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1 Partidos políticos e sociedade civil nos processos de democratização na América Latina In: Mundo Rural - configurações rural-urbanas: poder e políticas (org: Eli Lima, Nelson Delgado e Roberto Moreira) Jorge O. Romano. 1. Introdução A América Latina, nos seus dois séculos de vida independente, talvez seja a região do mundo que mais reivindicou a democracia, consagrando-a nas instituições, limitando-a na sua implementação e recriando-a na prática. Nos últimos anos, após um período de regimes autoritários, as transições criaram condições para a instalação de regimes democráticos em sua dimensão eleitoral e política. Ou seja, na grande maioria dos países latino-americanos se avançou na “democracia eleitoral” e nas liberdades básicas. Todavia, é um desafio a construção da “democracia de cidadania”. Isto é, aquela na qual os direitos políticos são usados como alavanca para que outros direitos – civis, econômicos, sociais, ambientais e culturais – possam se tornar efetivos. As grandes massas de latino-americanos ainda estão percorrendo o caminho de eleitores a cidadãos ativos e plenos (PNUD, 2004: 36). O desafio de aprofundar os processos de democratização de tal forma que permitam a construção e vigência dos direitos se dá num contexto caracterizado por uma espécie de “triângulo político-social”. O primeiro vértice desse triângulo é a difusão dos regimes democráticos. Quase em sua totalidade, os países conseguiram os requisitos básicos – principalmente eleitorais - desse tipo de regime. O segundo vértice é a persistência da pobreza. Comparada com outras regiões democráticas do mundo, a América Latina apresenta junto com a democracia eleitoral grandes massas de população vivenciando privações materiais, negação de direitos e desempoderamento. O terceiro vértice do triângulo é a profunda desigualdade. As sociedades latino-americanas exibem não só a persistência, mas o aprofundamento da desigualdade em patamares dos mais elevados do mundo. Assim, a América Latina é uma região em desenvolvimento, organizada politicamente sob regimes democráticos, porém, com sociedades fortemente caracterizadas pela pobreza e pela desigualdade (PNUD, 2004: 38-39). Estas características foram e são apropriadas por discursos autoritários que contribuíram no passado para a implantação de regimes ditatoriais e que hoje sustentam que a democracia é inviável no continente. Voltam, transfigurados, os velhos supostos de que primeiro seria necessário o crescimento econômico para depois poder pensar em democracia. Nestes discursos, uma “democracia de cidadania” seria uma barreira para “o crescimento” devido à “sobrecarga da demanda” que ela traria consigo. Paralelamente, nesta ressignificação promovida pelos novos discursos autoritários, a sociedade civil (reduzida ao “terceiro setor”) junto com o mercado aparecem como o pólo das “virtudes” frente aos “vícios” intrínsecos do Estado, em geral, e da sociedade política - partidos e parlamentos - em particular (Dagnino et alli, 2006: 56).

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Partidos políticos e sociedade civil nos processos de democratização na América Latina

In: Mundo Rural - configurações rural-urbanas: poder e políticas (org: Eli Lima, Nelson Delgado e Roberto Moreira)

Jorge O. Romano.

1. Introdução

A América Latina, nos seus dois séculos de vida independente, talvez seja a região do mundo que mais reivindicou a democracia, consagrando-a nas instituições, limitando-a na sua implementação e recriando-a na prática. Nos últimos anos, após um período de regimes autoritários, as transições criaram condições para a instalação de regimes democráticos em sua dimensão eleitoral e política. Ou seja, na grande maioria dos países latino-americanos se avançou na “democracia eleitoral” e nas liberdades básicas. Todavia, é um desafio a construção da “democracia de cidadania”. Isto é, aquela na qual os direitos políticos são usados como alavanca para que outros direitos – civis, econômicos, sociais, ambientais e culturais – possam se tornar efetivos. As grandes massas de latino-americanos ainda estão percorrendo o caminho de eleitores a cidadãos ativos e plenos (PNUD, 2004: 36).

O desafio de aprofundar os processos de democratização de tal forma que permitam a construção e vigência dos direitos se dá num contexto caracterizado por uma espécie de “triângulo político-social”. O primeiro vértice desse triângulo é a difusão dos regimes democráticos. Quase em sua totalidade, os países conseguiram os requisitos básicos – principalmente eleitorais - desse tipo de regime. O segundo vértice é a persistência da pobreza. Comparada com outras regiões democráticas do mundo, a América Latina apresenta junto com a democracia eleitoral grandes massas de população vivenciando privações materiais, negação de direitos e desempoderamento. O terceiro vértice do triângulo é a profunda desigualdade. As sociedades latino-americanas exibem não só a persistência, mas o aprofundamento da desigualdade em patamares dos mais elevados do mundo. Assim, a América Latina é uma região em desenvolvimento, organizada politicamente sob regimes democráticos, porém, com sociedades fortemente caracterizadas pela pobreza e pela desigualdade (PNUD, 2004: 38-39).

Estas características foram e são apropriadas por discursos autoritários que

contribuíram no passado para a implantação de regimes ditatoriais e que hoje sustentam que a democracia é inviável no continente. Voltam, transfigurados, os velhos supostos de que primeiro seria necessário o crescimento econômico para depois poder pensar em democracia. Nestes discursos, uma “democracia de cidadania” seria uma barreira para “o crescimento” devido à “sobrecarga da demanda” que ela traria consigo.

Paralelamente, nesta ressignificação promovida pelos novos discursos autoritários, a sociedade civil (reduzida ao “terceiro setor”) junto com o mercado aparecem como o pólo das “virtudes” frente aos “vícios” intrínsecos do Estado, em geral, e da sociedade política - partidos e parlamentos - em particular (Dagnino et alli, 2006: 56).

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Contra estes argumentos aponta-se que somente com “mais e melhor” democracia se pode promover um desenvolvimento econômico, ambiental, social e politicamente “sustentável” que leve à superação da pobreza e à construção de sociedades mais igualitárias, já que, somente na democracia, as pessoas que não atingem os níveis básicos de bem-estar e sofrem as injustiças da desigualdade podem reivindicar, eleger e se mobilizar em defesa dos seus direitos (PNUD, 2004: 40). Mais e melhor democracia não implica “mais do mesmo”. Após uma década de predomínio do “modelo único” de democracia reafirmado pelo neoliberalismo1, o que se manifesta nos processos de democratização na América Latina é uma recriação da “demodiversidade”, isto é, da coexistência pacífica ou conflituosa de diferentes modelos e práticas democráticas (Santos B. e Avritzer, L , 2002: 71) sustentados por diferentes orientações e projetos políticos2.

A redemocratização na América Latina não ficou reduzida aos limites estruturais da implantação de democracias eleitorais. Nela se manifestaram tensões entre a restauração de procedimentos, regulações e instituições da democracia formal e a criação de novas normas e princípios organizadores da atividade política como um todo. Isto é, a conformação de uma nova gramática social (Lechner, 1988: 32) que vem orientando e dando novo significado ao conjunto de instituições e práticas políticas, num contexto onde permanecem - ou se atualizam - componentes e práticas autoritárias.

1 O neoliberalismo propiciou a perda da “demodiversidade” com a transformação de um dos modelos e práticas de democracia - a liberal e, mais restritamente, a eleitoral de “baixa intensidade democrática” – em modelo único, universal e hegemônico (Santos B. e Avritzer, L., 2002: 72). 2 Em alguns casos, as orientações políticas em disputa seriam expressões de “projetos políticos”, no sentido gramsciano, tal como é recuperado na análises de Dagnino et alli (2006). Isto é, enquanto um conjunto de crenças, interesses, concepções de mundo e representações do que deve ser a vida em sociedade que orientam a ação política dos diferentes sujeitos. A noção de projeto político implica, primeiro, a ênfase tanto na intencionalidade como no papel do sujeito – enquanto agência humana - na ação política. Segundo, a unidade entre ação e representação; isto é, o vínculo indissolúvel entre a cultura e a política que ela expressa. Terceiro, uma variedade de manifestações e formas – não restritas às formulações sistematizadas e abrangentes dos projetos partidários – através das quais representações, crenças e interesses se apresentam, com um grau diverso de coerência, em ações políticas. E, quarto, uma diversidade interna em termos de combinação de dimensões: societária, coletiva, individual, de classe, organizacional, institucional e até “estatal”. Nessas análises, os autores identificam três grandes projetos políticos em disputa na América Latina durante a recente democratização: o projeto autoritário, o neoliberal e o democrático-participativo (Dagnino et alli, 2006: 38-42). Em nossa perspectiva, há algumas restrições ao uso pleno da noção de projeto para a análise dos processos de democratização em curso na região. Por mais que a definição detalhada acima tente não se restringir às formulações sistematizadas e abrangentes, a noção de projeto per se evoca um nível alto de racionalidade, coerência e intencionalidade da ação política. Este alto nível de unicidade, racionalidade, coerência e intencionalidade – que não está, atualmente, presente na região - reduziria a riqueza e complexidade da ressignificação das práticas políticas e da promoção da “demodiversidade”que caracterizam o processo de democratização em curso na América Latina. Ainda que seja possível identificar algumas dessas características de unicidade nas formulações e práticas que fariam parte do “projeto neoliberal”, o mesmo não pode atribuir-se às manifestações do “projeto democrático-participativo”. No contexto atual, nem consideramos que se possa falar da existência de um único “projeto democrático-participativo”. Talvez seja mais elucidativo destacar na análise a diversidade entre diferentes orientações político-ideológicas progressistas presentes no novo mapa político regional e que não necessariamente conformam um ou diversos “projetos” altamente integrados. Finalmente, falar de projeto autoritário, não deve obscurecer o fato de que diversos componentes autoritários permanecem ou são recriados tanto no projeto neoliberal como nas orientações político-ideológicas progressistas ou, no dizer de Dagnino et alli, no “projeto democrático-participativo”.

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As visões dicotômicas em termos de virtudes e vícios, que não reconhecem a

heterogeneidade da sociedade civil, da sociedade política e das orientações políticas em disputa, aportam muito pouco para a compreensão dos fenômenos de aprofundamento da democratização e de construção de novas gramáticas sociais.

Diferentemente, pretendemos recuperar as transições dos regimes autoritários e

as consolidações democráticas que se vivenciam na região a partir de um olhar que reconheça essas heterogeneidades. A primeira parte do trabalho focaliza os papéis desempenhados pelos partidos políticos nesses processos, visando ressaltar similitudes e diferenças em termos de sistemas partidários e da trajetória dos mesmos. Na segunda parte procura-se caracterizar o papel dos diferentes atores da sociedade civil, considerando que, enquanto esfera autônoma, a sociedade civil é uma construção social relativamente recente e heterogênea nos diferentes países latino-americanos3. Finalmente, o trabalho aponta para questões e preocupações teóricas e políticas que estariam propiciando a recriação da demodiversidade na América Latina.

2. O papel dos partidos políticos na transição e na consolidação democrática

Nos debates travados na região, considera-se que os processos de

democratização implicam duas transições. Uma primeira – a fase de transição propriamente dita - que vai do regime autoritário anterior à instalação pactuada ou abrupta de um governo democrático. E uma segunda que, a partir deste governo, avança para a consolidação da democracia ou, em outras palavras, para a efetiva vigência do regime democrático (O’Donnell, 1988). Para entender o papel dos atores políticos na transição democrática seria necessário não se restringir à sua primeira fase, mas também levar em conta as dificuldades que se manifestam no árduo processo de consolidação.

Em geral, considera-se que os partidos são as atores políticos por excelência, enquanto mediações necessárias entre a sociedade civil e o Estado, formando quadros, propondo orientações ideológicas e criando redes operativas que se transladam ao governo (Dagnino et alli, 2006: 36). Cabe entender as especificidades que assumiram

3 O privilégio dado no recorte analítico aos partidos políticos e à sociedade civil não implica desconhecer a importância de outros atores, relações e aspectos também fundamentais na compreensão dos complexos processos de democratização, como por exemplo: o rol dos militares e das forças de seguridade, o fator “USA”, o contexto de liberalização econômica, o rol da religião, os valores democráticos e não democráticos e o rol da cultura política. Sobre estes aspectos e atores, ver entre outros um conjunto de artigos apresentados no workshop internacional “Democratic Reform Process in Latin America and the Arab World” organizado en Petra (Jordânia) em maio de 2007 pelo Center for Strategic Studies, University of Jordan e o Arab Center for Development and Futuristic Research. Especificamente: Varas, Augusto: “Civil-Military and Security Sector Reform in Latin América”; Calderon, Fernando “Historical turning-point: Latino America political transition and its socio-institutional context”; Meyer, Lorenzo: “Transitions to democracy in Latin America. The role of the American factor”; Bidegain, Ana Maria: “Religion’s role in Latin American’s process of democratization”; Garretón, Manuel Antonio “Democracy and democratization: theory and process”; Cavarozzi, Marcelo: “Latin America’s economic reforms and transitions to democracy in the late twentieth century”. Uma primeira versão de nosso trabalho também foi apresentada nesse workshop.

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os partidos durante as duas transições nos diversos países a partir de um conjunto de questões levantadas por Cavarozzi e Garretón (1989) sobre:

a) o papel que os partidos desempenharam no sistema político precedente aos regimes autoritários; b) o que aconteceu com eles durantes esses regimes; c) o seu papel na primeira transição; d) as dificuldades que encontraram na segunda transição - ou consolidação democrática - em particular, a situação de “deslegitimação” ou de “crise dos partidos”.

a) No período anterior às ditaduras a matriz da relação entre o Estado, o

regime e a sociedade civil propiciou a conformação específica em cada país do sistema de partidos. Assim, tanto Chile como Uruguai apresentam uma trajetória na qual os partidos eram peças-chave na canalização de demandas e, ainda que com diferenças, na própria constituição e reconhecimento dos principais atores sociais. No Chile, o sistema partidário refletiu mais claramente o fracionamento social e ideológico. Esta correspondência implicou duas características. Por um lado, restava pouco espaço para a atuação autônoma da sociedade civil. Isto é, as organizações da sociedade civil apresentavam fortes clivagens partidárias, e sua presença e atuação pública estiveram quase sempre orientadas pelos confrontos político-partidários. Por outro lado, a polarização progressiva do sistema partidário dificultou a conformação de coalizões majoritárias e outras práticas de concertação. No caso do Uruguai, a não-correspondência tão acurada do mapa social e ideológico pelo sistema partidário - como no caso do Chile - criou possibilidades de concertação, porém, com o custo do enfraquecimento do sistema bipartidário e o surgimento de um novo ator político - a Frente Ampla - enquanto canal de demandas e propostas diluídas, ou sem espaço de manifestação no sistema (Cavarozzi e Garretón, 1989: 15). No Brasil e na Argentina, o sistema partidário era mais débil. No caso do Brasil, a articulação entre a forte presença do Estado e o peso das oligarquias regionais propiciou um sistema partidário nacional fraco, ancorado em facções e práticas clientelísticas. Ainda que a partir do Estado Novo tenha se procurado recriar um sistema partidário que refletisse o fracionamento social, através da constituição de um novo partido representativo dos setores trabalhadores (o PTB) junto com os partidos das elites tradicionais e modernas (PSD e UDN), a forte intromissão estatal transformou todos eles em “partidos da ordem”. No caso da Argentina, a debilidade do sistema partidário correspondeu a uma alta densidade da sociedade civil. Os principais partidos – tanto o Justicialista como o Radical - apresentavam estruturas internas marcadas pelo personalismo de suas lideranças e com uma matriz ideológica difusa. Eles não expressavam plenamente os diversos interesses dessa densa sociedade civil. Arraigados como verdadeiras subculturas, apresentaram um jogo político de permanente exclusão (Cavarozzi e Garretón, 1989: 15-16). O discurso autoritário que levou à instalação de governos militares em vários países da região quase sempre apresentou como causa - ou desculpa - para a quebra dos regimes democráticos a incapacidade dos partidos políticos e/ou a falência do sistema partidário. Esta afirmação ideologizada encobria a complexidade de interesses e causas que levaram aos golpes de Estado, atribuindo ao mesmo tempo a

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responsabilidade às vítimas, neste caso, ao sistema partidário enquanto componente central do regime democrático deposto. Porém, sem cair no plano das justificativas autoritárias, não pode se negar a importância que coube na frágil preservação do regime democrático tanto à forma de inserção dos partidos e do sistema partidário na relação Estado-sociedade, como ao tipo de relacionamento entre os partidos e com os atores civis e militares. Nos casos latino-americanos conformaram-se como riscos, por exemplo: a luta destrutiva entre partidos sem preocupação com as regras do jogo do sistema; a radicalidade dessa luta em situações de crise, manifestada na opção feita em alguns cálculos partidários de sobrepor a “razão do partido” à “razão nacional”, levando a cumplicidades com os golpes militares visando a eliminação do adversário; o reforço da polarização ideológica que acentuou a fragmentação da sociedade e restringiu a capacidade institucional de resolução dos seus conflitos; o predomínio do estilo elitista, que limitou a representatividade dos partidos e abriu espaço para a procura de outros canais de expressão, incluindo as próprias forças armadas; e a prática do clientelismo que bloqueou a construção de uma cidadania ativa (Cavarozzi e Garretón, 1989: 16).

b) O tipo de enraizamento que os partidos apresentavam na sociedade em termos de sua representatividade e abertura para a participação dos atores sociais, assim como a natureza do regime ditatorial, teve estreita relação com o que veio a acontecer com eles durante os períodos autoritários.

Encontram-se claras diferenças nas experiências autoritárias. No Chile, Uruguai

e Argentina a coalizão golpista foi claramente marcada por uma perspectiva de destruição da democracia. O sistema partidário foi proscrito e a prática eleitoral, eliminada. Diferentemente no Brasil, o sistema partidário foi reorganizado, mantendo-se a regularidade e obrigatoriedade do voto (Lessa, 2001: 41).

Porém, independentemente da natureza do regime ditatorial, todas as sociedades latino-americanas vivenciaram alguma fase mais repressiva. Nela, em geral, o sistema partidário deixou de funcionar, sendo que a atividade dos partidos, quando existiu, visou garantir a sobrevivência da organização e dos seus militantes. Muitos partidos ficaram “congelados”, outros entraram na clandestinidade e alguns foram quase dizimados. Estes contextos de profunda alteração da vida interna dos partidos propiciaram a cristalização das lideranças já estabelecidas, assim como as dificuldades de renovação ideológica. Ambas situações contribuíram para dificultar as relações com os atores sociais. Assim, em muitos casos, as expressões de oposição ao regime ditatorial e a canalização das demandas populares fizeram-se, principalmente, através de atores de fora do sistema político, por exemplo, sindicalistas, religiosos, intelectuais e artistas. Porém, nos casos onde o sistema partidário era sólido (como no Chile), um grande número das manifestações da dissidência social e cultural foi animado por militantes dos partidos. Como artífices dessa prática política de resistência, esses militantes, em geral, adquiriram maior autonomia dos quadros dirigentes dos partidos, constituindo-se um mecanismo alternativo de questionamento e renovação das lideranças partidárias (Cavarozzi e Garretón, 1989: 17-18).

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Quando se criaram aberturas nos regimes autoritários, as experiências latino-americanas apontam para uma forte linha de continuidade partidária, com o reaparecimento, em geral, dos partidos que tinham sido proscritos. Estes partidos, em geral, procuraram assumir o relevo de uma oposição ou dissidência que se manifestava mais nos planos social e cultural, que no político (Cavarozzi e Garretón, 1989: 18). Para além das eventuais renovações em termos de liderança partidária - em geral associadas ao papel ativo de militantes nas manifestações da dissidência social e cultural durante o regime ditatorial - em quase todos os casos, a substituição das organizações da sociedade pelos partidos veio associada à retomada das práticas tradicionais de fazer política pelos próprios partidos. Esta pretensão de monopólio da representação legítima e a falta de renovação do “estilo de fazer política” contribuíram para o distanciamento e o descrédito de muitos partidos durante o processo de consolidação democrática.

Uma situação particular da ação dos partidos sob o regime ditatorial é o caso dos partidos representativos dos setores civis que apoiaram não só os golpes, mas também os próprios regimes autoritários. O Brasil foi uma das poucas situações onde foi criado um partido oficial do regime. Porém, em quase todos os países latino-americanos as ditaduras militares contaram com o apoio direto ou indireto de partidos de direita, ainda que, como na Argentina e no Uruguai, todos os partidos significativos tenham se declarado de oposição em algum momento. Em geral, nos primeiros tempos, os partidos da ordem estiveram identificados ou confundidos com o próprio regime, influenciando não necessariamente através de canais políticos institucionalizados (já que, em geral, o próprio sistema político estava em suspenso) mas através de suas lideranças, de personalidades, das organizações corporativas alinhadas ou até da pressão social de suas bases. Nos momentos de abertura, ante a iminência de processos eleitorais – vide o caso chileno - se colocou como desafio a assunção da posição de herdeiros dos regimes autoritários ou o retorno ao tradicional espaço da direita na sua reorganização enquanto ator político (Cavarozzi e Garretón, 1989: 18).

c) Cabe agora recuperar a experiência do papel dos partidos na América Latina na fase de transição dos regimes militares. O’Donnell (1988) diferencia as transições por colapso das negociadas mediante acordos ou pactos. Porém, a suposição de que os regimes que foram economicamente destrutivos e altamente repressivos - como por exemplo Argentina, Uruguai e Chile (com ressalvas na questão econômica) - apresentariam transições por colapso não se manifestou plenamente. Com diferentes trajetórias, no Uruguai e no Chile as transições foram em grande medida pactuadas. Todavia, no caso da Argentina, o colapso aconteceu devido a uma coincidência de fatores como a explosão de conflitos internos, uma forte oposição silenciada e a tentativa de projetar para o exterior os seus problemas e conflitos empreendendo alguma aventura bélica (como a disputa militar pelas Ilhas Malvinas frente ao Reino Unido). Neste caso, ainda que tenham ocorrido negociações com a oposição, os governantes autoritários não conseguiram controlar plenamente a agenda nem o resultado das mesmas. Porém, as seqüelas do caráter do regime deixaram enormes restrições objetivas na nova democracia, como uma economia destruída e profundas

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feridas políticas fruto da extensa repressão. A isto somou-se o legado de forças armadas hostis ao governo e alienadas do poder civil, com a constante ameaça de “morte rápida” da nova democracia por um novo golpe militar (O’Donnell, 1988: 49-50).

As transições negociadas ou pactuadas aconteceram principalmente em países

como Brasil e Equador, onde o regime autoritário foi relativamente bem-sucedido e a repressão, menos extensa e sistemática. Graças a períodos de forte expansão econômica, segmentos importantes do empresariado e dos setores médios foram resultados do próprio regime autoritário. Estes segmentos e setores, que, em muitos casos, também participaram nas transições junto com a oposição, mantiveram uma lembrança positiva do regime autoritário e funcionaram como o seu “colchão social”. Assim, mediante acordos ou pactos os governantes autoritários conseguiram impor à oposição boa parte dos temas e do ritmo da agenda, inclusive a garantia da “não revisão do passado” (O’Donnell, 1988: 51-52).

Tanto nas transições por colapso como nas pactuadas, coube aos partidos um

papel significativo. As transições que culminaram com eleições aconteceram após amplas mobilizações populares, dentro de marcos institucionais de enfrentamento e negociação, em maior ou menor medida, entre os governos autoritários e a oposição. Por exemplo, eleições após a derrota das Malvinas na Argentina; plebiscito e eleição no Uruguai; plebiscito e reformas institucionais no Chile; e eleições indiretas no Brasil (Cavarozzi e Garretón, 1989: 20-21). Em todos os casos, os partidos comandaram a quase totalidade dos processos, desde o enfrentamento e as negociações - explícitas ou implícitas - até aqueles indispensáveis para a conformação de poliarquias4: a institucionalização do regime político, a intermediação entre as demandas da sociedade e o Estado, e a profissionalização da política. Isto é, ainda que com as limitações típicas da urgência de “queimar etapas” ou de “encontrar fórmulas mágicas” que se manifestaram na quase totalidade dos processos de transição latino-americanos, os partidos favoreceram os processos de institucionalização democrática, principalmente por serem atores principais na articulação das regras de jogo assumidas pela maioria e, ao mesmo tempo, comporem os espaços organizativos mínimos nos quais se pode realizar a competição política. Foram peças-chave na intermediação ao propiciar a incorporação da mobilização social através de formas de representação e participação. Promoveram a profissionalização ao se constituírem em canais de seleção de pessoal político para liderar e gerir a política cotidiana5 (Alcántara Sáez e Freidenberg, 2002: 138).

4 Nos debates sobre a transição e a consolidação, seguindo a orientação de Dahl (1971), a democracia é entendida como democracia política ou “poliarquia”. Isto é, um “governo de muitos” que necessita de condições que garantam a todos os cidadãos a livre oportunidade de formular suas preferências, de expressá-las através de ações individuais ou coletivas e de conseguir que essas preferências não sejam discriminadas, tendo o mesmo peso que outras ante o governo. É um sistema político de instituições democráticas onde estão presente, entre os seus principais componentes, os partidos políticos e o direito a formar organizações políticas para influir os governos existentes, opondo-se a grupos de interesse organizados. A poliarquia coexiste com diversos graus de democratização nos planos econômico, social e cultural (O’Donnell, 1988: 43 e 67). 5 A bibliografia tradicionalmente aponta como funções básicas exercidas pelos partidos: proporcionar poder aos dirigentes, competir eleitoralmente, recrutar elites para tornar operativo o sistema político, socializar a política, bem como representar e articular interesses de grupos sociais. Todas estas funções se desempenham

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Se os partidos tiveram um papel significativo nesses processos, eles mesmos

foram afetados pelo “efeito transicional”. As transições foram fonte de aparição, desestruturação ou fortalecimento dos partidos e dos sistemas de partidos6. Dentro deste panorama heterogêneo podem se delinear quatro cenários de sistemas de partidos7.

QUADRO 1

Tipologia dos partidos políticos da América Latina

Sistema de partidos no início da transição

Partidos com maior apoio na eleição fundacional

legislativa

Sistema de partidos na consolidação

Partidos com maior apoio em eleições legislativas

posteriores País Ano Partidos Ano Partidos

Cenário I

Argentina 1983 UCR-PJ 1999 UCR-FREPASO- PJ Chile 1989 Concertación-

Unión por el Progreso de Chile

1997 Concertación- Unión por el Progreso de Chile

Uruguai 1984 PC-PN-Frente Amplio

1994 PC-PN- Frente Amplio

Peru 1980 APRA-AP 2000 Peru 2000- Peru Posible Cenário II

Bolívia 1985 MNR-ADN 1997 MNR- ADN- MIR- CONDEPA- UCS

Brasil 1986 PFL-PMDB-ARENA/PDS/PPR

1998 PFL-PSDB-PMDB-PT

Equador 1978 CFP-ID-PCE 1998 DP-PSC-PRE-ID-MUPP-NP Cenário III

Paraguai 1993 ANR- PC- PLRA 1998 ANR- PC- PLRA Honduras 1981 PLH-PNH 1997 PLH-PNH Nicarágua 1984 FSLN 1996 FSLN-ALIANZA LIBERAL Panamá 1994 PRD-ARNULFISTA 1999 PRD-ARNULFISTA Cenário IV

El Salvador 1982 ARENA-PDC-PCN 1997 ARENA-FMLN Rep. Dominicana

1978 PR/PRSC-MMP 1998 PRD-PLD

Guatemala 1985 DCG-UCN-MLN 1999 FRG-PAN independentemente da concepção de partido que se estabeleça: organizações para o recrutamento de votos eleitorais, partidos de integração de massas, empresas eleitorais, partidos catch all ou partidos cartel (Alcántara Sáez e Freidenberg, 2002: 138). 6 Segundo Mainwaring e Scully, um sistema partidário é concebido como um conjunto de interações padronizadas na concorrência entre partidos. Entre outras características, um sistema implica tanto que as regras na competição eleitoral sejam conhecidas e aceitas como também que se manifeste continuidade do número dos grandes partidos. Uma grande descontinuidade neste número apontaria para o surgimento de um novo sistema (Mainwaring e Scully, 1994: 44-45). 7 Nem todos os países entram nestes cenários. Ficam de fora tanto casos onde os processos transicionais foram muito mais antigos (Costa Rica, Colômbia e Venezuela) ou aqueles que apresentaram por muito mais tempo um sistema de partido único (México), ou que ainda continuavam com esse sistema (Cuba) (Alcántara Sáez e Freidenberg, 2002: 141-142).

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Colômbia 1982 PC-PL 1998 PC-PL Costa Rica 1982 PLN-UNIDAD 1998 PLN-PUSC Venezuela 1973 AD-COPEI 2000 AD-COPEI-MVR-MAS México 1985 PRI 2000 PRI-PAN-PRD

Fonte: Alcántara Sáez e Freidenberg, 2002

O primeiro cenário corresponde a países com tradições partidárias sólidas, em termos de configuração de máquinas partidárias com capacidade de conseguir adesão e mobilizar amplos setores da população. Os melhores exemplos são países do Cone Sul: Argentina, Chile e Uruguai. O universo partidário reproduziu o quadro anterior à quebra do regime democrático. Isto é, na Argentina, radicais e justicialistas; no Chile socialistas, democrata-cristãos, radicais e conservadores; e no Uruguai, colorados, brancos e os partidários da Frente Ampla. Assim, em todos se manifesta uma continuação da política nacional de inícios dos anos 1970, com um apoio eleitoral de mais de noventa por cento. Também pode-se incluir o Peru já que os dois partidos que se alternaram no poder nos primeiros anos pós-transição (APRA e Ação Popular) eram anteriores ao regime ditatorial. Posteriormente, o Peru sofreu uma das maiores crises do sistema de partidos na América Latina (Alcántara Sáez e Freidenberg, 2002: 140-141).

O segundo cenário contempla um modelo misto, com partidos nascidos em

meados do século XX (e que mantêm uma estrutura sólida) convivendo com partidos surgidos durante o processo de transição ou, em alguns casos, durante o próprio regime autoritário. É o caso da Bolívia onde o Movimento Nacional Revolucionário conviveu com partidos novos como ADN, MIR e mais adiante CONDEPA e UCS. Também pode ser incluído neste cenário o Equador onde partidos sólidos, anteriores à ruptura democrática como o PSC, atuaram junto a partidos novos (Alcántara Sáez e Freidenberg, 2002: 141). Finalmente, no caso do Brasil, o sistema resultante nos primeiros anos da transição, apesar de conter partidos anteriores ao período ditatorial (como o PTB), em sua grande parte estava composto por partidos formados no período autoritário ou durante a própria transição, como o PMDB (que junto com o PP assumiu o primeiro governo pós-ditadura), o PSDB, que em aliança com o PFL viria a governar por dois períodos, e o Partido dos Trabalhadores, que através de uma coalizão está governando também por dois períodos.

O terceiro cenário inclui casos de manutenção dos partidos anteriores ao

período ditatorial, mas vazios do ponto de vista político e social. Por exemplo, Paraguai onde a presença contínua de fraude eleitoral marcou a existência do partido Colorado e do Liberal Radical Autêntico e só depois das primeiras eleições pós-constitucionais o jogo partidário ficou mais legitimado. Também cabem os casos de Honduras (com os partidos Nacional e Liberal) e do Panamá (com o PRD e o Arnulfista) (Alcántara Sáez e Freidenberg, 2002: 141).

Finalmente, o último cenário corresponde a sistemas onde, como resultado da

debilidade partidária histórica somada aos efeitos dos governos ditatoriais, quase não existiu um marco mínimo de partidos, propiciando-se um processo de refundação paralelo ao processo de transição. Corresponde principalmente aos casos de El

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Salvador onde a ARENA e o FMLN são resultado do conflito bélico que assolou o país; ou também da Guatemala, onde FRG, PAN e URNG têm uma origem equivalente (Alcántara Sáez e Freidenberg, 2002: 141).

Sobre esta heterogeneidade de sistemas partidários é que se vai desenvolver o

difícil processo de consolidação democrática que – também com diferenças segundo os países - se manifestou desde finais dos anos 1980 até aproximadamente o início do novo século.

d) O processo de consolidação da democracia teve que cumprir a condição fundamental de que não houvesse uma regressão para o autoritarismo, seja via “morte rápida” através de um golpe militar clássico, seja via “morte lenta” com a progressiva diminuição dos espaços para o exercício do poder civil conformando-se uma situação de governo civil com soberania militar. Assim, uma questão estratégica fundamental dos atores democráticos foi como evitar essas regressões e, ao mesmo tempo, promover o avanço - ainda que oscilante e incerto – no processo de consolidação do novo regime democrático (O’Donnell, 1988: 43-44).

Apresentaram-se fortes obstáculos: a subsistência de atores marcadamente autoritários que controlavam importantes recursos de poder; a atitude de neutralidade ou indiferença com relação ao regime político de parte de muitos atores; a vigência, em diferentes planos, de padrões fortemente autoritários de dominação; as conseqüências desestabilizadoras das crises econômicas e a acentuação dos processos de desigualdade e empobrecimento gerados não só pelos regimes ditatoriais, mas também pelas opções de políticas populistas ou neoliberais que os próprios governos democráticos fizeram na região (O’Donnell, 1988: 44). A esse quadro de dificuldades somaram-se as tendências centrífugas, incentivadas pela competição eleitoral assim como por demandas massivas não satisfeitas que tenderam a quebrar o consenso inicial e as coalizões partidárias anti-autoritárias. A cisão destas coalizões se deu entre os partidos que “administravam a transição” e os que “administravam as demandas sociais” (Cavarozzi e Garretón, 1989: 21). Em geral, as mudanças que os partidos sofreram se devem a fatores endógenos do sistema, como a proliferação de lideranças de tipo personalista, a concentração de poder no Executivo e a corrupção. Ao mesmo tempo, o universo partidário latino-americano foi afetado por questões institucionais, como as mudanças constitucionais e as novas leis partidárias e eleitorais. Também operaram fatores exógenos, como a derrocada do socialismo real com a perda de referencial ideológico de grande parte da esquerda latino-americana, ou a crise que se abateu na região ante a opção política das elites de integração plena à globalização que acentuou a desintegração do modelo vigente de substituição de importações, o enfraquecimento do Estado e a fragmentação de interesses na sociedade (Alcántara Sáez e Freidenberg, 2002: 143).

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Em termos de volatilidade eleitoral8, segundo Mainwaring e Scully (1994), a região apresentou índices muito mais elevados de falta de regularidade nos padrões de competição em comparação com as democracias dos países da Europa Ocidental. Porém, internamente existiu uma grande variação. Os sistemas mais institucionalizados - ou com tradições partidárias sólidas como Costa Rica, Uruguai, Chile - detinham as menores volatilidades. No outro pólo, com padrões de competição extremamente instáveis, se encontravam países como Bolívia, Equador, Brasil (isto é, aqueles correspondentes a sistemas mistos conformados por partidos antigos e outros nascidos no processo de transição ou durante o regime autoritário) e também Peru como resultado da crise do seu sistema institucionalizado tradicional.

Em geral, houve continuidades das mesmas siglas partidárias entre o início dos

processos de transição (começo dos anos 1980) e durante a consolidação (no final dos anos 1990). As mudanças nos sistemas partidários afetaram um número limitado de casos (como Peru, Brasil e Venezuela). Nos demais países, o câmbio radical nos conteúdos programáticos, com a adoção do neoliberalismo pelos velhos defensores do populismo, não implicou uma renovação significativa da cúpula dirigente nem uma transformação significativa das suas bases sociais de apoio. Isto ficou mais evidente no caso do Partido Justicialista sob a presidência de Menem, na Argentina, ou no caso do PRI no México, com o presidente Salinas de Gortari. Os partidos “continuaram sendo o que eram”. A classe política manteve as velhas siglas sem procurar outro tipo de acomodação, apesar da crescente percepção hostil da população sobre os partidos. Em alguns casos, as expectativas geradas pelas boas performances eleitorais iniciais de novos partidos ou frentes partidárias que pudessem mudar os sistemas tradicionais - como no caso do M 19, na Colômbia, ou do FREPASO, na Argentina – não foram correspondidas com o decorrer dos seguintes processos eleitorais (Alcántara Sáez e Freidenberg, 2002: 143-144). Com relação ao formato numérico dos sistemas de partido, tomando o Poder Legislativo como âmbito primordial da competição política, a América Latina apresentou uma tendência ao multipartidarismo. Só um número reduzido de países (Costa Rica, Honduras e Paraguai), até finais dos anos 1990, se aproximou do bipartidarismo, o qual traduz com mais simplicidade a lógica situação-oposição. Distinguindo um grupo intermediário - conformado por México, República Dominicana, Colômbia e Uruguai - os demais países estavam imersos em situações multipartidárias. O multipartidarismo implicou, em geral, dificuldades para a governabilidade: por um excesso de ofertas partidárias que criavam confusão do eleitorado na diferenciação dessa oferta; pela rotação mais multiforme em termos de êxitos eleitorais; pelo aumento da complicação na conformação de maiorias sólidas, claras e estáveis através de acordos amplos que viessem a conformar governos de coalizão. Exemplos claros de multipartidarismo seriam Bolívia, Brasil e Chile9 (Alcántara Sáez e Freidenberg, 2002: 145-146). 8 O índice de volatilidade mede a mudança na cota de cadeiras de todos os partidos de uma eleição para outra, expressando o nível de regularidade que apresentam os padrões de competição entre eles (Mainwaring e Scully, 1994: 47). 9 No caso do Chile, as dificuldades da governabilidade neste período não estariam só vinculadas ao multipartidarismo, mas principalmente à manutenção do poder das forças armadas.

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A polarização ideológica10 entre os partidos políticos era relativamente alta, deixando espaço para o multipartidarismo através da inclusão de fórmulas partidárias intermediárias que expressariam a crescente heterogeneidade social latino-americana. A excessiva polarização é comumente interpretada como indicador de uma próxima ruptura do sistema político11. Porém, na América Latina a alta polarização poderia ser expressão de uma função integradora do sistema político, como, por exemplo, nos casos de El Salvador e Nicarágua cujos elevados índices – os maiores da região – expressariam a integração das guerrilhas no sistema político. Por sua vez, os altos índices de polarização no Chile expressariam o aprofundamento pelo regime autoritário da divisão de uma sociedade já divida, e no México manifestariam as tensões anteriores a mudanças históricas que a eleição do ano 2000 trouxe com a derrota do PRI após mais de meio século no poder. Porém, em outros casos – como os de Equador, Bolívia, Peru e Venezuela - a crescente polarização apontaria para fraturas do sistema de partidos e pressões em termos de não governabilidade do sistema político (Alcántara Sáez e Freidenberg, 2002: 147-148).

Em linhas gerais, o processo de consolidação da democracia na região apresentou um caráter ambíguo. Por um lado, a não-ruptura do sistema político liberal aponta para a consolidação da democracia eleitoral, apesar da diferença de grau e da debilidade institucional segundo os países. Por outro, a persistência deteriorada desses sistemas políticos liberais reforça o deficit de “democracia da cidadania”, principalmente nos anos 1990.

O neoliberalismo transformou-se na ideologia oficial das novas democracias.

Reformar o Estado deixou de ser sinônimo de sua democratização para ser confundido com a redução de suas funções reguladoras e de suas responsabilidades sociais. A desmoralização da política, o desinteresse pelo público, a privatização exacerbada das relações sociais e do próprio Estado levaram a uma crise da política, com “formas deformadas” de modelos políticos liberais (Sader, 2002: 654-655).

Os casos das presidências de Fujimori no Peru, Menem na Argentina e Collor no

Brasil são exemplos destas “formas deformadas” de “democracias delegativas” (O’Donnell, 1997). Nestes modelos políticos se dá a concentração de poder no Executivo, particularmente na figura do presidente12. O presidencialismo comum a

10 Através da polarização ideológica – em geral na escala direita/esquerda - se pretende vincular a ideologia, os partidos e os eleitores. Dizer que dois grupos são pólos separados indica que suas atitudes são tão diferentes que não poderiam encontrar-se mais distantes umas das outras. Comumente se usam medidas como a distância e a superposição para identificar a polarização dos sistemas de partidos. Quanto maior for a distância e menor a superposição ideológica, o sistema estará mais polarizado. No sentido oposto, o sistema partidário será mais moderado quando menor for a distância e maior a superposição. Os índices se constroem a partir da autopercepção e da percepção dos outros (Alcántara Sáez e Freidenberg, 2002: 147). 11 O grau de polarização diz respeito a governabilidade, apontando para a propensão ou não das elites políticas por fórmulas de consenso - através de compactuar políticas que favoreçam a ação governamental - ou por fórmulas de discenso que dificultam essa ação (Alcántara Sáez e Freidenberg, 2002: 148). 12 Nas democracias delegativas, o presidente estaria praticamente isento da accountability horizontal – como a dos tribunais e das legislaturas – já que esta é vista como um impedimento da plena autoridade que lhe foi delegada e da rapidez no processo decisório que se espera dele. Também o presidente se considera por cima dos partidos políticos, assumindo um papel de encarnação da nação e de guardião dos seus interesses.

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todos os países e a experiência populista pela qual tinham passado muitos deles favoreceram a instalação deste tipo de democracias.

Nestas democracias delegativas, os partidos políticos, o parlamento e os atores

da sociedade civil tradicionalmente influentes – como os sindicatos – ficaram subordinados na tomada de decisões. O presidente ocupava um lugar na alta hierarquia do partido, monopolizando a iniciativa política. Ao mesmo tempo, estas experiências se caracterizaram pela importância do carisma ou da personalização política. Os partidos se conceberam mais como máquinas que mobilizavam lealdades e sentimentos para o confronto eleitoral do que como verdadeiros instrumentos de governo, exacerbando características como ideologias difusas, ausência de programas coerentes, debilidade organizativa e tradição de subordinação aos objetivos e ambições do líder. Como resultado, se aprofundou a crise de representação, predominando um abstencionismo crescente.

Na grande maioria dos países, o aumento do desemprego, da pobreza e da desigualdade, que resultou das experiências neoliberais, delineou um contexto que, junto com os efeitos das democracias delegativas, agravou as dificuldades do sistema político e dos próprios partidos. Perda de legitimidade dos governos, dos legislativos e da Justiça; enfraquecimento das organizações sociais; desmoralização das ideologias e dos partidos; desinteresse eleitoral e político geral; ausência quase total de debates políticos relevantes são alguns dos aspectos do aprofundamento da deterioração dos sistemas políticos liberais, que continuaram ocorrendo sem rupturas, isto é, dentro das regras do jogo democrático eleitoral (Sader, 2002: 653).

Nas pesquisas de opinião elaboradas na região, os partidos políticos receberam uma baixíssima valoração, ocupando em geral a última posição entre o conjunto de instituições públicas. A pesquisa do Latinobarómetro de 1998 apontava que 75% dos latino-americanos tinham pouca ou nenhuma confiança nos partidos políticos, elevando-se esse índice a 84%, nos casos de Venezuela e Equador, ou a 81%, na Argentina. Por seu lado, Costa Rica e Uruguai apresentavam valores menores (63%) de desconfiança, mas que ainda eram muito altos (Latinobarómetro, 1998). Em geral, o quadro que se apresentava no início do novo século era de processos de consolidação ambíguos e que tinham assumido um caráter elitista, com sistemas políticos que tinham deixado à margem a participação de atores civis. E, sobretudo, reproduzindo as fraturas existentes em termos étnicos, regionais e de desigualdade cidadã. Partidos que tinham como uma de suas mais importantes bandeiras a defesa de ética na política, uma vez instalados ou próximos do poder, reproduziram em alguns dos seus setores práticas clientelísticas e patrimonialistas, que desembocaram em formas de corrupção. A tensão e o conflito entre componentes democráticos e autoritários atravessavam o interior de todos os partidos, superando as visões polares que atribuíam aos partidos modernos e/ou de esquerda as virtudes cívicas e aos partidos conservadores e/ou de direita os vícios. Estas tensões, como veremos, também estiveram presente entre os atores da sociedade civil.

Finalmente, as medidas de governo não necessitariam ter relação com as promessas de campanha, já que o presidente estaria autorizado a governar da forma que considere melhor (O’Donnell, 1997: 293-294).

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3. O papel dos atores da sociedade civil no processo de democratização

Nos debates sobre a democratização, a sociedade civil pode ser entendida como

uma esfera de ação intermediária, situada entre o Estado e as famílias, na qual diferentes tipos de organizações, grupos e associações de indivíduos se organizam de maneira autônoma e voluntária visando tanto a defesa e ampliação dos seus direitos, valores e identidades, como a influência, o controle e a fiscalização das ações das autoridades políticas (Panfichi e Chirinos, 2002: 305). A heterogeneidade é uma forte marca da composição da sociedade civil nos países da América Latina: diversidade de atores, com distintos formatos institucionais (associações, movimentos sociais, redes, coalizões, mesas, fóruns, sindicatos), diferentes tipos de relacionamento com o Estado e uma pluralidade de práticas e orientações político-ideológicas que incluem desde componentes autoritários até democráticos (Dagnino et alli, 2006: 27).

Enquanto esfera autônoma, a sociedade civil seria uma construção social relativamente recente na América Latina. Houve profundas dificuldades para conformar atores, práticas e espaços associativos independentes da coerção e cooptação estatal, num contexto onde a cultura política hegemônica não propiciava o reconhecimento da pluralidade e da autonomia como princípios básicos das práticas coletivas. A estes elementos somaram-se o impacto combinado de regimes autoritários, conflitos políticos armados e processos inacabados de democratização política e de reformas econômicas neoliberais (Panfichi e Chirinos, 2002: 304-305).

A multiplicidade de atores sociais que têm seus próprios canais de articulação com

a sociedade política e com o sistema econômico, e com freqüência se opõem em diferentes espaços públicos, aponta para o fato de que a sociedade civil estaria entrecruzada de conflitos e que ela seria uma sorte de “arena de arenas”, e não um território harmonioso de convivência pacífica (Olvera, 2003: 28).

Nas transições democráticas acontecidas nos finais dos anos 1970 e, sobretudo,

em inícios dos anos 1980 diversas organizações da sociedade civil tiveram um rol ativo na denúncia e pressão sobre os regimes autoritários pela constante violação dos direitos humanos e o seu caráter antidemocrático. Porém, essas transições se manifestaram num contexto geral de reformas estruturais neoliberais que modificaram o funcionamento da economia e sua relação com o Estado e a sociedade civil (Panfichi e Chirinos, 2002: 304).

Neste contexto, um dos processos que se observa foi o progressivo enfraquecimento e transformação das formas tradicionais de organização e representação de interesses que estavam presentes em quase todos os países da região. Houve uma quebra das formas homogeneizadoras de organização e ação coletiva que colocavam à classe operária, vinculada a partidos políticos populares, como ator principal na construção da cidadania. Estes partidos formulavam ou eram portadores de propostas unificadoras que visavam a articulação e mobilização não só da classe, mas das maiorias - o povo - com uma agenda de consolidação dos direitos e

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de integração dos excluídos aos benefícios da tutela estatal (Panfichi e Chirinos, 2002: 313-314).

O enfraquecimento das formas tradicionais de ação e representação de interesses afetou principalmente as organizações sindicais, que tinham sido vítimas principais da repressão dos governos autoritários, assim como atores fundamentais dos processos de democratização. Na América Latina, onde mais de 50% da população economicamente ativa nos anos 1990 passaram a estar na informalidade o movimento sindical ficou restrito à parte “visível” dos que trabalhavam e viviam do seu trabalho, apresentando dificuldades em representar o enorme conjunto de trabalhadores “invisíveis” (Grzybowski, 2003: 49).

Com as mudanças do mercado de trabalho - incentivadas pelos planos de ajuste

estrutural no marco das reformas neoliberais e da transformação do tradicional papel do Estado como distribuidor de recursos - diminuiu a afiliação aos sindicatos e se reduziu a sua capacidade de negociação coletiva e de pressão política frente aos empresários e ao Estado. Esta tendência geral de enfraquecimento do sindicalismo apresentou especificidades e diferenças entre os países da região. No Peru e na Colômbia os sindicatos se encontraram dramaticamente debilitados pela confluência dos impactos do contexto econômico e social criado pelas políticas neoliberais com a violência política que colocou as lideranças sindicais no meio do fogo cruzado entre guerrilhas, paraestatais e aparelhos coercitivos do Estado (Panfichi e Chirinos, 2002: 314-315).

Numa posição diferente, no Chile e na Argentina, onde existia uma tradição

sindical antiga e consolidada, os sindicatos conseguiram manter grande parte do seu poder na luta social. No Chile, a transição significou o reforço da subordinação das organizações sindicais aos partidos políticos. Na Argentina, os sindicatos estavam muito arraigados na sociedade civil pelos laços com o Movimento Peronista e com o Estado através da delegação corporativa de prestações de serviços sociais para os seus afiliados. O novo contexto da transição democrática e da reestruturação neoliberal do mercado de trabalho enfraqueceu os sindicatos argentinos. Porém, e da mesma forma que no Chile, se desenvolveram transformações na composição, nas formas e nas práticas dessas organizações que levaram a um relativo êxito se comparado com outros países da região. Particularmente, os sindicatos iniciaram a transformação de uma lógica de representação de interesses específicos para uma representação social mais ampla e inclusiva. Reconhecendo o direito ao trabalho como um verdadeiro paradigma dos direitos sociais, procuraram estender – como no caso da Central de Trabalhadores Argentinos (CTA) – o espaço de representação a outras organizações com demandas diversas, como trabalho para desempregados, acesso à moradia de inquilinos e residentes de favelas e defesa e promoção de direitos de minorias (trabalhadores migrantes, mulheres e crianças de rua). Reivindicando maior autonomia sindical em relação aos partidos e ao Estado, postularam a necessidade de articulações com movimentos sociais e outras entidades da sociedade civil e promoveram mudanças nas pautas clássicas de confrontação com o Estado, através de uma incidência propositiva na definição de políticas públicas mais eqüitativas (Panfichi e Chirinos, 2002: 314-315).

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No pólo oposto ao movimento sindical, as diversas organizações de proprietários e capitalistas - classistas, de defesa coletiva de interesses, de formulação de propostas e de incidência política direta - conformaram outro sujeito do núcleo duro das sociedades civis, mesmo que, na maior parte das vezes, não se reconhecessem como fazendo parte delas (Grzybowski, 2003: 49). O poder exercido pelos empresários, grupos econômicos e setor financeiro se constituiu numa das principais formas internas de poder fático na região13. O patronato funcionou como lobby muito influente tanto pelo poder de veto que emana de suas decisões de investimento como pelo financiamento de campanhas eleitorais, incluindo práticas de compra de votos ou de “fabricação de candidatos” (PNUD, 2004: 167). Nos países latino-americanos, o patronato enquanto sujeito social forjou-se como um ator antidemocrático (Grzybowski, 2003: 49). O seu processo de conversão, ainda parcial, está se dando pela influência das crises econômicas criadas com a liberalização indiscriminada - que lhes tirou riquezas e poder - como também pela força das lutas que outros sujeitos sociais vêm fazendo na democratização. Ficam em aberto o engajamento e a capacidade da nova geração de proprietários e empresários na ruptura da lógica de exclusão social que assola a região (Grzybowski, 2003: 50).

Os meios de comunicação de massa se constituíram num dos poderes fáticos mais importantes da América Latina. Os meios propiciaram modos de construção do imaginário coletivo e movimentos de opinião que alimentaram os processos de participação social e construção de identidade nas sociedades civis. Eles se apresentaram – e se apresentam - como espaços de disputa atravessados por profundas contradições entre sua função pública e política, e a crescente oligopolização privada de sua propriedade (Grzybowski, 2003: 50). De acordo com os líderes latino-americanos, sua grande influência era considerada positivamente como

13 O relatório do PNUD sobre o estado da democracia na América Latina apontou outras formas de poder fático como os meios de comunicação, as Forças Armadas, os fatores extraterritoriais, a guerrilha e os poderes ilegais. A influência das Forças Armadas diminuiu com a sua profissionalização e com as divisões internas. Porém, em países como Venezuela e Equador, as forças militares apareciam mais politizadas e com forte reconhecimento público. No caso dos fatores extraterritoriais, o papel dos Estados Unidos foi um elemento central durante a guerra fria, tanto na desestabilização de governos democráticos que, na sua visão, colocariam riscos ao seu projeto hegemônico, como no suporte aos regimes autoritários. Na democratização, a estabilidade e a governabilidade passaram a ser critérios pragmáticos de apoio norte-americano. Porém, a continuidade do embargo a Cuba, os planos militares no combate ao narcotráfico na Colômbia, as tentativas de desestabilização do governo Chavez na Venezuela e a pressão pela ALCA e por acordos bilaterais de comércio com os países latino-americanos apontam para a permanência e reprodução de diferentes componentes do seu intervencionismo ativo na região. Junto à política dos Estados Unidos, os organismos multilaterais de crédito (Banco Mundial, Fundo Monetário Internacional e Banco Interamericano de Desenvolvimento) assim como as agências privadas avaliadoras de risco-país se apresentavam como fatores extraterritoriais com forte ingerência nas reformas e nas orientações político-econômicas das democracias latino-americanas. O fenômeno da guerrilha, que marcou forte presença na vida de países centro-americanos (como Guatemala, Nicarágua e El Salvador) e sul-americanos como Peru, ficou reduzido à Colômbia, ainda que agravado pela presença das forças paramilitares. Finalmente, cresceu a importância dos poderes ilegais vinculados a atividades ilícitas como contrabando, prostituição, jogo clandestino e, sobretudo, tráfico de drogas. No caso do tráfico de drogas, os desafios para a democratização estão relacionados ao controle que ele exercia sobre setores dos aparelhos estatais e partes dos territórios nacionais; aos fortes incentivos para a passagem da economia formal à informal; à promoção da corrupção de funcionários e dirigentes políticos com o “dinheiro sujo”; ao incremento da violência e da criminalidade; e à geração de novas formas de pressão, por ter atraído a intervenção direta ou indireta do governo dos Estados Unidos, que limitavam ainda mais a ação governamental nas democracias latino-americanas (PNUD, 2004: 167-169).

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um aumento dos controles democráticos sobre o exercício do governo. Porém, em muito casos, agiram como um “controle sem controle”, cumprindo funções que extravasaram o direito à informação. Os meios apresentaram a capacidade de gerar agenda, predispor a opinião pública, deteriorar a imagem de figuras públicas governamentais e fazer invisíveis, reduzir a importância ou criminalizar as mobilizações e movimentos sociais. Haveria uma estreita vinculação entre grandes grupos econômicos e meios de comunicação, sendo que através destes os empresários concentrariam mais poder ainda, seja por serem os seus proprietários, seja porque impunham condições mediante o controle das pautas publicitárias (PNUD, 2004: 167).

Outro fenômeno que acompanhou o processo de democratização, em particular a

onda neoliberal dos anos 1990, foi a transformação das formas tradicionais de filantropia, em termos de difusão do voluntariado e das fundações corporativas filantrópicas. A intensificação e a renovação da prática do voluntariado, associadas ao crescimento do “terceiro setor”, seriam também expressão do deslocamento do compromisso político para a sensibilização social que se fez presente em amplas camadas médias e em setores populares latino-americanos. Esta despolitização da visão e da prática desses setores foi correlata à difusão das seitas evangélicas e à reorientação carismática da igreja católica propiciada pelo Vaticano. Por sua vez, a transformação das práticas tradicionais filantrópicas foi estimulada a partir da esfera internacional pelas agências de cooperação privadas e oficiais e com amplo apoio dos meios de comunicação. Em muitos casos manifestaram-se um discurso e uma prática que destacavam a responsabilidade social do empresariado como parte do seu compromisso cívico com a sociedade. Porém, esta prática da responsabilidade social empresarial com o desenvolvimento das fundações corporativas levantou polêmicas e debates sobre a questão da eficácia da adesão voluntária no controle dessa responsabilidade e a interferência de interesses empresarias – como visibilidade e propaganda - na orientação estratégica e na abragência dos programas filantrópicos.

As igrejas foram um outro ator importante da democratização. A América Latina foi e continua sendo uma das regiões de maior presença da Igreja Católica, com forte influência tanto nas sociedades como nos próprios Estados. Nos anos 1960 e 1970, o desenvolvimento da Teologia da Libertação, com a multiplicação das comunidades eclesiais de base e a adesão de partes da hierarquia eclesiástica, propiciou a mudança do papel da Igreja Católica enquanto aliada tradicional das elites e dos seus governos. Esta mudança favoreceu a conformação e o reconhecimento de diversos movimentos sociais, atores centrais na luta contra os regimes autoritários. Porém, a partir de João Paulo II, se produziu um refluxo conservador com a hegemonia de setores religiosos fundamentalistas. Paralelamente houve um significativo e constante crescimento das igrejas evangélicas, sobretudo do pentecostalismo na região, primeiro entre os setores populares e posteriormente entre as classes médias. Junto ao relativo declínio dos partidos promovidos pela Igreja Católica (isto é, os “partidos democratas cristãos” presentes por mais de meio século em diversos países latino-americanos) houve um crescimento das bancada evangélicas nos Parlamentos, eleitas tanto pelas agremiações tradicionais como através da conformação de partidos próprios. Da mesma forma se deu uma apropriação crescente por parte das igrejas evangélicas de meios de comunicação de massas, principalmente rádios mas também emissoras

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televisivas. Assim, o fundamentalismo tanto católico como evangélico cresceu, ao mesmo tempo que as igrejas mantiveram um dos mais altos índices de confiança institucional na região - só superado pelos corpos de bombeiros – em oposição à descrença da população nos partidos políticos e no Congresso (Latinobarómetro 2006).

Paralelamente ao enfraquecimento e à transformação das formas tradicionais de organização de representação de interesses – isto é, o sindicalismo e os partidos políticos – desenvolveram-se novas formas de associação e organização civil que, junto com os movimentos sociais, colocaram novos temas e problemas na agenda político-social e propiciaram outras formas de ação coletiva (Panfichi e Chirinos, 2002: 317).

Houve uma emergência de organizações de direitos humanos e cidadãos que,

através da “política de direitos”, buscaram construir espaços autônomos de reivindicação frente ao Estado dos direitos fundamentais da democracia, assim como de promoção efetiva da justiça. No Chile e na Argentina, a emergência da política de direitos se manifestou através de organizações com um agenda de trabalho contra os abusos do autoritarismo militar. Conformadas inicialmente por familiares e amigos das vítimas – como as Mães da Praça de Maio, na Argentina - propiciavam também o retorno ao Estado democrático. No Peru, na Colômbia, na Guatemala e em El Salvador, as organizações de direitos humanos defenderam a vigência da lei e da justiça em meio aos conflitos armados internos. Em geral, tiveram o apoio e a participação ativa da Igreja Católica. A forma institucional predominante foi a de entidades sem fins lucrativos, particularmente, organizações não governamentais (ONGs). Em vários casos - como a Coordenadora Nacional de Direitos Humanos, no Peru – as organizações propiciaram o trabalho conjunto através de uma articulação de estratégias local, nacional e internacional para assegurar a liberação de prisioneiros inocentes, influenciar na legislação sobre direitos humanos e até promover direitos econômicos, sociais e culturais. O impacto variou nos países da região em função de uma série de condições, como a existência de uma efetiva separação de poderes, a presença de um judiciário com autonomia e legitimidade, e uma imprensa livre e democrática (Panfichi e Chirinos, 2002: 320-322).

Houve uma continuidade entre o trabalho inicial das organizações de direitos humanos e a atuação das organizações de promoção da cidadania dos anos 1980 e 1990. Na Argentina estas organizações trabalharam para construir espaços deliberativos de democracia, onde se privilegiava o consenso, assim como promoveram ações de defesa do interesse público e de institucionalização de novos direitos pela via legal, articulando o esforço de advogados, juízes e formadores de opinião (Panfichi e Chirinos, 2002: 321). Na América Latina, em geral, muitas das organizações e dos movimentos que tinham os direitos humanos como sua referência agiram como promotoras da cidadania. A redefinição prática da noção de cidadania a partir do desenvolvimento das próprias sociedades civis se constituiu num dos elementos centrais das disputas em torno da construção de novas gramáticas sociais que dessem sustentação a uma consistente “democracia de cidadania” para além da restrita democracia eleitoral. A radicalidade do processo aumentou quando, em países como Argentina ou Brasil, se renovaram velhas lutas e movimentos ou se criaram

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novos sujeitos a partir exatamente de sua situação de exclusão, “invisibilidade” 14 ou subordinação econômica, cultural e política15 (Grzybowski, 2003: 47-48).

O campo das ONGs na região apresentou uma marcada heterogeneidade. As primeiras surgiram, em geral, vinculadas a entidades religiosas ou ecumênicas promovendo serviços assistenciais e assessoria ao sindicalismo e a organizações populares emergentes. Durante a transição e a fase de consolidação democrática se expandiu a atuação de ONGs internacionais ao mesmo tempo que cresceu o número de ONGs nacionais e locais, apoiadas por fundações e agências de cooperação privada, governamental ou internacional. Através de perspectivas de educação popular e de promoção da cidadania, muitas delas trabalharam com relativo sucesso em termos de organização e participação dos grupos e comunidades de “invisíveis”. Com o neoliberalismo, esse crescimento se multiplicou, proliferando novas organizações de prestação de serviços que conformaram o “terceiro setor” como um suposto “pólo de virtudes” no desempenho “mais efetivo e eficiente” de funções sociais fruto do desmantelamento dos Estados. Este verdadeiro mercado de organizações do terceiro setor entrou em disputa pelo reconhecimento público com as “ONGs do campo democrático”; isto é, aquelas ONGs que através da política de direitos e da promoção da cidadania participaram do enfrentamento aos regimes autoritários visando a construção da “democracia da cidadania”. Em alguns casos, dentro “do campo democrático” se manifestou a prática do substituísmo quando as ONGs assumiram uma representatividade dos setores populares que não lhe foi delegada, impulsionando fenômenos de “onguização” dos movimentos sociais: isto é, movimentos sociais criando ONGs – ou assumindo o tipo de prática delas - ou ONGs “criando” movimentos sociais. Porém, além destes aspectos críticos de suas práticas, cabe ressaltar o papel relevante que diversas ONGs tiveram na luta pela construção de uma democracia de cidadania nos países da região16.

14 A noção de “invisíveis” refere-se a um enorme contingente de indivíduos – de 20% a 60% da população total dos países - que não fazem parte das sociedades civis latino-americanas por não terem o reconhecimento público dos seus direitos – sociais, culturais, econômicos e, em alguns casos, até civis e políticos - e não disporem de formas de organização social ou de práticas de lutas que lhes permitam superar a exclusão social, negadora de sua cidadania. São os politicamente destituídos de qualquer poder real. Como já foi apontado, na região houve o avanço da cidadania eleitoral formal. Mas ter o direito político de votar num contexto caracterizado pela desigualdade, pobreza e exclusão social não é a mesma coisa que ser plenamente cidadão. Assim, muitos eleitores vieram a fazer parte do contingente de invisíveis das sociedades latino-americanas (Grzybowski, 2003: 48). 15 Como resultado das sucessivas crises econômicas vivenciadas na Argentina, surgiu o movimento dos “piqueteiros”. Composto principalmente por desocupados ou empregados precários, jovens e pessoas de terceira idade, organizados em diferentes formas – como por exemplo a Coordenadora Aníbal Verón ou a Assembléia Nacional Piqueteira – o movimento tornou públicas as suas reivindicações através de protestos e mobilizações centradas nos cortes de estradas e ruas, apoiado por organizações de promoção de cidadania. Pelo geral este tipo de mobilização implicou a repressão pelas forças de seguridade. 16 As ONGs desenvolveram diferentes estratégias para influenciar as políticas públicas. Entre elas, Varas aponta como exemplos de modalidades de interação com o Estado que permitiu um impacto sistêmico em nível nacional: a interface múltipla e a institucionalidade cooperativa propiciada por ONGs e centros acadêmicos em torno dos direitos da mulher no Chile; a estratégia de Estado substituto promovida por consórcios de ONGs e instituições acadêmicas na elaboração de propostas de descentralização de políticas no Peru; e o aprofundamento das relações com o Judiciário através do uso pelas ONGs de instrumentos do direito do interesse público na Argentina (Varas, 2006: 37).

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O surgimento de “organizações de sobrevivência” - organizações sociais de base que procuram satisfazer as necessidades dos mais pobres - se acentuou durante o processo de consolidação da democracia eleitoral no contexto de políticas econômicas neoliberais. Em países onde se reproduzem os processos de empobrecimento, a demanda por alimentos tem sido utilizada tradicionalmente nas estratégias de cooptação e clientelismo por parte dos governos e dos partidos. O diferente durante o processo de democratização foi o nível de organização e mobilização dessas organizações de sobrevivência formadas principalmente por mulheres pobres, com uma base comunitária ou de bairro e, em geral, executoras finais de programas de assistência alimentar tanto do Estado como da cooperação técnica internacional. Porém, criou-se uma relação ambígua e complexa em termos de interesse mútuo, autonomia, dependência e clientelismo entre as organizações de sobrevivência, os partidos, o Estado e a cooperação internacional. No Peru, as “organizações femininas para a alimentação” e, na Argentina, os refeitórios e creches nos bairros pobres urbanos – que proliferaram com as crises econômicas propiciadas pelo neoliberalismo - assumiram freqüentemente o caráter de redes clientelísticas neutralizando os impactos positivos desse processo organizativo em termos de promoção de cidadania (Panfichi e Chirinos, 2002: 318-320).

Entre as relações de dominação e desigualdade que atingem os “invisíveis”, a

questão étnico-racial adquiriu maior ressonância enquanto referência na constituição de novos sujeitos sociais. Por mais que as estatísticas mostrassem sua importância, este tipo de dominação foi camuflada ou negada, não só pelo poder estatal, mas dentro da própria sociedade civil. O racismo e a discriminação estão no coração mesmo das sociedades civis e limitam o seu desenvolvimento democrático. Em geral, a fragilidade e a ambigüidade caracterizaram os movimentos e organizações em torno desta questão (Grzybowski, 2003: 47). Porém, nos últimos anos, têm crescido as reivindicações desses grupos. Um dos exemplos que ganhou maior repercussão foi o levante armado de indígenas ocorrido em Chiapas (México) em 1994, organizados enquanto Exército Zapatista de Liberação Nacional. O movimento propiciou mobilizações para a garantia do seu território e ampliou a sua estratégia fazendo causa comum com diversos setores da população mexicana em sua oposição ao neoliberalismo e promovendo, através da internet, a solidariedade internacional (Slater, 2000: 521-522). Ao mesmo tempo, a forte presença de mobilizações dos povos indígenas influenciou de forma significativa as eleições e os governos da região. São exemplos Equador, Peru, Guatemala e, sobretudo, a Bolívia, com a eleição do primeiro presidente indígena. A questão indígena e racial em alguns países se apresentou vinculada à tradicional questão de acesso à terra e luta pela reforma agrária. Desde a Revolução Mexicana, reformas agrárias, em muitos casos seguidas de contra-reformas, marcaram as lutas camponesas – e indígenas – no México, Bolívia, Cuba, Peru, Chile, Equador, Costa Rica, Nicarágua e El Salvador. No processo de democratização, os movimentos camponeses e de sem-terra voltaram a ganhar espaço na sua construção como sujeitos, reunidos em torno de articulações como a Via Campesina, organizações de representação regional como a CLOC, e fortes movimentos sociais nacionais como o Movimento Sem Terra no Brasil. Estes sujeitos apresentaram uma agenda cada vez mais ampla de reivindicações e demandas, compreendendo o acesso à terra, a

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soberania alimentar, o questionamento da incorporação da agricultura nas negociações da Organização Mundial de Comércio, a rejeição à difusão dos transgênicos impulsionada pelas grandes corporações transnacionais e a promoção de um modelo de desenvolvimento da agricultura centrado na agricultura familiar, alternativo ao modelo exportador das grandes propriedades do agronegócio.

A irrupção das mulheres enquanto sujeitos sociais por meio de organizações e movimentos foi um dos fenômenos mais visíveis nas sociedades civis da região nas últimas décadas. Nos anos 1970, seguindo o padrão comum de outros movimentos, o feminismo priorizou uma estratégia de confrontação com o Estado e os grupos de poder dominantes. Através dessa estratégia procurou despertar a consciência política das mulheres contra o poder patriarcal que, junto com o domínio sobre os corpos, as excluía da esfera pública e do trabalho. Em geral, a dupla militância, tanto no movimento como em partidos de esquerda, criou tensões em relação à prioridade de luta das mulheres: a luta contra a dominação de classe ou a luta contra a opressão de gênero? Estas tensões provocaram divisões e, majoritariamente, a saída – ou relativização – da militância partidária com o caminho da organização autônoma. Ainda que essa foi a tendência geral, houve países como a Argentina onde o peso da identidade partidária permaneceu forte. Nos finais dos 1980 e, sobretudo, nos anos 1990, o movimento de mulheres latino-americano pluralizou-se, diversificando-se em uma série de feminismos que buscavam responder com diversas estratégias às mudanças propiciadas pela onda neoliberal (Panfichi e Chirinos, 2002: 323). Isto é, o feminismo deixou de ser um movimento social unitário, para se converter em um heterogêneo campo de ação que atravessava diversas arenas culturais, sociais e políticas (Alvarez, 2000: 386). As feministas passaram a se organizar em redes e movimentos que extrapolaram os países da própria região, tornando-se mais internacionalistas do que outros atores sociais. Neste contexto se produziu a absorção seletiva de discursos e agendas por parte de outros atores da sociedade civil assim como da sociedade política e arenas de política nacional e internacional. Quase todos os governos da região criaram órgãos especializados, ministérios e secretarias encarregados de melhorar a situação das mulheres e “incorporá-las ao desenvolvimento”. Em países como Brasil e Argentina, foram aprovadas cotas para mulheres nas listas eleitorais de candidatos. Centrais sindicais - como a Central Única dos Trabalhadores do Brasil – adotaram algumas das bandeiras de luta do feminismo, passando a combater, entre outros problemas, o assédio sexual nos locais de trabalho. O processo da Conferência de Beijing, em 1995, recebeu a influência ativa de feministas latino-americanas (Alvarez, 2000: 396-397). A reconfiguração do campo do feminismo, e em particular do tema das relações de autonomia ou articulação com o Estado, provocou tensões e intensos debates nos movimentos e organizações feministas. Os relativos êxitos nos processos das políticas nacionais e internacionais favoreceram a especialização e profissionalização progressiva de um número crescente de ONGs feministas, propiciando a chamada “onguização do movimento” (fenômeno este que também esteve presente em outros movimentos, como o ambientalista). Entre os aspectos que caracterizaram a “onguização” estão: uma tendência a substituir os movimentos tradicionais na interlocução com o Estado por demandas e promoção de direitos, o relegar o trabalho de mobilização e de conscientização junto as mulheres de classe populares e a

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crescente apropriação de recursos das agências bilaterais, multilaterais e de fundações privadas orientadas tanto para a promoção desses direitos como principalmente para o provimento de serviços públicos que antes eram de responsabilidade dos governos. Também se manifestou a crescente articulação ou formação de redes que ligaram militantes individuais, grupos, ONGs especializadas e movimentos não só em cada país, mas, sobretudo, em nível regional e global. Propiciou-se, assim, a transnacionalização dos discursos e das práticas (Alvarez, 2000: 385). Finalmente, a escolha da primeira presidente mulher e um ministério com alto grau de presença feminina no Chile apontaram para a importância das mulheres enquanto referência dos processos de democratização. Porém, esta importância não se expressaria ainda da mesma forma na institucionalidade política em geral, nem nas estruturas de poder, e muito menos em igualdade de oportunidades em nível de trabalho e renda no âmbito regional (Grzybowski, 2003: 46-47).

O movimento ambientalista que se desenvolveu principalmente a partir do

processo de democratização lutou pela promoção da sustentabilidade e de justiça ambiental. Tendo a Conferência Eco-92 no Rio de Janeiro como um marco, através do debate público, de mobilizações e de campanhas e ações que visavam impacto na mídia, um conjunto diverso de movimentos sociais, associações e organizações não governamentais nacionais e internacionais tentou a transformação da preocupação com o bem comum representado pelo patrimônio natural em um valor a ser perseguido por todos os grupos e setores da sociedade. A questão ambiental também contribuiu na conformação e no reconhecimento público de diversos movimentos e lutas, como o das comunidades indígenas, das populações extrativistas afetadas pelo desmatamento das florestas, dos grupos expulsos por barragens de hidrelétricas no Brasil, ou contra a privatização de águas em Cochabamba, na Bolívia (Grzybowski, 2003: 47). Ao mesmo tempo cresceu a atuação de ONGs nacionais e internacionais na região propiciando, através da profissionalização e especialização, a reprodução do fenômeno de “onguização” do movimento ambientalista, de forma equivalente ao feminismo. Finalmente, no início do século XXI, a grande maioria dos movimentos sociais e atores da sociedade civil dos países latino-americanos - assim como representantes de outros continentes - que questionavam a ordem neoliberal vieram a participar de uma nova política de coalizões e redes reais e virtuais através do processo do Fórum Social Mundial. Isto é, uma articulação muito flexível de coalizões, campanhas, ONGs e redes de movimentos transnacionais, nacionais e locais, com múltiplas prioridades, unidas em sua crítica à ordem neoliberal ante as múltiplas desigualdades (como as de região, nação, classe, raça, etnia, gênero e geração) por ela incentivadas. O Fórum propiciou não só os eventos mundiais levados a cabo a partir de 2001 em Porto Alegre mas também os fóruns temáticos, regionais e nacionais a eles associados enquanto um processo político e social. Este processo, que envolveu centenas de milhares de pessoas, recuperou por sua vez o legado de diversas ondas de mobilização da tradição libertária como as mobilizações de 1968, as revoltas contra o FMI no final dos anos 1970 e durante a década de 1980, as mobilizações contra o ajuste estrutural nos anos 1990 e a revolta dos zapatistas em Chiapas (Delgado e Romano, 2005: 264-265).

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O legado do Fórum Social Mundial é ter possibilitado um espaço de tradução da diversidade de agendas, demandas e experiências de luta dos movimentos sociais e das redes contra a globalização neoliberal. Com ele, foram criadas oportunidades para um esforço político coletivo de compreensão das diferentes lutas através do diálogo entre distintos atores com visões, características e propósitos diversos, sem que fosse necessária a imposição de uma mesma “língua” (Delgado e Romano, 2005: 292-293). Com “um outro mundo é possível” e enquanto um “laboratório vivo” da cidadania mundial, o FSM propiciou o repensar a própria política e a institucionalidade democrática, vindo somar-se nos questionamentos que os atores da sociedade civil em cada país manifestavam sobre as formas restritas de democrática e cidadania vigentes.

Por último – e apesar do caráter sucinto e incompleto deste mapeamento -

cabe destacar três aspectos que apontam para a heterogeneidade, as disputas e a dinâmica política dos atores da sociedade civil no processo de democratização na região.

Primeiro, a sociedade civil dos processos de transição e consolidação

democrática não era a mesma sociedade civil que vivenciou a instalação dos regimes autoritários durante as décadas de 1960 e 1970. Apesar das continuidades, ela se reconformou, aumentando significativamente a fragmentação e multiplicidade de interesses, práticas e visões. Esta fragmentação se acentuou nas últimas décadas, fruto tanto das transformações econômicas e sociais mais gerais que também se vivenciaram em nível mundial, como também das características dos próprios processos políticos e sociais que envolveram a transição e a consolidação da democracia nos diferentes países da região.

Segundo, atores da sociedade civil, em particular os movimentos sociais,

durante a democratização desempenharam um papel ativo na disputa pela ressignificação das práticas democráticas, estando inseridos em processos que visavam a ampliação do político pela transformação de práticas dominantes, pelo aumento da cidadania e pela inserção na política de atores sociais excluídos nos processos eleitorais, na participação e controle dos processos de decisão e no acesso às políticas públicas (Santos e Avritzer, 2002: 53-54). A “luta por direitos”, e em particular a luta pelo reconhecimento dos “invisíveis” enquanto novos atores e cidadãos plenos com o alargamento da polis democrática, não foi só uma pressão sobre o Estado mas também uma luta contra os interesses das elites já inclusas. Esta elites utilizaram os instrumentos legais e privados - como o poder da mídia - disponíveis para impedir esse alargamento. Ou seja, a disputa pelo reconhecimento e a ressignificação das práticas democráticas reafirmou e fez visível a heterogeneidade e diversidade de interesses e conflitos existentes na própria sociedade civil.

Terceiro, a conquista e manutenção da autonomia pelos atores da sociedade

civil foi um processo diverso, não linear e marcado por avanços e retrocessos. Num contexto de aumento da desigualdade, de persistência da pobreza, de crise econômica – que em vários países atingiu também as classes médias – e de força dos poderes de fato, o enfraquecimento do Estado propiciado pela onda de reformas neoliberais não

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implicou em reduções significativas do seu poder de cooptação. Pelo contrário, este poder do Estado aumentou, por exemplo, através de programas governamentais emergenciais ou assistencialistas. Ao mesmo tempo, apesar da perda de legitimidade dos partidos, continuou a reprodução de suas práticas clientelistas em relação aos velhos e novos atores da sociedade civil. O crescente poder econômico dos grandes grupos empresariais e os processos de privatização dos serviços estatais também reproduziram o risco de cooptação – e, em alguns casos, de corrupção - de atores da sociedade civil, como as ONGs, por estas grandes corporações. A oligopolização privada dos meios de comunicação de massas afetou o reconhecimento de novos sujeitos sociais, criminalizando em vários casos as lutas e movimentos dos “invisíveis”. Os poderes ilegais, em particular o narcotráfico e os para-militares, através da violência, ameaça, corrupção ou cooptação, colocaram em risco a autonomia e – em vários casos – a sobrevivência de organizações de base e outros atores da sociedade civil. Por sua vez, as agências de cooperação internacional, as novas formas de filantropia e algumas práticas das próprias ONGs – como o substituismo - se apresentaram como fatores de risco da autonomia de outros atores da sociedade civil. Num sentido oposto, por exemplo, os espaços de tradução, intercâmbio, articulação e formação de redes, abertos por processos como o do Fórum Social Mundial, criaram oportunidades de fortalecimento e construção de autonomia dos movimentos sociais e de outros atores da sociedade civil.

4. Depois das transições No início do novo século, as questões referentes à transição e à consolidação vêm

sendo desdobradas paulatinamente em novas preocupações teóricas e políticas que apontam para a ressignificação das práticas e as questões de coexistência pacífica ou conflituosa de diferentes modelos de democracia. Por um lado, as questões sobre as tensões entre reprodução da institucionalidade formal e crise de legitimidade da democracia. Por outro, os problemas em torno da ampliação dos espaços públicos17, a articulação de formas de democracia representativa e participativa, a heterogeneidade da sociedade civil e do Estado e a diversidade de projetos políticos em disputa.

Assim, para finalizar, caberia destacar quatro aspectos dos processos de

democratização em curso na região depois das transições. O primeiro é a consolidação

17 O espaço público permite aos indivíduos problematizar “em público” uma condição de desigualdade na vida privada. Isto é, lhes permite questionar a sua exclusão de arranjos políticos através de uma deliberação ampla. A condição de publicidade pode gerar uma nova gramática societária (Santos e Avritzer, 2002: 52-53). O público se distingue do estatal, passando a ser considerado como um espaço da sociedade. De uma perspectiva de democracia participativa, os espaços públicos poderiam ser considerados como instâncias deliberativas que permitem o reconhecimento e a voz a novos atores, caracterizados pela pluralidade social e política, sem estar monopolizados por algum ator social ou político ou pelo próprio Estado, havendo uma tendência à igualdade de recursos em termos de informação, conhecimento e poder, e onde se visibiliza o conflito e se oferecem condições para sua resolução levando em conta os interesses e opiniões na sua diversidade (Dagnino et alli, 2006:23-24). Enquanto nos espaços públicos fracos, só se leva a cabo a deliberação, nos “fortes” a deliberação se acopla à decisão. Na construção da democracia, a prática da deliberação tende a ampliar a esfera política, criando novas formas de relação entre a sociedade civil, a sociedade política e o Estado (Dagnino et alli, 2006:24-25)

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da democracia eleitoral que se manifesta na América Latina, apesar das diferenças em termos de debilidade institucional (veja-se as crises políticas nacionais por que passaram Peru, Equador, Bolívia e Venezuela) (Dagnino et alli, 2006: 12). Ao longo do trabalho fizemos várias referências à consolidação da democracia eleitoral nos diferentes países. Aqui gostaríamos de ressaltar a importância que assume per se a continuidade da democracia eleitoral numa região onde a democracia tem sido tão reiteradamente “consagrada nas instituições e destruída na prática”. Também cabe destacar o potencial de uso dos direitos políticos que a continuidade da democracia eleitoral garante como alavanca na construção de uma “democracia de cidadania” e na ampliação do “experimentalismo democrático”.

O segundo aspecto, numa orientação diferente, diz respeito ao descrédito manifestado pela população sobre a efetividade do tipo de democracia praticado na região em termos de justiça social, eficácia governamental e inclusão política, como constata o estudo do PNUD de 2004 sobre a situação da democracia na América Latina, particularmente, a sua falta de capacidade na promoção do reconhecimento político de grandes massas de população através do acesso das mesmas a políticas públicas que lhes propiciassem maior eqüidade e melhores condições de vida.

Existem leituras que visualizam neste descrédito uma nova crise da democracia na região, até com riscos – ainda que não atualmente presentes - de golpes militares. A democracia aparentaria perder vitalidade: se desconfia de sua capacidade de melhorar as condições de vida enfrentando os processos que geram crescente desigualdade e pobreza; os partidos políticos apresentariam um baixo nível de estima pública e muitos Estados estariam enfraquecidos e deslegitimados (PNUD, 2004: 36).

Porém, outras leituras têm um olhar diferente sobre essa crise da democracia. Por exemplo, para a ALOP (a associação que congrega as ONGs latino-americanas de promoção da cidadania) a democracia estaria sendo revitalizada. A América Latina se apresentaria como um dos locais no cenário internacional onde mais claramente os sentidos da democracia estariam em disputa (ALOP, 2006: 13). Haveria uma disputa entre projetos políticos que, usando muitas vezes os mesmos conceitos e apelando a discursos parecidos, são, de fato, diferentes. O questionamento às instituições democráticas feito pelas mobilizações sociais seria mais uma rejeição à forma predominante de democracia “de elites”, de cima para baixo, que a conjunção de projetos neoliberais e autoritários propiciou. As experiências de democratização na região apontam para a construção de uma nova agenda a partir tanto da emergência, em vários países, de um campo político popular, da ampliação dos espaços públicos e de experiências de democracia participativa, como também da eleição de uma série de governos “progressistas” ou de “esquerda”. A construção desse campo se daria através da articulação e mobilização em nível nacional de um conjunto de atores da sociedade civil – organizações de base, ONGs, e movimentos sociais - com uma trajetória de mais de trinta anos de prática social e política na luta pela democratização do Estado e da sociedade, e que também apresenta sinais de articulação regional (ALOP, 2006: 13).

O terceiro aspecto diz respeito especificamente a diversos experimentos de aprofundamento e inovação democrática através da ampliação dos espaços públicos

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que colocam em disputa a ressignificação da idéia mesma de democracia (Dagnino et alli, 2006: 13). Por um lado, através da recolocação no debate democrático das relações entre procedimentos e participação social e a complementaridade entre democracia representativa e participativa. Por outro, com a recolocação do problema dos limites da representação política tradicional ante a diversidade cultural e social crescente (Santos, 2005: 54-55). As lutas pela democratização da democracia, por socializar o poder e articular formas representativas e participativas de democracia que se estão manifestando em alguns dos países da região (por exemplo, Brasil, Uruguai ou Venezuela) são inovações cuja viabilidade ainda está em processo de comprovação. No nível local, há alguns anos vêm sendo implementadas experiências de descentralização e de democratização da gestão pública, como no caso dos orçamentos participativos onde os cidadãos têm a opção de participar diretamente nas decisões sobre o uso dos recursos públicos. No plano nacional, Constituições como a do Brasil e a da Venezuela introduziram dispositivos que promovem e legitimam a participação direta dos cidadãos em questões de interesse público. Porém, na prática, os governos tenderam a esvaziar o componente fundamental de democratização das decisões nas instâncias de participação.

O quarto aspecto corresponderia ao crescimento de orientações políticas de esquerda no novo mapa político regional que se manifesta numa onda eleitoral de “governos progressistas” (com todas as restrições que hoje se colocam a noções como “esquerda” ou “progressista”). Nesse mapa se identificam quatro principais orientações políticas: a modernização conservadora, o reformismo pragmático, o reformismo nacional popular e neodesenvolvimentismo indigenista (Calderón, 2007: 13). À exceção da modernização conservadora – que seria representada pelos governos Uribe na Colômbia, Garcia no Peru e Calderón no México, assim como pela grande maioria dos atuais governos da América Central - as outras orientações políticas fariam parte grosso modo desta onda progressista. O reformismo pragmático seria predominante nos governos de Lula, no Brasil; Bachelet, no Chile e Vazquez, no Uruguai; o reformismo nacional popular no governo Chavez, na Venezuela; e neodesenvolvimentismo indigenista com Morales, na Bolívia. No caso de Kichrner na Argentina e Ortega na Nicarágua haveria uma oscilação entre o reformismo pragmático e o nacional popular. E no governo Correa no Equador, entre o reformismo nacional popular e o neodesenvolvimentismo indigenista18.

Em linhas gerais, os governos progressistas reintroduzem na agenda nacional e

latino-americana a defesa dos interesses nacionais e de uma integração regional autônoma; a retomada do controle sobre os recursos naturais; a reavaliação da dívida externa; a ampliação dos espaços públicos e do experimentalismo democrático; e o fortalecimento do Estado enquanto local onde se deve inscrever e fazer valer os direitos de cidadania, garantindo para a população não só um leque de direitos civis e políticos mas um conjunto cada vez mais abrangente de direitos sociais, econômicos, ambientais e culturais (ALOP, 2006: 13).

18 Cabe destacar que tanto no México como no Peru, apesar de não ter conseguido vencer nas eleições, as orientações políticas “progressistas” obtiveram amplo apoio popular. E nas próximas eleições a serem realizadas no Paraguai e na Guatemala também essas orientações vêm apresentando bons índices de intenção de voto.

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Este crescimento das orientações progressistas apontaria para uma mudança no

comportamento das maiorias, reforçando o voto como instrumento de renovação. Com efeito, as transformações estão se dando dentro das regras da democracia eleitoral. A utilização do voto como instrumento de democratização também se manifestou nos referendos, como no caso da Colômbia em 2004 quando se rejeitaram os processos de ajuste fiscal e os planos do FMI; ou na Bolívia para defender os recursos naturais; ou no Uruguai, para garantir a água como bem público; ou no referendo revocatório da Venezuela, onde a grande maioria garantiu a continuidade do governo Chávez. Além de mudar o mapa político na região, estes processos eleitorais expressam uma interação maior entre movimentos sociais, partidos políticos e governantes recém-eleitos que, ao favorecer o alinhamento de perspectivas e interesses, abririam oportunidades para a construção tanto de uma nova cultura política como de uma nova governabilidade democrática (ALOP, 2006: 15).

Assim, desde a crise da Argentina – onde a palavra de ordem das mobilizações era “que se vayan todos” manifestando uma rejeição não só aos governantes ou aos partidos, mas a um estilo de fazer política e de governar – até a eleição de Morales na Bolívia – que tem como um dos seus pilares a reivindicação dos direitos das populações indígenas – o que se pode ler seria uma rejeição não da democracia, mas da forma predominante de democracia “de elite” com o seu estilo excludente de fazer política (ALOP, 2006:14).

Finalmente, a riqueza e a pluralidade dos processos de democratização que estão acontecendo na região desqualificam qualquer intento simplificador, permitindo sempre múltiplas interpretações. Assim, como vimos, alguns visualizam como sinais da inviabilidade da democracia na região o descrédito da população na efetividade da democracia em resolver problemas de justiça e inclusão social. Esta inviabilidade implicaria no crescente risco de instabilidade dos governos eleitos e até no possível retorno a soluções autoritárias. Outros, mais radicais ainda, considerando as novas configurações de poder na fase atual do capitalismo, a marginalidade do peso econômico da região no cenário mundial, os conflitos crescentes, a violência e a falta de seguridade social, apontam para um cenário de desintegração social e até de questionamento de alguns dos Estados nacionais.

Por fim, como estávamos ressaltando, há interpretações que identificam a América

Latina como uma das regiões onde se estão travando com maior intensidade disputas pela ampliação constante da pólis, pela ressignificação das práticas democráticas e pela criação de novas gramáticas sociais. Nessas disputas visualizam-se possibilidades de revitalização da democracia a partir da organização e da capacidade de incidência dos atores da sociedade civil, assim como da sua rearticulação com os setores da sociedade política, que estariam propiciando a superação das práticas e dos estilos autoritários e elitistas de fazer política. A constituição de um campo político popular, a ampliação dos espaços públicos e do experimentalismo democrático e também o crescimento das orientações políticas progressistas com os novos governos de esquerda seriam sinais dessa revitalização da democracia.

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O debate e a crítica estão em aberto. A América Latina encontra-se num turning-

point no qual as relações entre institucionalidade política, igualdade e eqüidade são fundamentais para a consolidação democrática (Calderón, 2007: 2). A resolução dos problemas político-institucionais na região dependerá, em grande medida, de como venha a dar-se conta dessas relações garantindo o reconhecimento e a participação política dos “invisíveis” numa constante construção e renovação de uma democracia da cidadania. Referências bibliográficas ABREU, A. (org.). Transição em fragmentos: desafios da democracia no final do século

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