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Patrimônio, Memória e Etnicidade: reinvenções da cultura açoriana: José Reginaldo Santos Gonçalves 1 Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia do IFCS /UFRJ Introdução É vasta a literatura produzida sobre as festas do divino espírito santo. Estudiosos de folclore (Van Gennep 1947; 1949; Moraes Filho 1999; Cascudo 1962) 2 , historiadores (Melo e Souza 1994; Abreu 1999), antropólogos (Brandão 1978; Salvador 1981; 1987; Leal 1994; 2001) 1 O autor é Ph.D. pelo Departamento de Antropologia Cultural da Universidade de Virginia / EUA; professor/pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia do IFCS/UFRJ; e pesquisador 1D do CNPq. É autor do livro A retórica da perda: os discursos do patrimônio cultural no Brasil e de diversos artigos sobre os usos da noção de ‘patrimônio cultural’ no Brasil. Esta comunicação resulta de projeto de pesquisa que vem sendo desenvolvido no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia do IFCS da UFRJ e do Núcleo de Memória e Narrativa do IFCS/UFRJ e tem recebido apoio financeiro da CAPES, FAPERJ, CNPQ e FUJB. 2 Para um levantamento bibliográfico de trabalhos de “memorialistas” e “folcloristas” sobre as festas do divino no Brasil, ver (Abreu 1999: 394-395) Ver também Cascudo (1962) para uma bibliografia de estudos de folclore sobre as festas do divino. Leal (1994) comenta bibliografia de folcloristas e alguns antropólogos sobre esta festa em Portugal, Açores e Ilha da Madeira.

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Patrimônio, Memória e Etnicidade:reinvenções da cultura açoriana:

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  • Patrimnio, Memria e Etnicidade:

    reinvenes da cultura aoriana:

    Jos Reginaldo Santos Gonalves1 Programa de Ps-Graduao em Sociologia e Antropologia do IFCS /UFRJ

    Introduo

    vasta a literatura produzida sobre as festas do divino esprito santo. Estudiosos de folclore (Van Gennep 1947; 1949; Moraes Filho 1999; Cascudo 1962)2, historiadores (Melo e Souza 1994; Abreu 1999), antroplogos (Brando 1978; Salvador 1981; 1987; Leal 1994; 2001)

    1 O autor Ph.D. pelo Departamento de Antropologia Cultural da Universidade de Virginia / EUA; professor/pesquisador do Programa de Ps-Graduao em Sociologia e Antropologia do IFCS/UFRJ; e pesquisador 1D do CNPq. autor do livro A retrica da perda: os discursos do patrimnio cultural no Brasil e de diversos artigos sobre os usos da noo de patrimnio cultural no Brasil. Esta comunicao resulta de projeto de pesquisa que vem sendo desenvolvido no mbito do Programa de Ps-Graduao em Sociologia e Antropologia do IFCS da UFRJ e do Ncleo de Memria e Narrativa do IFCS/UFRJ e tem recebido apoio financeiro da CAPES, FAPERJ, CNPQ e FUJB. 2 Para um levantamento bibliogrfico de trabalhos de memorialistas e folcloristas sobre as festas do divino no Brasil, ver (Abreu 1999: 394-395) Ver tambm Cascudo (1962) para uma bibliografia de estudos de folclore sobre as festas do divino. Leal (1994) comenta bibliografia de folcloristas e alguns antroplogos sobre esta festa em Portugal, Aores e Ilha da Madeira.

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    tm produzido uma extensa bibliografia sobre a ocorrncia dessas festas na Europa, no Arquiplago dos Aores, na Ilha da Madeira, no Brasil, nos Estados Unidos e no Canad.

    Apesar das contribuies importantes que podem trazer em termos informativos, os estudos de folclore (por certo os mais numerosos dentre as trs categorias de estudos que distinguimos), assim como alguns estudos de histria voltados para uma perspectiva estritamente descritiva, foram acertadamente criticados em funo dos pressupostos etnocntricos com que foram conduzidos3. Desse modo, estudos antropolgicos e histricos modernos deslocaram sua ateno dos traos culturais que distinguiriam essas festas, assim como de seu processo de difuso, para as funes sociais e simblicas que elas desempenham em determinadas sociedades e perodos histricos.

    Dentro desse conjunto, estudos recentes realizados por antroplogos e por historiadores tm focalizado esta celebrao em contextos scio-culturais especficos: nos Aores (Leal 1994; 2001); no Brasil (Brando 1978; Melo e Souza 1994; Abreu 1999); e nos Estados Unidos (Salvador 1981; 1987). A perspectiva metodolgica desses estudos tem sido predominantemente monogrfica, deixando num segundo plano ou mesmo excluindo as possibilidades de investigao comparativa suscitadas por esse fenmeno.

    Nos ltimos quatro anos4, venho realizando pesquisas sobre as festas do divino esprito santo entre imigrantes aorianos nos Estados Unidos e no Brasil. Podemos dizer que essas festas constituem um fato de civilizao, no sentido atribudo por Marcel Mauss a esse termo (1968a: 235)5. No se restringem a uma determinada rea social e cultural. Transcendem fronteiras nacionais e geogrficas. vasta sua rea de ocorrncia: Aores, Canad, Estados Unidos (Nova Inglaterra e Califrnia principalmente) e Brasil (especialmente o sul e o sudeste do Brasil). Em termos histricos, apresenta uma grande profundidade. Os mitos de origem da festa referem-se sua criao no sculo XIII, em Portugal6. Mas h referncias sua existncia na Alemanha e na Frana,

    3 Uma discusso crtica dessa bibliografia, especialmente aquela referente aos Aores, Ilha da Madeira e aos Estados Unidos feita por (Leal 1994). 4 O trabalho de campo vem sendo desenvolvido junto a irmandades na Nova Iglaterra, especificamente em Rhode Island, EEUU ; e no Brasil, na cidade do Rio de Janeiro, junto a irmandades aorianas.

    5 Les phnomnes de civilization sont ainsi essentiellement internationaux, extranationaux. On peut donc les definir em opposition aux phnomnes sociaux spcifiques de telle ou telle socit: ceux des phnomnes sociaux qui son communs plusieurs socits plus ou moins rapproches,

    rapporches par contact prolong, par intermdiaire permanent, par filiation partir dune souche commune (1968a: 235).

    6 A origem da festa , em geral, situada no sculo XIV, associada Rainha Santa Izabel (1271-1336), esposa de Dom Diniz (Cascudo 1962: 281-282). Alguns estudiosos apontam para a ligao entre a festa e a ideologia milenarista do abade calabrs Joaquim de Fiore, elaborada a partir da

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    ainda no sculo XII (Van Gennep 1947; 1949; Cascudo 1962). Estamos diante de uma estrutura de longa durao.

    Patrimnio cultural e Identidade

    Trata-se tambm de um fato social total (Mauss 1974), na medida em que envolve arquitetura, culinria, msica, religio, rituais, tcnicas, esttica, regras jurdicas, moralidade, etc. O que suscita algumas questes relativamente s concepes de patrimnio cultural. Especialmente pelo fato dessas diversas dimenses no aparecerem, do ponto de vista nativo, como categorias independentes. Aparecem simbolicamente totalizadas, pelo divino esprito santo. Este, por sua vez, representado no exatamente como a terceira pessoa da Santssima Trindade, mas como uma entidade individualizada e poderosa.

    Nos ltimos anos venho trabalhando sistematicamente com a categoria patrimnio e os diversos contornos semnticos que ela pode assumir. Explorando os usos sociais e simblicos dessa categoria, tenho problematizado as noes modernas e correntes de patrimnio cultural, mostrando situaes que se caracterizam pela sua insero desta em totalidades csmicas e morais, onde suas fronteiras so bem pouco delimitadas. Tenho sublinhado que os patrimnios culturais seriam melhor entendidos se situados como elementos mediadores entre diversos domnios social e simbolicamente construdos, estabelecendo pontes e cercas entre passado e presente, deuses e homens, mortos e vivos, nacionais e estrangeiros, ricos e pobres, etc. Nesse sentido, tenho sugerido a possibilidade de pensarmos o patrimnio em termos etnogrficos, analisando-o como um fato social total, e desnaturalizando assim seus usos nos modernos discursos do patrimnio cultural (Gonalves 2000; 2000a; 2000b; 2001; 2001a; 2001b; 2002; 2003; 2003a; 2004).

    Essas festas so exemplo do que poderamos chamar de um patrimnio transnacional (Gonalves 2003). Mas classificar essa festa como patrimnio exige alguma cautela. preciso reconhecer algumas nuances nas representaes do que se pode entender por patrimnio.

    bem verdade que so as prprias lideranas aorianas que falam de um patrimnio aoriano ou da aorianidade. Mas este uso est distante das concepes assumidas pelos devotos do esprito santo em sua vida cotidiana. A diferena fundamental est precisamente no uso

    chegada de uma idade do esprito santo, que sucederia as idades do pai e do filho (Corteso 1980; Leal 1994).

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    das categorias esprito e matria. Elas so diversamente concebidas pelos intelectuais e lideranas aorianas, pelos padres da igreja catlica e pelos devotos.

    Do ponto de vista dos devotos, a coroa, a bandeira, as comidas, os objetos (todo esse conjunto de bens materiais que integram a festa e so propriedade das irmandades); so, de certo modo, manifestaes do prprio esprito santo. Do ponto de vista dos padres, so apenas smbolos (no sentido de que so matria e no se confundem com o esprito). Do ponto de vista dos intelectuais, so representaes materiais de uma identidade e de uma memria tnicas. Desse ponto de vista, as estruturas materiais que poderamos classificar como patrimnio so primeiramente boas para identificar.

    As classificaes dos devotos so estranhas a essa concepo de patrimnio. Do seu ponto de vista, trata-se fundamentalmente de uma relao de troca com uma divindade. E nessa concepo total, culinria, objetos, rituais, mitos, esprito, matria, tudo se mistura. Sabemos do carter fundador dessas relaes de troca com os deuses. Como nos lembra Marcel Mauss, foi com eles que os seres humanos primeiro estabeleceram relaes de troca, uma vez que eles eram os verdadeiros proprietrios das coisas e dos bens do mundo (Mauss 1974:63).

    Como podemos usar adequadamente, em contextos como esses, a categoria patrimnio? Podemos ali certamente identificar estruturas espaciais, objetos, alimentos, rezas, mitos, rituais enquanto patrimnio. Mas preciso no naturalizar essa categoria e impor quele

    conjunto um significado peculiar e estranho ao chamado ponto de vista nativo. H uma diferena bsica. E esta reside no modo como representada a oposio

    entre matria e esprito. Sabemos que a concepo de uma matria depurada de qualquer esprito uma construo moderna (Mauss 1974:163). Idem para um esprito independente de toda e qualquer materialidade. No a partir dessa dicotomia que pensam os devotos. Devemos levar em conta esse fato se queremos entender a concepo nativa de patrimnio.

    possvel preservar uma graa recebida? possvel tombar os sete dons do esprito santo? Certamente no. Mas possvel, sim, preservar e, por meio do registro e acompanhamento, lugares, objetos, festas, conhecimentos culinrios, etc. nessa direo que caminha a noo recente de patrimnio intangvel, nos recentes discursos brasileiros do patrimnio.

    curioso, no entanto, o uso dessa noo para classificar bens to tangveis quanto lugares, festas, espetculos e alimentos. De certo modo, essa noo expressa a moderna concepo antropolgica de cultura. Nesta concepo, a nfase est nas relaes sociais, ou mesmo nas

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    relaes simblicas, mas no nos objetos e nas tcnicas. A categoria intangibilidade talvez esteja relacionada a esse carter desmaterializado que assumiu a moderna noo antropolgica de cultura. Ou, mais precisamente, ao afastamento dessa disciplina, ao longo do sculo XX, em relao ao estudo de objetos materiais e tcnicas (Schlanger 1998). No por acaso, so antroplogos muitos dos que esto frente daquele projeto de renovao ou ampliao da categoria patrimnio.

    Do ponto de vista dos devotos, o patrimnio pensado no exatamente como um smbolo de realidades espirituais; nem necessariamente como representaes de uma identidade tnica aoriana; na verdade, ela pensada como formas especficas de manifestao do divino esprito santo.

    Afinal, os seres humanos usam seus smbolos sobretudo para agir e no somente para se comunicar. O patrimnio usado no apenas para simbolizar, representar ou comunicar: ele bom para agir. Ele faz a mediao sensvel entre seres humanos e divindades, entre mortos e vivos, passado e presente, entre o cu e a terra, entre outras oposies. No existe apenas para representar idias e valores abstratos e para ser contemplado. Ele, de certo modo, constri, forma as pessoas.

    Esses diversos significados, vale sublinhar, no se excluem. As mesmas pessoas podem operar ora com um, ora com outro significado. Como o caso da coroa do divino, um elemento extremamente importante desse patrimnio. Exposta num museu, faz a mediao entre os visitantes e a cultura aoriana, torna visvel essa dimenso do invisvel (Pomian 1997). Numa irmandade religiosa, circula entre os irmos, est presente nas festas e cerimnias, nos almoos rituais, manifestando concretamente a presena do esprito santo, fazendo uma mediao sensvel entre a divindade e seus devotos. Nesse ltimo contexto, no uma simples coroa de prata. No contexto de uma exposio museolgica, um objeto cultural, parte do chamado patrimnio aoriano, aqui entendido em seu sentido estritamente moderno.

    A originalidade da contribuio dos antroplogos construo e ao entendimento da categoria patrimnio reside, talvez, na ambigidade da noo antropolgica de cultura, permanentemente exposta s mais diversas concepes nativas. Explorando essa direo de pensamento, a prpria categoria patrimnio que vem a ser pensada etnograficamente, tomando-se como referncia o ponto de vista do outro. Pergunta-se: em que medida essa categoria til para entender outras culturas? Em que medida ela nos permite entender o universo mental e social de outras populaes?

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    Marcel Mauss dirigia aos antroplogos a famosa recomendao: ...antes de tudo, formar o maior catlogo possvel de categorias; preciso partir de todas aquelas das quais possvel saber que os homens se serviram. Ver-se- ento que ainda existem muitas luas mortas, ou plidas, ou obscuras no firmamento da razo (Mauss 1974: 205).

    Estamos certamente diante de uma dessas categorias. necessrio comparar os diversos contornos semnticos que ela pde e poder ainda assumir no tempo e no espao. Mas no cumprimento dessa tarefa, importante assinalar que nos situamos num plano distinto das discusses de ordem normativa e programtica sobre o patrimnio. No poderemos responder qual a melhor opo em termos de polticas de patrimnio. Mas apontando para a dimenso universal dessa noo, talvez possamos iluminar as razes pelas quais os indivduos e os grupos, em diferentes culturas, continuam a us-la. Mais do que um sinal diacrtico a diferenciar naes, grupos tnicos e outras coletividades, a categoria patrimnio, em suas variadas representaes, parece confundir-se com as diversas formas de vida e de autoconscincia cultural. Ao que parece, trata-se de um problema bem mais complexo do que sugerem os debates polticos e ideolgicos sobre o tema do patrimnio.

    Ainda na primeira metade do sculo passado, Walter Benjamin fazia a seguinte pergunta: ...qual o valor de todo nosso patrimnio cultural, se a experincia no o vincula a [cada um de] ns? (1986 [1933]: 196). Esta pergunta, apesar do tempo decorrido, talvez seja ainda bastante atual.

    As Categorias da Honra e da Graa

    Um importante estudo monogrfico sobre as festas do divino nos Aores traz para o foco de anlise as relaes de ddiva e contra-ddiva entre os seres humanos e entre estes e o esprito santo (Leal 1994) . Embora essa hiptese traga uma contribuio importante para o entendimento da festa ela deixa de lado alguns problemas importantes.

    Ao sublinhar as funes sociais das festas na reproduo da ordem social, ela deixa de responder questo de sabermos quais os significados religiosos e simblicos dessas festas, ou mais precisamente, quais as categorias coletivas de pensamento por meio das quais elas so estruturadas.

    Minha proposta consiste precisamente em focalizar algumas dessas categorias que parecem desempenhar um papel fundamental nessas festas, tanto no contexto dos Aores quanto no contexto da emigrao.

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    Entre as categorias que qualificam essas relaes de ddiva e contra-ddiva entre seres humanos e entre estes e a divindade, podemos destacar, respectivamente, a honra e a graa.

    Em termos conceituais, estou usando essas categorias com base nas reflexes tericas de Julian Pitt-Rivers sobre a honra e a graa a partir de pesquisas etnogrficas nas chamadas sociedades mediterrneas e especialmente sul da Espanha.

    Resumindo ao extremo um ponto bastante complexo, podemos dizer que essas festas so realizadas com o propsito fundamental de conquistar e legitimar a honra e, simultaneamente, propiciar a graa.

    Indivduos no participam da festa. As unidades sociais de participao so famlias: famlias nucleares e famlias extensas, mais compadres, vizinhos, amigos. Cada mordomo participa da festa enquanto pai, av, filho, irmo, tio, etc. na condio de chefe de uma famlia, de centro de uma rede de relaes de parentesco que ele assume a direo da festa.

    Nessas redes de relaes que participam de todos os momentos da festa, possvel distinguir um domnio masculino e um domnio feminino, cada um deles ritualmente demarcado. As categorias homem e mulher no expressam apenas relaes de gnero, no sentido moderno desse termo. Trata-se na verdade de categorias totais, pressupondo dimenses morais e csmicas.

    Enquanto a honra (a qualidade, precedncia moral pessoal) se situa basicamente no domnio masculino, das relaes entre os homens, o espao da rivalidade e da competitividade, das relaes com o mundo dos negcios e da poltica; a graa situa-se no plano feminino, especialmente no espao das relaes de ddiva e contra-ddiva entre os seres humanos e o esprito santo; a graa uma ddiva unilateral concedida pelo capricho da divindade e sem possibilidade de retribuio.

    Segundo Julian Pitt-Rivers: Existem dois modos de comportamento paralelos que correspondem antiga oposio entre o corao e a cabea: o que se sente e o que se sabe, a viso subjetiva e a viso objetiva do mundo, o misterioso e o racional, o sagrado e o profano. Esto governados respectivamente pelo princpio da graa e pelo princpio da lei, isto , a regularidade previsvel, assim como a justia e a lei que impem ordem nos assuntos humanos---e em relao ao qual o perdo (ou graa) permite um desvio. Sob o ttulo de graa possvel agrupar todos os fenmenos que escapam ao controle consciente e racional da conduta (1992:288).

    Surpreendemos a uma outra distino fundamental que entre o mundo do divino e o mundo dos seres humanos; entre a impenetrabilidade da vontade do esprito santo, cuja

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    graa um mistrio, e os esforos humanos de prever e controlar o futuro por meio do clculo e do contrato, onde se conquista a honra.

    Uma das funes simblicas fundamentais das festas do divino realizar uma mediao entre esses universos. Novamente resumindo grosseiramente um ponto bastante complexo, diria que as festas do divino transformam simbolicamente a honra conquista pelos homens no mundo terreno em graa concedida pela vontade misteriosa do divino.

    As festas do divino ocorrem em um perodo ritualmente demarcado do ciclo anual. Elas tm incio formal na noite do domingo de Pscoa e se prolonga por sete semanas at o dia principal, que domingo de Pentecostes. Esse perodo do ano simbolicamente demarcado como o tempo das festas, ou o tempo dos imprios, como dizem nos Aores (Leal 1994).

    Trata-se de um tempo de intensa aproximao com o sagrado, um tempo que se caracteriza pelo que Durkheim chamou de efervescncia social (2000).

    Embora as atividades de preparao da festa j se desenvolvam no prprio domingo de Pentecostes (quando so sorteados o mordomo e os domingas7 que assumiro a direo da prxima festa), a partir do domingo de Pscoa do ano seguinte que as atividades mais se intensificam e ganham uma dimenso ritual mais forte.

    Assim como o inverno e o vero esquim, estudados por Mauss, o tempo das festas ope-se ao tempo anterior e posterior em termos da intensidade das atividades, da dedicao ao trabalho para o esprito santo, dos freqentes e intensos encontros sociais, dos almoos, lanches e jantares, da distribuio de po e carne aos pobres, e das atividades religiosas como rezas, procisses e missas, ao longo das sete semanas, de segunda a domingo.

    Na classificao do tempo anual, esse perodo tem uma qualidade muito especial, pois ele simbolicamente definido como o tempo em que se espera e se recebe o esprito santo. Nos limites desse tempo, l-se o universo, a natureza, a vida coletiva e individual, as relaes com a divindade e com os homens, tomando-se como referncia a categoria da graa.

    O espao tambm redefinido em funo do tempo das festas, esse tempo de aproximao do sagrado e de renovao do mundo. As atividades se concentram, alternadamente,

    7 A categoria mordomo usada no contexto da Nova Iglaterra (e tambm nos Aores) para designar aquele que responsvel pela direo anual das festas. Os domingas situam-se numa posio hierarquicamente abaixo dos mordomos, sendo os responsveis por cada uma das sete semanas da festa. Verifiquei o uso desses termos entre imigrantes aorianos na Nova Inglaterra. No Brasil, especialmente no Rio de Janeiro, no verifiquei o uso de nenhuma dessas categorias. Nesse ltimo contexto, designam-se a si mesmos como irmos.

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    na irmandade, nas casas dos domingas (ou irmos), na igreja, e atravs das procisses (Contins 2003) a mediar as distncias fsicas e simblicas entre esses locais.

    A preparao e organizao da festa cabem queles que, sorteados na noite do domingo de Pentecostes, ficaro responsveis por cada uma das sete semanas de festa. Cada um desses irmos ter consigo a coroa do divino durante essa semana. Sua casa, especialmente preparada para isso, com um altar na sala de visita abrigando a coroa em posio de destaque, receber diariamente os irmos que desejem fazer alguma prece ao divino.

    Nas quintas-feiras, serve-se, depois da reza, um lanche ou um jantar. No domingo, depois da missa e da coroao das crianas, serve-se um almoo na irmandade ou na casa de um irmo.

    As atividades de preparao, organizao e realizao da festa dependem fortemente dos domingas e mordomos. Evidentemente, as irmandades apiam essas atividades em termos de trabalho, e em termos financeiros. Mas sem os domingas e mordomos a festa no possvel.

    importante assinalar que se verifica uma forte rivalidade entre os diversos domingas, entre o mordomo e os domingas, para mostrar quem fez a melhor festa, ou seja, quem teve o maior nmero de convidados, e conseqentemente a maior fartura de comidas e bebidas. Cada detalhe da festa rigorosamente avaliado e julgado pelos irmos. Um dominga que ofereceu uma festa qual faltou comida e bebida, ou qual no compareceram muitos convidados,m ter seu prestgio fortemente abalado.

    Cada um dos domingas e mordomos com quem conversei manifestaram seu intenso temor de que faltassem comidas e bebidas, ou que faltassem convidados, ou que algum detalhe comprometesse a festa. Uma festa bem sucedida confirma a posio social e moral superior, ou a honra, de um dominga. Mas, uma vez que nem todas as festas podem ser igualmente boas, muitos saem um tanto diminudos ao fim do tempo das festas. Cada perodo de festas portanto um teste para o prestgio pessoal de cada dominga.

    H nesse contexto uma forte rivalidade, um sentido agonstico prximo do potlatch do noroeste americano. preciso ter recursos, e demonstrar que se tem recursos, quando se assume uma semana de festas na condio de dominga. O propsito a indubitavelmente ofuscar o outro.

    Mas esse comportamento no classificado positivamente. Afirmam que seu` esprito santo no gosta disso e pode mesmo punir severamente aquele que se exceder em sua vaidade e ostentao.

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    Desse modo, em respeito ao esprito santo que esses domingas e mordomos buscam aparentar moderao em seus gestos de generosidade. Assim procedendo, tornam possvel a transformao de sua honra pessoal em graa.

    Afirmei h pouco que as festas do divino, do ponto de vista desses homens que assumem o papel de domingas e mordomo, funcionam simbolicamente para transformar honra em graa.

    A fonte ltima desta o esprito santo. Diferentemente da honra, que algo que se conquista, que se acumula e se defende contra os rivais; a graa, categoria eminentemente feminina, to somente recebida e ela depende do capricho do divino esprito santo.

    Julian Pitt-Rivers, analisando as representaes camponesas no sul da Espanha, afirma: A graa precisamente o contrrio da honra masculina e isto a coloca do lado da honra feminina. Em primeiro lugar, a mulheres tm, por assim dizer, um direito preferente graa, no s no terreno religioso (so mais ativas na religio do que os homens), mas tambm em sua atribuio na maioria de suas formas. A graa esttica puramente feminina: no se espera que os homens tenham graa de movimentos, e ainda que possam danar com graa, supe-se comumente que os danarinos profissionais so afeminados (1992: 295).

    As atividades femininas na preparao, organizao e realizao das festas do divino so essencialmente complementares s atividades dos homens. Enquanto estes ltimos desenvolvem suas atividades no espao entre a famlia, a irmandade e o mundo exterior, fazendo contatos com crculos sociais e polticos mais amplos, especialmente quando buscam arrecadar fundos para as festas, as atividades das mulheres se desenvolvem predominantemente do espao da famlia e da irmandade.

    A elas cabe dirigir as rezas, que desempenham papel fundamental durante as festas. A elas compete os cuidados relativos comensalidade: elas preparam e servem os alimentos aps as rezas.

    Considerando a festa em sua totalidade, h um momento que ocupa uma posio crucial em todo o processo: a coroao. Esta realizada em cada um dos sete domingos at o dia de Pentecostes. Em geral, as crianas so coroadas, e o so pelo padre, aps a missa, e no interior da igreja. um momento vivido com muita intensidade emocional.

    A coroa (e o cetro) desempenha um papel crucial. Ela est sempre, necessariamente presente em todos os tempos e lugares da festa. Se seguirmos o movimento desse objeto, acompanhamos todas as etapas e lugares importantes das festas. A ela se dirigem as rezas; ela est

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    presente nas procisses; ela est presente nos almoos e jantares, colocada em posio de destaque, como um hspede de honra. Os irmos demonstram forte emoo quando ela chega e quando ela parte.

    A coroa e o cetro so, de certo modo, uma espcie de equipamentos da graa. por seu intermdio (da coroa e do cetro, mas especialmente da coroa) que se manifesta simbolicamente a presena da graa. Na coroao das crianas, mas tambm em outras ocasies, quando a coroa levada em visita casa de algum irmo doente, ou quando se toca com o cetro a cabea e o corao dos irmos.

    Nas procisses apenas mulheres e crianas carregam a coroa e o cetro.

    Vale lembrar aqui o mito de origem das festas aorianas do divino. Essas festas teriam tido incio no sculo XIV, pela iniciativa da Rainha Santa Izabel, em pagamento a uma promessa que fizera ao esprito santo, para que cessassem as guerras entre seu marido, Dom Diniz, e seu filho. Prometera que ofereceria sempre uma festa e distribuiria comidas e bebidas fartamente aos pobres. Em algumas verses, ela mesma coroava os pobres com sua prpria coroa. Desde ento se realizam as festas do divino.

    Esse mito bastante presente entre os imigrantes aorianos, que freqentemente, trazem em suas procisses uma adolescente vestida com o manto, o cetro e a coroa da Rainha Santa Izabel.

    O que gostaria de ressaltar aqui essa oposio complementar entre a honra e a graa, o mundo dos homens e o mundo das mulheres, o mundo dos seres humanos e o mundo do esprito santo.

    Oposio fundamental a estruturar as festas do divino, ela se manifesta nas representaes nativas da categoria patrimnio. Desse ponto de vista, o patrimnio existe simultaneamente, e de modo complementar, enquanto honra e enquanto graa.

    Por um lado, so objetos e propriedades reguladas pelo contrato e pela lei; por outro, so objetos, propriedades que funcionam simbolicamente como mediadores entre o mundo do divino e o mundo dos homens.

    Essa concepo nativa do patrimnio ope-se s representaes dos intelectuais e das lideranas aorianas, para quem esse conjunto de bens e propriedades de natureza material e imaterial constituem-se basicamente como emblemas da aorianidade, como patrimnio cultural aoriano.

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    Nessa concepo o patrimnio cultural , antes de tudo, uma representao e circula no espao pblico e poltico da identidade e da memria aoriana, devendo ser preservado, exibido, reconstrudo, usado como defesa dos interesses dessa comunidade.

    Nas representaes populares, esse patrimnio apresenta duas faces complementares e indissociveis. Ele circula entre o mundo do divino e o mundo dos homens, parte das relaes de ddiva e contra-ddiva entre os homens e o divino, e tambm entre os homens. antes de tudo uma mediao material e imaterial. provvel que nessas representaes esteja o significado simblico da etnicidade aoriana.

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    Bibliografia: Abreu, Martha 1999 O imprio do divino: festas religiosas e cultura popular no Rio de Janeiro: 1830-1900. Record. Brando, C.R. 1978. O divino, o santo e a senhora. Funarte. Bakthin, Mikahil. 1987. A cultura popular na Idade Mdia e no Renascimento. So Paulo: Ed Hucitec. Benjamin, Walter 1986 Magia e tcnica, arte e poltica. Obras Escolhidas. Vol 1. Brasiliense. SP Berc, Y. 1976 Fte et revolte: ds mentalits populaires du XVI au XVII sicle, Hachette, Paris. Burke, Peter 1989. Cultura popular na Idade Moderna. So Paulo: Companhia das Letras. SP. Cascudo, Luis da Cmara

    1962 Verbete Divino In: Dicionrio do Folclore Brasileiro, INL. (Pp. 281-282). Cavalcanti, Maria Laura V.C.; Vilhena, Luiz Rodolfo

    1992 Traando fronteiras: Florestan fernandes e a marginalizao do folclore. In: Estudos Histricos nmero 5. Rio de janeiro: CPDOC/FGV. Clifford, J.

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