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PARTICIPAÇÃO, DESIGUALDADE E RAÇA: comparação entre Belo Horizonte e a Cidade do Cabo Natália Salgado Bueno (Mestranda em Ciência Política – USP/ [email protected])

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PARTICIPAÇÃO, DESIGUALDADE E RAÇA: comparação entre Belo Horizonte e a Cidade do Cabo

Natália Salgado Bueno

(Mestranda em Ciência Política – USP/ [email protected])

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Apresentação

Primeiramente, é importante que deixar claro que este texto é um trabalho em

andamento, de um projeto de mestrado iniciado em março de 2008. Dessa forma,

apresentarei, neste texto, tanto as hipóteses e enquadramento teórico mais geral que

orientam este trabalho, assim como alguns resultados parciais já encontrados. Destaco que

os resultados parciais empíricos encontrados ainda não foram interpretados à luz do

enquadramento teórico discutido, ainda que foram orientados pelas perguntas colocadas

pela teoria. Desta forma, apresento os resultados preliminares, sem contrastá-los com os

objetivos principais do projeto, uma vez que a parte empírica é um passo necessário, ainda

que não o objetivo último da pesquisa.

O objetivo principal desta pesquisa é, primeiramente, de cunho teórico. Trata-se de

interpretar e avaliar em que medida a inclusão de fatores políticos traz avanços, em relação

a modelos estabelecidos do Voluntarismo Cívico e da centralidade, na explicação da

configuração da participação política. Para alcançar esse objetivo, é necessário identificar

os principais fatores que explicam as variadas propensões à participação política. Desta

forma, toma-se como objeto a participação política de indivíduos em associações nas

cidades de Belo Horizonte e Cidade do Cabo.

Parte-se da proposição consolidada, advinda, com algumas variações, do modelo da

centralidade, de que a maior posse de recursos individuais de natureza econômica leva à

maior propensão a fazer parte de associações orientadas para o sistema político. Sendo

assim, uma vez que esses recursos estão assimetricamente distribuídos entre diversas

clivagens, os níveis de participação entre os grupos sociais serão desiguais. Argumenta-se,

todavia, que essa proposição - maior posse de recursos participatórios, leva à maior

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participação - é insuficiente para explicar a configuração da participação política em

associações (sua natureza, intensidade e disparidades grupos diversos). Ainda que recursos

de natureza socioeconômica tendam a se converter em maior participação, fatores políticos

alteram essa relação, seja para intensificá-la, seja para invertê-la ou, ainda, mediá-la por

outros elementos.

Para os casos específicos de Belo Horizonte e Cidade do Cabo, toma-se raça como

variável-teste dessa proposição. Raça, como fator construído politicamente, que condiciona

a ordem e distribuição de bens e valores políticos, teve significados e saliências distintos no

Brasil e na África do Sul. Nesse sentido, conjectura-se que, raça, no caso da Cidade do

Cabo, dada a sua capacidade de mobilização e polarização políticas inverte a relação entre

maior posse de recursos socioeconômicos e participação, levando grupos de menor posse a

serem mais ativos em associações. Por outro lado, no caso belorizontino, raça tem efeito

"mediado", ou seja, diferentes grupos raciais usam recursos distintamente, mas mantém-se

a relação entre maior posse de recursos e maior probabilidade de participação.

Em outras palavras, parte-se da proposição típica do modelo da “centralidade” e do

Voluntarismo Cívico, da conversão de recursos individuais em participação política, e

pergunta-se de que maneira os próprios constrangimentos políticos influenciam a

configuração da participação. Trata-se, desta forma, num duplo esforço, tanto analítico,

quanto empírico. A dimensão analítica está na avaliação crítica da proposição principal dos

modelos da centralidade e do Voluntarismo Cívico para explicar como a configuração da

participação, devido à ausência, nesses modelos, de fatores políticos de conformação da

polity. A dimensão empírica está na identificação dos fatores que levam à participação,

tanto as variáveis de recurso típicas (renda e escolaridade), quanto os fatores

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políticos(destacadamente a construção política da raça, para esta pesquisa). Vale ressaltar

que o esforço empírico, ainda que subordinado à dimensão analítica, testará o modelo da

centralidade e do Voluntarismo Cívico em casos de democracias recentes (África do Sul e

Brasil), sendo que o conhecimento empírico acumulado sobre participação e posse de

recursos se concentra em democracias européias e nos Estados Unidos.

Uma vez identificados os principais objetivos que norteiam o problema, é

necessário justificar e apresentar as escolhas feitas na abordagem do problema. Dessa

forma, a 1) participação política em associações; 2) a delimitação dos principais fatores que

levam à participação; assim como 3) a perspectiva comparada, serão justificados e

apresentados em mais detalhe na medida em que se apresenta a síntese da bibliografia

relevante.

2.1. Discussão bibliográfica

O primeiro elemento deste projeto, a participação política, quando definida

simplesmente como qualquer ação que busque comunicar preferências e influenciar o

sistema político, é composta de uma variedade de atividades: desde o voto, que é universal

e, em certo casos, compulsório, até atividades de protesto e mobilização que envolvam

violência política. Claramente, o voto ocupa lugar de destaque nos estudos sobre

comportamento político. Estuda-se não só a propensão ao voto, mas também sua direção e

racionalidade, através de perspectivas mais diversas, da psicologia política, modelos

formais de escolha social e escolha racional, a perspectivas “sociológicas” (tipicamente,

recursos). Todavia, a descrição da configuração da participação política não se reduz ao

voto. Descrever e compreender os padrões de ativação política em certo sistema político

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envolve uma variedade de atividades, que, potencialmente, possuem diferentes “lógicas” -

causas e efeitos.

Para esta pesquisa, a dimensão da participação escolhida é a participação política

em associações. Essa escolha é adequada aos objetivos deste projeto por dois motivos,

discutidos a seguir.

Primeiramente, participação política em associações é tipicamente mais exigente,

em termos de recursos, do que várias outras atividades, como o voto, eventuais

manifestações, abaixo-assinados, petições e protestos. Participar de associações exige certa

regularidade, disponibilidade de tempo e, freqüentemente, capacidades deliberativas ou de

organização. Em contraposição ao voto, que ocorre de forma esporádica, ainda que regular,

e que é, em certo sentido, “facilitado” pelo sistema político (que indica as escolhas, a data e

a hora da votação), a participação em associações politicamente orientadas tem mais

custos. Desta forma, trata-se de um objeto interessante para se avaliar os modelos de

propensão à participação baseados em recursos.

Em segundo lugar, a participação política em associações foi alvo de pesquisa

extensa no caso dos Estados Unidos (Verba, Schlozman & Brady, 1995) e em perspectiva

comparada entre Áustria, Holanda, Índia, Nigéria, Japão, antiga Iugoslávia e Estados

Unidos (Verba, Nie & Kim, 1979), o que permite o contraste com o caso brasileiro e o sul-

africano. Desse modo, possíveis conclusões que coincidam ou difiram dos estudos

anteriores, ampliariam o conhecimento empírico sobre esse tipo de participação.

Vale, todavia, um adendo sobre a definição de participação política. Como se

distingue o político do não-político, especialmente em casos como os de associações que se

encontram numa rede de associações de natureza variada e fragmentada? Para se distinguir

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quais associações são definidas como políticas e quais são consideradas não-políticas - e,

assim, a participação nelas é, respectivamente, política e não-política -, toma-se em

consideração, nesta pesquisa, dois critérios.

O primeiro critério, analítico e mais amplo, advém do trabalho de Reis (1984), no

qual este critica a definição do político numa mera referência ao Estado. Para este autor, o

político se remete à ocorrência de interação estratégica ou à orientação de alguma forma

conflitual. O segundo critério advém da definição ampla de participação dos trabalhos de

Warren (2001, pp.94-129) e Rosenstone & Hansen (1993, p.4). Participação política é

definida pela ação que busca influenciar a distribuição de bens sociais e valores.

Similarmente ao critério analítico de Reis, trata-se de ações que, ainda que possam ser

direcionadas ao Estado, não se limitam a ele. Nesse sentido, participação política em

associações inclui desde partidos políticos e sindicatos até a participação em, por exemplo,

organizações comunitárias que busquem recursos ou influenciar a distribuição de serviços

de saúde, educação entre as regionais de um município. Todavia, essa definição exclui, por

exemplo, associações de auto-ajuda ou esportivas, cuja atuação restringe-se a prover

serviços e convivência a seus membros, mas não se envolvem em disputa de interesses ou

influenciar em formas de regulação de conflito.

Para entender por quais processos indivíduos participam em associações políticas

(e, dessa forma, passa a ser politicamente ativos), são mobilizadas, principalmente, duas

vertentes de explicação. A primeira vertente, advinda das tradições da “centralidade”

(Milbrath, 1965) e do Modelo do Voluntarismo Cívico (Verba et. al., 1995), explica as

variadas propensões de os indivíduos participarem politicamente através, principalmente,

da posição dos indivíduos na estrutura social. A posição ocupada corresponde à dotação de

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recursos participatórios, que, dessa forma, torna-os mais ou menos propensos a participar

politicamente, uma vez que participar demanda custos. Tal perspectiva reconhece que a

atuação em associações não está imune de assimetrias e está, portanto, inserida em relações

de poder que podem replicar estruturas sociais de desigual controle sobre recursos (Warren,

2001, p.32-3). A segunda perspectiva chama a atenção, por sua vez, à “lógica política” da

participação (Rosenstone & Hansen, 1993, p.11), ou seja, a influência de fatores

institucionais na mobilização ou constrangimento à atuação de certos segmentos da

população (Huntington & Nelson, 1976, p.6-12). Esses fatores políticos são de natureza

variada, desde identificação partidária, canais abertos à participação, escolhas e estratégias

política de elites, assim como fatores “macro” de saliência e mobilização de certos

atributos politicamente, o que condiciona a distribuição de bens e valores e a orientação dos

grupos possuidores desses atributos em relação ao Estado.

Pretende-se, então, tomar ponto de partida modelos explicativos society-centered,

ou seja, de modelos que destacam a influência na posse de recursos na propensão à

participação política. Todavia, ainda se parta desses modelos, argumenta-se que outros

fatores são necessários à análise da configuração da participação. Adiciona-se, portanto, a

abordagem polity-centered, que destaca fatores políticos para explicar como se configura a

participação (Gurza Lavalle, Acharya & Houtzager, 2005; Houtzager, Acharya & Gurza

Lavalle, 2007). Ao incluir a abordagem polity-centered, abre-se espaço, como já indicado

anteriormente, não só para a ampliação do conhecimento empírico sobre a propensão à

participação, mas também para a discussão analítica sobre os potenciais e dificuldades dos

modelos society-centered.

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A tradição que discute a relação entre a posição social e participação política é

extensa e aponta consistentemente para uma associação positiva entre maior renda, status e

escolaridade (variáveis denominadas de “centralidade” objetiva) e ativação sócio-política

(e.g., Milbrath, 1965; Nelson, 1987). Numa literatura mais recente, Verba, Schlozman &

Brady (1995) apresentam o Modelo do Voluntarismo Cívico (CVM, i.e., Civic Voluntarism

Model) cujo principal objetivo é explicar a propensão a tomar parte em atividades políticas

de forma mais sistemática que os estudos anteriores.

No CVM, há três dimensões principais que explicam a participação em diversas

atividades políticas: motivações, capacidade e recrutamento. A dimensão da motivação

(engagement) é caracterizada pelas orientações em relação à política e às próprias

percepções individuais de eficácia, que influenciam a escolha de participar. A dimensão da

capacidade é baseada na noção de recursos, sendo esses: dinheiro, tempo e “habilidades”

ou “competências” cívicas (time, money, and civic skills). O recrutamento compõe a

explicação da participação do indivíduo pela presença deste em redes de contato e

convívio, que o levam a ser instigado ou pressionado a tomar parte. Ainda que seu modelo

seja composto de três elementos, os autores se concentram nos recursos (tempo, dinheiro e

“habilidades” ou “competências” cívicas). Eles apontam que recursos são os fatores

principais que levam à participação (ainda que diferentes atividades políticas exijam

recursos distintamente) e que, por sua vez, também causam assimetrias nos níveis de

ativação entre diversos grupos, dada a distribuição desigual de recursos pela população.

Vale destacar a noção de competências (skills) para esclarecer como os autores a

concebem. Entendida como “communicational and organizational abilities that allow

citizens to use time and money effectively in political life” (Verba, Schlozman & Brady,

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1995, p.320), a noção de competências (skills) é uma tentativa de trazer mecanismos

causais mais específicos para o debate sobre a relação entre participação em associações

não-políticas e desenvolvimento de virtudes, como autonomia e propensão à participação

em atividades políticas. Os autores buscam definir por quais meios as atividades em

associações não-políticas tornam o indivíduo mais apto à cidadania, à participação política

e, sendo, nesse sentido, um recurso, que capacita o indivíduo a participar. Todavia, em

grande parte do livro de Verba e seus colaboradores enfatizam o condicionamento social

dos recursos e do engajamento político, de forma a demonstrar como certos

comportamentos e opiniões políticas se vinculam - pelo menos no plano agregado - à

posição social ocupada pelo indivíduo. Nesse sentido, mesmo que a atuação em

associações não-políticas seja relevante para a participação política através do

desenvolvimento de competências, é preciso ter em mente que tal participação é, por sua

vez, também condicionada por fatores como renda, escolaridade, ocupação e tempo.

A segunda perspectiva, da influência dos fatores políticos1, possui duas vertentes

para destacar o efeito do político na configuração da participação. A primeira se refere às

escolhas e estratégias de elites política afeta a propensão dos indivíduos a participar

politicamente (Rosenstone & Hansen, 1993). A segunda vertente trata da configuração da

sociedade em termos políticos, ou seja, tanto a identificação e solidariedade política intra e

inter-grupos, quanto aos efeitos do arcabouço estatal em salientar ou reprimir atributos na

constituição da ordem política e, assim na sua distribuição de bens e valores (Verba, Nie &

Kim, 1979; Gurza Lavalle, Acharya & Houtzager, 2005).

Rosenstone & Hansen, por exemplo, sintetizam a primeira dessas vertentes no

trecho a seguir (1993, p.36-7): 1 Também chamados de group-based processes por Verba, Nie & Kim (1979).

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Political Participation arises from the interaction of citizens and political mobilizers. Few people participate spontaneously in politics. Participation, instead, results when groups, political parties, and activists persuade citizens to take part. Personal characteristics – resources, perceived rewards, interests, and benefits from taking part in politics – define every person’s predisposition toward political activity. The strategic choices of political leaders – their determinations of who and when to mobilize – determine the shape of participation in America […] Their strategic choices impact a distinctive political logic to political participation

Nesse sentido, a influência política não pode ser dissociada dos modelos centrados

em recursos, ainda que a lógica política da participação seja crucial para determinar quais

tipos de indivíduos, quando e com qual intensidade eles devem participar. Essa vertente

destaca as escolhas, as atitudes e as ações das elites políticas e a capacidade dessas em

influenciar a natureza, os modos e a intensidade da participação política (Huntington &

Nelson, 1976).

Similarmente a esses autores, Verba, Nie & Kim (1979) apontam que não é possível

dissociar a influência de fatores políticos dos recursos individuais2 que capacitam os

indivíduos serem ativos politicamente. Todavia, Verba e seus colaboradores entendem fator

políticos a partir da segunda perspectiva, ou seja, instituições como a configuração de

grupos politicamente, a partir de processos de incentivo e constrangimento do Estado na

construção da ordem política. Esses autores argumentam que o efeito de fatores políticos

(e.g., a polarização da sociedade em partidos, densidade associativa e exclusividade dessas

associações, clivagens e atributos que condicionam a distribuição de bens e valores

políticos) deve ser visto como uma variável interveniente na associação positiva entre

posse de recursos e participação política. Sua hipótese geral prediz que:

[…] an individual-based process of political mobilization in which citizens convert individual resources based on income and education into political activity would lead to a uniformly strong relationship between our socioeconomic scale and political activity across

2 Verba, Nie & Kim também denominam os recursos de individual-based processes.

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nations were it not for the intervening effect of group-based processes [fatores institucionais] in the various nations. (Verba, Nie & Kim, 1979, p.64) [grifo do autor]

Segundo esses autores, pode-se esperar dois tipos de efeitos políticos intervenientes:

1) mobilizar a um nível de atividade acima do que seria esperado pelo nível de recursos

socioeconômicos; e 2) inibir a atividade política para um nível de atividade abaixo do que

seria esperado de acordo com o nível de recursos socioeconômicos (ibidem, p.80).

Nesse sentido, as perspectivas que destacam a influência de fatores institucionais

simultaneamente se sustentam na perspectiva dos recursos quanto a criticam, apontando a

insuficiência de suas variáveis explicativas para entender as variações na configuração da

participação. O Modelo do Voluntarismo Cívico é, claramente, mais sofisticado do que o

modelo da centralidade original, todavia o CVM ainda não leva em consideração fatores

políticos para compreender a configuração da participação - sejam esses fatores os

constrangimentos e incentivos associados a atributos na constituição da política de certa

sociedade, seja pelas escolhas e estratégias de elites de efeitos de curto a médio prazo.

Para este projeto de pesquisa, pretende-se utilizar da comparação entre dois

sistemas políticos e institucionais distintos, Brasil e África do Sul - exemplificados nas

regiões metropolitanas de Belo Horizonte Cidade do Cabo, respectivamente -, para

identificar os efeitos políticos intervenientes sobre a associação entre maior posse de

recursos e maior propensão a participar. Dessa forma, a comparação entre duas cidades, em

países diferentes, permite identificar as peculiaridades e efeitos de sistemas institucionais

distintos atuando sobre processos similares no nível individual (recursos se convertendo em

maior chance de participação). É importante ressaltar que se trabalhará, neste projeto de

pesquisa, com a segunda vertente da influência política, que destaca a configuração política

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da sociedade, a partir de processos de construção política de atributos e, assim da ordem e

distribuição de bens e valores no sistema político.

A escolha específica da comparação entre essas duas cidades apresenta, ao menos,

duas vantagens. Primeiramente, como Houtzager, Acharya & Gurza Lavalle (2007, p.5)

apontam:

the choice of sub-national units for the surveys is therefore critical: in countries with high variation across national territory in the factors that are thought to contribute to the exercise of citizenship [como Brasil e África do Sul], including the authority of national government, sub-national analysis make possible an exploration that in detail and nuance aggregate national-level surveys does not permit.

A escolha de duas regiões metropolitanas é especialmente crítica para a comparação

entre Brasil e África do Sul. Ainda que os países possuam certas semelhanças em termos de

distribuição de renda, índice de poupança e renda per capita (Schmitter, 1996, p.17;

Seekings, 2003, p.12), em termos de graus de urbanização e distribuição espacial da

população, os países apresentam grandes diferenças, o que traria ainda mais desafios à

pesquisa comparada.

Além do mais, como apontando anteriormente, Belo Horizonte e Cidade do Cabo

apresentam semelhanças em alguns indicadores como distribuição de renda, renda per

capita e escolaridade, o facilita o “controle” do efeito institucional sobre a participação,

uma vez que a distribuição de recursos socioeconômicos (que potencialmente se convertem

em participação política) é semelhante. Todavia, são as diferenças presentes na dimensão

racial na política que trazem destaque e valor heurístico à comparação entre Belo Horizonte

e Cidade do Cabo.

Raça, entendida como atributo adscrito, mas socialmente construído e fundado

numa concepção biológica errônea (Guimarães, 1999, p.153), possui importância em, ao

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menos, dois sentidos para a análise da propensão à participação política. Primeiramente,

aponta-se para a recorrente associação entre raça e renda, escolaridade, status ocupacional e

outras medidas socioeconômicas, que por sua vez, estão associadas à participação. Em

segundo lugar, raça é categoria de classificação socialmente relevante, sendo que a

existência de práticas discriminatórias expressa essa dimensão. Pergunta-se, parafraseando

Lamounier (1968, pp.38-9), em que medida assimetrias em recursos, além de práticas

discriminatórias, expressam-se em comportamentos políticos diferenciados por grupos

raciais?

Não existiu, no Brasil, uma mobilização racial abrangente, como o caso do Civil

Rights Movement, nos Estados Unidos, e tampouco uma mobilização racial como o Black

Consciousness Movement, na África do Sul3. Todavia, ainda que os movimentos negros

não tenham alcançado mobilização societária ampliada, isso não significa que assimetrias

em recursos, além de práticas discriminatórias, não se expressem em comportamentos

eleitorais diferenciados por grupos raciais no Brasil. Castro (1993), por exemplo, afirma

que o efeito da raça é ambivalente, apontando que, ainda que negros e pardos se alienem

mais da participação eleitoral, estes, quando ativos, tendem a escolher, em maior

proporção, candidatos da esquerda. Ainda, segundo Castro, não se deve opor raça e classe

no comportamento eleitoral para o caso brasileiro: “Pertencer a um grupo racial pode, por

exemplo, intensificar, em alguns casos, ou impedir, em outros, a manifestação de

tendências dadas pela posição social” (Castro, 1993, p.483).

3 Ver Hasenbalg, 2005, pp. 232-4 para os fatores que obstaculizam a formação de uma mobilização racial ampliada no Brasil.

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No caso sul-africano, como apresentado por Anthony Marx (1998) e Frederickson

(2001, pp. 1-28), a atuação do Estado, via Apartheid, foi central na constituição de uma

mobilização baseada em laços de solidariedade ou motivação racial:

Early protest by black South Africans was both strengthened and weakened by its indigenous nature. Ties to the land and existent social structures provided the basis for early identity and organization, but these were largely divided by persistent language, regional, and ethnic distinctions, and as elsewhere even more broken up by dispersion. Only as white rule and a unified state were consolidated fully did South Africans commonality in their experiences. Cross-language, cross-ethnic, and cross-class identity emerged as did more united mobilization. Contacts with African-American activists and growing industrialization and urbanization continually reinforced black South African’s efforts. Divisions remained, but were gradually eclipsed by racial identity and action in opposition to white rule, to which state authorities were forced to respond (Marx, Anthony, 1998, p.194)

A hipótese de Marx aponta para o processo de constituição de solidariedade raciais,

especialmente entre o grupo “Black”, via antagonismo gerado pelo Apartheid. As leis de

segregação, com a conseqüente perda da cidadania e classificação de indivíduos por seus

vínculos étnicos e raciais impostos pelo sistema político, foram cruciais para o

desenvolvimento de solidariedade racial, que se expressa tanto pela violência política,

quanto pela formação de redes associativas de baseadas de forma exclusiva no atributo

racial (Kotzé, 1975, pp.66-68). Ainda hoje, autores apontam para a profunda tensão e o

arraigamento das relações raciais na sociedade civil, na interação social e na distribuição

espacial (Marx, 1998, p.214-6). Como aponta Seekings, “South African’s racialised

identities and perceptions of others have strong roots in civil society. ‘Race-thinking’

persists alongside a strong commitment to transcending the racial divisions of apartheid”

(Seekings, 2007, p.9).

Dessa forma, existência de processos semelhantes no plano individual, de

conversão de recursos em maior chance de participação, e, simultaneamente, as diferenças

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claras no plano macro em termos de mobilização e conflito políticos na dimensão racial

(fator institucional), torna a comparação de Belo Horizonte e Cidade do Cabo

particularmente interessante para se avaliar os ganhos analíticos da inclusão de fatores

institucionais na explicação da configuração da participação.

3. Objetivos e hipóteses

Primeiramente, como já mencionado na apresentação, este projeto busca identificar

problemas do modelo centrado em recursos (society-centered) a partir da inclusão de

fatores políticos, destacadamente a raça. Ou seja, pressupõe-se a relação positiva entre

posse de recursos e maior chances de participação e pergunta-se sobre os efeitos de fatores

institucionais sobre essa relação. Desta maneira, caso as hipóteses a seguir se corroborem,

haverá implicações e necessidade de reformulações nas proposições típicas da abordagem

centrada em recursos. Em segundo lugar, a maior parte dos estudos sobre participação

política tem se concentrado em democracias mais longevas, como as européias e o caso

estadunidense. Desse modo, ao mobilizar dados de Belo Horizonte e Cidade do Cabo e

tomá-los comparativamente, ampliar-se-á conhecimento empírico sobre democracias

recentes, como é o caso brasileiro e o sul-africano.

Dessa forma, para alcançar esses objetivos, é necessário formular hipóteses que

orientarão as análises e as interpretações dos resultados.

A hipótese geral que orienta este projeto se fundamenta nas proposições de Verba,

Nie & Kim (1979). Recursos de natureza socioeconômica tendem a se converter em maior

participação política, o que os torna mais dotados em recursos participatórios e,

consequentemente, mais propensos a participar. Todavia, fatores institucionais alteram essa

relação entre maior dotação de recursos e participação, seja para intensificá-la, restringi-la

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mediá-la ou invertê-la. Para os casos de Belo Horizonte e da Cidade do Cabo, as hipóteses

específicas se seguem:

i) no caso belorizontino, os principais condicionantes à participação são recursos, como

renda, escolaridade e competências cívicas desenvolvidas no âmbito de organizações civis.

Os fatores institucionais afetam essa relação através, principalmente, do efeito “mediado”

da raça. Ou seja, o efeito da variável raça interage com renda, escolaridade e competências

cívicas, de modo que o efeito dos recursos é distinto para cada grupo racial. Poder-se-ia

dizer, por exemplo, que o aumento no nível de escolaridade tem maior efeito para negros

(relativamente a brancos) na propensão a tomar parte em associações. Uma vez que no

Brasil não houve uma política sistemática de repressão a grupos raciais (em contraposição à

África do Sul), mas tampouco foi isento de práticas discriminatórias, pode-se conjecturar

que grupos raciais distintos serão diferentemente condicionados por recursos

participatórios. Esta hipótese do efeito mediado é análoga à proposição de Castro (1993),

sobre o efeito ambivalente da raça em termos de comportamento eleitoral: pertencer a um

grupo racial pode intensificar ou restringir o efeito de certos recursos (oriundos da posição

social), ainda que não invertê-los. De qualquer forma, o impacto desses recursos ainda seria

mais intenso e sistemático do que o efeito da dimensão racial, como vem sendo apontando

a literatura sobre participação política no Brasil, principalmente sobre comportamento

eleitoral4.

ii) no caso da Cidade do Cabo, argumenta-se que os principais condicionantes à

participação seriam, por sua vez, fatores institucionais, atuantes pela dimensão racial, que

restringem a associação positiva entre dotação de recursos e propensão a participar. Ainda

4 Pode-se encontrar na tese de doutorado de Mônica Mata Machado de Castro (1994) ampla revisão da literatura sobre comportamento político no Brasil.

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que variáveis socioeconômicas sejam relevantes para propensão a participar em

associações, a inserção em certo grupo racial (African e/ou Black, principalmente) suplanta

aqueles condicionantes. Nesse sentido, raça, mesmo quando controlada por variáveis de

recursos (renda, competências cívicas e escolaridade), é “imediatamente” significativa para

a propensão a participar de associações, invertendo a associação positiva entre maior posse

de recursos e maior propensão à associação. Tal conjectura se apóia não só na literatura

sobre participação na África do Sul (Bratton, 2006; Heller & Ntlokonkulu, 2001), mas

também pela perspectiva de que o Apartheid tem o efeito resiliente de ressaltar a raça como

atributo político em que se baseiam interesses, solidariedade e mobilização. Raça, nesse

sentido, leva grupos dotados de menos recursos (como, por exemplo, Black) a serem mais

ativos, devido a fatores associados com o modo com que raça se constituiu politicamente

na África do Sul (levando a certo grau de solidariedade intra-racial e conflito inter-racial).

De qualquer maneira, é importante esclarecer em que sentido se compreende raça

como um fator político. Como apontado anteriormente, pode-se entender fator institucional

como processos pelos quais o sistema político “conforma” a sociedade, configurando-a

através de uma ação do sistema político para a sociedade5. O Apartheid sul-africano, por

exemplo, claramente tornou raça atributo saliente não só politicamente, mas também nas

interação privada (como escolhas maritais e de amizade), de forma que raça pode ser vista

como uma variável que conforma e condiciona à ativação política devido a processos

coletivos e não individuais. No caso brasileiro, o sistema político não atuou

sistematicamente de forma a configurar a sociedade por clivagens raciais ou de cor, mas,

pelo contrário, buscou, em alguns momentos, anular a dimensão racial da vida política.

5 Ainda que obviamente a relação, em termos realísticos, nunca seja unilateral, a distinção dos sentidos da influência mútua entre Estado e sociedade é necessária como estratégia metodológica e explicativa.

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4. Resultados empíricos parciais

Os questionamentos apresentados serão tratados, parcialmente, através dos dados da

Pesquisa por Amostragem Probabilística da Região Metropolitana de Belo Horizonte

(PRMBH), em sua rodada 2005, parte da pesquisa do Social Hubble6.

No que toca à dimensão política, 82,8% da amostra não participa de nenhuma

organização política, sendo este vínculo formal ou informal, restando 17,2% da amostra

que é vinculado a, ao menos, uma organização política7. Esta participação política se

distribui entre os grupos de cor da seguinte forma8:

Tabela 1 Participação em Organizações Políticas, por Grupo de

Raça/Cor Raça/Cor Participa

(%) Não participa

(%) N

Branco 22,0 78,0 381 Pardo 12,9 87,1 435 Preto 17,2 82,8 192 Total 17,2 82,8 1008

Qui-quadrado: 12,023 Fonte: PRMBH, 2005

6 O Social Hubble é um projeto, inspirado no monitoramento de Detroit promovido pelo Instituto de Pesquisa Social (ISR), do Departamento de Sociologia e Antropologia e do Departamento em Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais em parceria com várias universidades (como Universidade da Cidade do Cabo, África do Sul) para a construção de surveys internacionais com possibilidades comparativas em diversas cidades do mundo. A rodada 2005 da PRMBH possui uma amostra de 1.122 entrevistados. 7 A variável participação política foi agregada de forma que os indivíduos são divididos entre aqueles que não participam politicamente e os que participam de ao menos uma associação política (indivíduos que participam de mais de uma associação são de quantidade estatisticamente proibitiva para serem considerados separadamente).

8 Na medida em que as diferenças entre pretos e pardos não se mostraram empiricamente relevantes no que tange à participação política, será usada a terminação brancos e não-brancos, sendo que os não-brancos incluem pretos e pardos. Os resultados destes testes podem ser obtidos através do e-mail dos autores. Amarelos e outras categorias não foram analisadas neste trabalho. Vale ressaltar que neste trabalho é utilizada a auto-classificação do entrevistado através das categorias oferecidas pelo IBGE.

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Tabela 2 Participação em Organizações Políticas, por Grupo de

Raça/Cor Raça/Cor Participa

(%) Não participa

(%) N

Brancos 22,0 78,0 381 Negros 14,2 85,8 627 Total 17,2 82,8 1008

Qui-quadrado: 10,279 Fonte: PRMBH, 2005

Os testes de qui-quadrado apontam que há dependência estatística entre a raça e

participação política. Isso significa que a distribuição da participação política não é

aleatoriamente distribuída entre grupos de cor e, portanto, há assimetrias que, inclinam a

um maior ativismo (proporcional) por parte de brancos. É necessário, todavia, um controle

de outras variáveis para distinguir com maior precisão o impacto quantitativo da raça na

propensão à participação política. Nesse sentido, utiliza-se o modelo de regressão logística

binária.

A variável resposta é participação política9. Do modelo da centralidade foram

apropriadas as variáveis renda familiar per capita e anos de estudo completados com

sucesso. Essas variáveis são importantes porque resumem a maior parte do efeito de outras

variáveis indicadoras de centralidade objetiva, especialmente num cenário urbano

(Milbrath, 1965). Do modelo do voluntarismo cívico se apropria a variável “habilidades

cívicas” que foi escolhido para compor as equações10. No questionário da PRMBH 2005,

pergunta-se se o respondente participa (se há vínculo formal ou informal), se ele contribui

financeiramente, se a participação é voluntária, se ele é filiado e se ele participa de

atividades na entidade. Verba, Schlozman e Brady, ao medirem “habilidades cívicas”,

utilizam perguntas específicas, como participação em apresentações, falar em públicos,

participação em reuniões, debates e capacidades cognitivas. O autor ressalta que essas

habilidades são desenvolvidas em espaços de contato interpessoal e socialização, como

9 Sendo utilizados modelos de regressão logística, a variável resposta é configurada de forma binária, dummy, sendo participa = 1 e não participa = 0.

10 A dimensão do recrutamento não poderia ser medida adequadamente tendo em vista o questionário da pesquisa. A dimensão da motivação (engagement), por outro lado, exigiria outros testes e uma discussão analítica mais aprofundada do Modelo do Voluntarismo Cívico, de forma que desviaria do foco proposto pelo trabalho.

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igrejas, locais de trabalho e associações. Nesse sentido, são as atividades nas associações

que levam ao desenvolvimento das habilidades e não o vínculo. Esse ponto é importante

uma vez que o mero vínculo a associações (tampouco o crescimento do vínculo

associativo, assim como o número de associações) não é indicador confiável para a

formação de habilidades que condicionam a atuação política. Putnam (2000), por exemplo,

ressalta que, ainda que o número de associações e associados tenha aumentado nos EUA,

as associações ganham, cada vez mais, o caráter de associações terciárias, nas quais os

associados não participam de atividades de interação, sendo o ato mais freqüente a doação

de dinheiro (no caso norte-americano).

A oura variável que compõe o modelo é, como já deve ser esperado, raça. Raça

remete a um construto, identidade social, ainda que se baseie em “idéia biológica errônea”,

trata-se de uma categoria socialmente efetiva – que como categoria sociológica, prescinde

de fundamentação natural11. Reitera-se que nos testes feitos, não houve diferença

significativa entre a variável definida como brancos e não-brancos e a variável

discriminada em brancos, pretos e pardos (sendo que preto foi o grupo de referência).

Dessa forma, os resultados reportados serão apresentados com a variável de raça

configurada como branco e não-brancos.

O primeiro modelo utilizado não inclui a variável raça e tem como fim demonstrar

o comportamento das variáveis advindas do modelo da centralidade e do voluntarismo

cívico12:

11 Alan Templeton (1999) aponta, em artigo que busca discutir os fundamentos biológicos da idéia de raça humana, afirma que a baixa variabilidade genética encontrada entre os diferentes grupos humanos não permite sustentar a idéia da existência de diferentes “raças” ou “subespécies”. Entretanto, o próprio Templeton ressalta que tal resultado em nada diz respeito aos aspectos sociais, culturais, políticos ou econômicos da idéia de raça.

12 A variável renda familiar per capita, devido à sua distribuição assimétrica, teve sua distribuição aproximada da distribuição normal através da sua transformação em logaritmo natural. Tanto a variável “renda” quanto a variável “anos de estudos” foram centralizadas de forma que suas médias correspondem a zero, o que significa que a constante indica a probabilidade de participação em organizações políticas de indivíduos com renda e escolaridade equivalente à média da população estudada e permite uma análise diferenciada da constante. Além do mais, a centralização das variáveis reduz a possibilidade de multicolinariedade entre tais variáveis. A variável “atividade em associação não-políticas”, ao contrário das variáveis renda e escolaridade que são contínuas, é dummy, sendo “participa em atividades em associações não-políticas” =1. A variável associativismo também é dummy, sendo “participa em associações = 1”.

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Tabela 3 Participação política

b % Sig. Constante -2,101

(0,135) 10,8 0,000

Logaritmo da renda familiar per capita

0,325 (0,100) 38,4 0,001

Anos de estudo 0,010 (0,024) 1,0 0,684

Atividade em associação não-política 1,158 (0,328) 218,2 0,000

Vínculo com associação não-política 0,142 (0,332) 15,2 0,670

g.l. = 4 Qui-quadrado crítico = 9,488

Qui-quadrado obtido = 84,281

Nota: Erro-padrão entre parênteses. “%” traz os efeitos percentuais da constante de cada variável já calculados. Fonte: PRMBH 2005.

Renda familiar per capita e atividade em associações não-políticas se mostraram

estatisticamente significantes, sendo que vínculo com associações não-políticas e anos de

estudos não apresentam coeficiente estatisticamente significantes. A relação entre

associativismo e atividades em associações não-políticas já foi discutida anteriormente,

uma vez que há fortes indicações de que se trata de uma relação espúria. Anos de estudo

não ser estatisticamente significante é um tanto surpreendente, mas, de qualquer forma, sua

presença neste modelo e nos modelos seguintes se justifica devido à sua associação linear

moderada com renda (r = 0,577) e uma vez que a análise discriminante mostrou que, ainda

que sua capacidade de discriminação entre o grupo que participa e o grupo que não-

participa seja menor do que a capacidade da renda, seu potencial de discriminação não é

irrelevante, sendo, portanto, importante mantê-la como variável de controle.

Com a introdução da variável raça, o modelo com as variáveis escolhidas se

apresenta da seguinte maneira:

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Tabela 4 Participação política e raça

b % Sig. Constante -2,170

(0,153) 10,2 0,000

Logaritmo da renda familiar per capita

0,337 (0,108) 40,1 0,002

Anos de estudo 0,003 (0,026) 0,3 0,909

Atividade em associação não-política

1,213 (0,185) 236,5 0,000

Raça 0,267 (0,197) 30,6 0,176

g.l. = 4 Qui-quadrado crítico = 9,488

Qui-quadrado obtido =

78,792

Nota: Erro-padrão entre parênteses. “%” traz os efeitos percentuais da constante de cada variável já calculados.Fonte: PRMBH 2005.

Ao contrário do esperado, a variável raça não se mostra estatisticamente

significante. O sentido estatístico desse resultado implica que não haveria diferença entre

brancos e negros no que tange a propensão a participação política quando se controla o

efeito da variável raça por renda familiar per capita, anos de estudo e atividade em

associação não política. Isso não significa, todavia, que os resultados apresentados pelo

qui-quadrado para dependência estatística são inválidos, uma vez que uma análise

descritiva dos dados indica que a presença de negros é proporcionalmente menor em

atividades política. Esses resultados nos indicariam que o efeito da raça na propensão à

participação política passa pela renda e pela inserção em associações não-políticas e não,

necessariamente, a condicionantes simbólicos ligados estritamente ao atributo adscrito da

raça no que concerne à propensão a participar politicamente. Por fim, vale apontar que a

variável anos de estudo tampouco se mostra estatisticamente significante.

Quantitativamente, pode-se interpretar os efeito dos coeficientes da seguinte

maneira: o aumento em 100% na renda, eleva em 41,9% a probabilidade de um indivíduo

participar de organizações políticas e participar em atividades em associações não-políticas

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eleva em 179,2% a chance de tomar parte em organizações políticas13. A constante indica

que indivíduos com escolaridade média, média do logaritmo da renda, e que não participam

em atividades de associações não-políticas e negros possuem 10% de chance de

participarem politicamente. Todavia, o modelo no qual raça é introduzido apresenta pelo

teste qui-quadrado de ajuste do modelo pior ajuste que a equação com renda, anos de

estudo e atividade em associações não políticas14.

Na tentativa de sofisticar o modelo e tentar detectar possível o efeito diferenciado

dos recursos explorados neste trabalho (renda, escolaridade, e participação em atividades

não-políticas) para os diferentes grupos raciais, foram criados termos interativos. Os termos

criados apresentam a interação entre raça e renda familiar per capita, raça e anos de estudo,

participação em atividades não-políticas e renda, e participação em atividades não-políticas

e anos de estudo. Os termos interativos possibilitam a avaliação de efeitos diferenciados,

por exemplo, da renda sobre a propensão a participação política de diferentes grupos

raciais. Isso implica na avaliação diferencial (caso o termo interativo for estatisticamente

significante) do efeito da renda sobre a participação política para brancos e não-brancos.

Foram construídos vários modelos15, sendo que o modelo reportado abaixo

apresenta resultados analiticamente instigantes e, estatisticamente, tem melhor ajuste do

que os outros modelos construídos, tendo como referência o teste qui-quadrado para ajuste

do modelo.

13 Lembra-se que a regressão logística não fornece o coeficiente padronizado, o que não permite a comparação entre os

efeitos dos coeficientes.

14 O teste de Hosmer-Lemeshow utilizado para a adequação dos dados a modelos de regressão logística também indica que

na equação com a introdução da variável raça não há evidência de que os dados se ajustam ao modelo. Foram feitas

correlações Pearson para a verificação de alguma colienariedade entre renda e anos de estudo (assim como entre os termos

interativos utilizados no modelo seguinte). Todavia, como mostra o Anexo IV, as correlações apresentam valores aceitáveis.

O mesmo ocorre na relação entre atividades em associações não políticas e raça, uma vez que o qui-quadrado não mostra

dependência estatística, ver no Anexo III.

15 Os modelos construídos estão disponíveis através de pedido via e-mail aos autores.

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Tabela 5 Participação política, raça e interação

b % Sig. Constante -2,181

(0,154) 10,1 0,000

Logaritmo da renda familiar per capita

-0,166 (0,163) -15,3 0,307

Anos de estudo -0,003 (0,026) -0,3 0,904

Atividade em associação não-política

1,072 (0,200) 192,2 0,000

Raça 0,117 (0,221) 12,4 0,596

Atividade x ln Renda 0,527 (0,174) 69,3 0,002

Raça x ln Renda 0,509 (0,191) 66,4 0,008

g.l. = 6 Qui-quadrado crítico = 12,592

Qui-quadrado obtido = 96,077

Nota: Erro-padrão entre parênteses. “%” traz os efeitos percentuais da constante de cada variável já calculados. Fonte: PRMBH 2005.

Sobre as variáveis escolhidas para compor o modelo, é importante chamar a atenção

para a não-inclusão dos termos interativos compostos por raça versus anos de estudo e

atividade em associação não-política versus anos de estudo. Esses termos se mostraram

estatisticamente não-significantes, sendo que o termo raça versus logaritmo da renda

familiar per capita e o termo raça versus anos de estudo apresentaram alta associação linear

(r=0,71)16.

Além dos valores dos coeficientes, deve-se ter em vista, com maior atenção, a

significância ou não das variáveis, assim como os resultados obtidos com a inclusão dos

termos. Esta técnica estatística permitiu sofisticar o resultado do primeiro modelo com a

inclusão da variável raça apresentado, no qual raça não mostrou impacto no acesso dos

indivíduos ao sistema político através da ativação política. A figura a seguir busca ilustrar

os resultados encontrados: 16 Para a justificativa estatística para a não-inclusão dos termos interativos com escolaridade no modelo, ver Anexo IX.

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Negros não-ativos

Renda

Brancos não-ativos

Negros ativos

Parti

cipa

ção

Polít

ica

Brancos ativos

Figura 1 Propensão à participação política

Os resultados podem ser reportados da seguinte maneira. Negros e brancos não-

ativos em associações civis, com perfil médio17, possuem a mesma chance de tomar parte

em organizações políticas, da mesma forma que negros e brancos ativos também possuem a

mesma chance. Todavia, brancos e não-brancos ativos possuem cerca de 2,5 mais chances

de atuar politicamente do que brancos e não-brancos não-ativos. Renda eleva as chances de

participar do indivíduo branco, seja este ativo ou não, em relação aos negros.

Adicionalmente, a renda tem maior impacto para indivíduos ativos do que para não-ativos

em organizações não-políticas. Para indivíduos negros, renda só possui efeito positivo para

indivíduos negros ativos (mas com um impacto cerca de um terço do estimado para

brancos), não tendo impacto para indivíduos negros não-ativos, diferentemente do que

ocorre com os brancos. Participar em atividades de organizações não-políticas eleva as

chances tanto de brancos quanto de não-brancos ativos de participar politicamente.

17 Levando em consideração que as variáveis anos de estudo e logaritmo da renda familiar per capita foram centralizadas.

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