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SciELO Books / SciELO Livros / SciELO Libros GOLDENBERG, P., MARSIGLIA, RMG and GOMES, MHA., orgs. O Clássico e o Novo: tendências, objetos e abordagens em ciências sociais e saúde [online]. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2003. 444 p. ISBN 85-7541-025-3. Available from SciELO Books <http://books.scielo.org >. All the contents of this work, except where otherwise noted, is licensed under a Creative Commons Attribution-Non Commercial-ShareAlike 3.0 Unported. Todo o conteúdo deste trabalho, exceto quando houver ressalva, é publicado sob a licença Creative Commons Atribuição - Uso Não Comercial - Partilha nos Mesmos Termos 3.0 Não adaptada. Todo el contenido de esta obra, excepto donde se indique lo contrario, está bajo licencia de la licencia Creative Commons Reconocimento-NoComercial-CompartirIgual 3.0 Unported. Parte I - Ciências sociais em saúde Renovando os problemas nas ciências sociais Gabriel Cohn

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SciELO Books / SciELO Livros / SciELO Libros GOLDENBERG, P., MARSIGLIA, RMG and GOMES, MHA., orgs. O Clássico e o Novo: tendências, objetos e abordagens em ciências sociais e saúde [online]. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2003. 444 p. ISBN 85-7541-025-3. Available from SciELO Books <http://books.scielo.org>.

All the contents of this work, except where otherwise noted, is licensed under a Creative Commons Attribution-Non Commercial-ShareAlike 3.0 Unported.

Todo o conteúdo deste trabalho, exceto quando houver ressalva, é publicado sob a licença Creative Commons Atribuição - Uso Não Comercial - Partilha nos Mesmos Termos 3.0 Não adaptada.

Todo el contenido de esta obra, excepto donde se indique lo contrario, está bajo licencia de la licencia Creative Commons Reconocimento-NoComercial-CompartirIgual 3.0 Unported.

Parte I - Ciências sociais em saúde Renovando os problemas nas ciências sociais

Gabriel Cohn

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Ciências Sociais em SaúdeParte I

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O CLÁSSICO E O NOVO

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Renovando os problemas nas ciências sociais

Renovando os Problemasnas Ciências Sociais

Gabriel Cohn

As ciências sociais fazem por sua natureza aquilo que seuspraticantes certamente apreciariam para si. Periodicamente mudamde pele e renovam-se inteiramente, sem perder a memória do quefizeram de melhor no período anterior. Ciências felizes, dirão alguns,interpretando pelo seu lado mais radiante a famosa frase de Webersobre a ‘eterna juventude’ dos estudos culturais, e felizes também osseus praticantes, que encontram nelas as condições para sempre serenovarem no trato com novos problemas.

Mas talvez seja o caso de não exagerar: nada garante que osnovos problemas sejam mais leves do que os anteriores, a renovaçãopode não ser tão completa assim, o ritmo do conhecimento não vai nomesmo compasso que nossas vidas – enfim, nem tudo são luzes. A mu-dança se faz, na sociedade e no seu estudo, e cabe a nós o exercício delucidez de vê-la em todos os seus tons.

Das muitas coisas que mudaram nas ciências sociais ao longoséculo XX, lembremos, em primeiro lugar, a mais abrangente. Se napassagem do século XIX para o XX a grande questão que se apresentavaera a das condições de incorporação na sociedade de novos grupos emacelerada fase de organização e com firme determinação a fazerem-sepresentes nos diversos cenários sociais, um século depois, exibe-seum quadro inverso. Agora, a questão é de como fazer frente à acelera-ção de processos de exclusão, e não mais de inclusão.

Antes, os conservadores viam com maus olhos a emergência das‘massas’, e os adeptos da mudança, também chamada ‘progresso’, apos-tavam suas fichas na sua conversão em atores políticos organizados.

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Com efeito, ‘organização’ era o termo em torno do qual tudo se arti-culava. Nisso se revelava uma herança que vinha desde a transiçãosecular anterior, na linhagem que passa por Saint-Simon e Comte eque se abre em múltiplas trajetórias no século XX.

Era pelo ângulo da organização que ganhava conteúdo o temada inclusão, entendido, num registro positivo, como sinônimo de par-ticipação numa ordem social e, num registro negativo, nos termos dadireta identificação conservadora da organização com a ordem, comoa desorganização da sociedade, a homogeneização entrópica.

Nessas condições, a questão central passa a ser: quem organizao quê, em nome do quê? Dessa questão resulta uma segunda, que sepõe no nível mais propriamente político e econômico: dada uma formade organização, quem acumula poder de decisão e acesso a recursos?E, já em termos críticos, em detrimento de quem?

Claro que o problema encontra formulações diferentes nas di-versas áreas das ciências sociais. Na perspectiva sociológica, com seusdesdobramentos políticos, a questão sobre quem organiza pode resol-ver-se como na caça do gato durkheimiano ao próprio rabo, na qualesse ‘quem’ acaba sendo a própria sociedade, entendida como a orga-nização por excelência, da qual todas as outras derivam. Essa posição,por sua vez, encontra uma contrapartida radical na tese de que só exis-tem vontade e ação correspondente em entes individuais, impondo-se, pois, quebrar o círculo durkheimiano, em que a sociedade sempre sereencontra como num jogo de espelhos. Trata-se de buscar capacidadesde ação, ‘agências’ efetivas (no lugar de ‘estruturas’), cuja ação se tradu-za em confrontos de vontades com resultados não pré-orientados pelosistema normativo da sociedade. Nessa ótica, a organização do con-junto social segundo uma vontade dirigente passa a ser o bônus daeficácia da decisão.

Dá-se, assim, realce ao tema moderno – pós-maquiaveliano,digamos – da ‘decisão’ em condições de risco, no lugar da adesão aoantigo – aristotélico, digamos, mas com ressonâncias ainda emDurkheim – tema do ‘discernimento’ prudente em condições em quea racionalidade é mais atributo da associação do que dos indivíduosque a integram. Claro que esta é a saída de Weber, mas não só dele.Entre essas posições polares há espaço de sobra para esse ‘mix’ de ‘es-trutura’ e ‘agência’ que está presente em grande parte do pensamento

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social no século XX, em configurações altamente diferenciadas, quevão do estruturalismo mais radical ao não menos radical perspectivismoem que tudo se reduz às ‘negociações de sentido’ entre agentes ligadosna situação.

A nova transição secular, ao expor as ciências sociais a um qua-dro tão diferente do anterior, põe à mostra uma certa fadiga dos modosde equacionar os grandes problemas. A velha distinção entre estruturae agência, ou sistema e ação, perde muito do seu gume quando a ques-tão deixa de ser como expandir e, portanto, diferenciar o sistema pelaincorporação de novas formas organizadas de ação (de atores, portan-to) e passa a ser a de identificar os atores e elementos estruturais quenão têm mais papel a desempenhar e poderão ser deixados de lado.

Estamos envolvidos em uma mudança de época. Até uma faseavançada do século XX a referência paradigmática consistia na asso-ciação entre ‘organização’ e ‘acumulação’. Vale dizer, estavam emjogo processos expansivos de diferenciação interna das sociedades,tanto da ótica dos elementos de sistemas quanto da ótica da consti-tuição de atores.

Na virada do século, contudo, rompe-se essa associação entreorganização e acumulação pela perda de substância do segundo termo –desgaste este que envolve uma separação mais funda, entre ‘expansão’ e‘acumulação’, que antes andavam juntas. A referência à organizaçãosegue sendo central, mas tende a girar no vazio enquanto não se en-contra o termo que possa substituir o de acumulação.

Tanto quanto consigo ver, esse termo já se mostra com nitidez:trata-se de ‘seleção’. A idéia, aqui, é que nas condições que se vãodesenhando, o princípio da seleção cumpre papel correspondente aoda acumulação na fase que se vai fechando. É esse princípio que pro-mete dar conta de uma condição histórica em que sistemas altamentecomplexos e, portanto, muito avançados em termos de organizaçãovão constituindo uma dinâmica em que a expansão, desvinculada daacumulação, se dá pela ‘eliminação’ de partes pela borda afora, aoinvés de pela ‘incorporação’ de elementos e processos.

O primeiro problema que se apresenta neste ponto, claro, con-siste em especificar o modo como esses dois termos se articulam.Examiná-lo envolve, por exemplo, encontrar a forma dessa rupturaentre organização, expansão e acumulação na sua vertente econômica,

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na qual a unidade formal de riqueza, no sentido de posse de recursosno mercado, vai ganhando autonomia em relação à sua referênciasocial do valor.

Não me ocorre tentar desenvolver aqui esse ‘primeiro problema’,no qual está contida toda uma fileira de questões decisivas. O que mearrisco a fazer é sugerir que isso faz parte das novas tarefas que se apre-sentam para as ciências sociais. Postas as coisas nesses termos, faz sen-tido esboçar alguns traços do que pode ser o campo no interior do qualpoderão ganhar forma os novos problemas, o que inclui as novas ver-sões de velhos problemas, a começar pelo mais abrangente de todos, oda configuração presente e das tendências futuras do capitalismo.

Correndo o risco de oscilar entre o trivial e o francamente equi-vocado, identificaria como o primeiro desses traços o de que estamosnaquilo a que bem se aplica a expressão ‘umbral civilizatório’. Não queisso signifique que um novo modelo de civilização esteja em vias deforçar irresistivelmente passagem na atual etapa histórica. Quero dizerque devemos nos preparar para a tarefa de propor de modo consciente ecomprometido os contornos de uma forma de vida, para além da merareiteração da que atualmente é hegemônica, cuja construção as novascondições das sociedades tornem viável ou pelo menos plausível.

Na realidade, o dado novo introduzido pelas ciências sociaisnas sociedades contemporâneas consiste precisamente nisto: elasnos convidam, é verdade que muito timidamente, a buscar apoio noconhecimento da realidade social para discernir suas tendências, e en-contrar expressão não exclusivamente ética nem meramente técnicapara nossos projetos de novas formas de convivência. Esse compo-nente iluminista-utópico, tantas vezes ocultado por inibiçõesmetodológicas e por travações ideológicas, não pode ser desprezado.Deve, sim, ser aprofundado. Estamos diante de uma abertura histórica,não de um rumo inexorável, nem, muito menos, de uma porta escan-carada para todas as vias que quisermos. A mudança de tom que agorase instala nas minhas proposições não é casual. É de modo deliberadoque passo para um registro francamente normativo porque o argu-mento que aqui busco formular tem como uma das suas peças cen-trais a idéia de que a dimensão normativa vai deixando de ser umaespécie de pano de fundo implícito, quando não reprimido, da análisesocial para projetar-se com força no centro da atenção.

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O primeiro passo para esse avanço consiste em recuperar umconceito olhado com merecida desconfiança, dada a sua carreira his-tórica: o de ‘civilização’. A expressão alternativa ‘padrão civilizatório’,embora deselegante, parece-me mais adequada ao que tenho em menteao penetrar nesse terreno alagadiço; mas nenhum rodeio terminológicoeliminará a carga que pesa sobre um termo que acabou sendo incor-porado ao vocabulário de uma específica ala do pensamento social,a mais comprometida com posições conservadoras ou francamentede direita. Passo inteiramente ao largo do uso que atualmente faz dotermo Huntington, por exemplo. Importa-me recuperar referênciasnele contidas que foram soterradas pela distinção que, em certa época,se construiu entre ‘civilização’ e ‘cultura’, em boa medida como res-posta conservadora aos ímpetos progressistas e evolucionistas dosque apostavam em uma seqüência ascendente de níveis cada vezmais avançados de organização da vida social, entendidos justamentecomo níveis de civilização.

Atualmente, devem ser poucos os defensores de uma irreversívelevolução civilizatória. Mas a resposta a essa concepção produziu efeitosperversos ao corromper o termo pela raiz. Nessa perspectiva, ‘civiliza-ção’ passou a significar a mera aquisição e manutenção de recursostécnicos e de destreza, reservando-se o termo ‘cultura’ para algo maiselevado, que seria a capacidade de infundir sentido a essas habilidadesacessíveis, em princípio, a todos. Numa formulação bem conhecida,civilização seria dispor-se de garfo e faca, e cultura consistiria em saberservir-se deles de modo conveniente, conforme regras sociais específi-cas, portanto. A manobra é clara. Ao se introduzir uma cunha na jun-ção da idéia de civilização com a de cultura, em que a primeira aparececomo termo de referência por ser mais abrangente intensiva e extensiva-mente, para valorizar a segunda em detrimento da primeira, desloca-seo foco do universal, ou tendencialmente universal, para o particular,restrito, peculiar a este ou aquele povo ou, de preferência, a este ouaquele grupo social.

Isso tem uma conseqüência muito importante: ao destruir-sepor essa via o contraste entre ‘civilização’ e ‘barbárie’, que tanto im-portava aos velhos evolucionistas, para quem os termos indicavamdiferenças remediáveis entre estágios de desenvolvimento, insinua-va-se a idéia de que a mera civilização, sem o corretivo restritivo e

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‘historicamente contingente’ da cultura, abrigaria, ela mesma, a barbárie.Tal concepção, à primeira vista, pode parecer uma concepção críticaum tanto frankfurtiana, que assinalaria o germe da barbárie no interiormesmo da civilização que se apresenta como a mais avançada, masnão é isso. A atitude envolvida não é crítica, é de pura e simplesdesqualificação. A tarefa que temos, hoje, envolve justamente reto-mar a reflexão crítica tanto da civilização quanto da barbárie e, depassagem, da cultura, para surpreender os limites e também o poten-cial não realizado de todos eles, incluindo a barbárie, que tambémtem o seu momento de verdade, com o que, aí sim, estaríamos nalinha dos mestres de Frankfurt.

Meu objetivo é ver recuperado o complexo significativo queanima a idéia de civilização e a torna inseparável da idéia de cultura,entendida esta, na sua acepção primitiva, como cultivo da humanidade,como formação. Vida civil, convivência livre na cidade, cidadania e,indo mais fundo na etimologia, lar, abrigo, local de repouso em paz –tudo isso faz parte desse complexo, assinalando o grande tema quesecretamente movia os grandes mestres das ciências sociais nascentese que se traduz no anseio por uma sociabilidade que permita a todosestarem chez soi.

Uma referência específica poderá ilustrar melhor a minha preo-cupação. Logo após o colapso do bloco soviético, o sociólogo alemãoHelmut Dubiel publicou um artigo sobre o ‘luto da esquerda’. Valen-do-se engenhosamente de categorias psicanalíticas, ele examina, con-tra o pano de fundo desse evento, as modalidades de resposta à perdairreparável. No final, interroga-se sobre o papel histórico que poderiarestar à esquerda nessa fase. Sua resposta é que a tarefa imediata quelhe cabe consiste em ‘civilizar o capitalismo’. Ambição bem modesta,dirão aqueles que ainda se lembram de tempos em que a tarefa erapensada em termos de substituição do capitalismo de ponta a ponta.Substituição por o quê, afinal? Bem, feitas as contas, por um outropadrão civilizatório.

A abdicação que se exprime no texto de Dubiel consiste emabrir mão, por enquanto pelo menos, da tarefa de gerar e tornar efetivoum novo padrão para aceitar a incumbência de ativar, ou reativar, opadrão próprio à organização atualmente hegemônica da vida social.De uma certa forma, trata-se de aceitar o lado sombrio do modo como

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Rosa Luxemburgo formulou a expressão ‘socialismo ou barbárie’. Paraela, importava mostrar duas coisas. Primeiro, que a crise do capitalis-mo era inevitável. Segundo – e aí está o ponto essencial – que a crisedo capitalismo sem a alternativa socialista representaria a barbárie.Esgotada a força civilizadora do capitalismo, o bastão passava para osque propunham a alternativa socialista, sob pena de algo que escapavada visão progressista-evolucionista da social-democracia, a saber, apossibilidade concreta da ‘regressão’ histórica. Na ótica de Dubiel, quenisto é um legítimo herdeiro da escola em que se formou, em Frankfurt,perdida a energia para o grande salto para além do capitalismo, restafazer o que este sozinho não consegue, e que, no entanto, é vital: mantero mundo habitável. A esquerda como pedagoga da história – semprelembrando que pedagogo era o escravo encarregado de conduzir osinfantes bem nascidos para o aprendizado. É pouco, mas a alternativaé a barbárie. E em nome do que essa alternativa é inaceitável?

Bem sabemos como o termo ‘bárbaro’ traz uma carga de ori-gem: o estranho, o que não fala (a nossa língua), o inacessível, o quetem de ser mantido longe ou submetido. Nessa concepção, a barbárieé a invasão da nossa casa pelo estranho – nisso se exprime o ladosombrio da associação entre civilização e morada, mundo habitável.Esta é, até hoje, a ótica conservadora – os franceses seguidores de LePen que o digam, entre tantos outros.

Nessa perspectiva, a civilização é algo a ser preservado contra aameaça externa, é algo a ser cercado, blindado. Não há como evitarque ocorra à mente um significado original do termo polis, que é muro,limite; o que mais uma vez nos recorda a íntima associação da noçãode civilização com o medo, que é transferido para fora, para o de fora.Afinal, nossos conceitos trazem, todos eles, as marcas de múltiplasincrustações históricas, e não há como tentar limpá-las, nem cabe essegesto; mas cabe, sim, saber discernir suas muitas camadas indutorasde interpretações tácitas.

Ocorre que, seguindo-se esta linha de argumentação, logo con-cluiremos que a idéia de barbárie é uma construção que não resiste àmudança de perspectiva gerada pela consideração do outro como legi-timamente diferente e merecedor de respeito como tal. Seria razoávelprosseguir, nessa mesma linha, dizendo que esse gesto de alçar o outroà condição de diferente mas igual, é o gesto civilizado por excelência.

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Mas isso não é suficiente. Como a nova direita européia descobriu hábom tempo e já foi demonstrado por vários ângulos pelos seus críticos– basta pensar, entre nós, nos trabalhos de Flávio Pierucci – o tãodecantado respeito pelo outro não rompe o círculo perverso do con-fronto do particular com o particular, em que cada qual fica do seulado na sua irredutível diferença. Claro que somos de fato diferentes.Nisto reside o momento de verdade da barbárie. A sua falsidade con-siste precisamente em tornar absoluto esse seu momento de verdade.Todo relativismo repousa em algum absoluto inquestionável. Civiliza-ção, para fazer sentido, remete ao universal. É só neste que se poderomper, pela descoberta dos laços que atravessam o conjunto todo, acasca opaca das peculiaridades tornadas absolutas e externas umas àsoutras. O jogo das peculiaridades soltas ainda é da ordem da barbárie.Em primeiro lugar, porque nesse plano não é possível evitar que o‘respeito’ pelo outro deslize rumo à ‘indiferença’ face ao outro. A acei-tação generalizada da diferença é a expressão exata da indiferença.

Meu argumento agora é precisamente este: a face contemporâ-nea da barbárie exprime-se na indiferença. Mas há um segundo passonesse argumento: essa associação entre barbárie e indiferença é funda-mental porque a indiferença é um traço estrutural básico da forma deorganização das sociedades que corresponde ao modo contemporâneode operação do capitalismo. A idéia é que a lógica da funcionamentodo intercâmbio intra e internacional no interior do sistema ‘global’que se vai desenhando nas últimas décadas envolve um aspecto damaior importância, a saber, o aumento de capacidade de decisão de umnúmero restrito de agentes econômicos operando em todos os quadrantesplanetários gera efeitos em grande escala marcados pela circunstânciade serem em grande medida ‘indeterminados’. Mais: essa indeterminaçãoé suscetível de ser incorporada por esses agentes dotados de capacidadede decisão altamente concentrada porque a propagação dos efeitos dosseus atos pode, em grande medida, ser considerada irrelevante para osseus objetivos pontuais.

Nessas circunstâncias, altera-se o próprio significado do termo‘decisão’. Na origem, ele se referia ao ato de um agente senhor da suavontade que, numa situação de crise, isto é, de paralisia por extremar-se a distância entre as opções disponíveis, intervém para criar umanova situação, uma nova configuração, no limite, uma nova legalidade.

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Nesse sentido, decisão não se confunde com escolha entre alternati-vas, pois é a criação de novas alternativas. Nessa concepção, a oportu-nidade importa para a decisão, sem dúvida, mas a orientação básica épara o controle da situação, da maneira mais integral e no prazo maislongo possível.

Não é mais este o caso na etapa contemporânea. A palavra deordem é mobilidade, rapidez, sobretudo. Decisão deixa de ser um sinalda virtu do agente que depois busca conservar o objetivo conquistadopara ser a capacidade de detectar num átimo a oportunidade da ‘fortu-na’ fugaz. Isto não é de hoje, cada vez mais os agentes do capital perce-bem que seus interesses não mais repousam na capacidade de explorarprodutivamente a força de trabalho (isto é subsidiário), mas na incorpo-ração de técnicas organizacionais e de planejamento que lhes permi-tam, em um mundo globalizado e hipercomplexo, concentrar em cadamomento a atenção estritamente naquilo que lhes importa. Não se tratamais de buscar eliminar os componentes irracionais, vale dizer,incontroláveis, do ambiente em que se age, mas de ‘ignorá-los’ – nãopor negligência, mas por exigência de funcionamento de um sistemahipercomplexo. Nitidez na escolha do alvo, mobilidade e rapidez na de-cisão são os imperativos.

No modelo clássico do mercado concorrencial, ações singularesde agentes com alcance limitado equilibravam-se mutuamente, dispen-sando toda intervenção. O modelo pode ter sido uma aproximação gros-seira, mas serve de contraste com uma situação como a atual, na qual asondas de choque criadas pelas ações de alguns poucos agentes literal-mente monstruosos – porque não só desconhecem a força que têm comonão se importam com isso quando agem – obrigam a repensar outracategoria central do pensamento moderno: a de ‘controle’. Claro que osgrandes agentes decisivos têm, talvez mais do que nunca, controle sobreseus objetivos imediatos e sobre o formato organizacional mais adequadopara atingi-los. O que acontece é que a escala de operações e a com-plexidade dos seus ambientes tornaram-se de tal ordem que os efeitossecundários – diretos, indiretos e combinados ou sinérgicos – extrava-sam o controle, não só pela natureza que assumem, mas – e este é oponto decisivo – porque não mais importam a quem os desencadeou.

Pode parecer pouco, mas há uma diferença enorme entre o agenteque conhece os seus limites de intervenção eficaz no mundo e se

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preocupa com isso, quando nada para superá-los, em uma busca im-placável de controle sobre o mundo, e o agente a quem simplesmentenão importa o que decorre das suas ações para além dos limites dosseus objetivos imediatos.

Na sua acepção primitiva, a idéia de controle envolvia uma‘responsabilidade’ do agente, uma capacidade de resposta às conse-qüências dos seus atos, sem a qual perderia também sentido a idéia de‘organização’. É também por isso que o programa socialista clássico,sobretudo na sua versão revolucionária, vai perdendo fôlego ao longodesse período, pois não há como gerar, pela capacidade de resposta àação de um adversário que necessariamente incorpora as regras dosistema em que age, formas de organização que permitam arrebatar-lhe o controle dos processos numa situação em que ele há muitoabriu mão da racionalidade organizada-controladora que permitiria dealgum modo prever seus atos. O novo ambiente combina, de modopeculiar, a concentração de capacidade de decisão com o caráter apa-rentemente errático das ações. Eis porque faz sentido sugerir que aênfase na dimensão da ‘organização’ é do passado, substituída que vaisendo pela ênfase na ‘mobilidade’. Não é um mero jogo de palavrasafirmar que as novas condições históricas vão contrapondo, como pro-blema a ser resolvido, a possibilidade da organização responsável peloexercício da mobilidade oportunista.

É nessa linha de reflexão que se pode sustentar que a lógicaeconômica dominante está centrada naquilo que se poderia denominar‘indiferença estrutural’, que envolve a ‘irresponsabilidade’ das agênciasdecisivas – empresas –, mas também, em escala crescente, os estadosnacionais – em relação a tudo que exceda a órbita imediata da suaação. Nesse sentido, desgastam-se os laços entre processos econômi-cos e poder político e acaba fazendo sentido a imagem – errônea quantoao resto – da crescente perda de substância do Estado como institui-ção classicamente associada ao âmbito nacional.

Não insistirei sobre o radical economicismo que anima a atualordem dominante, nem sobre a desqualificação da dimensão políticanisso envolvida – outros já o fizeram de modo exaustivo. Importa, nestepasso, assinalar a importância que assume, no mundo cujos contornosse vêm desenhando, a contínua criação de ‘áreas de indiferença’, porefeito desse paradoxo do alcance global das decisões: à multiplicação

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de focos de atenção pontuais responde o aprofundamento da indife-rença estrutural. A dificuldade da questão só aumenta quando consi-deramos que indiferença não envolve necessariamente a ausência demecanismos seletivos. Pelo contrário, eles ganham papel decisivo. Otermo ‘decisivo’ é intencional: alude à circunstância de que, na formade organização das sociedades e do seu conjunto, vai ganhando corpoa substituição da decisão de agentes identificáveis por operações seleti-vas incorporadas à rotina de sistemas complexos. São essas operaçõesque definem o que é relevante ou não, o que merece atenção e o quecai na área de indiferença. Trata-se de um modo de dar conta da im-possibilidade da decisão por agência responsável, posto que nenhumagente, ou conjunto de agentes (classe, por exemplo), tem como aspirarà visão de conjunto das ações possíveis e dos efeitos previsíveis sem aqual a ação deixa de ser a expressão de uma capacidade de iniciativapara ser mera resposta, reação a demandas e estímulos.

Lembra-se com freqüência o caráter exclusivo das sociedadesque se vão formando na nova ordem. Mas é preciso considerar queessa exclusão não mais se dá em termos da natureza ‘inconveniente’de tal ou qual grupo social bem definido, mas incide sobre setoresinteiros das sociedades, não porque sejam inconvenientes (minoriasétnicas, por exemplo) mas porque são ‘irrelevantes’ . Essa é acontrapartida social da relação entre o poder dos grandes agentes eco-nômicos de decisão e o seu desinteresse pelos desdobramentos dasconseqüências dos seus atos. Em ambos os casos, áreas inteiras doterreno em que se opera tornam-se irrelevantes, insignificantes, con-vertem-se em áreas de indiferença. A contrapartida política disso é aredução da democracia à sua dimensão mínima, de método de esco-lha de governantes no interior do mercado político. A resposta possí-vel a essa tendência (Estado mínimo mais democracia mínima maisseletividade sistêmica máxima) consiste em aprofundar a democra-cia, no sentido da ampliação das áreas de relevância na sociedade parao debate e a deliberação públicos e na ênfase na responsabilidade. Emsuma, é hora de reatar os laços entre democracia – levada a sério, nãocomo slogan vazio para designar mercado político e civilização –, pas-sando pela valorização da figura da cidadania – outro termo da maiorseriedade que vai sendo corroído pelo uso rotineiro.

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Não há, pois, como não ser normativo. Nem tampouco há comofazer avançar as ciências sociais sem recuperar grandes temas – comoo da ‘responsabilidade’ – que se tornaram troféus daqueles que nãoestão interessados em enfrentá-los a sério. A busca de um novo padrãocivilizatório, em que a própria relação entre civilização e barbárie sejarevista para além do jogo dos particularismos, por plurais e múltiplosque sejam, é uma exigência inescapável. E, dentro dela, a demonstra-ção, mais uma vez e em novos termos, de que a invocação do particulare da diferença na ausência de um universalismo criticamente refletidoleva os programas de ação a se perderem em um jogo em que ninguémresponde por nada – e, portanto, não há agência – e ninguém é capazde mobilizar formas de organização para ir além do imediato – e,portanto, não há sistema; um contra-senso em que se exibe com nitidezque, neste admirável mundo novo, as categorias de análise e as formasde intervenção social correspondentes ainda estão por ser construídas.