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PARTICIPAÇÃO DA CIDADANIA NA SOCIEDADE CIVIL GLOBAL: AÇÕES LOCAIS DE INTERESSE GLOBAL Danielle Soncini Bonella * Ricardo Hermany ** RESUMO Este artigo trata sobre a participação do cidadão na sociedade civil global, ou seja, ações locais, realizadas por seus cidadãos, mas que apresentam interesse global. Objeto cada vez mais presente na análise social e política contemporânea, a globalização apresenta distintas interpretações e dificilmente é abordada pelos analistas com uma única definição. O conceito de sociedade civil global se dissemina e assume diversos significados em diferentes contextos. Numa época de mudanças globais profundas – mudanças estruturais na economia política mundial, instabilidade financeira global, surgimento de novos centros de autoridade e regulação que ultrapassam as fronteiras nacionais, revolução tecnológica nos meios de comunicação – a idéia de sociedade civil global aparece inicialmente como uma resposta “democratizante e civilizadora” a tais transformações e como uma forma de conceituar o fenômeno de crescente atuação de forças sociais em âmbito internacional e global. Um dos maiores impactos da globalização vem se dando na hierarquia das cidades, que passam a ter um novo papel estratégico: surgem assim, as cidades mundiais, centros gerenciais das corporações internacionais, formando-se redes de cidades para atender à flexibilização da produção e aos novos fluxos tecnológicos. Dessa forma, se dá a participação cidadã local na sociedade civil global. * Especialista em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e mestranda em Direito, Área de Concentração em Políticas Públicas, Linha de Pesquisa Políticas Públicas de Inclusão Social, na Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC, Santa Cruz- RS. ** Doutor em Direito pela UNISINOS, com estágio de doutoramento na Universidade de Lisboa, Portugal. Atualmente exerce a Coordenação do Curso de Direito da UNISC, sendo Professor do PPGD – Mestrado (UNISC), na disciplina Poder Local e Inclusão Social, da Graduação (UNISC), na disciplina de Direito Municipal e Coordenador do grupo de estudos em Gestão Local dessa IES. É membro da Associação Internacional de Direito Constitucional, do Núcleo de Planejamento Urbano (UNISC) e do Centro de Estudos sobre Serviços e Políticas Públicas da UNISC. Coordenador do MBA em Gestão Estratégica Municipal UNISC/FAMURS. 6694

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PARTICIPAÇÃO DA CIDADANIA NA SOCIEDADE CIVIL GLOBAL:

AÇÕES LOCAIS DE INTERESSE GLOBAL

Danielle Soncini Bonella *

Ricardo Hermany **

RESUMO

Este artigo trata sobre a participação do cidadão na sociedade civil global, ou seja,

ações locais, realizadas por seus cidadãos, mas que apresentam interesse global.

Objeto cada vez mais presente na análise social e política contemporânea, a

globalização apresenta distintas interpretações e dificilmente é abordada pelos

analistas com uma única definição. O conceito de sociedade civil global se

dissemina e assume diversos significados em diferentes contextos. Numa época de

mudanças globais profundas – mudanças estruturais na economia política mundial,

instabilidade financeira global, surgimento de novos centros de autoridade e

regulação que ultrapassam as fronteiras nacionais, revolução tecnológica nos meios

de comunicação – a idéia de sociedade civil global aparece inicialmente como uma

resposta “democratizante e civilizadora” a tais transformações e como uma forma de

conceituar o fenômeno de crescente atuação de forças sociais em âmbito

internacional e global. Um dos maiores impactos da globalização vem se dando na

hierarquia das cidades, que passam a ter um novo papel estratégico: surgem assim,

as cidades mundiais, centros gerenciais das corporações internacionais, formando-se

redes de cidades para atender à flexibilização da produção e aos novos fluxos

tecnológicos. Dessa forma, se dá a participação cidadã local na sociedade civil

global.

* Especialista em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e mestranda em Direito, Área de Concentração em Políticas Públicas, Linha de Pesquisa Políticas Públicas de Inclusão Social, na Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC, Santa Cruz-RS. ** Doutor em Direito pela UNISINOS, com estágio de doutoramento na Universidade de Lisboa, Portugal. Atualmente exerce a Coordenação do Curso de Direito da UNISC, sendo Professor do PPGD – Mestrado (UNISC), na disciplina Poder Local e Inclusão Social, da Graduação (UNISC), na disciplina de Direito Municipal e Coordenador do grupo de estudos em Gestão Local dessa IES. É membro da Associação Internacional de Direito Constitucional, do Núcleo de Planejamento Urbano (UNISC) e do Centro de Estudos sobre Serviços e Políticas Públicas da UNISC. Coordenador do MBA em Gestão Estratégica Municipal UNISC/FAMURS.

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PALAVRAS CHAVES

AÇÕES LOCAIS; SOCIEDADE CIVIL GLOBAL; CIDADANIA.

ABSTRACT

This article treats on the participation of the citizen in global the civil society, or

either, local actions, carried through for its citizens, but that they present global

interest. Object each more present time in the social analysis and politics

contemporary, the globalization presents distinct interpretations and hardly is he

boarded for the analysts with an only definition. The concept of global civil society

if spreads and assumes diverse meanings in different contexts. At a time of deep

global changes - structural changes in the economy world-wide politics, global

financial instability, sprouting of new centers of authority and regulation that exceed

the national borders, technological revolution in the medias - the idea of global civil

society appears initially as "a democratic and civilized" reply to such

transformations and as a form to appraise the phenomenon of increasing

performance of social forces in international and global scope. One of the biggest

impacts of the globalization comes if giving in the hierarchy of the cities, that start

to have a new strategically paper: they appear thus, the world-wide cities,

managemental centers of the international corporations, forming nets of cities to take

care of to the flexibilization of the production and the new technological flows. Of

this form, if it gives to the local participation citizen in global the civil society.

KEYWORDS

LOCAL ACTIONS; GLOBAL THE CIVIL SOCIETY; CITIZENSHIP.

INTRODUÇÃO

O processo de globalização em curso está desafiando as fundações e

princípios políticos do Estado-Nação e, por extensão, a própria democracia e

cidadania. A globalização econômica está enfraquecendo os laços territoriais que

ligam o indivíduo e os povos ao Estado, deslocando o foco da identidade política,

diminuindo a importância das fronteiras internacionais e abalando seriamente as

bases da cidadania tradicional.

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O declínio da cidadania está intimamente vinculado à mudança no papel do

Estado. O Estado moderno priorizou a população dentro de seu território nacional,

dotando-a de uma identidade básica e de uma poderosa ideologia, o nacionalismo.

Os impactos da globalização hoje, reorientam o Estado e os interesses das elites

dominantes conferindo-lhes perspectivas não territoriais e extra-nacionais. O Estado

reformulou seu papel em função de variáveis externas com o espetacular avanço do

comércio global, maior mobilidade do capital e de políticas macroeconômicas.

Dentro desse quadro de desigualdades socioeconômicas, provocadas pelo fenômeno

de mundialização do espaço, é perceptível que as populações da maioria dos Estados

periféricos percam o interesse em participar das lutas políticas internas. Tal estado

de apostasia faz com que essas populações mergulhem numa atitude de descrença e

alienação.

Sendo assim, este artigo tem por objetivo tratar sobre a participação cidadã na

sociedade civil global.

1 SOCIEDADE CIVIL GLOBAL

Tudo indica que a construção do futuro tende a transformar a cidadania

nacional, surgida com os Estados territoriais modernos, em forças sociais

transnacionais, abrindo caminho para a criação de uma sociedade civil global

emergente. A idéia de que a cidadania global teria apenas uma força moral é

originária da Paz Perpétua de Kant, com o seu apelo à solidariedade em relação aos

estrangeiros. Segundo Immanuel Kant1: O processo pelo qual todos os povos da terra estabeleceram uma comunidade universal chegou a um ponto em que a violação de direitos em uma parte do mundo é sentida em toda parte, isto significa que a idéia de um direito cosmopolita, não é mais uma idéia fantástica ou extravagante. É um complemento necessário ao direito civil e internacional, transformando-o em direito público da humanidade (ou direitos humanos [menschenrechte]); apenas sob esta condição (a saber, a existência de uma esfera pública em funcionamento) podemos nos gabar de estarmos continuamente avançando em direção à paz perpétua.

A visão kantiana é uma espécie de prelúdio a uma perspectiva de cidadania

global. Sua preocupação com a violação dos direitos humanos em qualquer parte do

mundo mostra que Kant identificou “o fenômeno de uma esfera pública mundial, que

1 KANT, Immanuel. A paz perpétua e outros opúsculos. Lisboa: 70, 1992. p. 127.

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hoje está se transformando em realidade pela primeira vez com as novas relações de

comunicação global”2.

O conceito de sociedade civil global começa a ganhar espaço nas notícias de

jornais, nos discursos políticos e nas mais diversas análises no campo das ciências

sociais.

Nesse sentido, a mundialização nas últimas décadas do século XX buscou

uma reorientação para o conceito de cidadania, incluindo um pluralismo étnico-

cultural proveniente dos países periféricos em descompasso com a visão

individualista e eurocentrista de cidadania. Boaventura de Sousa Santos3 entra

fortemente na polêmica, afirmando que: Enquanto forem concebidos como direitos humanos universais, os direitos tenderão a operar como localismo globalizado - uma forma de globalização de cima para baixo - serão sempre instrumentos do choque de civilizações, ou seja, como arma do ocidente contra o resto do mundo.

Elenaldo Teixeira4 afirma que para o conceito de sociedade civil global adota-

se uma concepção ampla, observando que o crescimento da sociedade civil

internacional implica um tecido associativo mais denso, uma autoridade pública

capaz de aplicar uma legislação internacional e o desenvolvimento de uma esfera

pública também internacional com intenso debate, não só das elites, mas também da

cidadania mundial, e que tais elementos ainda não existiriam.

A sociedade civil global emerge não como uma estrutura, mas como conjunto

de atores transnacionais (associações civis, organizações não-governamentais,

movimentos sociais) que tentam monitorar questões que estão fora do controle de

cada nação (sistema monetário internacional, meio ambiente, novas formas de

comunicação) e que buscam redefinir o papel das agências internacionais e suas

relações com as instituições nacionais, organizações da sociedade civil, de forma a

adotar regras e princípios democráticos.5

2 Op. cit. p. 140. 3 SANTOS, Boaventura de Sousa. Multiculturalismo e direitos humanos. São Paulo, n. 30, 1997. p.

105. 4 TEIXEIRA, Elenaldo. O local e o global: limites e desafios da participação cidadã. São Paulo:

Cortez, 2001. p. 55. 5 Ibidem.

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Por isso, pode-se pensar que os processos preparatórios das conferências

temáticas das Nações Unidas (a Rio-92 e a Habitat II, ocorrida em Istambul, em

1996, focalizada nos assentamentos humanos) e os eventos em si constituíram

oportunidades de atuação e mobilização. Por exemplo, a forte presença da sociedade

civil global na Eco-92 redesenhou a dinâmica dos processos nacionais e

internacionais das conferências da Organização das Nações Unidas (ONU), que

introduzem em suas dinâmicas mecanismos de participação do segmento das

organizações não-governamentais.

Nesse caso, trata-se, portanto, de: [...] possibilidades de participação que emergem na cena internacional, mas que são negociadas e vivenciadas a partir de acúmulos de experiências traçados na vida política do país, envolvendo diversos níveis de diálogo e de confronto entre forças sociais e entre Estado e sociedade-civil, constituindo, espaços que, mesmo sendo transitórios e instáveis, foram construídos por acordos institucionais e, assim, como contextos adequados ao confronto e negociação de interpretação da vida urbana, das carências sociais e prioridades de atendimento assumidas pelo Estado brasileiro.6

Assim, a partir do novo contexto mundial, o ciclo de conferências representou

um ponto de inflexão na estratégia e forma de ação das instituições de cooperação

internacional em resposta ao novo ambiente contemporâneo, a partir da década de

80, redesenhado pelos processos de globalização econômica e cultural, de reforma

de Estado e de descentralização, subseqüente, em especial, à queda do muro de

Berlim. A nova estratégia da ONU ancora-se na realização, nos anos 90, de uma

rodada de conferências focadas em temas globais emergentes iniciada pela Eco-92 –

Conferência do Meio Ambiente e Desenvolvimento – e finalizada pela Habitat II,

tendo em vista a produção de agendas. Essas agendas são acordos estabelecidos

entre os países, tendo em vista a necessidade de estabelecer diretrizes de

desenvolvimento, conformadas em longos processos preparatórios e na realização

das conferências, dirigidas não apenas para a participação de governos nacionais e

6 RIBEIRO, Ana Clara Torres; GRAZIA, Grazia de. O processo da Habitat II: novos caminhos

assumidos na politização do urbano. In: XX ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS, 1996. Anais…

Caxambu, 1996. p. 02.

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agências especializadas, mas também para setores da sociedade civil. Expressam,

assim, tentativas acordadas de regulação das relações globais.7

Esta euforia da década de 90 foi substituída, no início do século XXI, por uma

sensação de desapontamento por parte daqueles que acreditavam ter alcançado

progressos significativos no campo da governança democrática e do fortalecimento

da participação cidadã na esfera global. Na medida em que foram se realizando os

encontros de monitoramento das grandes conferências mundiais, muitas

organizações sentiram-se frustradas com os obstáculos e barreiras a uma

participação mais concreta no processo decisório de políticas e na implementação

dos programas acordados.

Liszt Vieira8 faz uma revisão crítica de teorias fundantes das noções de

cidadania, espaço público e sociedade civil. Inicia com a visão clássica de cidadania

de Marshall, apontando como, a partir da conexão que Habermas e Cohen/Arato

estabelecem entre este conceito e os de sociedade civil e esfera pública, torna-se

imperativo a relação entre teoria política e empiria, passando, assim, a comparar a

teoria liberal com os regimes liberais, o comunitarismo com os regimes tradicionais

e a teoria da democracia extensiva com a social-democracia.

Os aportes de Teixeira9 mapeiam as formas de atuação dos atores não-

governamentais nesses processos e apontam para a construção de espaços públicos

globais: A participação de ONGs e outras instituições da sociedade civil nas conferências internacionais da ONU, como delegados e observadores, os fóruns alternativos reunindo milhares de pessoas e os encontros temáticos das entidades especializadas, além do efetivo intercâmbio de idéias e experiências pela rede eletrônica, estariam, a nosso ver, evidenciando a construção de espaços públicos globais de tematização de uma série de questões. [...] Esse tipo de participação tem sido significativo, sobretudo pelo espaço de publicização das questões debatidas. [...] As organizações da sociedade civil, nessas conferências e fóruns, têm se exercido, sobretudo: a) pressionando delegações oficiais; b) participando de sessões plenárias com direito à voz; c) discutindo temas e experiências, formando redes e coalizões internacionais; d) denunciando publicamente situações específicas de países e governos [...]; e) divulgando experiências [...]; f)

7 BRASIL, Flávia de Paula Duque. Espaços públicos, participação cidadã e renovação nas políticas

urbanas locais nos anos 90. Belo Horizonte: UFMG/FAFICH, 2004. 8 VIEIRA, Liszt. Os argonautas da cidadania. A sociedade civil na globalização. Rio de Janeiro:

Record, 2001. 9 TEIXEIRA, Elenaldo. Op. cit. p. 64-65.

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publicizando questões. Sem minimizar a importância desses eventos e conquistas, sobretudo política, com a afirmação da sociedade civil, [...] não se deve, contudo supervalorizá-los em termos de mudança social.

Tais iniciativas são ainda de reduzido impacto na opinião pública e pouca

influência nas decisões dos organismos internacionais, carecendo de continuidade e

acompanhamento sistemático como o verificado nas conferências oficiais, mas

constituem um dado importante no processo de empowerment da sociedade civil

global, promovendo o intercâmbio de experiências, as articulações do local com a

nova ordem global e a busca de soluções alternativas às políticas ditadas pelos

organismos internacionais aos governos nacionais.10

Veja-se, é atribuído ao Estado importantes aspectos de soberania e, nesse

sentido, a sociedade nacional continua a ser vista como um referente decisivo para

os atores civis. Seria possível perceber uma desagregação, mesmo que parcial, da

soberania estatal; há um deslocamento “para cima” – ou seja, para o âmbito das

organizações internacionais – e um deslocamento “para baixo” – ou seja, para o

âmbito dos atores privados e locais. “Em síntese: existem camadas adicionais de

instituições políticas e jurídicas independentes do Estado, que o complementam, mas

não o substituem”.11

A sociedade civil global é relevante na medida em que capacita indivíduos,

grupos e organizações a organizar e empregar suas forças através das fronteiras; e

provê estruturas e regras-não governamentais que capacitam os indivíduos e grupos

a se engajar nas mais distintas situações transfronteiriças. Além disso, ela oferece

oportunidades para se denunciar e reduzir a violência e as guerras e para se resgatar

a cultura do cosmopolitismo de sua conotação negativa. Assim, a sociedade civil

global capacitaria, ao menos de maneira potencial, milhões de pessoas a

socializarem novas definições da ordem global – e porquê não “[…] para imaginar

sua reconstrução positiva”.12

2 AÇÕES LOCAIS DE DIMENSÃO GLOBAL

10 Ibidem, p. 68. 11 COHEN, L. Jean. Sociedade civil e globalização: repensando categorias. Dados, v. 46, n. 3, Rio de

Janeiro: IUPERJ, 2003. p. 423. 12 KEANE, John. Global civil society? Cambridge: Cambridge University Press, 2003. p. 140.

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Essas ações constituem uma forma de articulação do local com o global, numa

resposta às políticas globais que afetam as populações, atingindo, sobretudo os

grupos sociais de menor força, que começam a resistir e buscar alternativas. Tais

políticas materializam-se no local, seja com o uso das tecnologias disponíveis, seja

como efeito perverso: desemprego, destruição da natureza, agravamento da pobreza.

Ao resistirem, as populações locais compelem os centros internacionais de decisões

a revisarem seus projetos.13

No âmbito do Estado-Nação (e de modo mais evidente nas nações semi-

periféricas e periféricas) concepções conflitantes e muitas vezes contraditórias do

tempo e do espaço pressionam as relações entre atores governamentais e não

governamentais. Governos nacionais orientam suas ações por pressões, interesses e

motivações opostas: sistêmicas e sociais. Por um lado atendem a pressões de grupos

hegemônicos filiados aos interesses das corporações econômicas e financeiras

transnacionais. Por outro lado, tem que adequar recursos para alcançar fins

instrumentais, ou seja, à manutenção poder político e ao mesmo tempo promover

fins coletivos (como a implementação de políticas de provisão de bens e serviços

sociais), requisito importante para legitimação do poder nos regimes políticos

democráticos. Dito de outro modo, as instituições governamentais que se pretendem

democráticas tem que se pautar no tempo lento da política. Tempo lento para

permitir a operacionalização de processos de tomada de decisões que possam ser

legitimados pelas normas e instituições representativas formais.14

De um modo esquemático (típico ideal) no âmbito do mercado global, mais

especificamente das empresas multinacionais e organizações financeiras

transnacionais, as representações do tempo e do espaço são orientadas por uma

racionalidade instrumental que norteia as relações sociais em termos de adequação

dos meios (dinheiro e poder) para alcançar fins (lucro, expansão das transações

econômicas, dentre outros). Esta forma de percepção, na medida em que é

instrumentalizada por grupos hegemônicos, não orienta a totalidade das relações

13 TEIXEIRA, Elenaldo. Op. cit. p. 69. 14 FROTA, Maria Guiomar da Cunha. Pesquisa social em contextos digitais: categorias de análise em

construção. In: XXVIII CONGRESSO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO, 2005. p.

7-8.

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sociais, mas tende a pressionar e a influenciar tanto as instituições nacionais e locais

de poder quanto as organizações sociais.15

Segundo Elenaldo Teixeira16, estão surgindo entidades que articulam os

governos locais, os quais, sob a pressão da sociedade civil, operam outro

protagonismo, reorientando as políticas urbanas. A troca de experiências de gestão

urbana, de informações sobre fontes de financiamento, realiza-se na direção da

competitividade, inserindo-se, portanto, na estratégia da globalização. A sociedade

civil, como visto, também cria associações internacionais, conformadas em redes e

voltadas para uma ação mais coordenada nos organismos e fóruns também

internacionais.

Um exemplo bem presente e conhecido por todos é o financiamento de obras

locais por parte de Banco Mundial. Prefeitos locais e da região viajam a negócios

para o exterior do Brasil, a fim de conseguir verbas que sustentem suas ações locais.

Quanto às ações coletivas locais com algum impacto global, dois tipos básicos

têm sua origem na sociedade civil. Um, de caráter defensivo, de resistência a certos

programas de organismos intergovernamentais ou empresas multinacionais: boicota

produtos ou projetos, denuncia, tenta impedir sua implantação, mas busca também se

adaptar, tirar proveito dos programas, sem cumprir totalmente suas exigências. É o

que vem acontecendo em vários países a partir dos anos 80, relativamente aos

programas de controle de natalidade.17

O outro tipo de ação é de caráter ofensivo, buscando realizar projetos que

alterem as condições de vida, pressionando, negociando. Dirigem-se aos programas

ou políticas adotados pelos países dominantes, organizações intergovernamentais e

empresas, ou aos governos locais para que tomem posição. Algumas ações incidem

sobre problemas cujo impacto é mundial ou temas que estão na pauta de ONGs

importantes como a Anistia Internacional, Greenpeace entre outras. É o caso da luta

dos indígenas no Brasil e no México pela preservação de sua cultura e suas terras,

das ações dos seringueiros no Norte do Brasil em torno da defesa da Floresta

Amazônica, das denúncias de massacres de índios e de crianças, ocorridos no Brasil.

15 Ibidem. 16 Op. cit., p. 70. 17 TEIXEIRA, Elenaldo. Op. cit., p. 70.

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A opinião pública é assim afetada, o que leva, no mínimo, a que se investiguem os

autores e se prestem contas a organismos internacionais, embora sejam modestos os

resultados em termos de medidas punitivas.18

As Organizações Não Governamentais (ONGs), nos países em

desenvolvimento, começam a perceber que enfrentam uma crise de crescimento e

críticas crescentes vindas de fora, em particular em relação à sua falta de

transparência, relativa ineficiência e déficit de representação. Em muitas ocasiões

existe uma frustração com a dependência de doadores externos e os resultados

geralmente pobres da maioria de suas ações, expressa na dissonância entre o que se

espera que a sociedade civil produza e o que ela de fato produz, ou entre sua alta

capacidade de levantar questões e sua baixa capacidade de mudar desigualdades

estabelecidas na burocracia do Estado e nos governos, a fim de servir ao interesse

público.19

Outro processo em curso diz respeito à reconfiguração do poder político dos

Estados nacionais e a redefinição do seu papel no sistema internacional. O Estado

segue sendo um ator essencial de regulação econômica, de representação política e

de solidariedade social, mas sua atuação ganha novos formatos, novos contornos,

suas estruturas internas e funções se internacionalizam (Castells, 1999b). A

capacidade de controle dos Estados sobre os diferentes processos econômicos,

políticos e sociais perde força com a crescente interdependência da economia e dos

mercados financeiros, com um sistema global cada vez mais interconectado e com a

intensificação dos fluxos globais de capital, de produção, de comércio, de

informação, de comunicação. Muitas atividades e processos passam a ser globais em

seu núcleo e o Estado perde seu poder de controle total sobre a operação desses

processos.20

A intensificação dos processos de globalização aumenta de maneira

significativa a inter-relação entre as esferas nacional e mundial e, ao mesmo tempo

em que impulsiona o fortalecimento de movimentos locais e nacionais, mostra-se

18 Ibidem, p. 70-71. 19 SORJ, Bernardo. Sociedades civis e relações Norte-Sul: ONGs e dependência. Rio de Janeiro:

Centro Edelstein de Pesquisas Sociais, 2005. p. 3. 20 SORJ, Bernardo. Op. cit. p. 3.

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capaz de provocar identidades em âmbito internacional e extraterritorialmente.

Nesse sentido, alguns autores chamam a atenção para o surgimento de “novas

identidades”, a constituição de um espaço político global e multidimensional, a

formação de uma cidadania global e o redesenho da democracia para além das

fronteiras nacionais (Vieira, 2001; Teixeira, 2001).21

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Verificou-se, no desenvolvimento deste artigo que a relação entre o local e o

global tem sido fruto de preocupação entre especialistas de áreas distintas nas

Ciências Humanas. Tal fato se deve em muito às mudanças observadas no cenário

internacional, apontando para uma reconfiguração do espaço e aceleração do tempo,

levando a uma percepção por vezes equivocada entre os que assistem e tentam

teorizar sobre os acontecimentos.

Sendo assim, a sociedade civil, principalmente em seus segmentos não

hegemônicos, representa e constrói interações sociais a partir dos espaços locais.

Espaços referentes para o estabelecimento de identidades que podem fomentar laços

de solidariedade, identificação de interesses e causas coletivas e apoiar formas de

organização e de ação políticas.

Falar de sociedade civil global significa falar sobre uma idéia política que

representa um fenômeno real, ainda que suas fronteiras variem conforme as

diferentes definições e visões, e que seu formato e direção estejam em constante

transformação e redefinição. Trata-se também de um projeto político inserido em

uma ordem cosmopolita regida pelo direito humanitário e pelos direitos humanos,

onde se avistam os contornos de uma esfera pública global em formação.

Porém, deve-se ter em mente que a dimensão de controle social constitui-se

em importante elemento na ação de organizações locais sobre grandes projetos de

multinacionais, instituições multilaterais e governos, com a exigência de

transparência da contabilidade e dos recursos de origem pública investidos.

REFERÊNCIAS

21 TEIXEIRA, Elenaldo. Op. cit.; VIEIRA, Liszt. Op. cit.

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