Patrimonio Cultural Identidades

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    PATRIMONIALIZAO E TRANSFORMAO DAS IDENTIDADES

    CULTURAIS

    Xerardo Pereiro Prez (*), Universidade de Trs-os-Montes e Alto Douro

    -Pereiro Prez, X. (2003): Patrimonializao e transformao das identidades

    culturais, em Portela, J. e Castro Caldas, J. (coords.): Portugal Cho. Oeiras: Celta

    editora, pp. 231-247.

    INTRODUO

    O objectivo deste texto reflectir sobre problemas associados s micro-

    intervenes patrimoniais, isto a partir dum ponto de vista antropolgico. Tomo

    como exemplos metafricos e paradigmticos quatro casos de estudo, cujos

    contextos se incluem no Noroeste Ibrico. So eles os seguintes:

    1. A criao familiar de um ecomuseu e de vrios apartamentos em espao

    rural na aldeia de Rozadas (Boal-Astrias-Espanha).

    2. A construco de um centro de interpretao patrimonial promovido por

    uma associao de desenvolvimento local e de promoo do Caminho de

    Santiago em Vilar das Donas (Lugo-Galiza-Espanha).

    3. A activao turstico-patrimonial integrada, promovida pela autarquia de

    Allariz (Ourense-Galiza-Espanha), em colaborao com a sociedade civil.

    4. A criao de uma casa-museu integrada no Roteiro do Vinho do Porto em

    Alij (Portugal).

    Depois de um enquadramento terico das diferentes perspectivas de

    abordagem e estudo do patrimnio cultural, considero o processo de mudanae de reproduo de diversos nveis identitrios, e como estes utilizam

    socialmente o patrimnio cultural como instrumento simblico de grande

    eficcia na reproduo sociocultural.

    CULTURA E PATRIMNIO CULTURAL: CONCEITOS E PERSPECTIVAS

    (*)Muito agradeo os comentrios a este texto dos professores Jos Antnio Fernndez deRota, Xos Carlos Sierra e, especialmente, a Paulo Mendes e Jos Portela.

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    Do ponto de vista jurdico, o patrimnio uma noo que define todos os

    recursos que se herdam, bens mobilirios e imobilirios, capitais, etc., portanto,

    podendo ter, portanto, um sentido tanto privado como pblico. Em qualquer

    caso, o objectivo garantir a sobrevivncia dos grupos sociais e tambm

    interligar umas geraes com as outras (Rodrguez Becerra, 1997). Sob esta

    perspectiva, tem-se em conta que, de uma gerao a outra, o patrimnio pode

    ser acumulado, perdido ou transformado.

    Ainda na ptica jurdica, o patrimnio cultural deixa, pouco a pouco, de

    ter uma definio redutoramente materialista, monumentalista, esteticista e

    historicista (Gmez Pelln, 1999), para adoptar uma viso mais antropolgica

    nas ltimas legislaes(1). Isto quer dizer que se deixou de reduzir o patrimnio

    a objecto material e monumental, para se ter em conta os bens culturais

    imateriais e a vida social volta do objecto. Alm disto, deixou-se de valorizar

    apenas as criaes estticas extraordinrias e idolatradas pelas elites as

    belas artes , para valorizar de igual modo o que culto e popular.

    Tambm importante sublinhar como o patrimnio cultural deixou de ser

    (1) A los efectos de la presente Convencin se considerar patrimonio cultural:

    -los monumentos: obras arquitectnicas, de escultura o de pintura monumentales, elementos oestructuras de carcter arqueolgico, inscripciones, cavernas y grupos de elementos, quetengan un valor universal excepcional desde el punto de vista de la historia, del arte o de laciencia,-los conjuntos: grupos de construcciones, aisladas o reunidas, cuya arquitectura, unidad eintegracin en el paisaje les d un valor universal excepcional desde el punto de vista de lahistoria, del arte o de la ciencia,-los lugares: obras del hombre u obras conjuntas del hombre y de la naturaleza as como laszonas incluidos los lugares arqueolgicos que tengan un valor universal excepcional desde elpunto de vista histrico, esttico, etnolgico o antropolgico.(Art. 1, Convencin sobre la proteccin del patrimonio mundial, cultural y natural, Unesco,Pars, 16-11-1972)

    O patrimnio cultural portugus constitudo por todos os bens materiais e imateriais que,pelo seu reconhecido valor prprio, devam ser considerados como de interesse relevante paraa permanncia e identidade da cultura portuguesa atravs do tempo.(Art. 1, Lei n. 13/85 do Patrimnio Cultural Portugus, 1985)

    Integran el Patrimonio Histrico Espaol los inmuebles y objetos muebles de inters artstico,histrico, paleontolgico, arqueolgico, etnogrfico, cientfico o tcnico. Tambin forman partedel mismo el patrimonio documental y bilbiogrfico, los yacimientos y zonas arqueolgicas, ascomo los sitios naturales, jardines y parques, que tengan valor artstico, histrico oantropolgico.(Art. 1, Ley 16/1985 del Patrimonio Cultural Espaol, 1985)

    O patrimonio cultural de Galicia constitudo por tdolos bens materiais e inmateriais que,

    polo seu recoecido valor prprio, deban ser considerados como de interesse relevante para apermanencia e a identidade da cultura galega a travs do tempo.(Art. 1, Lei 8/1995 do Patrimonio Cultural de Galicia, 1995)

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    unicamente histrico-artstico (entendido como herana que merece ser

    conservada), para passar a ser algo em que o passado interpretado a partir

    do presente e de acordo com critrios de seleco e valorao determinantes

    em cada poca. Isto, num jogo de memrias e esquecimentos, que, no entanto

    deve responder s necessidades sociais do presente e do futuro (Riegl,1987).

    No prosseguimento desta ptica antropolgica, a noo de patrimnio

    cultural no exactamente a mesma que a de cultura. Entre estudiosos e

    agentes da patrimonializao, esta uma das confuses conceptuais mais

    frequentes, o que , porm, compreensvel, pois a distino no simples. Se

    os antroplogos constroem noes de cultura frequente e virtualmente holistas,

    o patrimnio cultural mantem com a cultura uma relao metafrica e

    metonmica, independentemente das noes que a definem e classificam.

    Portanto, o que distingue a noo de patrimnio cultural da de cultura a forma

    como a primeira se manifesta na representao da cultura, atravs da

    conservao e da transformao do valor dos elementos culturais. Da cultura

    no podemos patrimonializar nem conservar tudo, da que o patrimnio cultural

    seja s uma representao simblica da cultura, e por isso mesmo, dos

    processos de seleco, negociao e delimitaodos significados.

    O patrimnio no pode incluir tudo o que as culturas tm criado

    (Rodrguez Becerra, 1997) e o discurso da perda de patrimnio ou das

    urgncias na sua recuperao pode levar ao abuso na recuperao

    patrimonial, produzindo uma imagem de estatismo na dinmica incontornvel

    de todas as culturas. Alm disso, a patrimonializao tende a fixar alguma

    permanncia, quando a cultura, pelo contrrio, est em constante mudana.

    Ela pode ser estudada e conhecida, mas nem toda pode ser patrimonializada,

    porque seno estaramos condenados a viver irremediavelmente de modosemelhante ao dos nossos antepassados. A mudana inerente noo

    mesma de cultura, mas tambm de patrimnio cultural. As duas noes esto

    intimamente ligadas e necessitam uma da outra. Na lngua inglesa esta

    confuso conceptual no existe, porque, alm do sentido jurdico especfico

    que obteve, o patrimnio cultural designa-se inequivocamente por heritage ou

    cultural heritage.

    Feita a clarificao conceptual, saliento agora algumas abordagensterico-prticas sobre o patrimnio cultural, e que so de grande interesse para

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    a problemtica explicitada abaixo. Sem excluso entre as mesmas, com

    entrecruzamentos cronotpicos e em sntese, as posies, ou atitudes face aos

    processos de recuperao e conservao do patrimnio cultural so as

    seguintes:

    a) Tradicionalista ou folclorista. O patrimnio cultural aqui reduzido a

    um conjunto de bens materiais e imateriais que representam a cultura

    popular pr-industrial. A sua viso historicista, pois consideram o

    patrimnio cultural como objecto e relicrio do passado, mas tambm

    conservacionista, pois pensa que o fim ltimo do patrimnio cultural

    deve ser sempre a sua conservao, independentemente do seu uso

    actual. Os critrios de preservao de artefactos e edifcios do

    passado devem ser os de poca e beleza.

    b) Construtivista(Prats, 1998). O patrimnio cultural entendido como

    fruto de um processo de construco social, isto , segundo as

    pocas e os grupos sociais, valorizam-se e legitimam-se uns bens

    patrimoniais e no outros. Por exemplo, no caso do Brasil h uma

    tendncia para no patrimonializar o legado africano e indgena, nem

    to pouco o dos subalternos (Funari, 2001). Nesta perspectiva, o

    patrimnio cultural entendido como uma representao simblica

    da identidade, mas tambm em muitas ocasies como sinnimo de

    cultura.

    c) Patrimonialista(Rodrguez Becerra, 1997). O patrimnio cultural a

    recuperao do passado a partir de uma perspectiva presente, para

    explicar a mudana dos modos de vida. O patrimnio cultural est

    integrado por elementos culturais que adquirem um novo valor

    atravs de um proceso de patrimonializao, porm no o mesmoque a noo de cultura. Poderamos dizer que uma interveno na

    cultura. Os bens patrimoniais representam formas de vida de um

    grupo humano no tempo.

    d) Produtivista(Ashworth, 1994). O patrimnio cultural entendido por

    esta posio como um recurso para o turismo cultural e para outras

    actividades econmicas. Esta postura considera o patrimnio cultural

    como uma mercadoria que deve satisfazer o consumocontemporneo, da a necessidade de um processo de interpretao

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    que converta recursos em produtos ou mercadorias necessrias para

    o funcionamento de um sistema de produo ps-industrial. Esta

    atitude segue o critrio do consumo e o da procura, utilizando o

    patrimnio cultural como representao das identidades culturais.

    Presta, porm, pouca ateno aos riscos da sobre-explorao

    turstica.

    e) Participacionista (Garca Canclini, 1999 b). Nesta perspectiva de

    abordagem, a recuperao e conservao do patrimnio cultural

    deve por-se em relao com as necessidades sociais presentes e

    com um processo democrtico de seleco do que se conserva.

    Tambm deve estar ligada participao social com o objectivo de

    evitar a monumentalizao e a coisificao de objectos, isto ,

    muito importante pensar primeiro nas pessoas e logo nos bens

    culturais. O participacionismo defende uma poltica do patrimnio

    cultural de opes claras: primeiro, o arteso, depois, o artesanato; e,

    paralelamente, locais com turistas, em vez de locais tursticos.

    A PATRIMONIALIZAO ENQUANTO PROCESSO

    Desde a segunda guerra mundial deu-se um salto quantitativo e qualitativo na

    activao do patrimnio cultural. Este processo de activao, que denomino

    patrimonializao, est ntimamente associado a um esforo conservacionista

    de longo alcance e que tem um fito destacado no romantismo (Prats, 1997).

    Porm, desde a segunda metade do sculo XX fruto de uma nova

    sensibilidade face aos referentes culturais potencialmente patrimonializveis.

    Por via da patrimonializao atribuiem-se novos valores, sentidos, usos e

    significados a objectos, formas, modos de vida, saberes e conhecimentossociais. Neste processo os especialistas (arquelogos, antroplogos,

    arquitectos, historiadores da arte, etc) so vitais, sobretudo enquanto criadores

    de uma legitimidade patrimonial selectiva. Os especialistas certificam o valor

    dos elementos culturais dignos de serem patrimonializados e reconhecem

    como bem de tutela pblica o que antes no estava reconhecido como tal:

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    O carcter e o significado de monumentos no corresponde a estas obras em

    virtude do seu destino originrio, antes seno somos ns, sujeitos modernos,

    quem lho atribumos (Riegl, 1987: 29).

    O historiador da arte austraco Alois Riegl (1987) escrevia em 1902 que os

    valores geralmente atribudos ao patrimnio cultural so os seguintes:

    1. O valor histrico radicaria na rememorao que esse elemento faz de uma

    poca, no estimulo da nossa memria sobre o passado, um tempo distinto da

    nossa vida quotidiana, um pas estrangeiro (Lowenthal, 1998). A aparente

    permanncia da sua forma original, tal e como nasceu uma leitura

    comummente reconstruda com o pensamento, a palavra ou a imagem.

    2. O valor esttico ou artstico tem tambm uma outra pretenso de valor

    objectivo; mas na procura de uma definio do bonito, muitas vezes esta

    categoria est unida ao til, rentabilidade poltica e socioeconmica.

    3. O valor de antiguidade , pelo contrrio, uma pretenso de valor subjectivo,

    que salienta o prazer, o sabor do antigo e da vivncia. este um valor do

    velho, do mais idoso. Por no necessitar de especiais conhecimentos

    histricos, este um valor mais democrtico para o qual no precisamos do

    conhecimento de especialistas.

    4. O valor de actualidade ou contemporaneidade salienta a utilidade dos

    elementos do patrimnio cultural, para servir as necessidades do presente.

    Como Llorens Prats (1997) tem afirmado, sabemos que muitos destes valores

    so hoje insuficientes para entender os processos de atribuio de valor

    patrimonial pblico. Sabemos, e tentamos demonstrar abaixo, que o papel dos

    especialistas muito importante nos processos de patrimonializao, mas nempor isso devemos deixar de ter em conta que tais processos esto associados

    a tenses, conflitos e negociaes, e da a importncia de se estudarem os

    papis doutros agentes sociais igualmente implicados. bem conhecida a obra

    de Michael Herzfeld (1991) e o seu contributo para esta questo, quando nos

    fala dos confrontos de vises entre especialistas e habitantes do patrimnio

    cultural. Por isso prestamos ateno aos diferentes nveis identitrios e aos

    seus papis na hora de categorizar, valorizar contedo ideolgico eaxiolgico-, e converter em signo identitrio determinados elementos culturais

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    de especial significao dentro de um determinado contexto cultural. Tal pode

    ser ilustrado, com algum detalhe, atravs de quatro exemplos etnogrficos

    retirados dos meus trabalhos de campo no Noroeste Ibrico.

    O CASO DE ROZADAS

    Rozadas uma pequena freguesia do concelho de Boal, no ocidente das

    Astrias (Espanha). Ali cheguei no ano 1990 para estudar os limites

    simblicos da identidade galega, um problema que ento era central nos

    estudos de antropologia ibricos, sobretudo nos espanhis, pois estava-se a

    construr sociopolticamente o novo quadro de comunidades autonmicas e

    interessava reinventar as identidades regionais e nacionais. Neste contexto o

    papel dos antroplogos e de outros especialistas foi capital.

    Em Rozadas, uma famlia de trs membros (pe, me e um filho)

    dedicada agricultura e pecuria prepara-se, desde h alguns anos, para

    abandonar a actividade agrria na gerao seguinte. Os pais esto reformados

    faz tempo, a explorao agro-pecuria est oficialmente sob a

    responsabilidade do filho, que na realidade se dedica ao seu trabalho de

    taxista, gesto da sua casa de turismo rural e a completar a sua coleco

    etnogrfica. As ajudas da UE tm-lhe permitido desenvolver o seu projecto dereconverso familiar, que no se tem confinado explorao turstica da

    herana familiar, mas tambm revitalizao de elementos fundamentais do

    patrimnio cultural da zona: recuperao de um velho moinho, reabilitao de

    um cortn (estrutura arquitectnica que servia para proteger as colmeias de

    animais como os ursos), recuperao de um barreiro (lugar de extraco de

    argila para construco das vivendas) para consumo turstico. Desta forma

    musealizou-se o territrio e territorializou-se o museu, constitundo umaexperincia que segue princpios da nova museologa antropolgica: circuito

    do territrio, memria, populao e patrimnio cultural. A formao autodidacta

    do autor-criador, no tem impossibilitado uma viso integral do

    desenvolvimento, e to pouco esteve isenta de dificuldades e tenses com os

    vizinhos e as administraes pblicas na luta pela legitimao poltica do

    patrimnio cultural. Neste processo de reconverso econmica, a

    pluriactividade tem sido uma caracterstica fundamental desta economia

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    familiar, que tem acumulado uma grande quantidade de patrimnio cultural

    para o seu reconhecimento, conservao, valorizao e explorao turstica.

    O CASO DE VILAR DAS DONAS

    Vilar das Donas uma freguesia do concelho de Palas de Rei (Lugo-Galiza),

    atravessada pelo Caminho Francs de Santiago de Compostela. Em Vilar das

    Donas, um grupo de amigos constituiu no ano 1995 uma associao de

    desenvolvimento local e de promoo do Caminho de Santiago de Compostela.

    O nascimento da associao no foi pacfico. Nasceu de um conflito entre o

    sector mais jovem, tambm mais dinmico, e o sector mais velho e

    conservador da associao de vizinhos. Esta ciso motivou a unio de alguns

    jovens do concelho com o objectivo de recuperar e valorizar bens culturais da

    zona, como o mosteiro de Vilar das Donas ou o Castelo de Pambre, para

    induzir a recuperao socioeconmica colectiva desta zona do interior-centro

    da Galiza, e que est ancorada numa crise de reproduo a todos os nveis. A

    associao no s tem recuperado e revalorizado bens culturais, como tm

    realizado diversas actividades reivindicativas em prol do patrimnio cultural e

    natural. Tem publicado diversos guias tursticos em vrios idiomas (Pereiro

    Prez e Prez Paredes, 2000), postais, folhetos, etc.; tem restaurado peas

    escultricas fundamentais para o conjunto histrico de Vilar das Donas, e est

    em processo de criao de um Centro de Interpretao da Comarca da Ulloa,

    que servir de base para impulsionar uma rede de iniciativas patrimoniais por

    toda aquela comarca.

    Neste caso, apesar de ser uma iniciativa de desenvolvimento local,

    grande parte das ajudas para os projectos desenvolvidos tm vindo da Unio

    Europeia (Programa PRODER de desenvolvimento rural), da Xunta de Galicia(administrao autonmica), da Deputacin Provincial de Lugo (administrao

    provincial) e das administraes locais. Alm destes apoios, a associao

    conta com os recursos prprios que gera e assume uma parcela do

    investimento nas suas actividades.

    Sociologicamente, esta associao formada por:

    A) Jovens, filhos de emigrantes galegos retornados do Pas Basco. Estes

    jovens representam a segunda gerao de emigrantes do mundo rural parao mundo urbano na Espanha dos anos 1960 e 1970. Trata-se dos que no

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    ficaram no Pas Basco e dos que face a uma cultura das ausncias tem

    impulsionado como defesa novos processos de recuperao e inveno da

    identidade local.

    B) Jovens, cuja naturalidade local, mas cuja residncia principal est nas

    cidades galegas. Estes jovens so muito dinmicos e com forte apego

    zona, trabalham nas cidades galegas, mas retornam periodicamente

    zona, nos fins de semana e nos perodos de frias. Nesses tempos

    renovam os seus vnculos identitrios com a comunidade de origem,

    atravs do seu trabalho na associao estudada.

    Culturalmente, os membros desta associao podem bem ser definidos como

    rurbanos(2) e interessados no desenvolvimento da zona atravs de processos

    de dinamizao colectiva. O meu papel aqui tem sido o de consultor,

    investigador e membro da associao, participando activamente primeiro nos

    processos de pesquisa, depois na aco subsequente, do conhecimento

    gerado pelas minhas investigaes antropolgicas. Isto tem suposto um

    exerccio difcil de autoantropologia e de antropologia aplicada, no sem certo

    desgaste emocional e afectivo, por causa da dialctica entre o discurso da

    associao e o discurso de alguns dirigentes polticos locais, desconfiados face

    s associaes cvicas.

    ALLARIZ

    Uma revista de um peridico portugus(3) intitulava h pouco tempo: Allariz, a

    cidade-jardim. A metfora pode levar-nos a pensar que est a fazer referncia

    a algum local do Reino Unido, mas longe de isso, fala da Galiza, em concreto

    (2) Bauer, Gerard e Roux, Jean Marie (1976), La Rurbanisation ou la Ville parpille, Paris,Seuil.-Garca de Len, Mara Antonia (1996), El rurbanismo o las transformaciones del campoespaol, Fundamentos de Antropologa, 4-5, pp. 221-229.-Voy, Liliane e Rmy, Jean (1995), La Ciudad, Hacia una Nueva Definicin?, Traduoindita ao espanhol de Idoia Etayo Macazaga.Ver tambm: www.eco.unicamp.br/projectos/rurban21.htm-Silvano, Filomena (1994), Gerir as distncias: mobilidade e recomposio identitria,Antropologia Portuguesa, 12, pp. 19-27.-Silvano, Filomena (1997), Territrios da Identidade, Oeiras, Celta.-Portela, Jos (1999), O Meio Rural em Portugal: Entre o Ontem e o Amanh, Trabalhos de

    Antropologia e Etnologia, 39, pp. 45-65.(3) Fria, Catarina (1998), Allariz, a cidade-jardim, Pblica, 2866 (17-1-1998), pp. 36-39.

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    de um concelho situado no distrito de Ourense, a 20 quilmetros da capital

    distrital, com a qual est muito relacionada. Neste sentido, a construo da

    Autova das Ras Baixas, que atravessa o concelho, permite estar mais cerca

    vivendo mais longe da cidade de Ourense. A distncia no s uma questo

    estritamente geogrfica, tambm fortemente simblica, afectando os novos

    imaginrios geoespaciais. Vejamos um exemplo retirado do trabalho de campo:

    afirmao de que a cidade de Ourense est situada a 20 quilmetros de

    Allariz, os prprios alaricanos, com um outro imaginrio simblico, respondem:

    Allariz est situado a 20 quilmetros da cidade de Ourense, no o contrrio,

    Allariz est a 15 minutos de Ourense. O espao passa a medir-se em tempo

    (Aug, 1992), o perifrico reinverte e relativiza as categorias com relao aos

    centros, paradoxalmente no sem ter que acelerar o tempo para diminuir as

    distncias. O certo que o valor da accesibilidade chave para entender as

    novas formas urbanas e socioespaciais da Galiza, e em particular para

    entender parcialmente o sucesso da patrimonializao de Allariz.

    A populao de Allariz de cerca de 5.100 habitantes, sendo dos

    poucos concelhos do interior de Galiza que est a recuperar populao e tecido

    socioeconmico. A sua populao est repartida em 16 freguesias (2 na vila e

    capital concelhia) e 92 ncleos de povoao, presididos pela capital concelhia,

    uma vila de aproximadamente 2.000 habitantes.

    Nos ltimos sete anos um intenso processo social de activao do

    patrimnio cultural (patrimonializao) fez mudar as inrcias que condenavam

    quase a desaparecer como tal este concelho do interior galego. Este processo

    foi de tal magnitude que a representao simblica actual de Allariz a de vila

    das vilas da Galiza, a de uma vila icone, a de um espao simblico recriado

    no qual so projectados significados culturais intensamente abstractos. Allariz a imagem projectada da cosmoviso dos nacionalistas galegos qual aderem

    os seus devotos e tambm os seus contrrios polticos numa imitatio

    competitiva que tm no desenvolvimento turstico uma das suas estratgias

    chave.

    Eis alguns dos elementos patrimoniais que foram recuperados neste

    lugar da memria (Nora, 1984), tanto para consumo turstico global como local:

    o parque etnogrfico (museu do brinquedo, museu do linho, moinho de gua,museu do couro, museu de arte sacra), torre lombarda actual pousada-, zona

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    histrica, passeios pela margem do rio, praias fluviais, paisagem ribeirinha,

    casas de turismo rural, nomes das ruas em lngua galega, fbricas de couro e

    sapatos para usos socioculturais, igrejas romnicas, etc . O patrimnio cultural,

    pensado como rural por muitos visitantes tem servido para potenciar novos

    modos de vida urbanos e rurbanos, que os anfitries imitam dos convidados(4).

    Este um dos paradoxos que transformam a construo social do patrimnio

    cultural num simulacro, que responde mais s necessidades de reproduo

    (to actuais quanto notrias), do que continuao de uma tradio.

    Tudo isto relevante se pensarmos que a vila de Allariz denominada

    por alguns dirigentes locais de "cidade", declarada "Conjunto histrico-artstico"

    no ano 1971(5), prmio europeu de planificao urbana e regional no ano 1994,

    e que na actualidade desenvolve um Plano Especial (6) de reabilitao e

    recuperao da zona histrica. Querer denominar-se cidade denota a

    aspirao ao prestgio do urbano, tentando romper com a dicotomia rural-

    urbano e querendo viver um urbanismo porttil e automotorizado, reforado

    pelo efeito de tnel que provoca a nova criao da Autovia do Noroeste

    (vinculao rpida da Galiza ao resto da Pennsula Ibrica e Europa) ao passar

    por Allariz.

    Ao contrrio das microintervenes anteriores, em Allariz gerou-se um

    forte processo de activao poltica, que forou um processo de

    desenvolvimento colectivo autosustentvel e em espiral. O que aqui importa

    realmente destacar a convergncia de vontades polticas locais e translocais,

    pode construir o sucesso duma experincia de desenvolvimento integral como

    a de Allariz.

    (4) Smith, Velene e outros (1992), Anfitriones e Invitados. Antropologa del Turismo, Madrid,Endymin.(5) Decreto n. 1319/71 de 20 de Maio, do Ministerio de Educacin y Ciencia espanhol.(6) O PECHA (Plan Especial do Conxunto Histrico de Allariz) aprovou-se definitivamente o21-1-1995 e incide sobre 28,90 Ha. Tem como objectivo conservar o patrimnio arquitectnicoe diversificar os seus usos no seu interior. A Xunta de Galicia declarou o 5-7-1996 a zonahistrica de Allariz como "rea de Rehabilitacin Integrada"; e o 23-12-1996 assinou-se umprotocolo de colaborao entre a Cmara Municipal de Allariz, a Xunta de Galicia e oMinisterio de Fomento espanhol para subsidiar actuaes de rehabilitao na zona histrica.Por meio de este protocolo, o Ministerio de Fomento subsidiar o 40% do custo dasactuaes, a Xunta de Galicia o 20%, o Concelho de Allariz o 18,12% e os vizinhos o 36,46%.Para desenvolver estes projectos foi criada em Outubro de 1995 a "Oficina Municipal de

    Rehabilitacin", composta na actualidad por 4 arquitectos, 1 arquitecto tcnico, 1 desenhador euma administrativa. No ano 1994, Allariz recebeu o Prmio Europeu de Planificao Urbana eRegional, promovido pela Unio Europeia. Ver: www.allariz.com

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    Devo sublinhar que o meu papel em Allariz tem sido o de investigador do

    Parque Etnogrfico, o que me permitiu observar activamente as implicaes

    sociais do patrimnio cultural, as dificuldades reais e quotidianas da

    patrimonializao e a turistizao de espaos com forte pertena e identidade

    local. Recentemente, como docente universitrio, tenho conduzido os meus

    alunos em numerosas visitas guiadas pelos diferentes projectos de

    desenvolvimento que recentemente tm surgido (exemplo: central elctrica

    ecolgica eco planta de bio massa-, arte na paisagem no rio Arnoia,

    Fundao Vicente Risco, etc), o que me tem permitido avaliar o processo de

    construo e impacto das visitas no olhar dos visitantes, mas tambm observar

    de perto as mudanas desenvolvidas nesta experincia patrimonial.

    ALIJ

    Alij um concelho do Norte de Portugal, no Alto Douro portugus (Distrito de

    Vila Real) no qual a economia bsica gira volta da produo do famoso vinho

    do Porto e outros vinhos como o moscatel de Favaios. Nesta zona do Alto

    Douro, recentemente catalogada como patrimnio mundial, tenta-se

    diversificar a economia atravs de processos de patrimonializao. Em San-

    Fins do Douro, uma pequena freguesia do concelho com no mais de 2.500

    habitantes, tem a sua sede a Casa Museu da Fundao Maurcio Penha, um

    projecto de um escultor portugus j falecido, e que est integrada na Rota do

    Vinho do Porto (um percurso turstico pelas margens do rio Douro). A

    fundao acolhe anualmente artistas e investigadores portugueses e

    estrangeiros que trabalham in situ com o objectivo de promover e divulgar

    tursticamente a zona, mas tambm com a finalidade de divulgar o

    conhecimento produzido junto dos observados. Esta forma de turismocultural, em espao rural, tem dado frutos positivos, sob o ponto de vista do

    desenvolvimento comunitrio e de um turismo cultural vivencial e convivencial,

    j que tem criado uma comunicao intercultural e uma cultura de contactos

    pouco estereotipada entre visitantes e locais (Carvajal, 1992), sem alterar ou

    causar impactes negativos na cultura local.

    O meu papel nesta microinterveno local foi a de investigador visitante

    interessado em observar a estrutura e a reproduo social das famlias depadeiros da zona. Tambm tenho participado activamente nalgumas das

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    actividades artsticas ali desenvolvidas, o que me permitiu assumir o papel do

    observador participante que beneficia duma pluralidade de perspectivas e

    duma viso dinmica.

    PATRIMNIO, TURISMO CULTURAL E NOVAS IDENTIDADES

    O desenvolvimento rural experimentou na Europa um impulso muito importante

    aps 1962, com a entrada em vigor da Poltica Agrcola Comum (PAC), e

    tambm com a criao do Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional

    (FEDER) em 1974. O objectivo deste fundo, conjuntamente com outras

    instituies europeias era conseguir o equilbrio regional e o desenvolvimento

    das estruturas econmicas e sociais dos pases membros atravs dos

    denominados Fundos Estruturais e os Fundos de Coeso, outorgados na

    actualidade s a Portugal, Espanha, Grcia e Irlanda. Em linhas gerais, nestas

    polticas houve uma mudana do modelo estritamente produtivista, originado

    na poca do nascimento da UE, para um modelo guarda florestas,

    desenvolvido sobretudo com a aplicao do programa Leader II (1994-1999) de

    desenvolvimento rural, que outorgava ao espao rural e aos seus habitantes

    um papel mais ambientalista, ecolgico e participativo (Fernndez de Larrinoa,

    2000).

    O papel que o patrimnio cultural teve e tem tido nestes processos de

    desenvolvimento rural foi de grande importncia na Europa, sobretudo depois

    dos anos 1970. Por exemplo, no Reino Unido, em 1980, contabilizaram-se 500

    museus etnogrficos locais(7), os quais representam uma resposta cultural face

    dura crise industrial. Outro exemplo importante vem de Frana, onde se

    elaborou o conceito de ecomuseu(8), para superar a crise agrria das zonas

    (7) Walsh, Kevin (1992), The representation of the past: museums and heritage in the post-modern world, Londres, Routledge.(8) No ano 1971 tem lugar um almoo de trabalho em Pars no qual participaram H. Varine, G.H. Riviere e Berge Antoine asessor do ministro de ambiente Robert Poujade - . Em Setembrode 1971, Robert Poujade elabora o conceito de ECOMUSEU na 9 Conferencia do ICOM,mas o criador da palavra foi Varine. O conceito est marcado peas iniciativas em favor dodesenvolvimento sustentvel e a harmonia com o meio ambiente: Orientao ecolgica e ambientalista. Instrumento para a participao popular. Ordenao do territrio. Tomada de conscincia da populao. Situa objectos no seu contexto, preserva habilidades e saberes locais, consciencializa eeduca sobre os valores do patrimnio cultural.

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    rurais. Na Pennsula Ibrica o uso do patrimnio cultural como estratgia de

    desenvolvimento rural (isto , como via para melhorar a qualidade de vida das

    populaes rurais) teve lugar mais tarde do que em Frana e no Reino Unido.

    S agora se discute e debate sobre o assunto, o qual sempre associado ao

    turismo cultural e desagrarizao de um mundo rural convertido cada vez

    mais em rurbano(9). de esclarecer aqui que o patrimnio cultural tambm se

    tem activado em contextos urbanos, especialmente o imobilirio, mas no

    espao rural onde se tm promovido mais microintervenes.

    Descrevemos quatro exemplos do Noroeste Ibrico nos quais o

    patrimnio cultural foi utilizado socialmente como proposta alternativa de

    desenvolvimento comunitrio com forte participao local. Aqui, o patrimnio

    cultural entende-se no como sinnimo de cultura, mas como representao

    simblica da cultura, pois se nem toda a cultura se pode patrimonializar, toda

    a cultura se poder conhecer e estudar (Rodrguez Becerra, 1997). O

    patrimnio cultural tambm se entende como um bem cultural material ou

    imaterial, que tenta representar a identidade de um grupo humano. A

    superao da ideia de monumento, enquanto elemento patrimonial

    singularmente formoso e artstico, pela de bem cultural, converte o patrimnio

    cultural num smbolo de dada cultura, com potencialidades para rentabilizar

    socioeconmicamente o seu poder de atraco sobre um turismo que

    poderamos denominar cultural. Turismo esse que procura, consome ou sente

    curiosidade por conhecer, disfrutar ou contactar com o patrimnio cultural no

    seu contexto de activao.

    O turismo cultural transforma o patrimnio cultural em bem

    potencialmente desejvel pela experincia do turista, que cada vez mais um

    consumidor cultural com tempo de lazer (Garca Canclini, 1995). O consumocultural uma estratgia cultural de autosobrevivncia e autodefinio que

    desenha a janela do imaginado como autntico (Friedman, 1994). Para o

    Exemplos de ecomuseus so a mina de Le Tramblay (Lige-Francia), o Ecomuseu do Seixal(Portugal). No Reino Unido e noutros pases tm-se desenvolvido experincias semelhantes,ainda que sem utilizar o conceito ecomuseu. Ver: Rivire, Georges Henri (1989), Lamuseologa: curso de museologa, textos y textimonio, Madrid, Akal.

    (9)

    Arquetipo social hbrido que define a transformao do mundo rural por causa de umprocesso de urbanizao que potencia esse hibridismo. No hibridismo entre esses dois plosh uma asimetra a favor do urbano. Ver:

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    sucesso deste processo necessita-se, no geral, duma patrimonializao feliz,

    pois o turista no quer ver misrias, antes quer ver e visitar espaos sem

    conflito, isto , pretende encontrar e encontrar-se na memria da arcdia feliz

    (Sierra Rodrguez, 2000). Este fenmeno arrasta consigo um paradoxo, pois o

    turismo cultural pode provocar o esquecimento dos locais, da sua histria, das

    suas vivncias e dos seus problemas, logo no educaria nem explicaria nada,

    podendo o visitante cair numa viso distanciada e estereotipada. Perante isto,

    a alternativa potenciar uma memria cultural crtica, que o que se tenta

    promover nos exemplos etnogrficos apresentados acima. Isto significa

    entender a desagrarizao como uma crise do modelo econmico tradicional

    e a patrimonializao como uma reproduo social que utiliza elementos do

    passado que no podem vivenciar-se mas sim utilizar-se. Assim, a memria

    sacralizada para o consumo e transformada pelos museus em templos da

    litrgia autoreferente da comunidade (Ario, 2001), isto , o patrimnio cultural.

    Nos quatro exemplos apresentados, tomados como metforas

    experienciais dum processo mais generalizado, o objectivo sempre atingir a

    revitalizao de uma pequena rea territorial, mais do que continuar com uma

    tradio. Mas ao mesmo tempo que esse objectivo econmico existe,

    tambm importante reconstruir e reafirmar a identidade de uma pequena

    microregio ou territrio, reconstruindo um ns num contexto de mudana em

    ritmo acelerado. Essa reconstruo de identidade realiza-se atravs de

    elementos patrimoniais que, se antes representavam o atraso, hoje

    representam o progresso e o futuro, tudo isso graas a uma mudana de

    funo, significado e valor social dos bens patrimoniais.

    Observemos com ateno as novas identidades que considero terem

    sido geradas quando afirmo que o uso social do patrimnio cultural pe emcena uma nova definio do ns. Em particular, o caso de Allariz representa a

    emergncia icnica de uma etnognese nacional galega, pois ali onde o

    nacionalismo galego condensa as suas esperanas de construir uma Galiza

    com uma etnicidade nacional diferenciada face ao resto do Estado espanhol.

    No caso de Vilar das Donas a nova identidade que se configura a

    recente e processual identidade comarcal. Foi ainda na Espanha do sculo

    -Pereiro Prez, Xerardo (2002): Galegos de Vila. Antropoloxa dun Espacio Rurbano. Santiagode Compostela: Editorial Sotelo Blanco (no prelo).

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    XIX que se chegou a estabelecer a actual diviso distrital e concelhia, mas

    esse processo no impediu que na Galiza a freguesia continuasse a ser o

    quadro bsico da identidade e da convivncia (Lisn Tolosana, 1979;

    Fernndez de Rota, 1984). S nas ltimas dcadas o concelho adquiriu mais

    importncia como quadro de identidade partilhado. Pois bem, a partir do

    segundo quinqunio dos anos 1990 que a administrao autonmica galega

    iniciou um processo de criao de comarcas, isto , entidades territoriais

    micro regionais regidas por uma fundao semipblica com o fim de

    desenvolver e dinamizar um territrio de vrios concelhos atravs da gesto de

    investimentos em desenvolvimento rural vindos de programas da UE. Ao nvel

    da percepo social da comarca, a debilidade da adeso primordial (Geertz,

    1987), produto de localismos de freguesia e concelho, dificulta a progresso de

    projectos conjuntos que redundem num aumento dos beneficirios e na

    melhoria de servios pblicos atravs de uma estratgia cooperativa no

    extremadamente localista. em todo este processo de criao de uma nova

    identidade comarcal que a associao Os Lobos de Vilar das Donas participa,

    consciente do seu papel e da importncia que o patrimnio cultural tem na

    criao de uma imagem de marca para anticipar a experincia vivencial de um

    turismo cultural.

    Em Rozadas (Astrias), essa nova identidade de que falo

    destacadamente a familiar, isto , a mudana de um modo de vida agrrio para

    um modo de vida rurbano desagrarizado e baseado no turismo.

    Nos quatro casos apresentados, mas especialmente no exemplo de Alij

    (Portugal), o que est em jogo uma nova definio de identidade do

    denominado espao rural. O contexto de crise da agricultura, subsistindo

    esta como modo de vida custa de um grande esforo de capitalizaotecnolgica, e que desanima muitos a continuarem as suas actividades. A

    alternativa passa pelo turismo, que s vezes se vende como panaceia e

    soluo para todos os problemas, e que necessita de transformar o valor e o

    significado de recursos patrimoniais locais para promover uma economia da

    memria (Seixas: 1999) que garanta a reproduo social dos que ficam e dos

    que regressam. Em todos estos exemplos tenta-se legitimar a criao de novas

    identidades e recompor as velhas: casa-famlia, freguesia, pequena cidade,concelho.

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    CONCLUSES

    As macrointervenes turstico-patrimoniais tm um objectivo central que

    conseguir um grande volume de visitantes, mas tambm outro, que criar

    adeso social atravs de uma cultura do espectculo com grande eficcia

    simblica para todos os pblicos (Prats, 1997). Estas so desenvolvidas

    geralmente em espaos urbanos que caminham para o psindustrialismo e a

    psmodernidade, mudando a sua imagem por meio da manipulao da cultura.

    Em relao com as mesmas esto as microintervenes estudadas, que nos

    mostram a necessidade de reconstruir uma identidade em contexto de crise

    socioeconmica, activando socialmente o patrimnio cultural para um consumo

    turstico que potencia uma economa da memria e da paisagem. Dessa

    maneira pequenas zonas rurais reproduzem-se e revitalizam-se

    socioeconomicamente graas patrimonializao e turistizao das mesmas.

    As microactivaes turstico-patrimoniais estudadas so uma resposta

    local face ao processo de globalizao mais acelerada do que noutras pocas

    histricas (Garca Canclini, 1999 a). Esta resposta, embora tenha contado

    inicialmente com ajuda externa, pode chegar a autosustentar-se, sem que haja

    necessidade de viagens constantes sala de operaes cirrgicas das

    administraes pblicas. Portanto, apesar da difcil articulao entre o local e o

    global, os locais trascendem em muitos casos do local para o global e

    reivindicam a sua participao na interdependncia. Nesta articulao, o

    patrimnio cultural apropriado de forma desigual, tanto podendo servir para a

    coeso, como para a reproduo da diferena num processo social de

    acumulao (Garca Canclini, 1999 b).

    Os casos estudados so exemplos do que podemos denominar como acultura da permanncia numa poca de fugacidade(10). O perene e o fugaz

    convivem paradoxalmente com um anseio em conservar coisas. Este processo

    vivido com paixo, afecto e emoo. O que se expressa uma

    autointerpretao da memria social(11), que serve para que os grupos

    (10) Fernndez de Rota, Jos Antonio (1996), La cultura de la permanencia en la era de lafugacidad, Revista de Antropologa Social, 5, pp. 115-123.

    (11) Connerton, Paul (1989), How Societies Remember, Cambridge, Cambridge UniversityPress.

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    humanos recordem colectivamente. Assim, o patrimnio cultural pode ser

    entendido como um recurso social nemotcnico inserido num jogo de

    recordaes e esquecimentos. Alm disso, o patrimnio cultural uma zona de

    contacto (Clifford, 1999), um cronotopos de locais e visitantes. Os visitantes

    viajam muitas vezes em grupo, num tempo do visitante durante o qual se

    evadem das suas preocupaes. Ao mesmo tempo os residentes locais podem

    estabelecer pontes de comunicao no estereotipada com os visitantes que

    faam esforos por conhecer a perspectiva emic. Esta ltima estratgia

    contribui decisivamente para um encontro intercultural no assimtrico,

    educativo e intensamente convivencial.

    Como temos defendido, as microintervenes patrimoniais so uma

    reaco cultural face transformao da memria, das identidades e dos

    recursos econmicos, geralmente em contexto rural. desta maneira que

    quando o presente vai mal se reinventa o passado (Segalen, 1999). Assim, o

    patrimnio cultural transforma-se num objecto de gesto econmica, poltica e

    cultural, o que d azo a trs tipos de discursos. O discurso econmico entende

    o patrimnio cultural como um salva-vidas (Sierra, 2000). A retrica poltica

    utiliza o patrimnio cultural para a sua prpria legitimao, representando

    assim a nova herldica do poder. Finalmente, o discurso cultural identitrio

    mostra-nos como o que popular e tradicional deixam de ser subalternos

    para desconstruir as distncias assimtricas para com as belas artes e a alta

    cultura. Ao mesmo tempo, o outro antropolgico rebela-se e realiza o seu

    prprio discurso sobre si mesmo, caracterizado por uma identidade resistente

    (Sierra, 2000) e por novas reancoragens neorurais e rurbanas.

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