uma mecanização do espaço em termos planetários, e a lógica instrumental passa a desafiar a lógica da natureza, estabelecendo sua superio-ridade. Os instrumentos técnicos já não são como no período anterior, uma extensão ou um prolongamento do corpo humano, mas prolongamentos do território − verdadeiras próteses. Dominam a razão do comércio e as questões ambientais. A poluição ambiental passa a tomar expressão, principalmente nas grandes cidades europeias do século XIX. Entretanto, o fenômeno da artificia-lização do meio ainda era limitado às regiões onde a técnica se instalava. Era um fenômeno circunscrito geograficamente.

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35Considerações sobre as categorias analíticas do espaço geográfico em Milton Santos

Já a terceira etapa, o meio técnico-científico-informacional, caracteriza o período atual, posterior à Segunda Guerra, fortalecendo-se principalmente a partir de 1970. Há grande interação entre ciência, técnica e informação, sob a égide do mercado, agora um mercado global. Ciência, tecnologia e informação são vitais para o progresso contemporâneo, criando processos vitais animais e vegetais. Anteriormente, apenas as cidades concentravam objetos artificiais, técnicos, hoje, o mundo rural está cada vez mais marcado por plásticos, ferti-lizantes, corantes, computadores etc. A ideia do meio artificial domina a exis-tência contemporânea e apresenta diferenças marcantes em relação às lógicas e às escalas espaciais anteriores: é o domínio da lógica global imposta a todos os territórios. Aumentam os objetos técnicos no território, como o capital fixo (estradas, máquinas, pontes etc.), o capital constante (máquinas, fertilizantes, veículos, sementes) e os fluxos. Rompem-se, assim, os equilíbrios preexisten-tes, uma vez que cresce a necessidade de circulação, distribuição e consumo da produção em grande escala, e acirra-se a especialização das áreas de produção, como, por exemplo, a soja. Cada vez mais, há a necessidade de intercâmbios com outras áreas, o que promove transformações dos territórios, em razão das redes de comunicação a serviço dos atores hegemônicos, transformando o espaço na-cional em um espaço de economia internacional, global. Há um agravamento da crise do Estado, por conta da abertura dos mercados nacionais, promovendo a diminuição da soberania nacional, uma vez que os negócios governam mais do que os governantes.

Assim, o meio técnico-científico-informacional é, para Milton Santos, a condição do espaço geográfico na atualidade. Essa condição demanda um novo sistema de ideias e categorias de análise que, por sua vez, possa estar articulado a uma teoria social crítica do espaço. Na sua última obra (2001), em coautoria com Maria Laura Silveira, o autor procura pensar o Brasil a partir dessas suces-sões de meios técnicos diferenciados e apresenta uma interpretação pioneira ao estudo do espaço geográfico brasileiro, descrevendo-o e explicando-o por meio das relações entre técnica, espaço e tempo. Ele oferece como resultado uma aplicação de sua teoria geral do espaço geográfico, demonstrando e reforçando seu papel ativo na dinâmica social. Por intermédio da Geografia, entendida por Milton Santos como uma contribuição específica para a produção de uma filo-sofia das técnicas, o autor apresenta uma grande contribuição à reconstrução da teoria social crítica e à análise do Brasil.

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36 Estudos territoriais no Brasil e na Costa Rica

Milton Santos oferece uma interpretação do Brasil da globalização, um Brasil em conjunto, como um todo. Aqui introduz a ideia de território usado, que é uma noção central de sua abordagem. Os sistemas técnicos, objetos e for-mas de fazer, permitem explicar como, onde, por quem, por que e para que esse território é usado. Assim, com base nessa concepção, ele analisa o Brasil a par-tir dos períodos histórico-geográficos, meio natural, sucessivos meios técnicos e meio-técnico-científico-informacional. Assim, concentra-se no estudo e na identificação do meio técnico-científico-informacional brasileiro, enfatizando a renovação da materialidade do território (construções, rodovias, hidrovias, ferrovias, aeroportos, energia elétrica, telecomunicações, etc.), a informação e o conhecimento, a reorganização produtiva (descentralização industrial, guerra fiscal, Zona Franca de Manaus, Região concentrada etc.), os círculos de coo-peração, consequência dos circuitos espaciais da produção (Ceasa, CEAGESP, supermercados, shopping centers, empresas diversas), os fluxos (aéreo, ferroviá-rio, rodoviário, aquaviário, navegação etc.), o sistema financeiro e a distribuição da população e a geografia do consumo.

A partir de então, o autor apresenta a síntese do território brasileiro, re-forçando a ideia de território usado como categoria de análise central, e não o território em si. Ele confronta o passado e o presente do território brasileiro, apresentando suas diferenciações, e procura demonstrar a urbanização das ci-dades médias e grandes e a nova ordem espacial brasileira, que denomina de economia política do território. Um mapa das regiões do Brasil a partir do meio técnico-científico-informacional é oferecido como forma de síntese do país na globalização. As regiões de maior luminosidade são as de maior ciência, técnica e informação, dominando o comando da produção e a articulação internacio-nal. Com efeito, uma proposta de regionalização do Brasil é formulada, toman-do como pressuposto a seletividade do meio técnico-científico-informacional, de forma que as porções do território brasileiro em que a técnica e a informação estão mais integradas componham a região concentrada, gerida pela centralida-de financeira de São Paulo.

Considerações finais

O projeto de produção de uma teoria geográfica em Milton Santos sem-pre esteve articulado aos estudos empíricos, desde os estudos iniciais sobre a Bahia até os últimos trabalhos sobre o território brasileiro. A nossa intenção

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37Considerações sobre as categorias analíticas do espaço geográfico em Milton Santos

aqui foi trazer uma breve síntese das principais categorias analíticas do espaço geográfico apresentadas por Milton Santos, associando-as à teoria geográfica desenvolvida pelo autor. Conforme demonstrado, essas categorias, estrutura-das pela centralidade da técnica, encontram a sua coerência no caráter híbrido do espaço geográfico. Da combinação do material e do imaterial derivam vários pares dialéticos, os quais Milton Santos lança mão para compreender tanto o processo de produção do espaço geográfico contemporâneo quanto os aspectos diferenciais de sua organização.

Como resultado, temos alguns conceitos que, com o tempo, ganharam equivalência em sua teorização ao compartilharem do mesmo ponto de partida, a relação fundamental entre espaço, tempo e técnica. Dessa forma, o espaço geográfico passa a ser considerado como sinônimo de território usado, de meio geográfico e de espaço banal. São conceitos que permitem uma síntese das preocupações teóricas de Milton em pensar a Geografia como uma filo-sofia das técnicas. Contudo, os seus últimos trabalhos passaram a privilegiar o território usado, muito em decorrência da necessidade de se repensar esse tra-dicional conceito geográfico no período da globalização, em que as fronteiras passaram a ser questionadas e a crise do Estado nacional pôs em questão a vitali-dade dos territórios. Soma-se a isso o interesse do autor em produzir um estudo geográfico do Brasil, cuja peculiaridade estaria em fazer falar o território.

A vasta obra e intensa produção teórica de Milton Santos demandam análises mais apuradas. Aqui, procuramos apresentar apenas algumas conside-rações sobre as categorias analíticas do espaço geográfico constitutivas de sua teoria geográfica, com o intuito de chamar a atenção para a riqueza e a atuali-dade do pensamento do autor, mesmo que novos processos estejam em curso e caracterizem a dinâmica contemporânea. Compreender o funcionamento do sistema teórico proposto por ele pode fornecer subsídios para a identificação de instrumentais conceituais mais apropriados aos desafios impostos pelas atuais dinâmicas socioespaciais, em que o conteúdo técnico e informacional atinge novos patamares. Consideramos, por fim, que revisitar as categorias analíticas e a estrutura teórica do espaço em Milton Santos, buscando direcioná-la à análise territorial brasileira, podem auxiliar na compreensão dos desafios e dos possí-veis rumos do país diante do novo estágio da globalização.

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38 Estudos territoriais no Brasil e na Costa Rica

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