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iiuo a sua nova terra natal... Todos os dias punha uma pedra de sonho nesse edifício impossivel.. . Breve elle ia tendo um paiz que já tantas vezes havia percorrido. Milhares de horas lembrava-se já de ter passado ao longo de suas costas. Sabia de que côr soiam ser os crepúsculos numa bahia do norte, e como era suave entrar, noite alta, e com a alma recostada no murmúrio da agua que o navio abria, num grande porto do sul onde elle passara outr'ora feliz talvez, das suas mocidades a supposta. . . (uma pausa) Primeira. — Minha irmã, porque é que vos calaes ? Segunda. — Não se deve fallar demasiado. .. A vida espreita-nos sempre... Toda a hora é materna para os sonhos, mas é preciso não o saber... Quando fallo de mais começo a separar-me de mim e a ouvir-me fallar. Isso faz com que me compadeça de mim-propria e sinta demasiadamente o coração. Tenho então uma vontade lacrimosa de o ter nos braços para o poder embalar como a um filho... Yêde : o horizonte empalli- deceu... O dia não pôde já tardar... Será preciso que eu vos falle ainda mais do meu sonho? * • Primeira. — Contae sempre, minha irmã, contae sempre... Não pareis de contar, nem repareis em que dias raiam. . . 0 dia nunca raia para quem encosta a cabeça no seio das horas sonhadas... Não torçaes as mãos. Isso faz um ruido como o de uma serpente furtiva.. . Fallae-nos muito mais do vosso sonho. Elle é tão verdadeiro que não tem sen- tido nenhum. Só pensar em ouvir-vos me toca musica na alma... Segunda. — Sim, faliar-vos-hei mais d'elle. Mesmo eu preciso de vol-o contar. A medida que o vou contando, é a mim também que o conto. . . São trez a escutar. .. (De repente, olhando para o caixão, e estremecendo.) Trez não. . . Não sei. . . Não sei quantas. .. Terceira. — Não falíeis assim... Contae depressa, contae outra vez... Não falíeis em quantos podem ouvir... Nós nunca sabemos quantas cousas realmente vivem e vêem e escutam. .. Voltae ao vosso sonho... O marinheiro... O que sonhava o marinheiro?... Segunda (mais baixo, numa voz muito lenta).—Ao principio elle creou as paysagens ; depois creou as cidades; creou depois as ruas e as travessas, uma a uma, cinzelando-os na matéria da sua alma — uma a uma as ruas, bairro a bairro, até ás muralhas dos caes d'onde elle creou depois os portos. . . Uma a uma as ruas, e a gente que as percorria e que olhava sobre ellas das janellas. .. Passou a conhecer certa gente, como quem a reco- nhece apenas... Ia-lhes conhecendo as vidas passadas e as conversas, e tudo isto era como quem sonha apenas paysagens e as vae vendo... Depois viajava, recordado, atravez do paiz que creara... E assim foi construindo o seu passado... Breve tinha uma outra vida anterior... Tinha já, nessa nova pátria, um logar onde nascera, os lugares onde passara a juventude, os portos onde embarcara... Ia tendo tido os companheiros da infância e depois os amigos e inimigos da sua idade viril... Tudo era diferente de como elle o tivera — nem o paiz, nem a gente, nem o seu passado próprio se pareciam como o que haviam sido... Exigis que eu continue?... Causa-me tanta pena fallar d'isto !... Agora, porque vos fallo d'isto, aprazia-me mais estar-vos fallando de outros sonhos... Terceira. — Continuae, ainda que não saibaes porquê.. . Quanto mais vos ouço, mais me não pertenço . . . Primeira. — Será bom realmente que continueis? Deve qualquer historia ter fim? Em todo o caso fallae. .. Importa tão pouóo o que dizemos ou não dizemos. .. Velamos as horas que passam. . • O nosso mister ó inútil como a Vida.. . Segunda. — Um dia, que chovera muito, e o horizonte estava mais incerto, o mari- nheiro cançou-se de sonhar... Quiz então recordar a sua pátria verdadeira..., mas viu que não se lembrava de nada, que ella não existia para elle... Meninice de que se lem- brasse, era a na sua pátria de sonho ; adolescência que recordasse, era aquella que se creara... Toda a sua vida tinha sido a sua vida que sonhara... E elle viu que não podia ser que outra vida tivesse existido.. . Se elle nem de uma rua, nem de uma figura, nem de um gesto materno se lembrava... E da vid -i que lhe parecia ter sonhado, tudo era real e tinha sido... Nem sequer podia sonhar outro passado, conceber que tivesse tido outro, como todos, um momento, podem crer... O' minhas irmãs, minhas irmãs...

passara outr'ora feliz talvez, das suas mocidades a ... · iiuo a sua nova terra natal... Todos os dias punha uma pedra de sonho nesse edifício ... que olhava sobre ellas das janellas

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i iuo a sua nova te r ra n a t a l . . . Todos os dias p u n h a u m a p e d r a de sonho nesse edifício i m p o s s i v e l . . . Breve elle ia t endo um paiz que j á t a n t a s vezes hav ia pe rcor r ido . Milhares de horas lembrava-se j á de t e r p a s s a d o ao longo de suas c o s t a s . Sabia de que côr soiam ser os crepúsculos n u m a bahia do no r t e , e como era suave en t ra r , noi te a l ta , e com a alma recos tada no m u r m ú r i o da agua que o nav io abr ia , n u m g rande po r to do sul onde elle p a s s a r a ou t r ' o ra feliz ta lvez , das suas moc idades a s u p p o s t a . . .

(uma pausa)

Primeira . — Minha i rmã, p o r q u e é que vos calaes ? Segunda . — Não se deve fallar d e m a s i a d o . . . A vida espre i t a -nos s e m p r e . . . T o d a a

ho ra é m a t e r n a p a r a os sonhos , m a s é preciso não o s a b e r . . . Q u a n d o fallo de mais começo a separar -me de mim e a ouvir-me fallar . I s so faz com que me compadeça de mim-propr ia e s in ta d e m a s i a d a m e n t e o coração. T e n h o en tão u m a v o n t a d e lacr imosa de o te r nos braços p a r a o pode r emba la r como a um f i l h o . . . Yêde : o ho r i zon te empall i-d e c e u . . . O dia n ã o pôde j á t a r d a r . . . Se rá prec iso que eu vos falle a inda mais do meu s o n h o ? * •

Primeira . — Contae sempre , minha i rmã , con tae s e m p r e . . . Não pare is de con ta r , n e m repare i s em que dias r a i a m . . . 0 dia n u n c a ra ia p a r a quem encos ta a cabeça no seio das ho ra s s o n h a d a s . . . Não to rçaes as m ã o s . I s so faz u m ruido como o de u m a se rpen te f u r t i v a . . . Fal lae-nos mui to mais do vosso s o n h o . Elle é t ão ve rdade i ro que não t em sen­t ido n e n h u m . Só pensa r em ouvir-vos me toca mus ica n a a l m a . . .

Segunda . — Sim, faliar-vos-hei ma i s d'elle. Mesmo eu preciso de vol-o con ta r . A medida que o vou con t ando , é a mim t a m b é m que o c o n t o . . . São trez a e s c u t a r . . . (De repente, olhando para o caixão, e estremecendo.) T rez n ã o . . . Não se i . . . Não sei q u a n t a s . . .

T e r c e i r a . — Não falíeis a s s i m . . . Con tae depressa , con tae o u t r a v e z . . . Não falíeis em quan tos podem o u v i r . . . Nós nunca sabemos q u a n t a s cousas rea lmente v ivem e vêem e e s c u t a m . . . Vo l t ae ao vosso s o n h o . . . O m a r i n h e i r o . . . O que sonhava o m a r i n h e i r o ? . . .

S e g u n d a (mais baixo, numa voz muito lenta).—Ao principio elle creou as p a y s a g e n s ; depois c reou as c i d a d e s ; creou depois as r u a s e as t r aves sa s , u m a a u m a , c inzelando-os n a ma té r i a da sua alma — u m a a u m a as r u a s , ba i r ro a ba i r ro , a té ás mura lhas dos caes d 'onde elle creou depois os p o r t o s . . . U m a a u m a as rua s , e a gen te que as percor r ia e que o lhava sobre ellas das j a n e l l a s . . . Pa s sou a conhecer cer ta gen te , como quem a reco­nhece a p e n a s . . . Ia- lhes conhecendo as v idas p a s s a d a s e as conversas , e t u d o isto era como quem sonha apenas p a y s a g e n s e as vae v e n d o . . . Depois via java, r eco rdado , a t ravez do paiz que c r e a r a . . . E assim foi cons t ru indo o seu p a s s a d o . . . Breve t i nha u m a ou t r a v ida a n t e r i o r . . . T i n h a j á , nes sa nova pá t r i a , u m logar onde nascera , os lugares onde p a s s a r a a j u v e n t u d e , os po r tos onde e m b a r c a r a . . . I a t endo t ido os companhe i ros da infância e depois os amigos e in imigos da sua idade v i r i l . . . T u d o era diferente de como elle o t ive ra — nem o pa iz , nem a gen t e , nem o seu p a s s a d o p rópr io se parec iam como o que hav iam s i d o . . . Ex ig i s que eu c o n t i n u e ? . . . Causa-me t a n t a p e n a fallar d ' is to ! . . . Agora , p o r q u e vos fallo d ' is to, apraz ia -me mais es ta r -vos fal lando de ou t ros s o n h o s . . .

T e r c e i r a . — Cont inuae , a inda que não sa ibaes p o r q u ê . . . Q u a n t o mais vos ouço, mais me n ã o pe r tenço . . .

Primeira . — Será bom rea lmente que con t i nue i s ? Deve qua lquer h i s to r i a t e r fim? E m todo o caso fal lae. . . I m p o r t a t ão pouóo o que dizemos ou não d i zemos . . . Ve l amos as h o r a s que p a s s a m . . • O nosso mis te r ó inút i l como a V i d a . . .

Segunda . — Um dia, que chovera mu i to , e o hor izonte e s t ava mais incer to , o mar i ­nhe i ro cançou-se de s o n h a r . . . Quiz en tão recordar a sua pá t r i a v e r d a d e i r a . . . , mas viu que não se l embrava de nada , que ella não exis t ia p a r a e l l e . . . Meninice de que se lem­brasse , era a na sua pá t r i a de sonho ; adolescência que recordasse , e ra aquel la que se c r e a r a . . . T o d a a sua v ida t i n h a sido a sua v ida que s o n h a r a . . . E elle viu que n ã o podia ser que ou t r a v ida t ivesse e x i s t i d o . . . Se elle nem de u m a rua , nem de u m a figura, nem de u m gesto m a t e r n o se l e m b r a v a . . . E da vid-i que lhe parec ia t e r sonhado , t u d o era rea l e t i n h a s i d o . . . Nem sequer podia sonhar out ro pas sado , conceber que t ivesse t ido ou t ro , como todos , um m o m e n t o , podem c r e r . . . O' m i n h a s i rmãs , minhas i r m ã s . . .